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Desatino: O Destino Poético dos Loucos Rosianos

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Prévia do material em texto

Universidade Federal do Rio de Janeiro 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DESATINO: O DESTINO POÉTICO DOS LOUCOS ROSIANOS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2013 
2 
 
 
DESATINO: O DESTINO POÉTICO DOS LOUCOS ROSIANOS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Nádia Garcia Mendes 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação de Mestrado apresentada ao 
Programa de Pós-graduação em Letras 
Vernáculas, da Universidade Federal do Rio 
de Janeiro, como parte dos requisitos 
necessários à obtenção do título de Mestre 
em Literatura Brasileira 
 
 
 
 
 
Orientador: Prof. Doutor Ronaldes de Melo 
e Souza 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
Fevereiro de 2013 
3 
 
 
DESATINO: O DESTINO POÉTICO DOS LOUCOS ROSIANOS 
 
 
 
 
Nádia Garcia Mendes 
 
 
 
Orientador: Ronaldes de Melo e Souza 
 
 
 
 
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras 
Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos 
necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira 
 
 
 
Aprovada por: 
 
 
 
Presidente, Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza 
 
 
Prof. Doutor Manuel Antonio de Castro – UFRJ 
 
 
Prof. Doutora Anélia Montechiari Pietrani – UFRJ 
 
 
Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto – UFRJ (Suplente) 
 
 
Prof. Doutor Sérgio Martagão Gesteira – UFRJ (Suplente) 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
Fevereiro de 2013 
4 
 
 
 
 
 
 
 
 Mendes, Nádia Garcia 
R788me Desatino: o destino poético dos loucos rosianos. / Nádia Garcia 
Mendes. — Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. 
 85 f.; 30cm 
 
 Orientador: Ronaldes de Melo e Souza. 
 Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de 
Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Vernáculas, 
2013. 
 Bibliografia: f. 83-85. 
 
 1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967 – Crítica e interpretação. 2. 
Rosa, João Guimarães, 1908-1967 – Personagens. 3. Loucura na 
literatura. 4. Loucura-Filosofia. 5. Filosofia. 6. Loucura-História. 
I. Souza, Ronaldes de Melo e, 1946- II.Universidade Federal 
do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III.Título. 
 
CDD B869.35 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
5 
 
RESUMO 
 
 
DESATINO: O DESTINO POÉTICO DOS LOUCOS ROSIANOS 
 
 
Nádia Garcia Mendes 
 
 
Orientador: Ronaldes de Melo e Souza 
 
 
 
 
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em 
Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos 
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. 
 
 
 
Na obra de João Guimarães Rosa, a loucura não é apenas um tema recorrente. Os 
loucos apresentam-se intimamente relacionados à poética do autor, são detentores de 
sabedorias que superam o campo estritamente racional, são seres ligados ao mundo 
profético, à poesia, à criança e a todos os elementos que simbolizam o homem criativo. A 
partir de uma das sagas de Corpo de baile e de algumas das estórias que compõem a obra 
Primeiras estórias, este trabalho propõe um estudo de personagens que vivem à margem 
da razão, de modo a entender a singularidade do desatino rosiano. 
 
Palavras-chave: loucura, razão, imaginação, poesia, profecia. 
 
 
Rio de Janeiro 
Fevereiro de 2013 
 
6 
 
RESUMEN 
 
 
DESATINO: EL DESTINO POÉTICO DE LOS LOCOS “ROSIANOS” 
 
 
Nádia Garcia Mendes 
 
 
 Orientador: Ronaldes de Melo e Souza 
 
 
 
Resumem da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em 
Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos 
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. 
 
 
 
 
En la obra de João Guimarães Rosa, la locura no es solo un tema recurrente. Les 
personajes locos se presentan relacionados com la poética del autor, sean titulares de una 
sabiduría que supera el ámbito racional, sean seres conectados al mundo de la profecía, la 
poesia y a todos los elementos que simbolizan el hombre criativo. Desde una de las sagas 
de “Corpo de baile” y algunas delas “estórias” que componen la obra “Primeiras estórias”, 
este trabajo propone un studio de personajes que viven a margen de la razón, a fin de 
comprender la singularidad de la locura “rosiana”. 
 
 
Palabras-Clave: locura, razón, imaginación, poesía, profecía. 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
Fevereiro de 2013 
7 
 
ABSTRACT 
 
 
MADNESS: THE POETIC FATE OF THE CRAZY “ROSIANOS” 
CHARACTERS 
 
 
 
Nádia Garcia Mendes 
 
 
Orientador: Ronaldes de Melo e Souza 
 
 
 
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em 
Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos 
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. 
 
 
In the work of João Guimarães Rosa, madness is not just a recurring theme. The 
crazy feature is closely related to the poetics of the author. The crazy characters are holders 
of such a wisdom that outweighs the strictly rational field and they are connected to the 
prophetic world, to poetry, to children and to all the elements that symbolize the creative 
man. From one of the sagas of “Corpo de baile” and from some of the stories that are part 
of the book “Primeiras estórias”, this word proposes the study of characters that are on the 
borders of reason, in order to understand the singularity of the “rosiano” madness. 
 
Kew-words: madness, reason, imagination, poetry, prophecy. 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
Fevereiro de 2013 
8 
 
Agradecimentos 
 
 
 
Aos alunos do curso de extensão “A loucura em Guimarães Rosa”, com quem pude 
compartilhar as leituras de minha pesquisa em um diálogo poeticamente rosiano. 
 
 
 Um especial agradecimento a Maria Lúcia Guimarães de Faria (para mim, co-
orietadora), que apesar de não me conhecer e não ter sido minha professora, quando lhe 
pedi para ler meu pré-projeto, mostrou-se absolutamente solicita, tornando o que seria 
apenas a leitura do pré-projeto um período de orientação. Na ajuda de Maria Lúcia, destaco 
suas brilhantes aulas de Teoria Literária, que assisti como ouvinte, o empréstimo de livros 
(o que achei um gesto de muita confiança) e as conversas que sempre esclareciam minhas 
dúvidas. Agradeço ainda pela sua presença no decorrer do mestrado (sempre atenciosa). 
 
 
 Um especial agradecimento também ao professor Ronaldes de Melo e Souza, pela 
honra de ter sido sua orientanda. Sua orientação, sempre clara e precisa, foi fundamental 
para que o estudo sobre a obra rosiana tenha se mantido fiel à poética do autor. Agradeço 
as leituras indicadas, as dúvidas esclarecidas, o curso sobre Guimarães Rosa e, sobretudo, a 
confiança depositada em meu trabalho. 
 
 
Aos amigos, que me apoiaram e souberam compreender a ausência nos momentos 
de escrita. 
 
 
A minha família, sobretudo, a minha mãe, que esteve comigo em todos os 
momentos, e a minha irmã, que me incentivou e sempre se sentiu muito orgulhosa de meus 
estudos rosianos. 
 
A meus pais, 
aos desatinos que ajudaram a compor o meu destino. 
9 
 
Sumário 
 
 
 
 
 
 
Apresentação: Desatino e destino....................................................................... 10 
 
 
I) Nos caminhos do desatino................................................................................ 16 
 
 
1.1-“A terceira margem do rio”: o desatino de uma escolha................................ 17 
 
1.2-“Sorôco, sua mãe, sua filha”: a loucura já não parte....................................... 23 
 
1.3: ”Substância”: o amor entre destinos e desatinos............................................ 29II) A loucura da razão ou razão da loucura?:....................................................... 39 
 
 
2.1-“Pirlimpsiquice”: a arte de Zé Boné................................................................ 40 
 
2.3-“Tarantão meu patrão”: aventuras de um louco.............................................. 45 
 
3.3-“Darandina”: ironia da loucura....................................................................... .51 
 
 
III) A divina loucura.............................................................................................. 58 
 
 
3.1- “O recado do morro”: a mania dos recadistas............................................... 59 
 
3.2- “Um moço muito branco”: a amizade entre o maravilhoso e a loucura profético 
................................................................................................................................ 72 
 
3.3- “A menina de lá”: a loucura na descoberta do mundo:.................................. 76 
 
 
 
Referências............................................................................................................. 83 
 
 
 
 
 
 
10 
 
Apresentação 
Desatino e destino 
 
Desatino: O destino poético dos loucos rosianos é uma proposta de interpretação da 
loucura encontrada no livro Primeiras estórias e na saga “O recado do morro”, que 
compõe a obra Corpo de baile. Protagonistas de um universo dinâmico, os personagens de 
Guimarães Rosa são seres que ultrapassam o “mundo maquinal” 
1
 e forjam seus destinos 
como artistas de si mesmos. Na obra rosiana, destino e desatino não são apenas palavras 
próximas foneticamente. O desatino, compreendido enquanto sabedoria transracional, 
estado anímico que inspira e encoraja o ser, é a força motriz do destino, que distante de 
qualquer visão determinista, é concebido como a criação da vida de acordo com o íntimo 
de cada homem. Sem parentesco com a loucura do internamento e do pensamento 
científico, a loucura das estórias de Guimarães Rosa é poética, profética, habita a 
imaginação movente das crianças, as escolhas que conduzem à terceira margem, a música 
transcendente, o amor cosmogônico de Eros, o improviso do teatro, a juventude de um 
velho “moribundo” e a sabedoria delirante de um “psiquiartista”.
2
 
 Em “Nos caminhos do desatino”, estão reunidas estórias em que a loucura atua 
intimamente relacionada à transformação existencial dos personagens. Aproximando-se do 
silêncio do homem de “A Terceira da margem do rio”, da surpreendente partida da mãe e 
da filha de Sorôco e, da “Substância” do amor de Sionésio e Maria Exita, o primeiro 
capítulo busca seguir a orientação sugerida pelo desatino no destino dos personagens de 
cada texto. 
 
