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Tese de Doutorado em Psicologia sobre Segurança Pública no Rio de Janeiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 
INSTITUTO DE PSICOLOGIA 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA 
 
 
 
THIAGO MELICIO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São demais os perigos dessas vidas? 
Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da 
segurança pública cidadã. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2014 
 
 
 
Thiago Melicio 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São demais os perigos dessas vidas? 
Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da 
segurança pública cidadã. 
 
 
 
 
Tese de Doutorado apresentada ao Programa 
de Pós-Graduação em Psicologia da 
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como 
parte dos requisitos necessários à obtenção do 
título de Doutor em Psicologia. 
 
 
 
 
 
Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2014 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 M522 Melicio, Thiago. 
 São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis 
no encontro com a diferença como problematização da 
segurança pública cidadã / Thiago Melicio. Rio de Janeiro, 2014. 
 203f. 
 
 Orientador: Pedro Paulo Gastalho de Bicalho. 
 
 Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 
Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em 
Psicologia, 2014. 
 
 1. Segurança pública - Rio de Janeiro, RJ. 2. Alteridade. 
3.Rio de Janeiro(RJ) – Condições sociais . 4. Cartografia. I. 
Bicalho, Pedro Paulo Gastalho de. II. Universidade Federal do 
Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 
 
 CDD: 363.2 
 
 
 
 
Thiago Benedito Livramento Melicio 
 
 
 
São demais os perigos dessas ruas? 
Diversidades possíveis de cidadania em uma segurança pública cidadã 
 
 
Tese de Doutorado apresentada ao 
Programa de Pós-Graduação em 
Psicologia da Universidade Federal do 
Rio de Janeiro, como parte dos 
requisitos necessários à obtenção do 
título de Doutor em Psicologia. 
 
 
Aprovado em 20 de fevereiro de 2014 
 
 
 
___________________________________________________________________ 
(Pedro Paulo Bicalho, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) 
 
 
 
 
___________________________________________________________________ 
(Silvia Ramos, Doutora, Universidade Cândido Mendes - UCAM) 
 
 
 
 
___________________________________________________________________ 
(Wagner Romão, Doutor, Universidade Estadual Paulista - UNESP) 
 
 
 
 
___________________________________________________________________ 
(Anna Paula Uziel, Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ 
 
 
 
 
___________________________________________________________________ 
(Cristal Aragão, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) 
 
 
Dedicatória 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ao meu pai 
Pelos encontros. Pela forma com que se relacionava com a vida. 
Pela sabedoria compartilhada. Pelas músicas aos finais de semana. 
 
Pela maneira única com que reagia aos problemas. 
Pela maneira única com que usufruía das delícias e dos sabores das coisas. 
 
Aos diálogos que gostaria de ter tido pessoalmente 
e que a força do pensamento se encarregou de possibilitar. 
 
Seus carinhos e bons discernimentos estão sempre presentes nas conquistas 
e na energia que me move ao enfrentar novos obstáculos. 
 
Os afetos e imagens que nos uniram, 
continuam e continuarão nos unindo nesta e nas próximas caminhadas. 
 
 
Agradecimentos 
 
A tarefa de expressar gratidão às pessoas que me acompanharam nessa etapa de 
vida não é simples. Há sempre aqueles pormenores e aqueles fatos que não vêm à tona, 
mas que tiveram significativa importância. Há sempre os espaços em branco, os vazios 
e o que não encontramos palavras ou que a memória aciona quando estamos em outra 
sintonia, em outros contextos. 
Agradeço, portanto, a tudo aquilo que afeta; a tudo aquilo que fere e afaga e 
que dá cores e texturas ao que vivo em cada instante. Agradeço a todas as pessoas de 
hoje e de ontem, que mostraram mundos diversos e diferentes e que abriram novas 
portas possíveis ao sensível e racionalizável. Pensar essa pesquisa, pensar modos de ser 
e estar no mundo, é pensar pelos olhos, ouvidos, bocas e mãos de todos aqueles com 
quem tive contato ao longo desta trajetória. 
Agradeço à minha família. Ao meu pai, Pedro, que carrego no coração, e à 
minha mãe, Ivone, que sempre foi cuidadora, zelosa e trabalhadora e de quem sou ‘fã 
confesso’. À minha irmã Silvia e meu cunhado Mateus que sempre alegram o ambiente 
e que trouxeram ao mundo a minha querida sobrinha Luisa. À minha irmã Claudia, 
pelos bate-papos e trocas de ideia que foram fundamentais nos momentos bons e 
difíceis. 
Aos meus grupos de pesquisa, que foram três. O primeiro no início do 
doutorado, quando ainda contava com a sensibilidade da professora Angela Arruda, 
minha primeira orientadora, das professoras Lilian Ulup e Marilena Jamur, e dos meus 
colegas desde os tempos de mestrado: Cristal, Ana Carolina, Rhani, Roberta, Marcela e 
Thiago. O segundo e definitivo grupo de pesquisa, com meu orientador Pedro Paulo 
Bicalho e meus colegas: Janaína, Silvia, Kely, Bruno, Roberta, Ana Paula, André, 
Alexandre, Flávio e Jefferson. O terceiro e temporário grupo do doutoramento 
sanduíche na universidade de Dundee, com meus orientadores externos, professores 
Fernando Fernandes e Nick Fyfe e meus colegas: Letizia, Liz, Slawek, Kay, Ashtosh e 
Zane. 
Aos meus amigos de tempos outros e que continuam a manter viva a amizade: 
Carlão, Marco, Carol, Couto, Giovana, Sara, Bruno, Miramaya, Juliana, Marcelle, 
Murilo, Vé, Mateus, Ricardo, Buias, Cauê e Alê. 
 
