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Universidade Federal do Rio de Janeiro DESATINO: O DESTINO POÉTICO DOS LOUCOS ROSIANOS 2013 2 DESATINO: O DESTINO POÉTICO DOS LOUCOS ROSIANOS Nádia Garcia Mendes Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira Orientador: Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 3 DESATINO: O DESTINO POÉTICO DOS LOUCOS ROSIANOS Nádia Garcia Mendes Orientador: Ronaldes de Melo e Souza Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira Aprovada por: Presidente, Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza Prof. Doutor Manuel Antonio de Castro – UFRJ Prof. Doutora Anélia Montechiari Pietrani – UFRJ Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto – UFRJ (Suplente) Prof. Doutor Sérgio Martagão Gesteira – UFRJ (Suplente) Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 4 Mendes, Nádia Garcia R788me Desatino: o destino poético dos loucos rosianos. / Nádia Garcia Mendes. — Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. 85 f.; 30cm Orientador: Ronaldes de Melo e Souza. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Vernáculas, 2013. Bibliografia: f. 83-85. 1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967 – Crítica e interpretação. 2. Rosa, João Guimarães, 1908-1967 – Personagens. 3. Loucura na literatura. 4. Loucura-Filosofia. 5. Filosofia. 6. Loucura-História. I. Souza, Ronaldes de Melo e, 1946- II.Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III.Título. CDD B869.35 5 RESUMO DESATINO: O DESTINO POÉTICO DOS LOUCOS ROSIANOS Nádia Garcia Mendes Orientador: Ronaldes de Melo e Souza Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. Na obra de João Guimarães Rosa, a loucura não é apenas um tema recorrente. Os loucos apresentam-se intimamente relacionados à poética do autor, são detentores de sabedorias que superam o campo estritamente racional, são seres ligados ao mundo profético, à poesia, à criança e a todos os elementos que simbolizam o homem criativo. A partir de uma das sagas de Corpo de baile e de algumas das estórias que compõem a obra Primeiras estórias, este trabalho propõe um estudo de personagens que vivem à margem da razão, de modo a entender a singularidade do desatino rosiano. Palavras-chave: loucura, razão, imaginação, poesia, profecia. Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 6 RESUMEN DESATINO: EL DESTINO POÉTICO DE LOS LOCOS “ROSIANOS” Nádia Garcia Mendes Orientador: Ronaldes de Melo e Souza Resumem da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. En la obra de João Guimarães Rosa, la locura no es solo un tema recurrente. Les personajes locos se presentan relacionados com la poética del autor, sean titulares de una sabiduría que supera el ámbito racional, sean seres conectados al mundo de la profecía, la poesia y a todos los elementos que simbolizan el hombre criativo. Desde una de las sagas de “Corpo de baile” y algunas delas “estórias” que componen la obra “Primeiras estórias”, este trabajo propone un studio de personajes que viven a margen de la razón, a fin de comprender la singularidad de la locura “rosiana”. Palabras-Clave: locura, razón, imaginación, poesía, profecía. Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 7 ABSTRACT MADNESS: THE POETIC FATE OF THE CRAZY “ROSIANOS” CHARACTERS Nádia Garcia Mendes Orientador: Ronaldes de Melo e Souza Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. In the work of João Guimarães Rosa, madness is not just a recurring theme. The crazy feature is closely related to the poetics of the author. The crazy characters are holders of such a wisdom that outweighs the strictly rational field and they are connected to the prophetic world, to poetry, to children and to all the elements that symbolize the creative man. From one of the sagas of “Corpo de baile” and from some of the stories that are part of the book “Primeiras estórias”, this word proposes the study of characters that are on the borders of reason, in order to understand the singularity of the “rosiano” madness. Kew-words: madness, reason, imagination, poetry, prophecy. Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 8 Agradecimentos Aos alunos do curso de extensão “A loucura em Guimarães Rosa”, com quem pude compartilhar as leituras de minha pesquisa em um diálogo poeticamente rosiano. Um especial agradecimento a Maria Lúcia Guimarães de Faria (para mim, co- orietadora), que apesar de não me conhecer e não ter sido minha professora, quando lhe pedi para ler meu pré-projeto, mostrou-se absolutamente solicita, tornando o que seria apenas a leitura do pré-projeto um período de orientação. Na ajuda de Maria Lúcia, destaco suas brilhantes aulas de Teoria Literária, que assisti como ouvinte, o empréstimo de livros (o que achei um gesto de muita confiança) e as conversas que sempre esclareciam minhas dúvidas. Agradeço ainda pela sua presença no decorrer do mestrado (sempre atenciosa). Um especial agradecimento também ao professor Ronaldes de Melo e Souza, pela honra de ter sido sua orientanda. Sua orientação, sempre clara e precisa, foi fundamental para que o estudo sobre a obra rosiana tenha se mantido fiel à poética do autor. Agradeço as leituras indicadas, as dúvidas esclarecidas, o curso sobre Guimarães Rosa e, sobretudo, a confiança depositada em meu trabalho. Aos amigos, que me apoiaram e souberam compreender a ausência nos momentos de escrita. A minha família, sobretudo, a minha mãe, que esteve comigo em todos os momentos, e a minha irmã, que me incentivou e sempre se sentiu muito orgulhosa de meus estudos rosianos. A meus pais, aos desatinos que ajudaram a compor o meu destino. 9 Sumário Apresentação: Desatino e destino....................................................................... 10 I) Nos caminhos do desatino................................................................................ 16 1.1-“A terceira margem do rio”: o desatino de uma escolha................................ 17 1.2-“Sorôco, sua mãe, sua filha”: a loucura já não parte....................................... 23 1.3: ”Substância”: o amor entre destinos e desatinos............................................ 29II) A loucura da razão ou razão da loucura?:....................................................... 39 2.1-“Pirlimpsiquice”: a arte de Zé Boné................................................................ 40 2.3-“Tarantão meu patrão”: aventuras de um louco.............................................. 45 3.3-“Darandina”: ironia da loucura....................................................................... .51 III) A divina loucura.............................................................................................. 58 3.1- “O recado do morro”: a mania dos recadistas............................................... 59 3.2- “Um moço muito branco”: a amizade entre o maravilhoso e a loucura profético ................................................................................................................................ 72 3.3- “A menina de lá”: a loucura na descoberta do mundo:.................................. 76 Referências............................................................................................................. 83 10 Apresentação Desatino e destino Desatino: O destino poético dos loucos rosianos é uma proposta de interpretação da loucura encontrada no livro Primeiras estórias e na saga “O recado do morro”, que compõe a obra Corpo de baile. Protagonistas de um universo dinâmico, os personagens de Guimarães Rosa são seres que ultrapassam o “mundo maquinal” 1 e forjam seus destinos como artistas de si mesmos. Na obra rosiana, destino e desatino não são apenas palavras próximas foneticamente. O desatino, compreendido enquanto sabedoria transracional, estado anímico que inspira e encoraja o ser, é a força motriz do destino, que distante de qualquer visão determinista, é concebido como a criação da vida de acordo com o íntimo de cada homem. Sem parentesco com a loucura do internamento e do pensamento científico, a loucura das estórias de Guimarães Rosa é poética, profética, habita a imaginação movente das crianças, as escolhas que conduzem à terceira margem, a música transcendente, o amor cosmogônico de Eros, o improviso do teatro, a juventude de um velho “moribundo” e a sabedoria delirante de um “psiquiartista”. 2 Em “Nos caminhos do desatino”, estão reunidas estórias em que a loucura atua intimamente relacionada à transformação existencial dos personagens. Aproximando-se do silêncio do homem de “A Terceira da margem do rio”, da surpreendente partida da mãe e da filha de Sorôco e, da “Substância” do amor de Sionésio e Maria Exita, o primeiro capítulo busca seguir a orientação sugerida pelo desatino no destino dos personagens de cada texto. 1 A expressão foi usada por Maria Lúcia Guimarães de Faria na introdução de sua Tese de Doutorado (Aletria e hermenêutica nas estórias rosianas) 2 “Darandina”, Primeiras estórias. 