1
 A expressão foi usada por Maria Lúcia Guimarães de Faria na introdução de sua Tese de Doutorado (Aletria 
e hermenêutica nas estórias rosianas) 
2
 “Darandina”, Primeiras estórias. 
11 
 
 No conto de abertura, “A terceira margem do rio”, é a escolha inesperada de um 
homem responsável que faz nascer a dúvida sobre o lugar da razão na vida humana. A 
partir do relato do filho que não “chegou a existir” 
3
, a estória mostra que o desatino pode 
estar onde vigora a sensatez e, que o louco não é necessariamente aquele que se perdeu na 
ilusão. Doido ou alguém que “chegou a existir”? Desatinado ou apenas um “personagem 
personificante”?
4
 A resposta depende das questões que movem o ser. É de acordo com o 
ponto de vista adotado que a atitude do personagem da estória de Guimarães Rosa poderá 
ser interpretada como um desatino ligado ao erro, ou uma força que repõe o homem em um 
destino singular. 
 Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, a loucura é a vida que renasce em um lugar que se 
prepara para expurgar o louco, tal como a Idade Média amaldiçoou o leproso e o 
classicismo alienou o desatino. Na estória, no entanto, a loucura que provocava medo e 
teve de ser isolada surge como o elemento que reanima a vida de toda a comunidade, de 
modo a superar o sentido negativo do olhar racional, compor a imagem poética do louco e 
libertar o viver automatizado de todos. Na estória da mãe e da filha de Sorôco, o desatino é 
uma força que impulsiona o destino de muitos destinos. 
 “Substância” traz o desatino como marca de um destino familiar, além de 
referências que lembram o parentesco criado entre a lepra, o louco e o homem identificado 
como criminoso. Mas a suplantar o sentido coercitivo da história, na estória, a personagem 
relacionada ao mundo da loucura é também o mais pleno. Diferentemente das estórias 
mencionadas anteriormente, em “Substância”, a transformação promovida pelo contato 
com alguém que vive próximo ao desatino é acompanhada do sentimento amoroso. Na 
estória de Sionésio e Maria Exita, a vida se renova e o desatino desenha um novo destino a 
partir do aprendizado amoroso do Eros cosmogônico. 
 
3
 Referente à pergunta “‘Você chegou a existir? ’” de “O espelho”, conto de Primeiras estórias. 
4
 “Pirlimpsiquice”. 
12 
 
 “Nos caminhos do desatino” sugere, portanto, um percurso sobre as mudanças 
promovidas pela loucura no destino dos personagens, tendo como início a viagem íntima e 
solitária do pai de “A terceira margem do rio”, passando pela partida da mãe e da filha de 
Sorôco em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, terminando com o encontro amoroso do casal de 
“Substância”. 
 Em “A loucura da razão ou a razão da loucura?”, estão os personagens irônicos, que 
se divertem da seriedade, da falsa sapiência dos defensores do pensamento racional, 
mostrando a limiaridade entre o razoável e o desatino. Neste capítulo, a loucura apresenta-
se de acordo com as palavras de seu elogio: “...sou eu, somente eu, por minhas influências 
que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens” 
5
. A alegria das estórias reside 
no desatino do aluno que não se adéqua à educação da escola, no espírito transgressor de 
um cavaleiro quixotesco e, na atuação de um homem que se equilibra sobre uma palmeira. 
 Como a obra de Guimarães Rosa, o personagem desajuizado de “Pirlimpsiquice” 
inaugura uma nova realidade. Longe de ser um caso patológico, o menino da estória é tido 
como doido apenas por não se deixar moldar pelos professores, que são os representantes 
da rigidez imposta pelo pensamento excessivamente racional. O confronto entre discurso 
mimético e poético, o limite entre o real e o ficcional, o poder das estórias e, 
consequentemente, da palavra poética, são elementos presentes no texto, que a partir de 
uma aparente brincadeira de crianças, mostra a importância da loucura como ato criativo 
na arte e na vida. 
 O personagem encontrado na segunda estória de “A loucura da razão ou a razão da 
loucura?” não se distancia do menino de “Pirlimpsiquice”. Desordeira e delirante, a 
loucura de Tarantão põe o mundo ao avesso, encoraja os que a seguem e torna a chegada 
da morte um acontecimento festivo. Em diálogo com Dom Quixote de La Mancha, a 
 
5
 Rotterdam, Erasmo de. Elogia da loucura. 
13 
 
estória de Guimarães Rosa refere-se ao sentido gerado pelas semelhanças e pela linguagem 
dos signos que não se perderam do real. Em “Tarantão, meu patrão”, o desatino é o sopro 
que anima o espírito e faz da vida uma grandiosa aventura. 
 Dentre os textos escolhidos para compor este trabalho, “Darandina” é o que 
apresenta o louco em sua face mais irônica. Tradicionalmente julgada e analisada pela 
razão, a loucura tornou-se a marca de um defeito, o sinal de um desvio na mente humana. 
Assim, o comum é que se veja o saber coerente junto aos representantes do pensamento, 
como cientistas e filósofos. Na estória de Guimarães Rosa, no entanto, a consistência do 
pensamento, a lógica que rege os discursos da razão migram para as palavras do louco e a 
vaidade racional adquire o formatode um impotente disparate. 
 O jogo gerado pela proximidade entre loucura e razão é indicado ao leitor na 
pergunta que intitula o segundo capítulo. Além de ser o elemento renovador do mundo 
racionalmente ordenado, em “Pirlimpsiquice”, “Tarantão, meu patrão” e “Darandina”, a 
loucura mostra o quanto há de razoável em seu delírio. A ironia das estórias está na leveza, 
na sabedoria do louco e na reversibilidade formada entre razão e loucura, enfraquecendo o 
limite entre as duas. 
 O terceiro capítulo apresenta estórias que mostram a sintonia entre o mundo da 
loucura, a poesia e o saber profético. Em “O recado do morro”, “Um moço muito branco” 
e “A menina de lá”, encontram-se personagens que simbolizam um saber transracional. Ao 
contrário do que induziria o pensamento orientado pela lógica, não são seres inferiores, 
tampouco, destituídos de conhecimento. Em harmonia com a potência criativa das 
crianças, com o mundo dos profetas e, a sensibilidade dos poetas, os personagens de “A 
divina loucura” apresentam-se imbuídos de grande sabedoria, questionando a pretensa 
superioridade da razão na vida humana. 
14 
 
 Em “O recado do morro”, a loucura é o estado de transe dos seres inspirados pelo 
divino. Influenciados pela Musa, os recadistas da saga de Corpo de baile são como os 
profetas, que arrebatados pelos deuses se tornam capazes de conceber os fatos ainda não 
ocorridos. Portadores da mensagem reveladora, os loucos da saga rosiana são encantados 
pelo poder das estórias e da palavra poética. Íntimos do mundo originário, comunicam-se 
através da linguagem simbólica, recorrendo a imagens que não obedecem a uma ordenação 
lógica. 
 A reunião de poesia, loucura e mundo profético de “O recado do morro” estrutura o 
terceiro capítulo. Em “Um moço muito branco”, a ligação entre loucura e profecia aparece 
novamente. Presente no louco José Kakende, o dom profético é também o elemento de 
sintonia com o personagem que nomeia a estória e simboliza a mundividência rosiana. “A 
amizade entre o maravilhoso e a loucura profética” de “Um moço muito branco” trata da 
proximidade entre a loucura e o homem concebido na obra de Guimarães Rosa, de modo a 
reforçar o papel do desatino como elemento poético. 
 Sem estabelecer um fim linear, “A menina de lá: A loucura na descoberta do 
mundo” encerra esta dissertação com o convite à redescoberta do mundo e da linguagem. 
Poeta que faz da palavra um ato inaugural, Nhinhinha compõe poesia com a vida. 
Agraciada pela imaginação que ilumina os loucos e as crianças, a menina vive afastada do 
real que aprisiona os homens de muita razão. Conforme os personagens proféticos de “O 
recado do morro” e “Um moço muito branco”, a protagonista desta estória é de lá porque 
habita os mistérios e revela o que o saber lógico não consegue alcançar. Incompreendida 
pelo seu modo diverso, a menina é inserida no mundo dos insanos. No entanto, como se 
observa em todos os desatinados deste trabalho, a loucura de “A menina de lá” não é 
apreendida pelo racionalismo, não é doentia, não é um erro. Muito acertada e poética, a 
15 
 
falta de juízo da personagem é o que colore a vida e mobiliza o ser e a linguagem dos 
homens que se perderam na inércia da lógica e dos conceitos. 
 Da solidão perturbadora do pai de “A terceira margem do rio” ao mundo encantado 
de “A menina de lá”, realiza-se, acima de tudo, uma escuta das questões que movem os 
personagens considerados loucos. Mais que um estudo da história e dos conceitos que 
dizem respeito à loucura, este trabalho buscou dialogar com a poética rosiana. Disto 
decorre a forma variada com que o desatino é apresentado e a ausência de um capítulo 
dedicado ao tema de modo isolado. 
 Cabe ressaltar, no entanto, que a reunião e a ordem das estórias obedecem às 
variadas faces da loucura. Em “Nos caminhos do desatino”, observa-se a figura do louco 
associada ao período que marca o fim dos leprosários e a formação das casas de 
internamento. As referências teóricas encontradas, para entender os gestos coercitivos do 
internamento e os simbolismos que aproximam a loucura e a lepra, estão em História da 
loucura: na idade clássica, de Michel Foucault. O autor citado também aparece no 
segundo capítulo. Nesta parte, as estórias dialogam com a mudança de pensamento 
promovida pela Ordem do racionalismo, a qual é discutida em As palavras e as coisas. Ao 
chegar em “A divina loucura”, a leitura das estórias de Guimarães Rosa entra em contato 
com um mundo em que o saber não era um caminho restrito à razão. A loucura que 
representa a presença divina na vida dos homens e simboliza uma forma de sabedoria é o 
tema central do terceiro capítulo, que tem a presença das loucuras descritas por Sócrates 
em Fedro. 
 Além das leituras mencionadas, ao longo da dissertação, há referências a textos 
literários e a estudos sobre a obra de Guimarães Rosa. Assim, sem o erro da pretensão de 
definir, conceituar a loucura na obra do autor, este trabalho apresenta os destinos 
reinventados pelo espírito livre e criativo dos loucos rosianos. 
16 
 
I) Nos caminhos do desatino 
 
... cada homem tem seu lugar no mundo e 
no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa 
nunca é maior que sua capacidade para 
poder cumpri-la. 
(Guimarães Rosa. Entrevista a Günter W. 
Lorenz) 
6
 
 
 
...há dois gêneros de loucura: a produzida 
por doenças humanas e as que por uma 
revulsão divina nos tira dos hábitos 
cotidianos. 
(Platão. Fedro) 
 
 
 
Qualquer amor já é um pouquinho de 
saúde, um descanso na loucura. 
(Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.) 
 