 
Aos meus amigos de Rio, que me ajudam a desfrutar das belezas e do calor da 
cidade: Cristal, Emerson, Tato, Leona, Ritinha, Marcelo, Vinícius, Alexandre e 
Ronaldo. Sem vocês, a vida por aqui não seria possível. 
Aos parceiros da mandinga e da artimanha manhosa da angola: Guimes, 
Foguinho, Nêgo, Marco, Emerson, Murilo, Alder, Rogerinho, André, Pedrão e Marcelo. 
Ao pessoal da Celso Lisboa, que me proporcionou enorme aprendizado 
enquanto professor universitário, em especial ao Nei, Juliana, Yara, Cadu, Flaviany, 
Gabriel, Emmy e Narahyana. 
À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por 
ter concedido o suporte financeiro ao doutorado na UFRJ e ao doutorado sanduíche na 
Escócia. 
À diversidade de trocas e aos diferentes espaços que abriram suas portas e que 
proporcionaram entrevistas com pessoas em situação de rua, travestis e policiais 
militares. A todos aqueles que fizeram possível o intercâmbio da PMERJ na Escócia e 
Irlanda do Norte, como Fernando, Nick, cel. Robson, tenente-coronel Mauro e Pedro. 
Agradeço especialmente à Cristal, por todos os momentos que compartilhamos 
e que ainda iremos compartilhar na constante metamorfose da vida. 
Agradeço à professora Angela Arruda, que abriu as portas da UFRJ e fomentou 
novos ares na psicologia social. 
Agradeço de maneira especial ao meu orientador Pedro Paulo, que me acolheu 
em seu grupo, que sempre foi atento e prestativo e que me ensinou um novo jeito de 
observar as potências da vida, da pesquisa e do ensino acadêmico. 
Um agradecimento carinhoso à Leti, que compartilhou importantes e calorosos 
momentos nos últimos dois anos. 
Ao professor Fernando, por possibilitar a minha ida ao Reino Unido. Para além 
da orientação, forneceu imensurável suporte na chegada ao país, além de ótimos 
momentos de trocas e amizade. Agradeço muitotambém à Andrea, sempre meiga e 
presente. 
À Ritinha, que foi companhia constante na reta final, trazendo sempre 
situações e ideias inspiradoras. 
À Silvia Ignez que me forneceu amizade, bons encontros e novas 
possibilidades de trabalho. Não há palavras para agradecer. 
http://www.capes.gov.br/
 
 
A todos e a tudo com que agencio a realidade que me cerca – que os espaços 
em branco sejam preenchidos com cada vez mais afetos e potências. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ao som dos acordes secos e molhados 
 
 
 
 
 
 
Quem tem consciência pra se ter coragem 
Quem tem a força de saber que existe 
E no centro da própria engrenagem 
Inventa a contra a mola que resiste 
Quem não vacila mesmo derrotado 
Quem já perdido nunca desespera 
É envolto em tempestade, decepado 
Entre os dentes segura a primavera 
 
(João Ricardo - João Apolinário) 
 
 
RESUMO 
 
MELICIO, Thiago Benedito Livramento. São demais os perigos dessas vidas? 
Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da 
segurança pública cidadã. Rio de Janeiro, 2014. Tese (Doutorado em Psicologia) - 
Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. 
 
O presente trabalho visa problematizar o campo de segurança pública carioca no sentido 
de averiguar o quanto se constitui enquanto território de acolhida ou eliminação das 
diferentes formas de expressão psicossociais presentes na contemporaneidade. O intuito 
é o de averiguar como os desafios de se viver em comunidade produzem demandas 
relacionadas à alteridade, ora no sentido de segregação e exclusão, ora no sentido de 
integração e valorização da pluralidade social. Para tanto, são trazidas as ferramentas 
teórico-metodológicas compostas pelas conceituações de produção de subjetividade, 
biopoder e cartografia, discutidos, entre outros, por Deleuze, Guattari, Foucault e 
Rolnik. Nessa direção, são eleitos diferentes dispositivos que, ao longo dos capítulos, 
permitem compreender como as redes discursivas, que sustentaram e sustentam as 
relações entre as instâncias administrativas, aparato policial e os diferentes grupos 
sociais, acabam por promover a supressão da diferença ou a propagação da diversidade. 
Primeiramente, há a exploração das práticas relacionadas ao capoeira e à categoria do 
“menor”, para averiguação de como as mentalidades colonialistas e escravocratas atuam 
nas políticas de disciplinamento dos corpos e de gestão população. Posteriormente, são 
discutidas as continuidades e transformações nos paradigmas de segurança, do golpe 
militar de 1964 aos dias atuais, com o objetivo de dimensionar as raízes do imobilismo 
político no campo brasileiro da segurança. Após, são promovidas pontos de interface e 
estranhamento, em articulações com as experiências escocesas e norte irlandesas, 
resultantes do período de doutoramento sanduíche e do intercâmbio da PMERJ no 
Reino Unido. Por fim, a pesquisa procura apontar para novas formas de monitorar e 
produzir as práticas de segurança, de maneira que o encontro com o “outro” seja 
vivenciado, não pela hierarquia que a coloca em termos de superioridade e 
inferioridade, mas a partir das possibilidades de mundo que a presença de outrem 
apresenta. 
 
PALAVRAS-CHAVE: Segurança Pública, Alteridade, Diversidade, Cartografia, Rio de 
Janeiro. 
 
 
 
ABSTRACT 
 
MELICIO, Thiago Benedito Livramento. São demais os perigos dessas vidas? 
Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da 
segurança pública cidadã. Rio de Janeiro, 2014. Tese (Doutorado em Psicologia) - 
Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. 
 