11 No conto de abertura, “A terceira margem do rio”, é a escolha inesperada de um homem responsável que faz nascer a dúvida sobre o lugar da razão na vida humana. A partir do relato do filho que não “chegou a existir” 3 , a estória mostra que o desatino pode estar onde vigora a sensatez e, que o louco não é necessariamente aquele que se perdeu na ilusão. Doido ou alguém que “chegou a existir”? Desatinado ou apenas um “personagem personificante”? 4 A resposta depende das questões que movem o ser. É de acordo com o ponto de vista adotado que a atitude do personagem da estória de Guimarães Rosa poderá ser interpretada como um desatino ligado ao erro, ou uma força que repõe o homem em um destino singular. Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, a loucura é a vida que renasce em um lugar que se prepara para expurgar o louco, tal como a Idade Média amaldiçoou o leproso e o classicismo alienou o desatino. Na estória, no entanto, a loucura que provocava medo e teve de ser isolada surge como o elemento que reanima a vida de toda a comunidade, de modo a superar o sentido negativo do olhar racional, compor a imagem poética do louco e libertar o viver automatizado de todos. Na estória da mãe e da filha de Sorôco, o desatino é uma força que impulsiona o destino de muitos destinos. “Substância” traz o desatino como marca de um destino familiar, além de referências que lembram o parentesco criado entre a lepra, o louco e o homem identificado como criminoso. Mas a suplantar o sentido coercitivo da história, na estória, a personagem relacionada ao mundo da loucura é também o mais pleno. Diferentemente das estórias mencionadas anteriormente, em “Substância”, a transformação promovida pelo contato com alguém que vive próximo ao desatino é acompanhada do sentimento amoroso. Na estória de Sionésio e Maria Exita, a vida se renova e o desatino desenha um novo destino a partir do aprendizado amoroso do Eros cosmogônico. 3 Referente à pergunta “‘Você chegou a existir? ’” de “O espelho”, conto de Primeiras estórias. 4 “Pirlimpsiquice”. 12 “Nos caminhos do desatino” sugere, portanto, um percurso sobre as mudanças promovidas pela loucura no destino dos personagens, tendo como início a viagem íntima e solitária do pai de “A terceira margem do rio”, passando pela partida da mãe e da filha de Sorôco em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, terminando com o encontro amoroso do casal de “Substância”. Em “A loucura da razão ou a razão da loucura?”, estão os personagens irônicos, que se divertem da seriedade, da falsa sapiência dos defensores do pensamento racional, mostrando a limiaridade entre o razoável e o desatino. Neste capítulo, a loucura apresenta- se de acordo com as palavras de seu elogio: “...sou eu, somente eu, por minhas influências que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens” 5 . A alegria das estórias reside no desatino do aluno que não se adéqua à educação da escola, no espírito transgressor de um cavaleiro quixotesco e, na atuação de um homem que se equilibra sobre uma palmeira. Como a obra de Guimarães Rosa, o personagem desajuizado de “Pirlimpsiquice” inaugura uma nova realidade. Longe de ser um caso patológico, o menino da estória é tido como doido apenas por não se deixar moldar pelos professores, que são os representantes da rigidez imposta pelo pensamento excessivamente racional. O confronto entre discurso mimético e poético, o limite entre o real e o ficcional, o poder das estórias e, consequentemente, da palavra poética, são elementos presentes no texto, que a partir de uma aparente brincadeira de crianças, mostra a importância da loucura como ato criativo na arte e na vida. O personagem encontrado na segunda estória de “A loucura da razão ou a razão da loucura?” não se distancia do menino de “Pirlimpsiquice”. Desordeira e delirante, a loucura de Tarantão põe o mundo ao avesso, encoraja os que a seguem e torna a chegada da morte um acontecimento festivo. Em diálogo com Dom Quixote de La Mancha, a 5 Rotterdam, Erasmo de. Elogia da loucura. 13 estória de Guimarães Rosa refere-se ao sentido gerado pelas semelhanças e pela linguagem dos signos que não se perderam do real. Em “Tarantão, meu patrão”, o desatino é o sopro que anima o espírito e faz da vida uma grandiosa aventura. Dentre os textos escolhidos para compor este trabalho, “Darandina” é o que apresenta o louco em sua face mais irônica. Tradicionalmente julgada e analisada pela razão, a loucura tornou-se a marca de um defeito, o sinal de um desvio na mente humana. Assim, o comum é que se veja o saber coerente junto aos representantes do pensamento, como cientistas e filósofos. Na estória de Guimarães Rosa, no entanto, a consistência do pensamento, a lógica que rege os discursos da razão migram para as palavras do louco e a vaidade racional adquire o formatode um impotente disparate. O jogo gerado pela proximidade entre loucura e razão é indicado ao leitor na pergunta que intitula o segundo capítulo. Além de ser o elemento renovador do mundo racionalmente ordenado, em “Pirlimpsiquice”, “Tarantão, meu patrão” e “Darandina”, a loucura mostra o quanto há de razoável em seu delírio. A ironia das estórias está na leveza, na sabedoria do louco e na reversibilidade formada entre razão e loucura, enfraquecendo o limite entre as duas. O terceiro capítulo apresenta estórias que mostram a sintonia entre o mundo da loucura, a poesia e o saber profético. Em “O recado do morro”, “Um moço muito branco” e “A menina de lá”, encontram-se personagens que simbolizam um saber transracional. Ao contrário do que induziria o pensamento orientado pela lógica, não são seres inferiores, tampouco, destituídos de conhecimento. Em harmonia com a potência criativa das crianças, com o mundo dos profetas e, a sensibilidade dos poetas, os personagens de “A divina loucura” apresentam-se imbuídos de grande sabedoria, questionando a pretensa superioridade da razão na vida humana. 14 Em “O recado do morro”, a loucura é o estado de transe dos seres inspirados pelo divino. Influenciados pela Musa, os recadistas da saga de Corpo de baile são como os profetas, que arrebatados pelos deuses se tornam capazes de conceber os fatos ainda não ocorridos. Portadores da mensagem reveladora, os loucos da saga rosiana são encantados pelo poder das estórias e da palavra poética. Íntimos do mundo originário, comunicam-se através da linguagem simbólica, recorrendo a imagens que não obedecem a uma ordenação lógica. A reunião de poesia, loucura e mundo profético de “O recado do morro” estrutura o terceiro capítulo. Em “Um moço muito branco”, a ligação entre loucura e profecia aparece novamente. Presente no louco José Kakende, o dom profético é também o elemento de sintonia com o personagem que nomeia a estória e simboliza a mundividência rosiana. “A amizade entre o maravilhoso e a loucura profética” de “Um moço muito branco” trata da proximidade entre a loucura e o homem concebido na obra de Guimarães Rosa, de modo a reforçar o papel do desatino como elemento poético. Sem estabelecer um fim linear, “A menina de lá: A loucura na descoberta do mundo” encerra esta dissertação com o convite à redescoberta do mundo e da linguagem. Poeta que faz da palavra um ato inaugural, Nhinhinha compõe poesia com a vida. Agraciada pela imaginação que ilumina os loucos e as crianças, a menina vive afastada do real que aprisiona os homens de muita razão. Conforme os personagens proféticos de “O recado do morro” e “Um moço muito branco”, a protagonista desta estória é de lá porque habita os mistérios e revela o que o saber lógico não consegue alcançar. Incompreendida pelo seu modo diverso, a menina é inserida no mundo dos insanos. No entanto, como se observa em todos os desatinados deste trabalho, a loucura de “A menina de lá” não é apreendida pelo racionalismo, não é doentia, não é um erro. Muito acertada e poética, a 15 falta de juízo da personagem é o que colore a vida e mobiliza o ser e a linguagem dos homens que se perderam na inércia da lógica e dos conceitos. Da solidão perturbadora do pai de “A terceira margem do rio” ao mundo encantado de “A menina de lá”, realiza-se, acima de tudo, uma escuta das questões que movem os personagens considerados loucos. Mais que um estudo da história e dos conceitos que dizem respeito à loucura, este trabalho buscou dialogar com a poética rosiana. Disto decorre a forma variada com que o desatino é apresentado e a ausência de um capítulo dedicado ao tema de modo isolado. Cabe ressaltar, no entanto, que a reunião e a ordem das estórias obedecem às variadas faces da loucura. Em “Nos caminhos do desatino”, observa-se a figura do louco associada ao período que marca o fim dos leprosários e a formação das casas de internamento. As referências teóricas encontradas, para entender os gestos coercitivos do internamento e os simbolismos que aproximam a loucura e a lepra, estão em História da loucura: na idade clássica, de Michel Foucault. O autor citado também aparece no segundo capítulo. Nesta parte, as estórias dialogam com a mudança de pensamento promovida pela Ordem do racionalismo, a qual é discutida em As palavras e as coisas. Ao chegar em “A divina loucura”, a leitura das estórias de Guimarães Rosa entra em contato com um mundo em que o saber não era um caminho restrito à razão. A loucura que representa a presença divina na vida dos homens e simboliza uma forma de sabedoria é o tema central do terceiro capítulo, que tem a presença das loucuras descritas por Sócrates em Fedro. Além das leituras mencionadas, ao longo da dissertação, há referências a textos literários e a estudos sobre a obra de Guimarães Rosa. Assim, sem o erro da pretensão de definir, conceituar a loucura na obra do autor, este trabalho apresenta os destinos reinventados pelo espírito livre e criativo dos loucos rosianos. 