 
 
6
 Diálogo com a América Latina: Panorama de uma literatura do futuro 
17 
 
1.1- “A terceira margem do rio”: o desatino de uma escolha 
 
 Doideira? Coragem? Como explicar a decisão de um dos mais emblemáticos 
personagens rosianos? Como encontrar lógica na escolha que implica o abandono da 
família e o cultivo de uma solidão que não se despede, que permanece por perto, como um 
aviso, um castigo, ou um mistério a ser desvelado? Para a razão, trata-se somente de 
desatino, pois, entende que o correto e sensato consiste em ser “ordeiro” 
7
 (p.79), 
“positivo” (p.79), não se afastar das margens seguras que o convívio familiar oferecia, mas 
para o “pai” de “A terceira da margem do rio”, insano seria não se libertar, não seguir um 
caminho que desse sentido a sua existência. 
 E, talvez, seja na busca de sentido que o ser humano, procura ao tentar escrever as 
páginas de seu destino, que se encontre, não a resposta, mas o possível diálogo com as 
questões que motivaram o personagem a viver sozinho em uma canoa. A partir do que 
conta o filho, que desempenha o papel de narrador, sabe-se que, antes do acontecido, o 
homem não era visto como doido. Segundo “as diversas sensatas pessoas” (p.79), mesmo 
quando moço, já se mostrava “cumpridor” (p.79), na memória do filho, “não figurava mais 
estúrdio nem mais triste que os outros” (p.79) e, na família, não mandava, pois, a “..mãe 
era quem regia, e lhe ralhava no diário” (p.79). 
 No novo comportamento do personagem, não havia semelhança alguma com as 
características acima mencionadas. “Mas, se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer 
para si uma canoa.” (p.79), “Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em 
rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos” (p.79). Sem nada dizer, 
o homem contrariava a esposa, “Nossa mãe muito jurou contra a idéia” (p.79), ao mesmo 
 
7
 As citações de todas as estórias da obra Primeiras estórias referem-se à edição de 2001, pela Nova 
fronteira. 
18 
 
tempo em que, suscitava, no filho, indagações sem respostas: “Seria que, ele, que nessas 
artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?” (p.79).Sem desculpas ou queixas que justificassem a ruptura com os familiares, “nosso pai 
encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou 
matula e trouxa, não fez alguma recomendação” (p.80). Acostumada ao comando da 
família, a mãe adverte: ““Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”” (p.80). Naquele instante, a 
mulher já intuía que não se encontrava diante do mesmo homem, pois, o que ela conhecia 
não teria coragem de realizar aquele feito. O seu marido “cumpridor” era obediente, sabia 
desempenhar o papel que lhe era ditado. Ao contrário da mãe, o filho sente-se 
profundamente atraído pela escolha do pai: “... O rumo daquilo me animava, chega que um 
propósito perguntei: ─ ‘Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?’” (p.80), mas 
aquele era o tempo de partida do pai, que “entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a 
canoa saiu se indo...” (p.80). Para a família, no entanto, o mais estranho foi perceber que: 
 
Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se 
permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da 
canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu 
para estarrecer toda a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os 
parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente 
conselho. (p.80) 
 
 
 
 Não era, portanto, a distância dos parentes que motivava o novo projeto de vida 
daquele homem. Havia algo mais profundo em sua escolha, algo que não se tornaria claro 
ao olhar comum. No entanto, era de acordo com esse olhar que a mãe continuava a 
interpretar o marido. Indo além do espaço familiar, os fatos ocorridos chegavam ao 
conhecimento dos vizinhos, que não demorariam a julgar o personagem como louco: “As 
vozes das notícias se dando pelas certas pessoas – passadores, moradores de beiras, até do 
19 
 
asfalto da outra banda – descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto 
nem canto...” (p.81). Sem acreditar na coragem do pai, a mãe e os parentes pensavam: “que 
o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e ,ele, ou desembarcava e viajava 
s’embora, para jamais, o que ao menos condizia mais correto, ou se arrependia, por uma 
vez, para casa.” (p.81). 
 De acordo com a concepção exposta acima, o correto consistia em apagar a vergonha, 
o disparate cometido, pois, o que se mostrava, de fato, como relevante para que a vida 
pudesse prosseguir não eram as inquietudes oriundas do ser, mas a manutenção do 
instituído, a inércia e a repetição do mesmo. Vencida pela insistência do pai, que não 
retorna a casa, tampouco, parte para longe, e, destinada a não desorganizar a estrutura de 
sua família, a mãe decide preencher, com sensatez, a lacuna formada pela ausência do pai. 
É a isso que se deve a presença do tio a auxiliar nos assuntos econômicos, do mestre a 
ensinar as crianças, do padre que tentou devolver o pai ao lar e os soldados convocados 
para proteger a casa. 
 Imobilizada pelo seu forte caráter racional, a mãe mostrava-se incapaz de 
acompanhar a transformação que a vida lhe apresentava: 
 
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos 
pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns 
achavam no entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou 
que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia 
doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e 
longe de sua família dele. (p.80) 
 
 
Não são as palavras da mulher que expressam o seu pensamento a respeito do 
marido, mas o silêncio que vem acompanhado de uma tentativa de discrição. A “vergonha” 
e a “cordura” são um dos comportamentos tidos por quem se sente amedrontado pela 
20 
 
presença do desatino. Sobretudo para os defensores da razão, a figura do louco assusta 
porque torna evidente que a sensatez do homem não é inabalável e que o comando do 
intelecto sobre a vida é ilusório. Além disso, qualquer sinal da presença da loucura traz à 
memória uma história que assinalou fortemente o irrazoável como o erro, o desvio a ser 
corrigido e separado do espaço em que se dispõem os sãos. Junto ao leproso, que é também 
mencionado pelos vizinhos, o “doido” é aquele que deve ser banido, que não pode circular 
livremente com seu mal, de quem deve ser retirada toda a liberdade, visto que ao ter sido 
contaminado, ele já não a mais possui. 
A associação realizada entre a atitude do pai e a loucura sinaliza que a perspectiva 
adotada pela mãe, assim como a dos vizinhos, vai ao encontro da visão racionalista, que 
construiu o significado negativo que envolve os que ousam se aproximar do mundo do 
desatino. Negatividade que se inicia pela consciência do grupo em que o louco está 
inserido, uma “consciência prática da loucura” 
8
, que envolve um “descompromisso” que 
“... se impõe enquanto realidade concreta porque é dado na existência e nas normas do 
grupo”, além de ser: 
 
 
 
Uma consciência da diferença entre loucura e razão, consciência que é 
possível na homogeneidade do grupo considerado como portador das 
normas da razão. Sendo social, normativa, e solidamente apoiada desde o 
início, esta consciência prática da loucura não deixa de ser menos 
dramática; se ela implica a solidariedade do grupo, indica igualmente a 
urgência de uma nova divisão. (FOUCAULT, 2007, p.167) 
 
 
 
 
8
 As expressões citadas entre aspas pertencem a Michel Foucault e se encontram na introdução da segunda 
parte de História da loucura: na idade clássica; [tradução José Teixeira Coelho Neto]. – São Paulo: 
Perspectiva, 2007. 
21 
 
 Na estória, o grupo é indicado pela forma pronominal indefinida “todos”. São eles 
que, ao se portar como os detentores da razão e das normas estabelecidas sobre o que seja o 
correto para se viver, consideram a escolha do pai como “doideira”. O interesse dos outros 
pelo acontecido mostra o jogo discriminatório que o olhar puramente racional constrói em 
torno dos que optam em não mais seguir o caminho regido pelo alheio. 
Em outra margem, ou melhor, em outra perspectiva, encontra-se o personagem do 
pai. Para ele, o incompreensível residia na forma com que sua vida anterior era conduzida. 
Louco, o foi enquanto aceitou passivamente a regência da esposa e cumpriu as normas que 
lhe concediam o direito de não ser discriminado. Deste modo, diferentemente do que 
“todos” pensam, a atitude do personagem não se justifica pela carência de razão, assim 
como não guarda proximidade alguma com qualquer outra experiência relacionada ao 
mundo do desatino. 
A estória de Guimarães Rosa não apresenta um pai que se ausenta covardemente da 
família, renunciando suas responsabilidades, tampouco, um isolamento com o objetivo de 
se manter apartado do mundo. Na solidão de “A terceira margem do rio”, há o encontro 
com a nascente do ser, com a força genesíaca do homem. É essa pulsão criativa que está 
simbolizada na imagem que dá título à estória. A terceira margem é o que fica entre a 
primeira margem, lugar onde o rio nasce, e a segunda margem, onde o rio deságua, é, 
portanto, o que fica entre o nascer e o morrer, no eterno devir. 
Interpretado a partir das semelhanças com a interioridade humana, o rio é elemento 
simbólico fundamental na literatura de Guimarães Rosa, que, em entrevista a Günter 
Lorenz, declara o que há de semelhante entre o ser e o rio, além da simbologia temporal 
sugerido pelo último: 
 