This research aims to problematize the Rio de Janeiro public security context, analyzing 
how it creates acceptance or elimination of different psychosocial expression forms. The 
purpose is to verify how the challenges of living in community have produced demands 
related to otherness, on one hand, related to segregation and exclusion and, on the other, 
to integration and respect of social diversity. In this sense, there has been used the 
theoretical and methodological concepts of subjectivity production, biopower and 
cartography, discussed by Deleuze, Guattari, Foucault, Rolnik and others. The chapters 
present different dispositives of debate that allow to understand how discursive 
networks have sustained the relationships between Government, police and different 
social groups, in terms of suppression or tolerance for diversity. Firstly, the research 
brings the categories of “menor” and “capoeira” to investigate how the colonialist and 
slavery mentality act on Brazilian policies. Secondly, discuss the continuities and 
changings in the public security paradigms, from 1964 to nowadays, evaluating the 
roots of the security political stagnation in the Brazil. In another chapter, the work 
articulates the security experience of Brazil, Scotland and Northern Ireland, with data 
from the “sandwich” doctorate and the internship of PMERJ in UK. Finally, the 
research seeks to point to new ways to monitor and produce security practices, based on 
diversity and human rights respect. 
KEY- WORDS: Public Security, Otherness, Diversity, Cartography, Rio de Janeiro, 
United Kingdom. 
 
 
LISTA DE SIGLAS 
 
AEERJ - Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro 
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior 
CEDUS - Centro de Educação Sexual 
CFAP - Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças 
CICV - Comitê Internacional da Cruz Vermelha 
CONSEG - Conferência Nacional de Segurança Pública 
CREAS POP - Centro de Referência Especializado em Atendimento à Pessoal de Rua PM - 
Policial Militar 
CRP - Conselho Regional de Psicologia 
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada 
PMERJ - Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro 
PMMG - Polícia Militar de Minas Gerais 
PMOP - Plano Municipal de Ordem Pública 
PNUD – Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento 
PROERD- Programa Educacional de Resistência às Drogas 
PRONASCI - Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania 
PSF - Programa de Saúde da Família 
PSNI - Police Service of Northern Ireland 
RENAESP - Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública 
RUC - Royal Ulster Constabulary 
SENASP - Secretaria Nacional de Segurança Pública 
SEOP - Secretaria Especial de Ordem Pública 
SESEG - Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro 
SIPR - Scottish Institute for Policing Research 
UPP - Unidade de Polícia Pacificadora 
 
http://www.capes.gov.br/
 
 
SUMÁRIO 
1 Introdução 14 
2 Olhares aos perigos e potências da vida no contato com outrem: as entradas 
da pesquisa pelo método cartográfico e a alteridade como analisador 
28 
2.1 Produção de efeitos e não totalização da realidade: segurança pública no 
Rio de Janeiro pela habitação de um território psicossocial 
32 
2.1.1 Caixa de ferramentas teórico metodológicas: situando o olhar da pesquisa 32 
2.1.2 Segurança pública enquanto território existencial 37 
2.1.2.1 A rua enquanto plano de territorialização e desterritorialização: um breve 
exercício próximo do fazer literário 
39 
2.1.3 Habitando o campo 42 
2.2 Alteridade como analisador 46 
2.2.1 O outro no texto acadêmico e nas relações sociais: a questão das 
autoridades etnográficas 
51 
2.2.2 Entremeios da pesquisa: entrevistas e o refazer de direcionamentos 54 
2.4 Dispositivos de cartografias: acompanhar processos por diferentes entradas 
no campo problemático 
58 
3. O viço na produção de subjetividade e os efeitos das diferenciações em 
resposta à insegurança: o capoeira e o menor como dispositivos de análise 
61 
3.1 A questão do viço 63 
3.2 A diferença dos corpos negros nas ruas da capital colonial: o dispositivo do 
capoeira 
65 
3.3 O espaço público e a gestão da vida pela eliminação da diferença:pensando o 
Menor 
70 
3.4 Proclamação da coisa pública e a desqualificação dos pobres? A supressão da 
diversidade na produção de subjetividade carioca 
81 
4 Respondendo a quais urgências? Paradigmas de segurança e a alteridade 
na produção das políticas públicas desde a ditadura civil-militar 
90 
4.1 Doutrina nacional de segurança: o ‘outro’ como aliado ou inimigo 92 
4.2 Redemocratização política e as (des)continuidades na segurança pública: 
limites e distâncias entre a forma e a prática 
104 
 
 
 
4.2.1 A cidadania de quais cidadãos? A Constituição e os elementos 
constituintes da população brasileira 
106 
4.2.2 Redemocratização e Estado Punitivo: a fratura institucional da segurança 110 
4.2.3 Estagnação da Arquitetura Institucional das Polícias e a não ritualização 
da transição paradigmática 
115 
4.3 O convite à cidadania 117 
5 Do litoral atlântico às ilhas do norte: estranhamentos e aproximações com 
as experiências escocesas e norte irlandesas 
128 
5.1 Escócia 133 
5.1.1 Polícia de proximidade e o respeito à igualdade e diversidade social 135 
5.1.2 Commonwealth Games in Glasgow 138 
5.2 Irlanda do Norte 140 
5.2.1 Patten Report e a Mudança de RUC para a PSNI: A Reforma Policial 
Norte Irlandesa 
148 
5.2.2 Mudanças Internas à Corporação 151 
5.2.3 Mudanças Externas à Corporação 154 
5.2.4 Dificuldades Enfrentadas 157 
6 Aproximando do bicho de sete cabeças: alteridade pela diferença e 
diversidade 
161 
6.1 Lugares que a polícia ocupa nos processos de transformação 167 
6.1.1 Barreiras e comunicações culturais entre polícia e sociedade 170 
6.2 A diferença pela diversidade: acompanhando processos 175 
7 Conclusões 181 
Referências Bibliográficas 
ANEXO I - Fonte das figuras utilizadas 
ANEXO II - Tabela das entrevistas realizadas 
14 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
Sendo a tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se 
espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, 
atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos possíveis 
para a composição de cartografias que se fazem necessárias. 
O cartógrafo é antes de tudo um antropófago. (ROLNIK, 1989, p.15-16, grifo da 
autora) 
 