16 I) Nos caminhos do desatino ... cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. (Guimarães Rosa. Entrevista a Günter W. Lorenz) 6 ...há dois gêneros de loucura: a produzida por doenças humanas e as que por uma revulsão divina nos tira dos hábitos cotidianos. (Platão. Fedro) Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. (Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.) 6 Diálogo com a América Latina: Panorama de uma literatura do futuro 17 1.1- “A terceira margem do rio”: o desatino de uma escolha Doideira? Coragem? Como explicar a decisão de um dos mais emblemáticos personagens rosianos? Como encontrar lógica na escolha que implica o abandono da família e o cultivo de uma solidão que não se despede, que permanece por perto, como um aviso, um castigo, ou um mistério a ser desvelado? Para a razão, trata-se somente de desatino, pois, entende que o correto e sensato consiste em ser “ordeiro” 7 (p.79), “positivo” (p.79), não se afastar das margens seguras que o convívio familiar oferecia, mas para o “pai” de “A terceira da margem do rio”, insano seria não se libertar, não seguir um caminho que desse sentido a sua existência. E, talvez, seja na busca de sentido que o ser humano, procura ao tentar escrever as páginas de seu destino, que se encontre, não a resposta, mas o possível diálogo com as questões que motivaram o personagem a viver sozinho em uma canoa. A partir do que conta o filho, que desempenha o papel de narrador, sabe-se que, antes do acontecido, o homem não era visto como doido. Segundo “as diversas sensatas pessoas” (p.79), mesmo quando moço, já se mostrava “cumpridor” (p.79), na memória do filho, “não figurava mais estúrdio nem mais triste que os outros” (p.79) e, na família, não mandava, pois, a “..mãe era quem regia, e lhe ralhava no diário” (p.79). No novo comportamento do personagem, não havia semelhança alguma com as características acima mencionadas. “Mas, se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.” (p.79), “Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos” (p.79). Sem nada dizer, o homem contrariava a esposa, “Nossa mãe muito jurou contra a idéia” (p.79), ao mesmo 7 As citações de todas as estórias da obra Primeiras estórias referem-se à edição de 2001, pela Nova fronteira. 18 tempo em que, suscitava, no filho, indagações sem respostas: “Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?” (p.79).Sem desculpas ou queixas que justificassem a ruptura com os familiares, “nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez alguma recomendação” (p.80). Acostumada ao comando da família, a mãe adverte: ““Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”” (p.80). Naquele instante, a mulher já intuía que não se encontrava diante do mesmo homem, pois, o que ela conhecia não teria coragem de realizar aquele feito. O seu marido “cumpridor” era obediente, sabia desempenhar o papel que lhe era ditado. Ao contrário da mãe, o filho sente-se profundamente atraído pela escolha do pai: “... O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: ─ ‘Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?’” (p.80), mas aquele era o tempo de partida do pai, que “entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo...” (p.80). Para a família, no entanto, o mais estranho foi perceber que: Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer toda a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho. (p.80) Não era, portanto, a distância dos parentes que motivava o novo projeto de vida daquele homem. Havia algo mais profundo em sua escolha, algo que não se tornaria claro ao olhar comum. No entanto, era de acordo com esse olhar que a mãe continuava a interpretar o marido. Indo além do espaço familiar, os fatos ocorridos chegavam ao conhecimento dos vizinhos, que não demorariam a julgar o personagem como louco: “As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas – passadores, moradores de beiras, até do 19 asfalto da outra banda – descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto...” (p.81). Sem acreditar na coragem do pai, a mãe e os parentes pensavam: “que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e ,ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.” (p.81). De acordo com a concepção exposta acima, o correto consistia em apagar a vergonha, o disparate cometido, pois, o que se mostrava, de fato, como relevante para que a vida pudesse prosseguir não eram as inquietudes oriundas do ser, mas a manutenção do instituído, a inércia e a repetição do mesmo. Vencida pela insistência do pai, que não retorna a casa, tampouco, parte para longe, e, destinada a não desorganizar a estrutura de sua família, a mãe decide preencher, com sensatez, a lacuna formada pela ausência do pai. É a isso que se deve a presença do tio a auxiliar nos assuntos econômicos, do mestre a ensinar as crianças, do padre que tentou devolver o pai ao lar e os soldados convocados para proteger a casa. Imobilizada pelo seu forte caráter racional, a mãe mostrava-se incapaz de acompanhar a transformação que a vida lhe apresentava: Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam no entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. (p.80) Não são as palavras da mulher que expressam o seu pensamento a respeito do marido, mas o silêncio que vem acompanhado de uma tentativa de discrição. A “vergonha” e a “cordura” são um dos comportamentos tidos por quem se sente amedrontado pela 20 presença do desatino. Sobretudo para os defensores da razão, a figura do louco assusta porque torna evidente que a sensatez do homem não é inabalável e que o comando do intelecto sobre a vida é ilusório. Além disso, qualquer sinal da presença da loucura traz à memória uma história que assinalou fortemente o irrazoável como o erro, o desvio a ser corrigido e separado do espaço em que se dispõem os sãos. Junto ao leproso, que é também mencionado pelos vizinhos, o “doido” é aquele que deve ser banido, que não pode circular livremente com seu mal, de quem deve ser retirada toda a liberdade, visto que ao ter sido contaminado, ele já não a mais possui. A associação realizada entre a atitude do pai e a loucura sinaliza que a perspectiva adotada pela mãe, assim como a dos vizinhos, vai ao encontro da visão racionalista, que construiu o significado negativo que envolve os que ousam se aproximar do mundo do desatino. Negatividade que se inicia pela consciência do grupo em que o louco está inserido, uma “consciência prática da loucura” 8 , que envolve um “descompromisso” que “... se impõe enquanto realidade concreta porque é dado na existência e nas normas do grupo”, além de ser: Uma consciência da diferença entre loucura e razão, consciência que é possível na homogeneidade do grupo considerado como portador das normas da razão. Sendo social, normativa, e solidamente apoiada desde o início, esta consciência prática da loucura não deixa de ser menos dramática; se ela implica a solidariedade do grupo, indica igualmente a urgência de uma nova divisão. (FOUCAULT, 2007, p.167) 8 As expressões citadas entre aspas pertencem a Michel Foucault e se encontram na introdução da segunda parte de História da loucura: na idade clássica; [tradução José Teixeira Coelho Neto]. – São Paulo: Perspectiva, 2007. 