22 
 
...amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na 
superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos 
e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa 
de nossos grandes rios: sua eternidade. (LORENZ, 1973, p.328) 
 
 
 
 
Era a profundeza de si mesmo que o pai de “A terceira margem do rio” procurava 
quando decide negaro papel de “homem cumpridor”. A solidão e o silêncio são, portanto, 
caminhos de retorno ao ser, para lhe conceder a graça de eclodir livremente na dinâmica da 
vida e sentir a eternidade de si mesmo. No ensaio “Não já e ainda não: a leveza do humor 
em Guimarães Rosa”, Lélia Parreira Duarte explica como a terceira margem se compõe na 
obra rosiana: 
 
A obra de Guimarães Rosa vem mostrar a impossibilidade de conceitos 
definitivos, expressando a convicção de que é permanente e irresolvível a 
tensão existente entre pólos opostos – seja entre o mundo dos 
dominadores e dos dominados..., seja entre real e imaginário, bem e mal, 
Deus e o diabo, mythos e logos, loucura e razão. Os textos rosianos 
refletem por isso, de diferentes formas, uma tensão permanente e 
irresolvível, numa perspectiva que vê o ser humano incompletamente 
dividido entre pólos opostos, entre cujas extremidades equilibra-se 
instavelmente, tornando assim possível a criação da terceira margem, do 
‘não já e ainda não’, com a sugestão do entre – lugar...” (DUARTE, 
2001, p. 100) 
 
 
As palavras acima respondem à pergunta a respeito da escolha do pai. Sendo a 
terceira margem o lugar da tensão entre razão e loucura, o personagem de “A terceira 
margem do rio” não pode ser julgado somente como louco. Em sua atitude, há uma razão 
que surge do ser; mas, se vista pela forma estritamente racional, mostra-se como 
“doideira”. 
 
 
23 
 
1.2.- “Sorôco, sua mãe, sua filha”: a loucura já não parte 
 
 
Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, a loucura é apresentada a partir da despedida da 
mãe e da filha de Sorôco. Enviadas ao hospital psiquiátrico porque já não podiam 
permanecer sob os cuidados de Sorôco, as personagens provocam a curiosidade do “povo” 
(p.62), que se reúne na estação para aguardar a chegada das duas: “As muitas pessoas já 
estavam de ajuntamento, em beira do carro para esperar.” (p.62). É, portanto, em torno da 
expectativa das “muitas pessoas” (p.62), que se desenvolvem a narrativa e o sentido que o 
desatino recebe na estória. 
Dentre os textos de Primeiras estórias em que a loucura se faz presente, “Sorôco, 
sua mãe, sua filha” é o que mais dialoga com o mundo que separou o insano do razoável e 
interpretou o louco como um problema de ordem social. O isolamento daquele que 
desorganiza a ordem vigente, a intervenção do Estado, que ao agir, não faz distinção entre 
crime e doença mental são alguns dos gestos da história encontrados na estória de 
Guimarães Rosa. 
 Literariamente apropriadas, as referências históricas atuam, no texto, relacionadas 
ao comportamento do “povo”. Apesar de ser expresso como tristeza, “As pessoas não 
queriam poder ficar se entristecendo” (p.62), o interesse de todos pelo que ocorria na 
família de Sorôco ia além da compaixão pelo sofrimento do homem que “agüentara de 
repassar tantas desgraças” (p.64). O envolvimento de “cada um” (p.62) com a “prática do 
acontecer das coisas” (p.62) dizia respeito ao medo formado pela ação do internamento, 
que ao retirar a loucura do convívio social, tornava próximo elementos atuantes até então 
como distantes e desconhecidos. 
24 
 
A ajuda do Governo, o carro enviado para conduzir as personagens, “Quem pagava 
tudo era o governo, que tinha mandado o carro.” (p.64), assustavam porque mostravam a 
força a que eram submetidos os que não obedeciam à razão. Embora não declarasse, o 
“povo” incomodava-se com o modo como tudo era realizado e percebia as semelhanças 
lançadas com o crime: 
 
Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo 
com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da 
estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que 
mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim 
repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as 
de cadeia, para os presos. (p.62) 
 
 
 
 Com formato especial, o trem logo chama a atenção de “A gente”. “As diferenças”, 
as “grades” já indicavam que as personagens não estavam sendo afastadas de Sorôco para 
serem tratadas de uma doença, mas para se tornarem prisioneiras. Prisioneiras de uma 
viagem que as deixaria esquecidas entre os muros do hospício, pois, “Isso não tinha cura, 
elas não iam voltar nunca mais.” (p.64). 
 Além de representar a reclusão institucionalizada do hospital, o carro trazia à 
memória práticas que também se ocupavam de marginalizar a loucura: 
 
 
O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas 
reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se 
empinava. O borco bojudo do telhadinho dele alumiava em preto. Parecia 
coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e a que a 
gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo 
de ninguém. (p.63) 
 
25 
 
A lembrança de um navio de “muita distância” que não tinha piedade encontra 
referências na história. O “canoão no seco” da estória de Guimarães Rosa dialoga com os 
navios da renascença que destinavam os loucos a cidades distantes, onde permaneceriam 
sem direito de retorno a suas casas. Conhecidos como “A nau dos loucos”, esses barcos 
conduziam os insanos à busca da razão perdida sem envolvê-los em um tratamento. Não 
muito diferente do que se estava a realizar com as familiares de Sorôco, os escolhidos 
tornavam-se prisioneiros, entregues “à incerteza da sorte: nela cada um é confiado a seu 
próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que 
parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca.”
9
 
(FOUCAULT, 2007, p.12). 
 Nas viagens marítimas ou nas casas de internação da era clássica, o destino do 
louco esteve ligado ao erro, à presença indesejada. Essa era a visão tida pelas “muitas 
pessoas” que, a esconder seu ponto de vista, diziam “... que Sorôco tinha tido muita 
paciência. Sendo que não ia sentir falta destas transtornadas pobrezinhas, era até um 
alívio.” (p.64). O alívio era o sentimento que “os outros” sentiriam ao saber que não mais 
teriam de conviver com o desatino. Assim, também se compreende que a atuação do 
“povo”, na estória, corresponde ao olhar da razão sobre a loucura, pois, conforme visto, foi 
através da perspectiva racional que a insanidade ganhou sua imagem de desajuste. 
 Mas, em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, assim como na obra rosiana, não é a visão 
racional da loucura que prevalece. Embora estejam inscritas em medidas coercitivas e 
tenham a sua espera pessoas que, de certo modo, se aproximam de tais medidas, a mãe e a 
filha de Sorôco não figuram como prisioneiras. Tendo a loucura como elemento vital, as 
duas mulheres transformam o momento, a princípio de tristeza, em um inesquecível 
instante de animosidade: 
 
9
 História da loucura: na idade clássica 
26 
 
 Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, 
parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. 
Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as 
vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por 
conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. (p.64) 
 
 
 
 
 Novamente, era o “povo” quem se expressava sobre o acontecido. Por isso, a 
chegada de Sorôco com as duas era interpretada como um “enterro” e a exposição da 
loucura um espetáculo a que a sensatez não podia assistir sem experimentar o desconforto. 
Os olhos e risos escondidos não se devia à graça dos “trasmodos e despropósitos” ou ao 
Sorôco. Ambos demonstravam o quanto não era permissivo à razão se deparar com seu 
avesso, com o que ela intuía ser sua própria face transfigurada. 
 A dissonância das duas mulheres também se devia ao contraste que provocavam 
em relação à cena que as aguardava. Diferentemente da seriedade que envolvia as “muitas 
pessoas” e da violênciado carro que as aguardava, no desatino de mãe e filha de Sorôco, 
via-se o puro despropósito. Na menina, “... panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça 
em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras 
e faixas, dependuradas...” (p.64); a “velha” usava apenas um “fichu preto” (p.64), mas 
“batia a cabeça nos docementes” (p.64), de modo a se pensar que só poderiam mesmo 
participar de outra realidade. 
 No entanto, era esse mesmo delírio que lhes permitia preencher o ambiente de 
vitalidade. Com uma cantiga que “não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das 
palavras” (p.63), as personagens afastavam suas loucuras do sentido negativo em que 
estavam inscritas: 
 
 
27 
 
 A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era 
um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas 
representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha 
olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo ─ um 
amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, 
ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da 
outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não 
paravam de cantar. (p.64) 
 
 
 A “grandeza” da “moça” ao entregar-se aos excessos de sua inspiração trazia, neste 
momento, não mais a lembrança do desatino entregue ao destino errante do internamento. 
Longe das impressões trazidas pelo trem, o que se via, agora, na loucura, eram 
semelhanças artísticas. Juntas, as personagens levavam a todos não o medo, mas a poesia 
que lhes era concedida, que chegava ao “povo”. 
 A mudança promovida pelo canto da mãe e da filha de Sorôco é expressa, 
sobretudo, na forma narrativa. Com o “espetáculo”, o internamento adquiria um olhar 
renovado, um olhar que alcançava o humano na loucura, “fazer as duas entrar para o carro 
de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que 
elas nem haviam de poder entender.” (p.65), que retirava a culpa do louco e percebia a 
crueldade cometida apenas porque elas viviam insufladas por um ânimo que não 
correspondia à mesmice a que já se haviam habituado os moradores do lugarejo. 
 Assim, ao contrário do que se observa no início da estória, o instante que precede a 
partida das personagens é marcado pela consciência de que ninguém ali poderia se julgar 
imune à loucura: 
 
 Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, 
aquela chirimia, que avocava: que era um constatado de enormes 
diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de 
motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois. (p.65) 
 
 
28 
 
 Agora também, o alívio sentido pela partida das duas já não se formava em torno do 
desejo de ver o louco confinado no hospício. O sentimento de “a gente” se compunha da 
dor de saber o que aconteceria às duas mulheres e da compaixão por Sorôco, “O triste 
homem, lá, decretado... no oco, sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso” 
(p.66). É, primeiramente, em Sorôco, que a loucura animosa das personagens inicia sua 
transformação, pois, “a cantiga, mesmo, de desatino” o inspirava: “Num rompido – ele 
começou a cantar, alteado, forte...” (p.66), e, inesperadamente, todos se viram arrebatados 
pela música, de modo a retomar o desatino que eles próprios desejaram expulsar. 
 