Mergulhar nas intensidades do tempo em que se vive e, atento às linguagens que 
encontra, construir paisagens psicossociais é uma tarefa que implicará, neste trabalho, a 
antropofagia de elementos da cidade. Uma cidade carioca, capital fluminense, de sotaques e 
gírias do subúrbio e do centro, de tipos afeitos à Lapa, ao quiosque da Vieira Souto em 
Ipanema, ao samba no parque de Madureira. Uma cidade em que uns vão aos estádios do 
Maracanã, Engenhão e São Januário, outros vão às praias da Barra, de Ramos, de Grumari ou 
do Leblon; aos bailes funk das casas de show ou de comunidades, aos bares do Baixo Gávea, 
ao chorinho em Santa Teresa ou ao batuque da Gamboa. Uma cidade com encostas, de relevo 
montanhoso muitas vezes habitado de uma maneira distinta a sua região plana, diferenciação 
comumente mencionada como de ‘morro’ e ‘asfalto’. Cidade do São Sebastião do Rio de 
Janeiro, que possui a estátua do Cristo Redentor ao alto do morro do Corcovado, o Pão de 
Açúcar no bairro da Urca, bem como a avenida Brasil ligando o centro à zona oeste e 
Baixada, recortada pela linha vermelha que pode levar à ilha do Fundão, ao Aeroporto 
Antônio Carlos Jobim ou à roda de capoeira em Caxias. Rio de muitas caras, que podem ser 
vistas, por exemplo, do aterro do Flamengo ao Méier, passando pela enseada de Botafogo, 
túnel Santa Bárbara, Sapucaí e rua Vinte e Quatro de Maio. Rio de macumba, cultos 
evangélicos e missas católicas; de locais que se acessam pelo trem da Supervia, como os que 
vão para Santa Cruz, Deodoro ou Japeri; de metrô como os que ligam a praça General Osório 
à Tijuca ou Botafogo à Pavuna; ou das linhas de ônibus que vão para o Grajaú, Vila Isabel, 
São Conrado e outros. 
Percorrer o universo do Rio de Janeiro diz sobre percorrer um universo brasileiro, 
que por sua vez também é retroalimentado pelo que se vê sobre o Rio nas novelas televisivas, 
nas notícias dos telejornais e nos eventos esportivos. O Rio é também uma cidade com cerca 
de 7 milhões de habitantes e como tal carrega elementos característicos de um grande centro 
urbano. As pessoas andam em meio a placas de sinalização, a faixas de prioridade aos 
pedestres, aos estacionamentos para idosos e pessoas com necessidades especiais, a ciclovias 
que cortam - uma ínfima parte é verdade - seus bairros. Constantemente observam-se sinais de 
15 
 
trânsito, cores que dizem quando prosseguir, quando parar e quando ficar atento para a 
mudança de um para outro. Sinais, assim, do que se coloca como ordenamento urbano. 
Viver (n)o Rio remete aos elementos acima e a uma infinidade de outros tantos. 
Participar desse universo diz sobre integrar diferentes grupos sociais, frequentar diferentes 
lugares, se locomover por diferentes meios de transportes públicos e privados, orientar a 
conduta por meio de diversos sinais de ordem. Viver (n)o Rio remete ao viver de diferentes 
significações, diferentes sentidos, diferentes simbologias, diferentes estímulos, diferentes 
práticas e posturas, que, na sua diversidade, se interconectarão em vias públicas mais ou 
menos ordenadas. 
Os diferentes e a diferença. Não é despropositada a repetição desses termos nos 
parágrafos anteriores. Viver traz incessantemente a questão da diferença. As pessoas são 
diversas, como os são os locais em que se reúnem e as posturas que atualizam em seus 
comportamentos. Todavia, como dito, há uma gestão dessas diferentes formas de vida, há um 
ordenamento das coisas e dos modos de ser. A diversidade humana é recortada por 
instituições regulatórias. Assim como há sinais que ordenam a cidade, que informam onde se 
deve andar, em que momento se deve prosseguir o trajeto e em que momento o mesmo deve 
parar, há nos modos de ser e estar no mundo uma regulação que informa o que se pode ser, o 
que não se pode e o que é indiferente. Se há placas indicativas de onde se estacionar, de qual 
vaga é para o cidadão comum e qual vaga é para idosos, há também textos em formas de lei, 
sintomas comportamentais em forma de diagnósticos médicos, enfim, toda uma rede 
discursiva e prática que indicam qual relação de poder irá se instaurar conforme a diferença 
que pessoa ou grupo apresenta. 
Quais efeitos as diferenças entre os seres produzem? Como se produz o saber que 
informa essas diferenciações? 
Para responder a tais questões pode-se trazer uma concepção moderna de sociedade, 
desenvolvida desde os ideais da revolução francesa. “A igualdade é o alicerce de toda 
sociedade democrática comprometida com a justiça e os direitos humanos” (CICV, 2005, 
p.314). Todavia, mais do que a igualdade, democracia, justiça e direitos humanos, cabe 
observar justamente o grau de comprometimento da sociedade com esses elementos. 
Envolvimento que será não apenas do braço judiciário do Estado, mas de diferentes esferas da 
população, o que inclui as mais diversas produções discursivas e práticas sociais, entre elas a 
academia universitária e o saber científico. 
Assim, é neste entremeio que a pesquisa teve seu início. Uma reflexão que envolve 
as diferenças presentes nos modos de ser e estar no mundo; a gestão destas diferenças em 
16 
 