21 Na estória, o grupo é indicado pela forma pronominal indefinida “todos”. São eles que, ao se portar como os detentores da razão e das normas estabelecidas sobre o que seja o correto para se viver, consideram a escolha do pai como “doideira”. O interesse dos outros pelo acontecido mostra o jogo discriminatório que o olhar puramente racional constrói em torno dos que optam em não mais seguir o caminho regido pelo alheio. Em outra margem, ou melhor, em outra perspectiva, encontra-se o personagem do pai. Para ele, o incompreensível residia na forma com que sua vida anterior era conduzida. Louco, o foi enquanto aceitou passivamente a regência da esposa e cumpriu as normas que lhe concediam o direito de não ser discriminado. Deste modo, diferentemente do que “todos” pensam, a atitude do personagem não se justifica pela carência de razão, assim como não guarda proximidade alguma com qualquer outra experiência relacionada ao mundo do desatino. A estória de Guimarães Rosa não apresenta um pai que se ausenta covardemente da família, renunciando suas responsabilidades, tampouco, um isolamento com o objetivo de se manter apartado do mundo. Na solidão de “A terceira margem do rio”, há o encontro com a nascente do ser, com a força genesíaca do homem. É essa pulsão criativa que está simbolizada na imagem que dá título à estória. A terceira margem é o que fica entre a primeira margem, lugar onde o rio nasce, e a segunda margem, onde o rio deságua, é, portanto, o que fica entre o nascer e o morrer, no eterno devir. Interpretado a partir das semelhanças com a interioridade humana, o rio é elemento simbólico fundamental na literatura de Guimarães Rosa, que, em entrevista a Günter Lorenz, declara o que há de semelhante entre o ser e o rio, além da simbologia temporal sugerido pelo último: 22 ...amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. (LORENZ, 1973, p.328) Era a profundeza de si mesmo que o pai de “A terceira margem do rio” procurava quando decide negaro papel de “homem cumpridor”. A solidão e o silêncio são, portanto, caminhos de retorno ao ser, para lhe conceder a graça de eclodir livremente na dinâmica da vida e sentir a eternidade de si mesmo. No ensaio “Não já e ainda não: a leveza do humor em Guimarães Rosa”, Lélia Parreira Duarte explica como a terceira margem se compõe na obra rosiana: A obra de Guimarães Rosa vem mostrar a impossibilidade de conceitos definitivos, expressando a convicção de que é permanente e irresolvível a tensão existente entre pólos opostos – seja entre o mundo dos dominadores e dos dominados..., seja entre real e imaginário, bem e mal, Deus e o diabo, mythos e logos, loucura e razão. Os textos rosianos refletem por isso, de diferentes formas, uma tensão permanente e irresolvível, numa perspectiva que vê o ser humano incompletamente dividido entre pólos opostos, entre cujas extremidades equilibra-se instavelmente, tornando assim possível a criação da terceira margem, do ‘não já e ainda não’, com a sugestão do entre – lugar...” (DUARTE, 2001, p. 100) As palavras acima respondem à pergunta a respeito da escolha do pai. Sendo a terceira margem o lugar da tensão entre razão e loucura, o personagem de “A terceira margem do rio” não pode ser julgado somente como louco. Em sua atitude, há uma razão que surge do ser; mas, se vista pela forma estritamente racional, mostra-se como “doideira”. 23 1.2.- “Sorôco, sua mãe, sua filha”: a loucura já não parte Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, a loucura é apresentada a partir da despedida da mãe e da filha de Sorôco. Enviadas ao hospital psiquiátrico porque já não podiam permanecer sob os cuidados de Sorôco, as personagens provocam a curiosidade do “povo” (p.62), que se reúne na estação para aguardar a chegada das duas: “As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro para esperar.” (p.62). É, portanto, em torno da expectativa das “muitas pessoas” (p.62), que se desenvolvem a narrativa e o sentido que o desatino recebe na estória. Dentre os textos de Primeiras estórias em que a loucura se faz presente, “Sorôco, sua mãe, sua filha” é o que mais dialoga com o mundo que separou o insano do razoável e interpretou o louco como um problema de ordem social. O isolamento daquele que desorganiza a ordem vigente, a intervenção do Estado, que ao agir, não faz distinção entre crime e doença mental são alguns dos gestos da história encontrados na estória de Guimarães Rosa. Literariamente apropriadas, as referências históricas atuam, no texto, relacionadas ao comportamento do “povo”. Apesar de ser expresso como tristeza, “As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo” (p.62), o interesse de todos pelo que ocorria na família de Sorôco ia além da compaixão pelo sofrimento do homem que “agüentara de repassar tantas desgraças” (p.64). O envolvimento de “cada um” (p.62) com a “prática do acontecer das coisas” (p.62) dizia respeito ao medo formado pela ação do internamento, que ao retirar a loucura do convívio social, tornava próximo elementos atuantes até então como distantes e desconhecidos. 24 A ajuda do Governo, o carro enviado para conduzir as personagens, “Quem pagava tudo era o governo, que tinha mandado o carro.” (p.64), assustavam porque mostravam a força a que eram submetidos os que não obedeciam à razão. Embora não declarasse, o “povo” incomodava-se com o modo como tudo era realizado e percebia as semelhanças lançadas com o crime: Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. (p.62) Com formato especial, o trem logo chama a atenção de “A gente”. “As diferenças”, as “grades” já indicavam que as personagens não estavam sendo afastadas de Sorôco para serem tratadas de uma doença, mas para se tornarem prisioneiras. Prisioneiras de uma viagem que as deixaria esquecidas entre os muros do hospício, pois, “Isso não tinha cura, elas não iam voltar nunca mais.” (p.64). Além de representar a reclusão institucionalizada do hospital, o carro trazia à memória práticas que também se ocupavam de marginalizar a loucura: O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadinho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e a que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. (p.63) 25 A lembrança de um navio de “muita distância” que não tinha piedade encontra referências na história. O “canoão no seco” da estória de Guimarães Rosa dialoga com os navios da renascença que destinavam os loucos a cidades distantes, onde permaneceriam sem direito de retorno a suas casas. Conhecidos como “A nau dos loucos”, esses barcos conduziam os insanos à busca da razão perdida sem envolvê-los em um tratamento. Não muito diferente do que se estava a realizar com as familiares de Sorôco, os escolhidos tornavam-se prisioneiros, entregues “à incerteza da sorte: nela cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca.” 9 (FOUCAULT, 2007, p.12). Nas viagens marítimas ou nas casas de internação da era clássica, o destino do louco esteve ligado ao erro, à presença indesejada. Essa era a visão tida pelas “muitas pessoas” que, a esconder seu ponto de vista, diziam “... que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta destas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio.” (p.64). O alívio era o sentimento que “os outros” sentiriam ao saber que não mais teriam de conviver com o desatino. Assim, também se compreende que a atuação do “povo”, na estória, corresponde ao olhar da razão sobre a loucura, pois, conforme visto, foi através da perspectiva racional que a insanidade ganhou sua imagem de desajuste. Mas, em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, assim como na obra rosiana, não é a visão racional da loucura que prevalece. Embora estejam inscritas em medidas coercitivas e tenham a sua espera pessoas que, de certo modo, se aproximam de tais medidas, a mãe e a filha de Sorôco não figuram como prisioneiras. Tendo a loucura como elemento vital, as duas mulheres transformam o momento, a princípio de tristeza, em um inesquecível instante de animosidade: 9 História da loucura: na idade clássica 26 Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. (p.64) Novamente, era o “povo” quem se expressava sobre o acontecido. Por isso, a chegada de Sorôco com as duas era interpretada como um “enterro” e a exposição da loucura um espetáculo a que a sensatez não podia assistir sem experimentar o desconforto. Os olhos e risos escondidos não se devia à graça dos “trasmodos e despropósitos” ou ao Sorôco. Ambos demonstravam o quanto não era permissivo à razão se deparar com seu avesso, com o que ela intuía ser sua própria face transfigurada. A dissonância das duas mulheres também se devia ao contraste que provocavam em relação à cena que as aguardava. Diferentemente da seriedade que envolvia as “muitas pessoas” e da violênciado carro que as aguardava, no desatino de mãe e filha de Sorôco, via-se o puro despropósito. Na menina, “... panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas...” (p.64); a “velha” usava apenas um “fichu preto” (p.64), mas “batia a cabeça nos docementes” (p.64), de modo a se pensar que só poderiam mesmo participar de outra realidade. No entanto, era esse mesmo delírio que lhes permitia preencher o ambiente de vitalidade. Com uma cantiga que “não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras” (p.63), as personagens afastavam suas loucuras do sentido negativo em que estavam inscritas: 27 A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo ─ um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar. (p.64) A “grandeza” da “moça” ao entregar-se aos excessos de sua inspiração trazia, neste momento, não mais a lembrança do desatino entregue ao destino errante do internamento. Longe das impressões trazidas pelo trem, o que se via, agora, na loucura, eram semelhanças artísticas. Juntas, as personagens levavam a todos não o medo, mas a poesia que lhes era concedida, que chegava ao “povo”. A mudança promovida pelo canto da mãe e da filha de Sorôco é expressa, sobretudo, na forma