 
 A gente se esfriou, se afundou ─ um instantâneo. A gente... E foi sem 
combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, 
de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem 
razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e 
canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, 
ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair da memória. Foi um caso 
sem comparação. (p.66) 
 
 
 É, portanto, como símbolo poético, inaugural que a loucura deixa sua marca em 
“Sorôco, sua mãe, sua filha”. Força instauradora do novo, ela suplanta “grades”, navios, ou 
qualquer outro artifício que a transforme em uma maldição a ser excluída. Esse é o motivo 
de sua permanência na estória. Muito longe de ser um erro a ser corrigido pela detenção, o 
desatino, em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, é o sopro de vida que reinventa a existência de 
toda “a gente”. 
 
 
 
 
29 
 
1.3- “Substância”: o amor entre destinos e desatinos 
 
 
 É através do amor, do encontro entre dois personagens com destinos distintos que a 
loucura surge em “Substância”. Na estória de Maria Exita e Sionésio, brota a força de Eros 
que, ao aproximar uma moça sensível e um homem de caráter racional acentuado, promove 
a união de seres contrários e complementares. No casal rosiano, há a presença originária do 
deus cosmogônico a conduzir o homem para além das dicotomias que travam a pulsão 
criativa. 
 Moça “historiada de desgraças” (p.25), na estória, Maria Exita simboliza o homem 
rosiano, pois, embora tenha uma trajetória familiar assinalada pelo desatino, nenhum traço 
negativo apresenta sobre a vida, de modo a ser a responsável pela transformação 
existencial sofrida por Sionésio. Este que, no passado, havia sido somente um rapaz de 
“madraças visagens” (p.206), após receber as terras de Samburá como herança, dedicava-
se tanto ao trabalho, “era um espreguiçar-se ao adormecer, para poupar tempo no 
despertar” (p.201), que já deixava morrer, em si, a beleza vital do sentimento. 
 Seo Nésio, forma como o personagem é mencionado no início da estória para 
indicar a posição respeitosa de fazendeiro, “Plantava à vasta os alqueires de mandioca, que 
aliás, outro cultivo não vingava; chamava e pagava braços; espantava no dia a dia, povo. 
Nem por nada teria adiantado atenção, a uma criaturinha, a qual” (p.206). Diante da 
dedicação ao plantio, o personagem não tinha condições de perceber Maria Exita quando a 
moça havia aparecido em Samburá. 
 Ela, que já não tinha mais ninguém no mundo, encontrava trabalho na fazenda de 
Sionésio porque, “por piedade” (p.206), a velha Nhatiaga a tinha levado. “Menina 
feiosinha, magra” (p.205), para o patrão era apenas a “criaturinha”, que a todos espantava: 
30 
 
Porque contra a menos feliz, a sorte sarapintara de preto portais e portas: 
a mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia, por 
atos de morte; o outro, igual feroz foragido, ao acaso de nenhuma parte; o 
pai, razoável bom-homem, delatado com a lepra, e prosseguido, decerto 
para sempre, para um lazarento. (p.206) 
 
 
 Assim, já marcada pelo avesso dos parentes, Maria Exita ainda seria destinada a 
uma ocupação que só lhe reforçava o sentido de sofrimento: “Deram-lhe, porém, ingrato 
serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes.” (p.206). Deste modo, 
como se expõe no início da narrativa, para Sionésio, perceber-se apaixonado e, por alguém 
tão diverso, significava, de fato, uma “surpresa” (p. 205). 
 Mas até que a “surpresa” chegasse a sua consciência e tudo pudesse ser 
compreendido pela razão, o fazendeiro teve de conviver com um intenso sobressalto em 
seu interior. O desgaste do modelo de vida levado pelo personagem e o desabrochar das 
emoções não são sentidos com facilidade. A mudança que o amor provocava nascia como 
rumores que pareciam não encontrar meios de formar um pensamento inteligível, de modo 
que, até alcançar a plenitude, o sentimento é vivido como um profundo conflito no interior 
de Sionésio. 
 Embora se mantivesse muito ocupado com suas terras e se realizasse muito ao “... 
ver, aberto, sob o fim do sol, o mandiocal de verdes mãos...” (p.206), Sionésio já percebia 
“O ensimesmo” (p.206), que o fazia sentir a necessidade de “tantas coisas a renovar” 
(p.206), o que também o atraía às visitas a Maria Exita: 
 
O quieto completo, na Samburá, no domingo, o eirado e o engenho 
desertos, sem eixo de murmúrio. Perguntara à Nhatiaga, pela sua 
protegida.– ‘Ela parte o polvilho na laje... ’- a velha resumira. Mas, e até 
hoje, num serviço desses? Ao menos, agora, a mudassem! – ‘Ela é que 
diz que gosta. E é mesmo, com efeito... - a Nhatiaga sussurrava’. (p.207) 
 
31 
 
Como “pessoa manipulante”, Sionésio não conseguia entender como a moça 
mantinha-se apegada a um trabalho adverso. Para o fazendeiro, a “substância” era apenas 
um meio de progresso, pois, “Se o avio da farinha se pelejava ainda rústico, em breve o 
poderia melhorar, meante muito, pôr máquinas, dobrar quantidade” (p.207). Era, portanto, 
no trabalho de Maria Exita, que as diferenças entre os personagens se acentuavam. Assim, 
as visitas à moça intensificavam as inquietações que o amor fazia brotar no fazendeiro: 
 
Demorava para ir vê-la. Só no pino do meio-dia – de um sol do qual o 
passarinho fugiu. Ela estava em frente da mesa de pedra; àquela hora, 
sentada no banquinho rasteiro, esperava que trouxessem outros pesados, 
duros blocos de polvilho. Alvíssimo, era horrível, aquilo. Atormentava, 
torturava: os olhos da pessoa de ficar miudinho fechados, feito os de um 
tatu, ante a implacável alvura, o sol em cima. O dia inteiro, o ar parava 
levantando, aos tremeluzes, a gente se perdendo por um negrume do 
horizonte, para temperar a intensidade brilhante, branca; tudo 
cerradamente igual. Teve dó dela – pobrinha flor: - ‘Que serviço você 
dá?’ – e era a tola questão. Também, para um pasmar-nos, com ela 
acontecesse diferente: nem enrugava o rosto, nem espremia ou negava os 
olhos, mas oferecidos bem abertos – os olhos desses, de outra 
luminosidade. “Não parecia padecer, antes tirar segurança e folguedo, do 
triste, sinistro polvilho... (p, 207) 
 
 
 A necessidade de encontrar explicação para o polvilho não era acompanhada por 
Maria Exita porque, diferentemente de Sionésio, a menina não concebia o trato com o 
amido uma tarefa a ser executada com finalidade produtiva. Longe do olhar pragmático, a 
moça fazia de seu trabalho, não uma ação maquinal, destituída de sua pessoa, mas algo 
realizado com o ser. Dona de olhos “de outra luminosidade”, não era condicionada pelo 
adverso que o meio oferecia e sabia retirar alegria dos momentos felizes, assim como da 
dor. 
 Além da aridez, o trabalho com o polvilho incomodava pelo excesso de luz 
emanado. A claridade velava a imagem de Maria Exita e atordoava ainda mais as emoções 
32 
 
e o pensamento de Sionésio, que não compreendia a novidade que nascia silenciosamente 
em seu íntimo e o diverso da moça por quem se sentia atraído. Mas em sintonia com o 
sentido erótico que compõe toda a estória, na luz da “substância”, habita o movimento dos 
contrários que faz eclodir o novo. 
 Como bem esclarece, Lenise Maria de Souza Lucchese: “A cor branca que ofusca 
com seu clarão e deixa os pensamentos de Sionésio atormentados, também desmancha seus 
tormentos” (2003, p. 31). É entre o velar e desvelar que o amor ganha vida em Sionésio e, 
aos poucos, o personagem vê renascer, em si, o sensível, a disponibilidade para a vida 
emocional, adormecida pelo uso demasiado da razão. O amor de Sionésio é, portanto, um 
sentimento que lhe ajuda a reunir os contrários. Homem dividido entre o pensamento e as 
emoções e, por isso também, com a vida paralisada, o personagem não poderia estar ligado 
à concepção amorosa que separa os elementos da natureza. No íntimo de Sionésio, havia a 
necessidade de Eros, deus cosmogônico que não cessa de instaurar o originário com seu 
amor vital: 
 
 
O amor é força vital que transforma, permanentemente; é carne e espírito, 
é luz e sombra e, não, contemplação ascensional e etérea rumo ao mundo 
das Idéias e dos arquétipos. O amor, em Rosa, compreende a permanente 
luta de paradoxos e contradições da alma humana e de contrários que, 
aparentemente se excluem. O ser que ama não busca a Idéia, mas 
transforma a sua vida em um contínuo processo de devir que eternaliza as 
suas experiências, revolucionando-as; ele passa a compor seu viver sob as 
cifras do caos e do cosmos, da morte e da vida, do não-ser e do ser, 
regidas por Eros, deus cosmogônico. (LUCCHESE, 2003, p.22) 
 