termos objetivos e de produção de subjetividade; e uma análise de implicação pessoal e do 
próprio fazer acadêmico, que é parte constituinte da produção de realidade e, por isso, não se 
isenta das regulações de poder. 
A diferença que chamou atenção, inicialmente, do presente trabalho apresentou-se a 
partir de encontros com um personagem específico, um ator social que responde pela classe 
de profissionais de segurança pública, o policial militar. Ela ocorreu em uma experiência 
profissional, na qual, morando no Rio, eu me deslocava a São Paulo para reuniões da equipe 
de pesquisa,uma vez que o Instituto contratante é sediado na cidade paulistana, e, 
posteriormente, realizava o trabalho de campo na capital mineira. Experiência profissional, 
portanto, que também representava o contato com os três estados em que morei, já que sou 
paulista e fiz minha graduação em psicologia em Minas Gerais, até me mudar ao Rio, onde 
me dediquei à pós-graduação. 
A experiência profissional em questão promoveu a emergência de variados aspectos 
afetivos e profissionais. Por um lado revisitava o ritmo, o sotaque e as comidas, tanto de São 
Paulo como de Minas e, por outro, colocava em análise uma discussão que havia amadurecido 
nos estudos de mestrado. As autoridades etnográficas - que refletem sobre o gênero de escrita 
e sobre o modo como outrem e o grupo estudado aparecem no texto acadêmico - puderam 
novamente ser instrumentalizadas. Trazendo a questão da polifonia, da problematização da 
presença do pesquisador na produção de dados no campo, bem como da não generalização e 
homogeneização de outrem e seu grupo, a discussão etnográfica fez flexibilizar os processos 
produtores da alteridade. No caso, o ‘outro’ em questão era talvez um dos mais difíceis de se 
romper com a sua representação cristalizada e associada a adjetivos negativos; afinal, caberia 
diversidade, não generalização e homogeneidade, ao policial militar? 
 O encontro disparador do trabalho que se segue ocorreu em fevereiro de 2010, na 
cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Lá desembarquei e lá uma paisagem se 
territorializou: uma paisagem com policiais, viaturas, coronéis, praças, prédios, medos, 
receios, papéis, condutas, enfim, uma paisagem com efeitos. 
Dizer sobre esse tipo de território, sobre os processos aqui chamados de 
territorialização, é dizer sobre uma realidade em produção. Uma paisagem que se territorializa 
não é uma paisagem estática que deciframos com um olhar de lupa, como que procurando 
desvelar seus detalhes. Isso seria dizer que a paisagem já existe por si só, previamente dada, e 
que cabe ao olhar humano dotá-la de sentidos. Uma paisagem que se territorializa também 
não é como a foto jornalística que carrega consigo uma legenda sobre a sua substância. Isso 
seria considerar que há apenas um único modo de se entender e se relacionar com esta 
17 
 
paisagem. O que está em questão ao trazer a ideia de paisagens que se territorializam é a 
intenção de sublinhar o caráter processual de todo o encontro do homem com o que está a sua 
volta. 
O mundo com que o homem 
se relaciona é um mundo em constante 
e diversa produção. Ao mesmo tempo 
em que construímos o mundo partindo 
de nossas trajetórias pessoais, somos 
construídos pelo mundo na força de 
suas intensidades históricas e sociais, 
como se estivéssemos no linear da 
imagem ao lado, em que o contorno do 
peixe é o contorno da ave: encontros. 
 
Figura 1: Sky and Water de M. C. Escher.
 1
 
Nos encontros com as pessoas e outros seres animados ou inanimados formamos as 
paisagens, que serão, assim, como territórios psicossociais, uma vez que nos vemos ocupando 
um local com certos sentidos e com certas regulações de práticas. Territórios enquanto 
conjuntos de componentes e intensidades em que vão se desembocar pragmaticamente toda 
uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais 
(GUATTARI, ROLNIK, 2005). Territórios, tal como são colocados por Deleuze e Guattari 
(1997), desenhos, projetos e representações que dão forma ao mundo, que fazem com que 
coisas e seres se constituam em realidades provisórias, que a todo momento podem se 
‘desterritorializar’, num movimento que é justamente o de perda de sentido de certas matérias, 
a própria linha de fuga, o fluxo que desmancha seu desenho. 
A mencionada paisagem psicossocial em Belo Horizonte se iniciou em uma demanda 
de pesquisa pelo Instituto Via Pública, visando analisar o que designavam como “Impactos do 
Programa de Integração das Normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos e 
Princípios Humanitários Aplicáveis à Função Policial do Comitê Internacional da Cruz 
Vermelha (CICV) na Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG)”. Uma demanda, dessa 
maneira, que implicou recorrentes encontros com policiais, com a academia da polícia da 
PMMG, bem como com suas matrizes curriculares, suas doutrinas, ensinos, treinamentos e 
sistemas de controle. 
 
1
 No intuito de se seguir a proposta da cartografia psicossocial, tal como exposta na abertura da introdução, a 
tese utilizará trechos de diário de campo, pinturas, letras de música, fotos e outras linguagens para compor de 
maneira heterogênea a sua produção, no sentido de agregar conteúdos ao que está sendo exposto, como 
complementação explicativa ou ilustração contextual. Em ANEXO I encontram-se as fontes de todas as figuras. 
18 
 
Nesse mundo que se materializou em 10 dias na capital mineira, ganharam cores 
mais intensas algumas situações em que territórios mais sólidos, mais definidos e 
individualizados foram momentaneamente desestabilizados. Afinal, no que posso chamar de 
trajetória pessoal, esse ‘outro’, o policial, sempre tinha sido um sujeito de rosto indefinido, ou 
mesmo um personagem que poderia possuir diversos rostos, mas que dentro de sua 
diversidade era homogêneo. Até então o policial havia sido mais ou menos circunscrito dentro 
de qualidades que geravam algo próximo da aversão. Aversão num sentido preciso de 
produção de um distanciamento, que acabava por provocar falas como “não gosto de 
policial”, posturas como “se avisto um policial, logo me desloco para que não permaneça no 
mesmo ambiente em que estou”, e vontades ou não vontades como “não tenho interesse de 
trocar coisas com policial, independente de que coisa for”
2
. 
Nos encontros com os homens e outros seres um mundo se produz, ou seja, é no 
encontro com os outros e a partir desse encontro que a realidade se constrói, que possuímos os 
meios pelos quais entendemos o que nos rodeia. Nessa viagem à capital mineira, foram as 
diferentes formas com que a presença do policial se manifestou na produção de mundos, que 
despertaram minha atenção. Afinal, quais mundos poderiam emergir no encontro com esse 
‘outro’, dito policial? 
Na primeira aproximação à alteridade destacam-se os efeitos da presença de outrem 
na produção de realidade. Outrem, como diz Deleuze (2007) em sua antropofagia de Tournier, 
assegura as margens e transições no mundo, relativiza o não sabido, o não percebido: “pois 
outrem para mim introduz o signo do não-percebido no que eu percebo, determinando-me a 
apreender o que não percebo como perceptível para outrem” (DELEUZE, 2007, p.315). Numa 
perspectiva positiva, outrem é quem distrai o que está estável na esfera individuada, é quem 
nos desconserta sem cessar, permitindo a construção de mundos que se tornam possíveis na 
sua presença. A alteridade enquanto diferenciação da constituição dos sujeitos é o que permite 
a produção de novos modos de ser e de vida, que escapariam a um sujeito se outrem não fosse 
também um componente da realidade que se constrói. Outrem e sua diferença emergem como 
potencialidades de desestabilização, de ruptura de territórios que são comuns e estáveis. 
Contudo, há um alerta nesta relação, a de que outrem não é um indivíduo que se 
relaciona com um ‘eu’, mas sim uma estrutura do possível. Possível, este, não como uma 
 