narrativa. Com o “espetáculo”, o internamento adquiria um olhar renovado, um olhar que alcançava o humano na loucura, “fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender.” (p.65), que retirava a culpa do louco e percebia a crueldade cometida apenas porque elas viviam insufladas por um ânimo que não correspondia à mesmice a que já se haviam habituado os moradores do lugarejo. Assim, ao contrário do que se observa no início da estória, o instante que precede a partida das personagens é marcado pela consciência de que ninguém ali poderia se julgar imune à loucura: Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constatado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois. (p.65) 28 Agora também, o alívio sentido pela partida das duas já não se formava em torno do desejo de ver o louco confinado no hospício. O sentimento de “a gente” se compunha da dor de saber o que aconteceria às duas mulheres e da compaixão por Sorôco, “O triste homem, lá, decretado... no oco, sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso” (p.66). É, primeiramente, em Sorôco, que a loucura animosa das personagens inicia sua transformação, pois, “a cantiga, mesmo, de desatino” o inspirava: “Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte...” (p.66), e, inesperadamente, todos se viram arrebatados pela música, de modo a retomar o desatino que eles próprios desejaram expulsar. A gente se esfriou, se afundou ─ um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair da memória. Foi um caso sem comparação. (p.66) É, portanto, como símbolo poético, inaugural que a loucura deixa sua marca em “Sorôco, sua mãe, sua filha”. Força instauradora do novo, ela suplanta “grades”, navios, ou qualquer outro artifício que a transforme em uma maldição a ser excluída. Esse é o motivo de sua permanência na estória. Muito longe de ser um erro a ser corrigido pela detenção, o desatino, em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, é o sopro de vida que reinventa a existência de toda “a gente”. 29 1.3- “Substância”: o amor entre destinos e desatinos É através do amor, do encontro entre dois personagens com destinos distintos que a loucura surge em “Substância”. Na estória de Maria Exita e Sionésio, brota a força de Eros que, ao aproximar uma moça sensível e um homem de caráter racional acentuado, promove a união de seres contrários e complementares. No casal rosiano, há a presença originária do deus cosmogônico a conduzir o homem para além das dicotomias que travam a pulsão criativa. Moça “historiada de desgraças” (p.25), na estória, Maria Exita simboliza o homem rosiano, pois, embora tenha uma trajetória familiar assinalada pelo desatino, nenhum traço negativo apresenta sobre a vida, de modo a ser a responsável pela transformação existencial sofrida por Sionésio. Este que, no passado, havia sido somente um rapaz de “madraças visagens” (p.206), após receber as terras de Samburá como herança, dedicava- se tanto ao trabalho, “era um espreguiçar-se ao adormecer, para poupar tempo no despertar” (p.201), que já deixava morrer, em si, a beleza vital do sentimento. Seo Nésio, forma como o personagem é mencionado no início da estória para indicar a posição respeitosa de fazendeiro, “Plantava à vasta os alqueires de mandioca, que aliás, outro cultivo não vingava; chamava e pagava braços; espantava no dia a dia, povo. Nem por nada teria adiantado atenção, a uma criaturinha, a qual” (p.206). Diante da dedicação ao plantio, o personagem não tinha condições de perceber Maria Exita quando a moça havia aparecido em Samburá. Ela, que já não tinha mais ninguém no mundo, encontrava trabalho na fazenda de Sionésio porque, “por piedade” (p.206), a velha Nhatiaga a tinha levado. “Menina feiosinha, magra” (p.205), para o patrão era apenas a “criaturinha”, que a todos espantava: 30 Porque contra a menos feliz, a sorte sarapintara de preto portais e portas: a mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia, por atos de morte; o outro, igual feroz foragido, ao acaso de nenhuma parte; o pai, razoável bom-homem, delatado com a lepra, e prosseguido, decerto para sempre, para um lazarento. (p.206) Assim, já marcada pelo avesso dos parentes, Maria Exita ainda seria destinada a uma ocupação que só lhe reforçava o sentido de sofrimento: “Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão, o polvilho, nas lajes.” (p.206). Deste modo, como se expõe no início da narrativa, para Sionésio, perceber-se apaixonado e, por alguém tão diverso, significava, de fato, uma “surpresa” (p. 205). Mas até que a “surpresa” chegasse a sua consciência e tudo pudesse ser compreendido pela razão, o fazendeiro teve de conviver com um intenso sobressalto em seu interior. O desgaste do modelo de vida levado pelo personagem e o desabrochar das emoções não são sentidos com facilidade. A mudança que o amor provocava nascia como rumores que pareciam não encontrar meios de formar um pensamento inteligível, de modo que, até alcançar a plenitude, o sentimento é vivido como um profundo conflito no interior de Sionésio. Embora se mantivesse muito ocupado com suas terras e se realizasse muito ao “... ver, aberto, sob o fim do sol, o mandiocal de verdes mãos...” (p.206), Sionésio já percebia “O ensimesmo” (p.206), que o fazia sentir a necessidade de “tantas coisas a renovar” (p.206), o que também o atraía às visitas a Maria Exita: O quieto completo, na Samburá, no domingo, o eirado e o engenho desertos, sem eixo de murmúrio. Perguntara à Nhatiaga, pela sua protegida.– ‘Ela parte o polvilho na laje... ’- a velha resumira. Mas, e até hoje, num serviço desses? Ao menos, agora, a mudassem! – ‘Ela é que diz que gosta. E é mesmo, com efeito... - a Nhatiaga sussurrava’. (p.207) 31 Como “pessoa manipulante”, Sionésio não conseguia entender como a moça mantinha-se apegada a um trabalho adverso. Para o fazendeiro, a “substância” era apenas um meio de progresso, pois, “Se o avio da farinha se pelejava ainda rústico, em breve o poderia melhorar, meante muito, pôr máquinas, dobrar quantidade” (p.207). Era, portanto, no trabalho de Maria Exita, que as diferenças entre os personagens se acentuavam. Assim, as visitas à moça intensificavam as inquietações que o amor fazia brotar no fazendeiro: Demorava para ir vê-la. Só no pino do meio-dia – de um sol do qual o passarinho fugiu. Ela estava em frente da mesa de pedra; àquela hora, sentada no banquinho rasteiro, esperava que trouxessem outros pesados, duros blocos de polvilho. Alvíssimo, era horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da pessoa de ficar miudinho fechados, feito os de um tatu, ante a implacável alvura, o sol em cima. O dia inteiro, o ar parava levantando, aos tremeluzes, a gente se perdendo por um negrume do horizonte, para temperar a intensidade brilhante, branca; tudo cerradamente igual. Teve dó dela – pobrinha flor: - ‘Que serviço você dá?’ – e era a tola questão. Também, para um pasmar-nos, com ela acontecesse diferente: nem enrugava o rosto, nem espremia ou negava os olhos, mas oferecidos bem abertos – os olhos desses, de outra luminosidade. “Não parecia padecer, antes tirar segurança e folguedo, do triste, sinistro polvilho... (p, 207) A necessidade de encontrar explicação para o polvilho não era acompanhada por Maria Exita porque, diferentemente de Sionésio, a menina não concebia o trato com o amido uma tarefa a ser executada com finalidade produtiva. Longe do olhar pragmático, a moça fazia de seu trabalho, não uma ação maquinal, destituída de sua pessoa, mas algo realizado com o ser. Dona de olhos “de outra luminosidade”, não era condicionada pelo adverso que o meio oferecia e sabia retirar alegria dos momentos felizes, assim como da dor. Além da aridez, o trabalho com o polvilho incomodava pelo excesso de luz emanado. A claridade velava a imagem de Maria Exita e atordoava ainda mais as emoções 32 e o pensamento de Sionésio, que não compreendia a novidade que nascia silenciosamente em seu íntimo e o diverso da moça por quem se sentia atraído. Mas em sintonia com o sentido erótico que compõe toda a estória, na luz da “substância”, habita o movimento dos contrários que faz eclodir o novo. Como bem esclarece, Lenise Maria de Souza Lucchese: “A cor branca que ofusca com seu clarão e deixa os pensamentos de Sionésio atormentados, também desmancha seus tormentos” (2003, p. 31). É entre o velar e desvelar que o amor ganha vida em Sionésio e, aos poucos, o personagem vê renascer, em si, o sensível, a disponibilidade para a vida emocional, adormecida pelo uso demasiado da razão. O amor de Sionésio é, portanto, um sentimento que lhe ajuda a reunir os contrários. Homem dividido entre o pensamento e as emoções e, por isso também, com a vida paralisada, o personagem não poderia estar ligado à concepção amorosa que separa os elementos da natureza. No íntimo de Sionésio, havia a necessidade de Eros, deus cosmogônico que não cessa de instaurar o originário com seu amor vital: O amor é força vital que transforma, permanentemente; é carne e espírito, é luz