 
 
 Era, portanto, o afastamento do convívio criativo de caos e cosmos que tornava 
Sionésio um homem inerte. A conceber a vida com um olhar estritamente racional, o 
33 
 
personagem excluía os contrários que ajudam a compor o ser em plenitude, de modo a ser 
um homem apenas com mente e espírito. Por isso Maria Exita lhe causava, antes de tudo, o 
desconforto. Habitada pela “permanente luta de paradoxos e contradições”, de sensível e 
inteligível, corpo e alma, a menina era o convite ao despertar do que vigorava perdido em 
Sionésio. 
 E é, sobretudo, na ligação de Maria Exita com o polvilho, que se compõe o 
aprendizado erótico de Sionésio. O toque das mãos na materialidade da “substância” “... 
remete aos desejos do corpo e, também aos estados d’alma..” (Lucchese, 2003, p.35), em 
complementariedade no ser. Assim, para que o fazendeiro conseguisse deixar pulsar as 
impressões do espírito, sem anular a pulsão do corpo, era necessário estar em permanente 
contato com o polvilho: 
 
 “Sim na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, 
a roupa na corda. Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se 
repassa, para assentar no fundo da água e leite, azulosa – o amido – puro, 
limpo, feito surpresa. Chamava-se Maria Exita.” (p.205) 
 
 
 O fazer reflexivo indicado, logo, no início da estória, expressa bem a transformação 
existencial provocada pelo amor em Sionésio e o elo do casal com o polvilho. Em carta a 
Curt Meyer-Clason, Guimarães Rosa explicita o sentido da forma verbal usada na 
composição do texto: “Traz uma dinâmica, acentuando os esforços do fabricante, ou 
‘sofrimentos’ da polpa de mandioca, até para chegar a dar o alvo do polvilho”. (ROSA, 
2003, p.355). Conforme o caminho da mandioca, a experiência amorosa de Sionésio exige 
“esforço”, “sofrimento”, o fabricar a si próprio para abrigar o novo, o reencontro de alma e 
espírito/ pensamento/ amor, pois, como bem observa Maria Lúcia Guimarães de Faria: “O 
34 
 
polvilho é corpo, a alvura é alma, mas a alma necessita do corpo para se externar, e o corpo 
precisa da alma para se nutrir.” (2005, p.182). 
 Mas, apesar das tribulações que o sentimento lhe causava, Sionésio sentia, cada vez 
mais, a alegria na presença de Maria Exita: “... como sendo sempre desiguais os domingos, 
de tarde, aí, que as rolinhas e os canários cantavam.” (p.208). Deste modo também, o que 
figurava sozinho no íntimo do homem começava a ganhar espaço na consciência, ao 
mesmo tempo em que requisitava coragem para ser vivido: “’De suas maneiras, menina, 
me senti muito agradado’” ─ repetia um futuro talvez dizer.” (p.208). Mas o medo diante 
da natureza diversa da moça e da novidade que o amor instaurava ainda impediam o 
personagem de viver plenamente a renovação que tudo aquilo lhe oferecia. 
 Além do medo de si e da moça, Sionésio também contava com pensamentos que 
lhe atordoavam mais o ser: “Se outros a quisessem, se ela já gostasse de alguém? – as asas 
dessa cisma o saltearam. Tantos, na faina, na Samburá, namoristas; e às festas – a idéia lhe 
doía” (p.208). E, nesses instantes, também lembrava que, embora Maria Exita lhe 
trouxesse paz e felicidade, para os demais, ela ainda era a menina “do oposto mundo e 
maldições, sozinha de se sufocar.” (p.208). 
 Ao saber, portanto, que os outros homens “Temiam a herança da lepra, do pai, ou 
da falta de juízo da mãe, de levados fogos. Temiam a alguns dos assassinos, os irmãos, que 
inesperado de a hora sobrevir, vigiando por sua virtude.” (p.209), Sionésio sentia-se mais 
seguro. O fato de serem, somente, os outros que temiam toda a desgraça familiar de Maria 
Exita indicava o quanto o personagem já havia sido transformado pela força amorosa, pois, 
antes, enquanto homem demasiadamente racional, ele,assim como os demais, só era capaz 
de perceber as marcas de um destino familiar “... com os vários sem remédios de 
amargura...” (p.208). Além disso, não seria lógico ver a razão se defender em trajetórias 
que ela mesma condenou ao longo da história. 
35 
 
 Para refugiar-se do perigo de perder Maria Exita para outro homem, o amor de 
Sionésio começa então a encontrar refúgio nas formas mais improváveis. Embora 
admitisse internamente que não estava absolutamente imune: “Assim, ela estava salva. 
Mas, a gente nunca se provê segundo garantias perpétuas.” (p.209), ele procurava garantias 
na insegurança alheia: “Tinham-lhe medo, à doença incerta, sob a formosura. Ah, era bom, 
uma providência, esse pejo de escrúpulo. Porque ela se via conduzida para não se casar 
nunca, nem podendo ser doidivã.” (p.209). Assim, o não mais pragmático Sionésio 
entendia que a loucura e a lepra não eram os destinos de Maria Exita. A força de Eros o 
ajudava a enxergar que “a alma do jeito e ser, dela, diversa dos outros” se fazia e que, 
portanto, não era possível inscrevê-la no círculo negativo da doença do pai, da insanidade 
da mãe, tampouco, do crime dos irmãos. 
 Liberto da dominação racional, o ser de Sionésio aproximava-se, cada vez mais, do 
modo diverso de Maria Exita e do universo rosiano. É essa mudança existencial que leva o 
personagem a adotar um ponto de vista distinto dos outros homens. Estes, não 
influenciados pelo Eros cosmogônico, pela “força que eleva o ser humano para além de si 
mesmo” (LUCCEHESE, 2003, p.10), permaneciam presos à lembrança de práticas antigas, 
práticas que deram o mesmo significado a personagens distintos. Como esclarece Michel 
Foucault, o espaço vazio dos leprosários é preenchido, simbólica e literalmente, com a 
criação das casas de internamento da era clássica, de modo a não mais ser possível a 
distinção entre a figura do louco e dos demais “alienados”: 
 
 
 “Frequentemente, nos mesmos locais, os jogos de exclusão serão 
retomados, estranhamente, semelhantes aos primeiros, dois ou três 
séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças 
alienadas”, assumirão o papel abandonado pelo lazarento”. 
10
(FOUCAULT, 2007, p.06) 
 
10
 História da loucura: na idade clássica 
36 
 
 Nos laços familiares de Maria Exita, estão reunidos os rostos que compuseram o 
perfil traçado acima: A lepra, presente na figura paterna, os “presidiários”, identificados 
nos irmãos e, a mais temida, a loucura da mãe. Integrantes dos “jogos de exclusão”, estes 
personagens foram postos à margem acompanhados da formação de um estigma que se 
perpetuou a quem, de algum modo, esteja ligado a eles. Por isso, embora Maria Exita não 
seja como os parentes, a moça traz a iminência da repetição do que, aos olhos mais 
racionais, são expressões do erro. 
 “Mas, no embaraço de inconstantes horas- às esperanças velhas e desanimações 
novas ─ de entre ─ momentos.” (p.209), o amor de Sionésio seguia. Tinha a certeza “de 
que ele, a queria, para si, sempre por sempre.” (p.209) e “Sem ela, de que valia a tirada 
trabalhadeira, o sobreesforço, crescer os produtos, aumentar as terras?” (p.209). Observa-
se que, no íntimo do personagem, o sentimento já florescia com toda força e o homem 
desgastado, que não permitia pulsar corpo e emoção, se reintegrava, animava, na mesma 
medida, o sensível e o inteligível. 
 Era esse novo estado que iluminava o personagem e o aproximava da sabedoria de 
Maria Exita. Nos momentos de aflição, entre “criaturas estremunhadas e aflitas”, era a 
moça quem “contentava-o” (p.210) com “sua proximidade viva, quente presença, 
aliviando-o” (p.210). Assim, embora quisesse ainda desfazer o que já não tinha retorno, “... 
se desentregar da ilusão, mudar de parecer, pagar sossego, cuidar só dos estritos de sua 
obrigação, desatinada.” (p.211), não conseguia, de modo que, já com tanto mudado dentro 
de si, Sionésio não mais podia se calar: “A hora era de nada e tanto; e ela era sempre a 
espera. Afoito, ele lhe perguntou: - ‘Você tem vontade de confirmar o rumo de sua vida? ’ 
- falando-lhe de muito coração. – ‘Só se for já... ’” (p.211). 
 A coragem de realizar a pergunta a Maria Exita simboliza uma profunda mudança 
no interior do personagem, um momento em que o antigo Sionésio se recompõe no novo, 
37 
 
um instante preciso de morte e vida. Mas, no limiar entre o velho e a luz do que se anuncia, 
surge um resquício do passado, uma dúvida que precisava ser ultrapassada para que se 
chegasse plenamente à “alumiada surpresa” (p.211): 
 
Mas, de repente, ele se estremeceu daquelas ouvidas palavras. De um 
susto vindo de fundo: e a dúvida. Seria ela igual à mãe? – surpreendeu-se 
mais. Se a beleza dela – a frutice, da pele, tão fresca, viçosa – só fosse 
por um tempo, mas depois condenada a engrossar e se escamar, aos 
tortos e roxos, e estragada doença? – o horror daquilo o sacudia. (p.211) 
 