2
 A introdução informa de uma experiência profissional em que a alteridade foi problematizada a partir do 
contato com os policiais. O intuito não é realizar uma ode ao policial, mas mostrar como a transformação da 
lógica atuante em sua alteridade, inicialmente cristalizada e homogênea e posteriormente aberta a novas 
configurações, pode ser trabalhada em relação a outros grupos e a como a sociedade relaciona-se com esses 
grupos. 
19 
 
categoria abstrata doque não existe, mas como mundo expresso, que existe exatamente 
naquilo que o exprime: 
Mas outrem não é nem um objeto no campo de minha percepção, nem um sujeito 
que me percebe: é, em primeiro lugar, uma estrutura do campo perceptivo, sem a 
qual este campo no seu conjunto não funcionaria como o faz. Que esta estrutura seja 
efetuada por personagens reais, por sujeitos variáveis, eu para vós e vós para mim, 
não impede que ela preexista como condição de organização em geral aos termos 
que a atualizam em cada campo perceptivo organizado – o vosso, o meu. 
(DELEUZE, 2007, p.316) 
 A alteridade não responde unicamente ao resultado da relação entre eu e 
outrem, mas, sim, à própria produção de ambos. Sujeitos que só se tornam sujeitos pela e na 
relação entre si. A realidade em que percebo a mim enquanto pesquisador e a outrem 
enquanto policial é uma realidade em que nossa constituição se encontra diferenciada nesses 
termos. Nesse processo pode haver tanto receios, incertezas que impendem o novo, como 
aberturas, passagens para novas intensidades. A realidade em que outrem está presente pode 
revelar um mundo não visitado, com objetos, pensamentos e formas não costumeiros. 
O processo que ocorreu durante a pesquisa em Belo Horizonte diz sobre uma 
mudança de postura. Até então não havia espaço para o não-percebido. O universo de objetos 
situados à margem que poderiam obter emergência não deixava sua condição virtual, pois as 
produções estavam por demais cristalizadas. Ao serem formadas paisagens em que, entre 
outros elementos, se desenhavam o policial e 'eu', o tempo sempre se mostrava nublado. Esse 
outro era ali um objeto real e essa realidade era sempre uma realidade a ser evitada – “o 
policial é, salvo diferenças que não interessam nessa lógica que atualizo, sempre igual e esse 
igual corresponde a algo que me gera aversão”. 
Nesse ponto alguns poderiam perguntar: mas qual a origem disso, qual o porquê 
dessa aversão ao policial? Há um ‘evento traumático’ ou algum centro, um acontecimento 
difusor que se pode traçar para decifrar a causa disso? 
Desde já se coloca que este não é o esforço desse trabalho. Não há uma procura por 
origens e ou por uma fundação essencial; não há o interesse em revelar intencionalidades que 
buscam um fim previamente visado, ou a decifração de superestruturas dominantes, que do 
alto de seu poder exercem sua força como fatos sociais. Nesse sentido, coloca-se tanto a 
função disparadora, como a função analisadora destas paisagens materializadas em Belo 
Horizonte. O presente trabalho se realiza por meio de uma postura de pesquisa que, em sua 
antropofagia cartográfica, metaboliza Foucault e sua preocupação com a raridade. Um 
Foucault que possui em sua obra a seguinte proposição, como nos diz Veyne (1992, p.151): 
20 
 
“os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno 
deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente”. 
O policial sob a imagem de algo aversivo, de algo a ser evitado, não é algo que exista 
a não ser pela sua constante (re)atualização. Esse policial é a expressão manifesta de um 
estranho que só conhecia pelas imagens de um olhar duro, que se arranja e se repete em uma 
organização do campo perceptivo em que a novidade é subtraída; pois se caso uma novidade 
seja emergente, se caso um novo mundo com o policial se apresente, essa novidade é 
prontamente disciplinada, classificada e extraída, como um lixo a ser reciclado. Nesse 
processo, a novidade, o outro mundo possível, não ganha viço e perde potência para se 
expressar. 
E é nesse jogo que as funções disparadora e analisadora dessas paisagens 
apresentadas se atravessam. Como foi dito, a paisagem-movimento se iniciou sob a demanda 
de uma pesquisa e, dentro desta configuração, a produção do pesquisador também se fez 
presente e nela fizeram eco contribuições do campo da antropologia, como as discussões da 
autoridade etnográfica e da polifonia do campo. Nesse arranjo, os pesquisadores devorados 
foram, entre outros, Abu-Lughod (2003), André Brandão (2003), Márcio Goldman (2006), 
Janice Caiafa (2007) e James Clifford (2008). A preocupação é a de lidar com a diversidade 
do campo e de outrem, sem que sejam hipertrofiados por um possível olhar totalizante do 
pesquisador, de maneira que fiquem atentos ao gap historicamente presente entre o discurso 
profissional pleno de generalizações e as linguagens da vida cotidiana. Faz-se então 
necessária uma abertura do pesquisador à novidade, pois como dizem Deleuze e Guattari 
“nada muda se nos afastamos levando nossa bíblia” (apud CAIAFA, 2007, p.149). 
Há assim duas maneiras de se debruçar sobre a problemática brevemente 
apresentada, disparadas principalmente pela genealogia em Foucault (2009) e pela cartografia 
em Rolnik (1989). Uma é perceber quais as condições históricas e sociais que permitem certos 
arranjos ganharem consistência e terem como um de seus efeitos possíveis a cristalização do 
personagem policial. Outra é direcionar-se para as aberturas, para as linhas de fuga, 
dedicando-se ao que ganha emergência em uma postura que dá língua aos afetos que pedem 
passagem. 
Voltando à estadia em Belo Horizonte é trazido à cena o primeiro dia de trabalho, em 
que me encaminhei à academia da PMMG. Logo na entrada pergunto ao policial onde era a 
sala do comandante e ele, com um sotaque mineiro que me fez lembrar saudosamente dos 
‘bons tempos de faculdade’ em Uberlândia, me indica a direção. O estranhamento nessa 
situação vem de muitos lados, já que vou na condição de novato nos temas de segurança 
21 
 