e sombra e, não, contemplação ascensional e etérea rumo ao mundo das Idéias e dos arquétipos. O amor, em Rosa, compreende a permanente luta de paradoxos e contradições da alma humana e de contrários que, aparentemente se excluem. O ser que ama não busca a Idéia, mas transforma a sua vida em um contínuo processo de devir que eternaliza as suas experiências, revolucionando-as; ele passa a compor seu viver sob as cifras do caos e do cosmos, da morte e da vida, do não-ser e do ser, regidas por Eros, deus cosmogônico. (LUCCHESE, 2003, p.22) Era, portanto, o afastamento do convívio criativo de caos e cosmos que tornava Sionésio um homem inerte. A conceber a vida com um olhar estritamente racional, o 33 personagem excluía os contrários que ajudam a compor o ser em plenitude, de modo a ser um homem apenas com mente e espírito. Por isso Maria Exita lhe causava, antes de tudo, o desconforto. Habitada pela “permanente luta de paradoxos e contradições”, de sensível e inteligível, corpo e alma, a menina era o convite ao despertar do que vigorava perdido em Sionésio. E é, sobretudo, na ligação de Maria Exita com o polvilho, que se compõe o aprendizado erótico de Sionésio. O toque das mãos na materialidade da “substância” “... remete aos desejos do corpo e, também aos estados d’alma..” (Lucchese, 2003, p.35), em complementariedade no ser. Assim, para que o fazendeiro conseguisse deixar pulsar as impressões do espírito, sem anular a pulsão do corpo, era necessário estar em permanente contato com o polvilho: “Sim na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, a roupa na corda. Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se repassa, para assentar no fundo da água e leite, azulosa – o amido – puro, limpo, feito surpresa. Chamava-se Maria Exita.” (p.205) O fazer reflexivo indicado, logo, no início da estória, expressa bem a transformação existencial provocada pelo amor em Sionésio e o elo do casal com o polvilho. Em carta a Curt Meyer-Clason, Guimarães Rosa explicita o sentido da forma verbal usada na composição do texto: “Traz uma dinâmica, acentuando os esforços do fabricante, ou ‘sofrimentos’ da polpa de mandioca, até para chegar a dar o alvo do polvilho”. (ROSA, 2003, p.355). Conforme o caminho da mandioca, a experiência amorosa de Sionésio exige “esforço”, “sofrimento”, o fabricar a si próprio para abrigar o novo, o reencontro de alma e espírito/ pensamento/ amor, pois, como bem observa Maria Lúcia Guimarães de Faria: “O 34 polvilho é corpo, a alvura é alma, mas a alma necessita do corpo para se externar, e o corpo precisa da alma para se nutrir.” (2005, p.182). Mas, apesar das tribulações que o sentimento lhe causava, Sionésio sentia, cada vez mais, a alegria na presença de Maria Exita: “... como sendo sempre desiguais os domingos, de tarde, aí, que as rolinhas e os canários cantavam.” (p.208). Deste modo também, o que figurava sozinho no íntimo do homem começava a ganhar espaço na consciência, ao mesmo tempo em que requisitava coragem para ser vivido: “’De suas maneiras, menina, me senti muito agradado’” ─ repetia um futuro talvez dizer.” (p.208). Mas o medo diante da natureza diversa da moça e da novidade que o amor instaurava ainda impediam o personagem de viver plenamente a renovação que tudo aquilo lhe oferecia. Além do medo de si e da moça, Sionésio também contava com pensamentos que lhe atordoavam mais o ser: “Se outros a quisessem, se ela já gostasse de alguém? – as asas dessa cisma o saltearam. Tantos, na faina, na Samburá, namoristas; e às festas – a idéia lhe doía” (p.208). E, nesses instantes, também lembrava que, embora Maria Exita lhe trouxesse paz e felicidade, para os demais, ela ainda era a menina “do oposto mundo e maldições, sozinha de se sufocar.” (p.208). Ao saber, portanto, que os outros homens “Temiam a herança da lepra, do pai, ou da falta de juízo da mãe, de levados fogos. Temiam a alguns dos assassinos, os irmãos, que inesperado de a hora sobrevir, vigiando por sua virtude.” (p.209), Sionésio sentia-se mais seguro. O fato de serem, somente, os outros que temiam toda a desgraça familiar de Maria Exita indicava o quanto o personagem já havia sido transformado pela força amorosa, pois, antes, enquanto homem demasiadamente racional, ele,assim como os demais, só era capaz de perceber as marcas de um destino familiar “... com os vários sem remédios de amargura...” (p.208). Além disso, não seria lógico ver a razão se defender em trajetórias que ela mesma condenou ao longo da história. 35 Para refugiar-se do perigo de perder Maria Exita para outro homem, o amor de Sionésio começa então a encontrar refúgio nas formas mais improváveis. Embora admitisse internamente que não estava absolutamente imune: “Assim, ela estava salva. Mas, a gente nunca se provê segundo garantias perpétuas.” (p.209), ele procurava garantias na insegurança alheia: “Tinham-lhe medo, à doença incerta, sob a formosura. Ah, era bom, uma providência, esse pejo de escrúpulo. Porque ela se via conduzida para não se casar nunca, nem podendo ser doidivã.” (p.209). Assim, o não mais pragmático Sionésio entendia que a loucura e a lepra não eram os destinos de Maria Exita. A força de Eros o ajudava a enxergar que “a alma do jeito e ser, dela, diversa dos outros” se fazia e que, portanto, não era possível inscrevê-la no círculo negativo da doença do pai, da insanidade da mãe, tampouco, do crime dos irmãos. Liberto da dominação racional, o ser de Sionésio aproximava-se, cada vez mais, do modo diverso de Maria Exita e do universo rosiano. É essa mudança existencial que leva o personagem a adotar um ponto de vista distinto dos outros homens. Estes, não influenciados pelo Eros cosmogônico, pela “força que eleva o ser humano para além de si mesmo” (LUCCEHESE, 2003, p.10), permaneciam presos à lembrança de práticas antigas, práticas que deram o mesmo significado a personagens distintos. Como esclarece Michel Foucault, o espaço vazio dos leprosários é preenchido, simbólica e literalmente, com a criação das casas de internamento da era clássica, de modo a não mais ser possível a distinção entre a figura do louco e dos demais “alienados”: “Frequentemente, nos mesmos locais, os jogos de exclusão serão retomados, estranhamente, semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas”, assumirão o papel abandonado pelo lazarento”. 10 (FOUCAULT, 2007, p.06) 10 História da loucura: na idade clássica 36 Nos laços familiares de Maria Exita, estão reunidos os rostos que compuseram o perfil traçado acima: A lepra, presente na figura paterna, os “presidiários”, identificados nos irmãos e, a mais temida, a loucura da mãe. Integrantes dos “jogos de exclusão”, estes personagens foram postos à margem acompanhados da formação de um estigma que se perpetuou a quem, de algum modo, esteja ligado a eles. Por isso, embora Maria Exita não seja como os parentes, a moça traz a iminência da repetição do que, aos olhos mais racionais, são expressões do erro. “Mas, no embaraço de inconstantes horas- às esperanças velhas e desanimações novas ─ de entre ─ momentos.” (p.209), o amor de Sionésio seguia. Tinha a certeza “de que ele, a queria, para si, sempre por sempre.” (p.209) e “Sem ela, de que valia a tirada trabalhadeira, o sobreesforço, crescer os produtos, aumentar as terras?” (p.209). Observa- se que, no íntimo do personagem, o sentimento já florescia com toda força e o homem desgastado, que não permitia pulsar corpo e emoção, se reintegrava, animava, na mesma medida, o sensível e o inteligível. Era esse novo estado que iluminava o personagem e o aproximava da sabedoria de Maria Exita. Nos momentos de aflição, entre “criaturas estremunhadas e aflitas”, era a moça quem “contentava-o” (p.210) com “sua proximidade viva, quente presença, aliviando-o” (p.210). Assim, embora quisesse ainda desfazer o que já não tinha retorno, “... se desentregar da ilusão, mudar de parecer, pagar sossego, cuidar só dos estritos de sua obrigação, desatinada.” (p.211), não conseguia, de modo que, já com tanto mudado dentro de si, Sionésio não mais podia se calar: “A hora era de nada e tanto; e ela era sempre a espera. Afoito, ele lhe perguntou: - ‘Você tem vontade de confirmar o rumo de sua vida? ’ - falando-lhe de muito coração. – ‘Só se for já... ’” (p.211). A coragem de realizar a pergunta a Maria Exita simboliza uma profunda mudança no interior do personagem, um momento em que o antigo Sionésio se recompõe no novo, 37 um instante preciso de morte e vida. Mas, no limiar entre o velho e a luz do que se anuncia, surge um resquício do passado, uma dúvida que precisava ser ultrapassada para que se chegasse plenamente à “alumiada surpresa” (p.211): Mas, de repente, ele se estremeceu daquelas ouvidas palavras. De um susto vindo de fundo: e a dúvida. Seria ela igual à mãe? – surpreendeu-se mais. Se a beleza dela – a frutice, da pele, tão fresca, viçosa – só fosse por um tempo, mas depois condenada a engrossar e se escamar, aos tortos e roxos, e estragada doença? – o horror daquilo o sacudia. (p.211) E é como