 
E é como o último ponto do conflito de Sionésio que o medo da possível sina de 
Maria Exita aparece; pois, é, logo em seguida, que, pela primeira vez, o personagem 
consegue sentir verdadeiramente a luminosidade do polvilho: “... achava ali um poder, 
contemplado, de grandeza, dilatado repouso..” (p.211). Neste momento, o que se fazia 
incompreendido, desde o dia em que o amor iniciava sua pequena brotação na nascente 
dura do ser de Sionésio, torna-se claro como a alvura do polvilho, como os olhos 
reluzentes da moça amada e, assim, tudo “alvava” (p.21). 
 Deste modo, uma vida sem brilho pelas amarras da razão reencontra o germinar de 
si mesmo com o amor por uma outra vida, que a princípio trazia consigo apenas dor, 
doença e loucura. Mas Maria Exita é personagem que habita em si o caos criativo, a 
sabedoria dos que não dependem da felicidade do mundo para experimentar a alegria 
porque esta é inventada na dinâmica do existir. 
 “Maria Exita. Socorria-a a linda claridade” (p.211) e é, com ela, que Sionésio se 
entrega ao toque do polvilho, à experiência destemida com o sensível: “Ela – ela! Ele veio 
para junto. Estendeu também as mãos para o polvilho – solar e estranho: o ato de quebrá-lo 
era gostoso, parecia um brinquedo de menino” (p.211). A criança, símbolo do homem que 
sabe acompanhar o seguir mutável de tudo, surge, neste instante, a indicar que, no 
38 
 
personagem, desabrochava um ser original, “o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua 
imaginação” (p.212). E é esse ser que inicia um caminho em que o coração não mais se 
separa da mente: uma trajetória de “pensamor” (p.212). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
39 
 
II) A loucura da razão ou a razão da loucura? 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Eu, a loucura, acho que quanto mais se é 
louco, mais se é feliz, contanto que nos 
limitemos ao gênero de loucura que é de 
meu domínio, domínio bem vasto na 
verdade, já que não há, por certo, na espécie 
humana, um só indivíduo que seja sábio em 
todas as horas e isento de qualquer tipo de 
loucura. 
(Erasmo de Rotterdam. Elogio da loucura) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
40 
 
21. “Pirlimpsiquice”: a arte de Zé Boné 
 
 
 Em “Pirlimpsiquice”, a loucura é a criação, o poético de Zé Boné, o “preenchido 
beócio” que rejeita e ridiculariza a encenação mimética que a escola propõe para o texto 
“Os filhos do Doutor Famoso”. No desatino de Zé Boné, encontra-se a vitalidade dos que 
recusam a atuação maquinal, a representação de personagens manipulados, a distância 
entre arte e vida. Criador de si mesmo, “personagem personificante”, rosianamente louco, 
no texto, o menino é quem mais entende da arte de representar. 
 É sobretudo, na lição do improviso, que Zé Boné atua como protagonista. Nos 
recreios, não gostava de se ocupar com algum jogo ou brincadeira previamente elaborada. 
Seuinteresse se fazia pela reinvenção das narrativas que assistia nos filmes de bang-bang: 
 
Zé Boné, com efeito, regulava de papalvo. Sem fazer conta de companhia 
ou conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e 
pulava, à celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava, assaltava a 
mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, beijava afinal – figurado a 
um tempo de mocinho, moça, bandidos e xerife. Dele, bem, se ria. O 
basbaque. (p.87) 
 
 
De acordo com o trecho destacado, é possível perceber que, nas encenações do 
personagem, o real não se apresentava distinto da estória representada. Interessado 
somente pelo que se conseguia de modo criativo, Zé Boné fazia do ficcional o seu espaço 
de vida, pertencia a um mundo em que os signos se transformavam em realidade. 
Semelhante à relação de Dom Quixote com os livros, o personagem de “Pirlimpsiquice” 
41 
 
era “o testemunho, representante, o real, o análogo” 
11
 (FOUCAULT, 20007, p.64) das 
“fitas de cinema” e, deste modo, contrapunha-se ao modelo mimético com que a escola 
concebia a arte. 
O jeito “basbaque”, como é denominado, era motivo para que do personagem se 
esperasse sempre alguma travessura, o que, de certo modo, não o permitia se integrar 
completamente aos demais. A forma livre e criativa com que encarava toda a seriedade da 
escola o fazia ser interpretado apenas como um menino “bobo”, a quem não se deveria 
conceder muita atenção. Na composição do elenco, é rejeitado por Darcy e Ataualpa: 
“alegaram não caber Zé Boné com as prestes obrigações” (p.88), objeção contestada e 
resolvida pelo Padre Prefeito, que concede ao menino um papel de pouca importância: 
“Mas, o Padre Prefeito repreendeu-nos a soberba, tanto quanto que o papel que a Zé Boné 
tocava, de um policial, se versava dos mais simples, com escasso falar.” (p.88). O menino, 
no entanto, não se sentia atingido. “Educado na realidade da experiência poética” 
(AXIOTELIS, 2003, p.54), não era atraído pelo teatro da escola. No momento de ler o 
texto da peça, era o único que não seguia a impostação de voz recomendada: “Só o Zé 
Boné não se acanhou de o pior, e promoveu risos, de preenchido beócio, que era.” (p.87), 
de modo que o aluno ficava sempre marcado como aquele que não conseguia se adequar 
aos superiores ensinamentos do professor. 
De acordo com Anatula da Silva Axioteli, na postura da escola há o compromisso 
com o ideal, a busca pelo paradigma perfeito: 
 
“A perfeição, nada mais é que a adequação a algum modelo considerado 
superior. Entretanto, Zé Boné é inadequado por natureza, pois é 
naturalmente espontâneo e imprevisível, sua linguagem é criada na hora, 
ele não se rende ao estereótipo...” (2003; p.54) 
 
11
 As citações de Michel Foucault encontradas em “Pirlimpsiquice”: a arte de Zé Boné e “Tarantão, meu 
patrão”: aventuras de um louco referem-se ao livro As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências 
humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9 edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 
42 
 
Os ideais artísticos dos mestres eram expressos através de frases e citações 
incompreendidas pelas crianças: “Longa é a arte e breve a vida – um preconício dos 
gregos!” (p.89), “Sus! Brio! Obstinemo-nos. Decoro e firmeza. Ad astra per áspera! 
Sempre dúcteis aos meus ensinamentos.” (p.90). Diante das cobranças, todo o elenco se 
empenhava, somente Zé boné insistia em ser o desobediente da turma: “Esse, entrava 
marchando, fazia continências, mas não havendo maneira de emendar palavra e meia 
palavra. E já o dia vindo próximo....Por que não trocar, ao estafermo?” (p.90). A 
insatisfação dos meninos era respondida com veemência por Dr. Perdigão que, confiante, 
dizia: “Senhores, discípulos meus, para persistir no prepará-los, a perseverança não me 
desfalece.” (p.90). 
A desobediência do personagem em relação ao que era ensinado não significava um 
ato de rebeldia infundado. Na loucura de Zé boné, está simbolizada a mundividência 
rosiana, a profunda ligação que o autor propõe entre sua obra e a vida: 
 
Legítima literatura deve ser vida. Não há nada mais terrível que uma 
literatura de papel, pois acredito que a literatura só pode nascer da vida, 
que ela tem de ser voz daquilo que eu chamo “compromisso do coração”. 
A literatura tem de ser vida! O escritor deve ser o que ele escreve. 
(LORENZ, 1973, p. 341) 
 
 
 
 Se o escritor é o que escreve, Zé Boné é o que representa. Seu desajuste indica a 
insuficiência da concepção mimética frente ao poético, de modo que não era o aluno quem 
não conseguia entender os mistérios da arte de representar, mas o modelo imposto pela 
escola, que impotente perante a autenticidade do menino dito desajuizado o reprime: “Já o 
Dr. Perdigão desistido de introduzir no Zé Boné sua parte, intimara-o a representar de 
mudo, apenas, proibido de abrir a boca em palco.” (p.91). A ausência de vitalidade na 
encenação de “Os filhos do Doutor famoso” era percebida até pelo Padre Diretor, que: “... 
43 
 
assistia ao quinto ato. Ele era abstrato e sério: não via a quem. Sem realces, disse: que nós 
estávamos certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria 
naturalidade pronta...” (p.91), comprovando assim que o desatino de Zé Boné tinha suas 
razões. 
O caráter livre de Zé Boné não lhe permitia ganhar confiança nem mesmo nas 
peripécias das crianças. Com medo de que a peça fosse descoberta, os meninos inventam 
um texto falso: “Precisávamos de imaginar, depressa, alguma outra estória, mais inventada, 
que íamos falsamente contar, embaiando os demais no engano. E, de Zé Boné, ficasse 
sempre perto um, tomando conta.” (p.88). Ao menino, no entanto, nada disso importava: 
 
Sem razão, se vendo, essas cismas. Zé Boné nada de nada contava. Nem 
na estória do drama botava sentido, a não ser a alguma facécia ou 
peripécia, logo e mal encartadas em suas fitas de cinema; pois, enquanto 
recreios houvesse, continuava ele descrevivendo-as, com aquela valentia 
e o ágil não-se-cansar, espantantes. (p.88) 
 
 
 Embora tenha sido motivada pelo medo das crianças que não integravam o elenco, 
a invenção de estórias provocava ânimo incomparável em relação ao experimentado nos 
ensaios de “Os filhos de Doutor famoso” original: “Mas, a outra estória, por nós tramada, 
prosseguia, aumentava, nunca terminava, com singulares-em-extraordinários-episódios, 
que um ou outro vinha e propunha...” (p.89). O encantamento dos meninos com a 
singularidade da trama inventada mostra, novamente, que a loucura de Zé Boné não estava 
errada, de modo a não ser ele o único desinteressado pela peça da escola. Sua rebeldia era 
mais exposta porque o menino trazia consigo uma força criativa latente, que o impedia de 
seguir qualquer modelo, pois, mesmo que intuitivamente, ele sabia que o que lhe 
impunham só serviria para anular seu ser, torná-lo prisioneiro de vontades externas. 
44 
 