pública, de direitos humanos e do funcionamento de uma corporação policial, ao mesmo 
tempo em que algo que sempre me foi aversivo me trouxe uma lembrança tão reconfortante. 
O novo só não ganha mais intensidade em função da força da ansiedade que me toma, que 
acaba por dar o tom das paisagens que se formam. Andando pela academia de polícia refleti 
sobre os policiais que tinham se formado ali e sobre alguns dos pensamentos que surgiram 
espontaneamente: “Quantos deles se tornaram corruptos?”; “Quantos mataram em situações 
em que poderiam não ter matado?”. Então, num esforço racional, tratei de pensar outras 
coisas, como nas possibilidades em que policiais tiveram outras práticas, mais potentes 
enquanto produção de vida. Mas vi que mais fácil, ou menos difícil, era não pensar em nada a 
não ser em como chegar à sala do comandante. “Deixe-se levar”, me diziam os antropólogos 
que havia devorado para esta demanda. Até que cheguei à sala do comandante, onde me 
apresentei a um capitão que ali estava. Logo este foi informar ao comandante de minha 
chegada e, na sequência, convidou-me para entrar. 
Neste momento deixo de cartografar os acontecimentos na forma de um tempo 
sucessivo. A paisagem deixa de ser a de um diário de campo cronometrado para dizer mais de 
uma potência que se deu no conjunto de encontros. Durante a estadia em Belo Horizonte 
formaram-se relevos - “feito de vozes reminiscentes das mais variadas origens, sintonias e 
estilos, misturando-se e compondo-se” (ROLNIK, 1989, p.16) e estes relevos foram a de um 
novo mundo possível com a presença dos policiais. Estes, antes homogêneos, foram ganhando 
formas difusas, plurais, diversas, ou mais precisamente, foram ganhando potências. Potências 
que me foram trazidas por meio das entrevistas que realizei com eles; pelas falas que 
enfatizavam os movimentos de greves em 1997; pelos questionamentos sobre o que podem 
ser os direitos humanos na polícia militar; e por discussões sobre encontros e práticas 
conjuntas realizadas pela polícia junto a pessoas em situação de rua e grupos de travestis. 
O policial deixou de ser um objeto dado e passou a ser um objeto de novos possíveis 
e isso se tornou visível em uma noite que saí com amigos que tenho na cidade. Ao avistarmos 
uma viatura da PM, ao contráriode alguns que disseram “ih, lá vem os pardais”, em função 
do uniforme marrom da PM mineira, eu não disse nada. E não disse nada porque senti um 
vazio. Não um vazio de intensidades, pois havia um fervilhão de afetividade, mas um 
momentâneo e inesperado vazio de representações sobre os policiais – ao avistá-los chegando 
na viatura me ocorreu: “o que vem lá?”. Esse momento de contraste, de um vazio 
momentâneo de representações junto às sensações afetivas cheias de intensidades, me 
perturbou, desconcertou e impulsionou para algo que é novo. O que ocorreu permitiu 
experimentar até as últimas consequências os alertas de autores antropólogos que havia lido; 
22 
 
afinal, a preocupação com a não generalização sobre os sujeitos e grupos, com a postura ética 
de se mostrar aberto às novidades, com o rompimento com qualquer nível de estereotipização 
podem por muitas vezes ficar apenas na falácia. O pesquisador não se encontra fora do campo 
de pesquisa, mas, sim, o compõe, o afeta e é por ele afetado. No encontro com a viatura e 
policiais, aquele movimento rotineiro, habitual, de manutenção “daquelas velhas opiniões 
formadas sobre tudo” não se reatualizou. Aquela forma de se relacionar com os policiais com 
a sensação de aversão aos mesmos não aconteceu. O que se fez presente foi uma 
metamorfose, ambulante como a da música de Raul Seixas, e estimulante no sentido de 
organizar este texto em cima da potência que a alteridade aberta à diversidade pode trazer. 
Este movimento levou às primeiras questões desta pesquisa. Se os fatos humanos são 
raros por haver outras inúmeras possibilidades em torno deles, quais outros possíveis podem 
emergir para se pensar o policial e a polícia? Se o que é pode ser diferente, como diz Veyne, 
como colocar num sentido mais amplo as potências das paisagens configuradas nos contatos 
com os policiais militares, para se discutir outras maneiras de realização da segurança 
pública? Como dispor os elementos de linguagens em cartografias que se fazem necessárias 
para dar visibilidade a lógicas presentes neste campo? Como conferir emergência tanto às 
práticas que disciplinam, classificam e reduzem as relações em que o policial está presente em 
termos de ‘outro’ e de ‘eu’ como objetos dados, quanto pensar as potencialidades e as linhas 
de fuga? Como problematizar essa mesma lógica com outros grupos que sejam pertinentes à 
discussão em torno da segurança pública? 
A partir desses processos, o trabalho foi organizado de maneira que contextos 
pertinentes ao campo da segurança pública fossem convocados e permitissem observar a 
configuração social em torno da alteridade, ou seja, como a sociedade e, nela, os profissionais 
de segurança elegiam critérios e territorializavam práticas por meio da diferenciação entre 
grupos. Procurou-se, então, eleger dispositivos de pesquisa, que na concepção foucaultiana 
são redes que unem os elementos de um campo e permitem que por meio deles sejam 
analisados os saberes e as relações de poderes que as compõem (FOUCAULT, 2008). Tendo 
a alteridade como analisador, investiu-se na discussão de diferentes sistemas lógicos que 
permitem cartografar psicossocialmente a segurança pública e, portanto, acompanhar os 
processos que nela se manifestam. Cada capítulo abaixo, assim, se debruça sobre uma 
localização histórica e sobre como a diversidade e as diferenças entre os grupos se 
atualizaram em seu contexto. O intento é o de observar o quanto os saberes, discursos e 
práticas circulantes promoveram tanto medidas de segregação e exclusão em função da 
23 
 