o último ponto do conflito de Sionésio que o medo da possível sina de Maria Exita aparece; pois, é, logo em seguida, que, pela primeira vez, o personagem consegue sentir verdadeiramente a luminosidade do polvilho: “... achava ali um poder, contemplado, de grandeza, dilatado repouso..” (p.211). Neste momento, o que se fazia incompreendido, desde o dia em que o amor iniciava sua pequena brotação na nascente dura do ser de Sionésio, torna-se claro como a alvura do polvilho, como os olhos reluzentes da moça amada e, assim, tudo “alvava” (p.21). Deste modo, uma vida sem brilho pelas amarras da razão reencontra o germinar de si mesmo com o amor por uma outra vida, que a princípio trazia consigo apenas dor, doença e loucura. Mas Maria Exita é personagem que habita em si o caos criativo, a sabedoria dos que não dependem da felicidade do mundo para experimentar a alegria porque esta é inventada na dinâmica do existir. “Maria Exita. Socorria-a a linda claridade” (p.211) e é, com ela, que Sionésio se entrega ao toque do polvilho, à experiência destemida com o sensível: “Ela – ela! Ele veio para junto. Estendeu também as mãos para o polvilho – solar e estranho: o ato de quebrá-lo era gostoso, parecia um brinquedo de menino” (p.211). A criança, símbolo do homem que sabe acompanhar o seguir mutável de tudo, surge, neste instante, a indicar que, no 38 personagem, desabrochava um ser original, “o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação” (p.212). E é esse ser que inicia um caminho em que o coração não mais se separa da mente: uma trajetória de “pensamor” (p.212). 39 II) A loucura da razão ou a razão da loucura? Eu, a loucura, acho que quanto mais se é louco, mais se é feliz, contanto que nos limitemos ao gênero de loucura que é de meu domínio, domínio bem vasto na verdade, já que não há, por certo, na espécie humana, um só indivíduo que seja sábio em todas as horas e isento de qualquer tipo de loucura. (Erasmo de Rotterdam. Elogio da loucura) 40 21. “Pirlimpsiquice”: a arte de Zé Boné Em “Pirlimpsiquice”, a loucura é a criação, o poético de Zé Boné, o “preenchido beócio” que rejeita e ridiculariza a encenação mimética que a escola propõe para o texto “Os filhos do Doutor Famoso”. No desatino de Zé Boné, encontra-se a vitalidade dos que recusam a atuação maquinal, a representação de personagens manipulados, a distância entre arte e vida. Criador de si mesmo, “personagem personificante”, rosianamente louco, no texto, o menino é quem mais entende da arte de representar. É sobretudo, na lição do improviso, que Zé Boné atua como protagonista. Nos recreios, não gostava de se ocupar com algum jogo ou brincadeira previamente elaborada. Seuinteresse se fazia pela reinvenção das narrativas que assistia nos filmes de bang-bang: Zé Boné, com efeito, regulava de papalvo. Sem fazer conta de companhia ou conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava, assaltava a mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, beijava afinal – figurado a um tempo de mocinho, moça, bandidos e xerife. Dele, bem, se ria. O basbaque. (p.87) De acordo com o trecho destacado, é possível perceber que, nas encenações do personagem, o real não se apresentava distinto da estória representada. Interessado somente pelo que se conseguia de modo criativo, Zé Boné fazia do ficcional o seu espaço de vida, pertencia a um mundo em que os signos se transformavam em realidade. Semelhante à relação de Dom Quixote com os livros, o personagem de “Pirlimpsiquice” 41 era “o testemunho, representante, o real, o análogo” 11 (FOUCAULT, 20007, p.64) das “fitas de cinema” e, deste modo, contrapunha-se ao modelo mimético com que a escola concebia a arte. O jeito “basbaque”, como é denominado, era motivo para que do personagem se esperasse sempre alguma travessura, o que, de certo modo, não o permitia se integrar completamente aos demais. A forma livre e criativa com que encarava toda a seriedade da escola o fazia ser interpretado apenas como um menino “bobo”, a quem não se deveria conceder muita atenção. Na composição do elenco, é rejeitado por Darcy e Ataualpa: “alegaram não caber Zé Boné com as prestes obrigações” (p.88), objeção contestada e resolvida pelo Padre Prefeito, que concede ao menino um papel de pouca importância: “Mas, o Padre Prefeito repreendeu-nos a soberba, tanto quanto que o papel que a Zé Boné tocava, de um policial, se versava dos mais simples, com escasso falar.” (p.88). O menino, no entanto, não se sentia atingido. “Educado na realidade da experiência poética” (AXIOTELIS, 2003, p.54), não era atraído pelo teatro da escola. No momento de ler o texto da peça, era o único que não seguia a impostação de voz recomendada: “Só o Zé Boné não se acanhou de o pior, e promoveu risos, de preenchido beócio, que era.” (p.87), de modo que o aluno ficava sempre marcado como aquele que não conseguia se adequar aos superiores ensinamentos do professor. De acordo com Anatula da Silva Axioteli, na postura da escola há o compromisso com o ideal, a busca pelo paradigma perfeito: “A perfeição, nada mais é que a adequação a algum modelo considerado superior. Entretanto, Zé Boné é inadequado por natureza, pois é naturalmente espontâneo e imprevisível, sua linguagem é criada na hora, ele não se rende ao estereótipo...” (2003; p.54) 11 As citações de Michel Foucault encontradas em “Pirlimpsiquice”: a arte de Zé Boné e “Tarantão, meu patrão”: aventuras de um louco referem-se ao livro As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9 edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 42 Os ideais artísticos dos mestres eram expressos através de frases e citações incompreendidas pelas crianças: “Longa é a arte e breve a vida – um preconício dos gregos!” (p.89), “Sus! Brio! Obstinemo-nos. Decoro e firmeza. Ad astra per áspera! Sempre dúcteis aos meus ensinamentos.” (p.90). Diante das cobranças, todo o elenco se empenhava, somente Zé boné insistia em ser o desobediente da turma: “Esse, entrava marchando, fazia continências, mas não havendo maneira de emendar palavra e meia palavra. E já o dia vindo próximo....Por que não trocar, ao estafermo?” (p.90). A insatisfação dos meninos era respondida com veemência por Dr. Perdigão que, confiante, dizia: “Senhores, discípulos meus, para persistir no prepará-los, a perseverança não me desfalece.” (p.90). A desobediência do personagem em relação ao que era ensinado não significava um ato de rebeldia infundado. Na loucura de Zé boné, está simbolizada a mundividência rosiana, a profunda ligação que o autor propõe entre sua obra e a vida: Legítima literatura deve ser vida. Não há nada mais terrível que uma literatura de papel, pois acredito que a literatura só pode nascer da vida, que ela tem de ser voz daquilo que eu chamo “compromisso do coração”. A literatura tem de ser vida! O escritor deve ser o que ele escreve. (LORENZ, 1973, p. 341) Se o escritor é o que escreve, Zé Boné é o que representa. Seu desajuste indica a insuficiência da concepção mimética frente ao poético, de modo que não era o aluno quem não conseguia entender os mistérios da arte de representar, mas o modelo imposto pela escola, que impotente perante a autenticidade do menino dito desajuizado o reprime: “Já o Dr. Perdigão desistido de introduzir no Zé Boné sua parte, intimara-o a representar de mudo, apenas, proibido de abrir a boca em palco.” (p.91). A ausência de vitalidade na encenação de “Os filhos do Doutor famoso” era percebida até pelo Padre Diretor, que: “... 43 assistia ao quinto ato. Ele era abstrato e sério: não via a quem. Sem realces, disse: que nós estávamos certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta...” (p.91), comprovando assim que o desatino de Zé Boné tinha suas razões. O caráter livre de Zé Boné não lhe permitia ganhar confiança nem mesmo nas peripécias das crianças. Com medo de que a peça fosse descoberta, os meninos inventam um texto falso: “Precisávamos de imaginar, depressa, alguma outra estória, mais inventada, que íamos falsamente contar, embaiando os demais no engano. E, de Zé Boné, ficasse sempre perto um, tomando conta.” (p.88). Ao menino, no entanto, nada disso importava: Sem razão, se vendo, essas cismas. Zé Boné nada de nada contava. Nem na estória do drama botava sentido, a não ser a alguma facécia ou peripécia, logo e mal encartadas em suas fitas de cinema; pois, enquanto recreios houvesse, continuava ele descrevivendo-as, com aquela valentia e o ágil não-se-cansar, espantantes. (p.88) Embora tenha sido motivada pelo medo das crianças que não integravam o elenco, a invenção de estórias provocava ânimo incomparável em relação ao experimentado nos ensaios de “Os filhos de Doutor famoso” original: “Mas, a outra estória, por nós tramada, prosseguia, aumentava, nunca terminava, com singulares-em-extraordinários-episódios, que um ou outro vinha e propunha...” (p.89). O encantamento dos meninos com a singularidade da trama inventada mostra, novamente, que a loucura de Zé Boné não estava errada, de modo a não ser ele o único desinteressado pela peça da escola. Sua rebeldia era mais exposta porque o menino trazia consigo uma força criativa latente, que o impedia de seguir qualquer modelo, pois, mesmo que intuitivamente, ele sabia que o que lhe impunham só serviria para anular seu ser, torná-lo prisioneiro de vontades externas. 