 Mas “Os filhos do Doutor famoso” não contam apenas com uma versão falsa. Por 
vingança, Gamboa, o “engraçado e de muita e inventiva lábia” (p.90), também participava 
do jogo, criando assim uma segunda estória para ser dita como a verdadeira: 
 
Arquitetadas ao largo da história oficial, essas duas invenções 
saborosamente disputavam entre si o jogo da verdade na mentira e abriam 
espaço para um poder maior, incontrolável, que desencadeado abriria 
espaço para a única autêntica representação, que não merece a crítica de 
“sem realces” do padre Diretor... (CERDEIRA, 2003, p.804) 
 
 
 Na “autêntica representação”, Zé Boné faz brilhar a arte de sua loucura. Com a 
ausência de Ataualpa, que interpretaria o Doutor famoso, a peça teve de recompor o 
elenco, pondo como substituto do ator ausente o menino que até então participava apenas 
como o “ponto”. Feliz por poder integrar o elenco como protagonista, ele esquece que, 
além do texto “Os filhos do Doutor famoso”,havia um poema a ser recitado na abertura do 
espetáculo, o que dá início à confusão: “... o Ataualpa, primeiro, devia recitar uns versos, 
que falavam na Virgem Padroeira e na Pátria. Mas, esses versos eu não sabia!... Eu, não. 
Eu: teso e bambo, no embondo, mal em suor frio...” (p.94). 
 Ao ver o embaraço do jovem ator que não sabia como agir, o público se rendia ao 
riso. Para solucionar o problema, o Padre Prefeito ordenava: “Abaixem os panos”, mas, 
pelo defeito, as cortinas não caíam e as cenas confundidas suscitavam a vaia da plateia. A 
estupefação das crianças só acabaria com a chegada de Zé Boné, que: “representava – de 
rijo e bem, certo, a fio, atilado para toda a admiração...” (p.95). 
 
 
 
45 
 
2.2. “Tarantão, meu patrão”: aventuras de um louco 
 
 
 Em “Tarantão, meu patrão”, o “Bom desatino” (p.214) manifesta-se sob a forma de 
uma “desarrazoada loucura” (p.217). No mundo instaurado por Tarantão, o ordinário 
desaparece e o real transfigurado ilumina-se. Abençoado pelo delírio “... que afasta dele as 
inquietudes, as tristezas...” (ROTERDAM, 2008; p.22), o personagem de Guimarães Rosa 
desobedece à conduta de uma velhice comum, compõe um exército de “palhaços 
destemidos” (p.221) e sai, quixotecasmente, a esbravejar contra o médico que o havia 
tratado com “injeções e lavagens intestinais” (p.215). 
 É, com o tom do inesperado que, Vagalume, o empregado que relata os feitos de 
Tarantão, inicia sua narrativa: 
 
Suspa! – que me dão nem tempo para repuxar o cinto nas calças e me pôr 
debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos sossegos da 
cozinha... E, pois. Lá se ia, se fugia, o meu esmarte patrão, solerte se 
levantando da cama, fazendo das dele, velozmente, o artimonhoso. Nem 
parecesse senhor de tanta idade, já sem o escasso juízo na cabeça, e 
aprazado de moribundo para daí a dia desses, ou horas ou semanas. 
(p.213) 
 
 
 De acordo com as palavras do narrador, é possível perceber que o dia das peripécias 
de Tarantão mostrava-se surpreendente logo cedo. Com a força de sua loucura, o 
“moribundo” contrariava a fraqueza do próprio corpo, tirava o sossego de todos e 
inaugurava com artes e manhas os últimos momentos de sua vida. “Ligeiro, Vagalume, não 
larga o velho!” (p.213), gritava o caseiro e, assim, seguia Vagalume a levar o juízo que se 
faltava: “O encargo que tenho, e mister, é só o de me poitar perto, e não consentir maiores 
46 
 
desordens. Pajeando um triste ancião – o caduco que não caia!” (p.215). Mas, diante do 
desatino do patrão, os esforços de Vagalume se tornariam inúteis. Embora, a princípio, 
tudo figurasse como mero disparate de um “velho” irresponsável, ao acompanhar as 
aventuras que ora narra, Vagalume adquire a consciência de que, diante de si, não havia 
um louco qualquer, e sim um homem de “sumas grandezas e riquezas- um Iô João-de-
Barros-Diniz-Robertes!” (p.214). 
 De fato, Tarantão não padecia do desatino que conduzia à inércia, tampouco, 
figurava como doente. Como observa Maria Lúcia Guimarães de Faria: 
 
Iô João-de-Barros-Diniz-Robertes é a versão rosiana do nobre fidalgo e 
cavaleiro andante Dom Quixote de La Mancha. Igualmente cavaleiro 
andante, não lhe faltam o acólito estouvado, o discurso inflacionado, a 
presença impotente, nem os meneios de grande e renomado paladino. 
Não lhe falta tampouco, a dama, que ele enaltece, galante, com mimos de 
rainha. Tem o seu momento de moinhos de vento tomados por gigantes 
quando considera homenagem à sua ilustre pessoa a Festa de Santo que 
se celebrava no Brebêre. Mas, enquanto Quixote estava mais para anjo-
da-guarda dos desvalidos, o Tarantão queria-se o próprio demo, com 
pacto e tudo para vingança infernal... (2005, p.194) 
 
 
 
 Semelhante a Dom Quixote, Tarantão imagina-se um destemido cavaleiro, o que 
também é expresso nas frases que proclama no decorrer de sua viagem: “Mato! Mato, 
tudo!” (p.215), “Eu ’tou solto, então, sou o demônio” (p.215), “Mato pobres coitados!” 
(p.217), “Vou ao demo” (p.221). Recorrente no texto, a figura do diabo é usada para 
simbolizar o desconcerto promovido por Tarantão: “A cara se balançava, vermelha, ele era 
claro demais, e os olhos, de que falei. Estava crente, pensava que tinha feito o trato com o 
Diabo.” (p.215). O real assim transfigurado também é indicado em declarações que 
dialogam ironicamente com expressões cristalizadas, como: “Já estava com as barbas no 
47 
 
ar” (p.214), “Meu, meu, mau! Esta é aquela flor, de com quem não se bater nem em uma 
mulher” (p.217), “O espírito de pernas-para-o-ar, pelos cornos da diabrura” (p.221). 
 Sem se comprometer com o real ordenado, Tarantão expunha seu desatino nas 
roupas e armas escolhidas para realizar o terrível combate: 
 
...Sem paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, 
calçando um pé de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um 
colete, enfiado no braço, falando que aquela era a sua toalha de se 
enxugar. Um de espantos! E, ao menos, desarmado, senão que só com 
uma faca de mesa, gastada a fino e enferrujada – pensava que era capaz, 
contra o sobrinho, o doutor médico... Nisto, apontava o dedo, para lá ou 
para cá, e dava tiros mudos. (p.215-216) 
 
 
 Para Vagalume, o comportamento do patrão manifesta apenas a loucura. Orientado 
pelo pensamento lógico, o personagem não conseguia entender que, de acordo com 
Tarantão, o mundo se organizava a partir de semelhanças. A faca podia perfeitamente atuar 
como uma arma, pois, as duas se assemelham pelo fato de serem instrumentos cortantes. 
Assim, o colete também poderia servir como toalha. Mas o jogo analógico de Tarantão não 
é acompanhado pelo narrador, sendo, sobretudo, por isso que, durante parte da narrativa, 
Vagalume enxerga somente delírio nas ações do patrão. 
 Como Dom Quixote, a loucura de Tarantão encontra-se ligada à exposição da 
semelhança em um mundo que não a tem como válida, “pois, que aí a semelhança entra 
numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação” (FOUCAULT, 2007, p.67). 
Segundo Michel Foucault, no fim do século XVI, o saber da cultura ocidental abandona a 
similitude, a composição simbólica para adotar uma ordenação empírica do mundo: “o 
século XVII marca o desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas, e a 
entrada, enfim da natureza na ordem científica” (FOUCAULT, 2007, p.75). Não mais 
amparado pelo olhar dos séculos anteriores, que lia o mundo a partir de vizinhanças, 
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aproximações, reflexos e analogias, o pensamento científico promove a ordem através de 
análise e identificação das diferenças. 
 “Substituição da hierarquia analógica pela análise” (FOUCAULT, 2007, p.75) é 
como Michel Foucault resume a reorientação epistemológica que ocorre entre os séculos 
XVI e XVII. O autor ainda destaca que, se no Renascimento a interpretação vigorava como 
a forma mais apropriada de o homem ler o mundo, na idade clássica, a relação com a 
Ordem torna-se fundamental. Disso decorre, a taxonomia, a “máthesis”, o empírico e a 
importância dada, neste período, à formação de sistemas, o que, no campo da linguagem dá 
início a signos não mais dispostos em uma relação ternária, que resguardava a proximidade 
entre o “marcado” e o “marcante”. 
 Sem seguir o caminho traçado pela teoria dual do signo, a procurar a semelhança 
perdida entre “As palavras e as coisas”, Dom Quixote é, portanto, para a idade clássica, 
nada mais que aquele que se perdeu no delírio da busca de uma “escrita” 
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 (p.65) que 
“cessou de ser a prosa do mundo” (p. 65), é o representante da loucura identificada não 
como doença, mas como o que não sabe respeitar a ordem do saber vigente. 
 
O louco, entendido não como doente, mas como desvio constituído e 
mantido, como função cultural indispensável, tornou-se, na experiência 
ocidental, o homem das semelhanças selvagens. Essa personagem, tal 
como é bosquejada nos romances ou no teatro

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