44 Mas “Os filhos do Doutor famoso” não contam apenas com uma versão falsa. Por vingança, Gamboa, o “engraçado e de muita e inventiva lábia” (p.90), também participava do jogo, criando assim uma segunda estória para ser dita como a verdadeira: Arquitetadas ao largo da história oficial, essas duas invenções saborosamente disputavam entre si o jogo da verdade na mentira e abriam espaço para um poder maior, incontrolável, que desencadeado abriria espaço para a única autêntica representação, que não merece a crítica de “sem realces” do padre Diretor... (CERDEIRA, 2003, p.804) Na “autêntica representação”, Zé Boné faz brilhar a arte de sua loucura. Com a ausência de Ataualpa, que interpretaria o Doutor famoso, a peça teve de recompor o elenco, pondo como substituto do ator ausente o menino que até então participava apenas como o “ponto”. Feliz por poder integrar o elenco como protagonista, ele esquece que, além do texto “Os filhos do Doutor famoso”,havia um poema a ser recitado na abertura do espetáculo, o que dá início à confusão: “... o Ataualpa, primeiro, devia recitar uns versos, que falavam na Virgem Padroeira e na Pátria. Mas, esses versos eu não sabia!... Eu, não. Eu: teso e bambo, no embondo, mal em suor frio...” (p.94). Ao ver o embaraço do jovem ator que não sabia como agir, o público se rendia ao riso. Para solucionar o problema, o Padre Prefeito ordenava: “Abaixem os panos”, mas, pelo defeito, as cortinas não caíam e as cenas confundidas suscitavam a vaia da plateia. A estupefação das crianças só acabaria com a chegada de Zé Boné, que: “representava – de rijo e bem, certo, a fio, atilado para toda a admiração...” (p.95). 45 2.2. “Tarantão, meu patrão”: aventuras de um louco Em “Tarantão, meu patrão”, o “Bom desatino” (p.214) manifesta-se sob a forma de uma “desarrazoada loucura” (p.217). No mundo instaurado por Tarantão, o ordinário desaparece e o real transfigurado ilumina-se. Abençoado pelo delírio “... que afasta dele as inquietudes, as tristezas...” (ROTERDAM, 2008; p.22), o personagem de Guimarães Rosa desobedece à conduta de uma velhice comum, compõe um exército de “palhaços destemidos” (p.221) e sai, quixotecasmente, a esbravejar contra o médico que o havia tratado com “injeções e lavagens intestinais” (p.215). É, com o tom do inesperado que, Vagalume, o empregado que relata os feitos de Tarantão, inicia sua narrativa: Suspa! – que me dão nem tempo para repuxar o cinto nas calças e me pôr debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos sossegos da cozinha... E, pois. Lá se ia, se fugia, o meu esmarte patrão, solerte se levantando da cama, fazendo das dele, velozmente, o artimonhoso. Nem parecesse senhor de tanta idade, já sem o escasso juízo na cabeça, e aprazado de moribundo para daí a dia desses, ou horas ou semanas. (p.213) De acordo com as palavras do narrador, é possível perceber que o dia das peripécias de Tarantão mostrava-se surpreendente logo cedo. Com a força de sua loucura, o “moribundo” contrariava a fraqueza do próprio corpo, tirava o sossego de todos e inaugurava com artes e manhas os últimos momentos de sua vida. “Ligeiro, Vagalume, não larga o velho!” (p.213), gritava o caseiro e, assim, seguia Vagalume a levar o juízo que se faltava: “O encargo que tenho, e mister, é só o de me poitar perto, e não consentir maiores 46 desordens. Pajeando um triste ancião – o caduco que não caia!” (p.215). Mas, diante do desatino do patrão, os esforços de Vagalume se tornariam inúteis. Embora, a princípio, tudo figurasse como mero disparate de um “velho” irresponsável, ao acompanhar as aventuras que ora narra, Vagalume adquire a consciência de que, diante de si, não havia um louco qualquer, e sim um homem de “sumas grandezas e riquezas- um Iô João-de- Barros-Diniz-Robertes!” (p.214). De fato, Tarantão não padecia do desatino que conduzia à inércia, tampouco, figurava como doente. Como observa Maria Lúcia Guimarães de Faria: Iô João-de-Barros-Diniz-Robertes é a versão rosiana do nobre fidalgo e cavaleiro andante Dom Quixote de La Mancha. Igualmente cavaleiro andante, não lhe faltam o acólito estouvado, o discurso inflacionado, a presença impotente, nem os meneios de grande e renomado paladino. Não lhe falta tampouco, a dama, que ele enaltece, galante, com mimos de rainha. Tem o seu momento de moinhos de vento tomados por gigantes quando considera homenagem à sua ilustre pessoa a Festa de Santo que se celebrava no Brebêre. Mas, enquanto Quixote estava mais para anjo- da-guarda dos desvalidos, o Tarantão queria-se o próprio demo, com pacto e tudo para vingança infernal... (2005, p.194) Semelhante a Dom Quixote, Tarantão imagina-se um destemido cavaleiro, o que também é expresso nas frases que proclama no decorrer de sua viagem: “Mato! Mato, tudo!” (p.215), “Eu ’tou solto, então, sou o demônio” (p.215), “Mato pobres coitados!” (p.217), “Vou ao demo” (p.221). Recorrente no texto, a figura do diabo é usada para simbolizar o desconcerto promovido por Tarantão: “A cara se balançava, vermelha, ele era claro demais, e os olhos, de que falei. Estava crente, pensava que tinha feito o trato com o Diabo.” (p.215). O real assim transfigurado também é indicado em declarações que dialogam ironicamente com expressões cristalizadas, como: “Já estava com as barbas no 47 ar” (p.214), “Meu, meu, mau! Esta é aquela flor, de com quem não se bater nem em uma mulher” (p.217), “O espírito de pernas-para-o-ar, pelos cornos da diabrura” (p.221). Sem se comprometer com o real ordenado, Tarantão expunha seu desatino nas roupas e armas escolhidas para realizar o terrível combate: ...Sem paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um pé de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete, enfiado no braço, falando que aquela era a sua toalha de se enxugar. Um de espantos! E, ao menos, desarmado, senão que só com uma faca de mesa, gastada a fino e enferrujada – pensava que era capaz, contra o sobrinho, o doutor médico... Nisto, apontava o dedo, para lá ou para cá, e dava tiros mudos. (p.215-216) Para Vagalume, o comportamento do patrão manifesta apenas a loucura. Orientado pelo pensamento lógico, o personagem não conseguia entender que, de acordo com Tarantão, o mundo se organizava a partir de semelhanças. A faca podia perfeitamente atuar como uma arma, pois, as duas se assemelham pelo fato de serem instrumentos cortantes. Assim, o colete também poderia servir como toalha. Mas o jogo analógico de Tarantão não é acompanhado pelo narrador, sendo, sobretudo, por isso que, durante parte da narrativa, Vagalume enxerga somente delírio nas ações do patrão. Como Dom Quixote, a loucura de Tarantão encontra-se ligada à exposição da semelhança em um mundo que não a tem como válida, “pois, que aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação” (FOUCAULT, 2007, p.67). Segundo Michel Foucault, no fim do século XVI, o saber da cultura ocidental abandona a similitude, a composição simbólica para adotar uma ordenação empírica do mundo: “o século XVII marca o desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas, e a entrada, enfim da natureza na ordem científica” (FOUCAULT, 2007, p.75). Não mais amparado pelo olhar dos séculos anteriores, que lia o mundo a partir de vizinhanças, 48 aproximações, reflexos e analogias, o pensamento científico promove a ordem através de análise e identificação das diferenças. “Substituição da hierarquia analógica pela análise” (FOUCAULT, 2007, p.75) é como Michel Foucault resume a reorientação epistemológica que ocorre entre os séculos XVI e XVII. O autor ainda destaca que, se no Renascimento a interpretação vigorava como a forma mais apropriada de o homem ler o mundo, na idade clássica, a relação com a Ordem torna-se fundamental. Disso decorre, a taxonomia, a “máthesis”, o empírico e a importância dada, neste período, à formação de sistemas, o que, no campo da linguagem dá início a signos não mais dispostos em uma relação ternária, que resguardava a proximidade entre o “marcado” e o “marcante”. Sem seguir o caminho traçado pela teoria dual do signo, a procurar a semelhança perdida entre “As palavras e as coisas”, Dom Quixote é, portanto, para a idade clássica, nada mais que aquele que se perdeu no delírio da busca de uma “escrita” 12 (p.65) que “cessou de ser a prosa do mundo” (p. 65), é o representante da loucura identificada não como doença, mas como o que não sabe respeitar a ordem do saber vigente. O louco, entendido não como doente, mas como desvio constituído e mantido, como função cultural indispensável, tornou-se, na experiência ocidental, o homem das semelhanças selvagens. Essa personagem, tal como é bosquejada nos romances ou no teatro
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