disposição hierárquica da alteridade, como a tolerância e o respeito à isonomia de direitos e 
dignidade humana em contexto mais inclusivo e acolhedor da diferença. 
No tocante aos territórios em que os dispositivos de pesquisa farão ver as discussões, 
destaca-se que o evento disparador vem da experiência em Minas, mas que o trabalho 
procurou sua fertilidade em solo fluminense. O estado do Rio de Janeiro e, em especial, sua 
capital são, sem dúvida, um dos que mais têm chamado atenção nas discussões da área. Os 
modelos inspirados na política colombiana que acarretam nas Unidades de Polícia 
Pacificadora (UPP), as medidas de internação compulsória de crianças e adolescentes em 
situação de rua e de uso de drogas consideradas ilícitas, os jogos da Copa do Mundo de 
Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 que irá sediar são alguns dos elementos que 
conferem ao contexto carioca a proficuidade em se problematizar a segurança pública. 
De maneira geral, um duplo processo ganha emergência. O evento que motivou a 
realização da pesquisa foi o desconcerto que o contato com policiais causou às ideias que 
sempre havia insistido em manter – associação inerente dos policiais, em especial os 
militares
3
, a qualidades negativas. Assim, a desestabilização causada pela flexibilização da 
alteridade impulsionou a discussão tanto da segurança pública, como dos processos de 
diferenciações entre os sujeitos que nela se sustentam. Pensar novas realidades possíveis com 
a presença dos policiais leva ao pensamento de novas formas possíveis de segurança pública; 
ao mesmo tempo, conferir novas potencialidades à alteridade conduz a novas 
problematizações em torno das diferenciações entre os sujeitos, em que os saberes 
convocados pela segurança pública se atualizam. 
A pesquisa, portanto, tem como seu campo problemático as práticas de segurança 
pública carioca em diferentes localizações históricas, com articulações e ponderações sobre 
outras experiências, como a escocesa e norte irlandesa, que serão referenciadas 
posteriormente. Nesta problematização, o que se procura é a apreensão da produção de 
realidade em torno das diferenciações constitutivas dos sujeitos e a reflexão sobre quais 
efeitos regulamentados de poder se efetuam em tais diferenciações e quais saberes os 
sustentam. Para tanto, utiliza-se da metodologia da cartografia, tal qual desenvolvida por 
Rolnik (1989) e por Passos, Kastrup e Escóssia (2009), no intuito de construir paisagens 
psicossociais em que a alteridade se torne processo privilegiado para se observar as 
transformações paradigmáticas da segurança pública e sua intersecção com a diversidade e a 
 
3
 O destaque conferido ao policial militar refere-se à visibilidade em função do policiamento ostensivo, 
repressivo e de seu constante fardamento. Esses elementos os diferenciam de outras Forças Auxiliares, como a 
polícia civil, eventualmente acarretando a centralização de representações negativas da polícia em sua classe. 
24 
 
diferença. A pergunta norteadora, que constitui o fio condutor de todos os dispositivos 
trabalhados pelos capítulos, é como o exercício e a promoção da cidadania em segurança 
pública relaciona-se com a acolhida ou não da diversidade pelos espaços e práticas sociais. 
Nesse sentido, posteriormente à introdução, no capítulo de número 02, a pesquisa 
procura refletir sobre seu campo problemático e seus principais referenciais conceituais. 
Ocorre a primeira aproximação à segurança pública, ligando-a a potência e dificuldade de ser 
viver em sociedade. O verso de Vinícius de Moraes, “são demais os perigos dessa vida”, é 
trazido em torno da problemática sobre a necessidade da ordem e da proteção ao que produz 
incertezas e imputa riscos às situações em que vivemos. Realiza-se uma discussão em torno 
de conceituações de Foucault, Guattari, Deleuze e Rolnik, entre outros, de modo que seja 
apresentada a caixa de ferramentas teórico-metodológicas da pesquisa (FOUCAULT, 2008), 
delimitando, como nesta introdução: o campo problemático da segurança enquanto territórios 
existenciais que produzem efeitos regulamentados de poder, a metodologia pela via da 
cartografia psicossocial e a aposta da alteridade enquanto analisador que sustenta todas as 
discussões que se seguem. 
Partindo da análise das implicaçõesdo pesquisador na produção da pesquisa e da 
ênfase da cartografia no acompanhamento de processos, o capítulo aborda a questão das 
autoridades etnográficas, no sentido trazer a problematização da alteridade e das vivacidades 
do outro também para a escrita acadêmica. O capítulo, assim, procura demonstrar, de maneira 
sucinta, como a pesquisa se desenvolveu até assumir o formato atual. Busca-se apresentar as 
idas e vindas com que o trabalho se deparou, passando por anseios anteriores, como o de 
abordar a questão dos grupos em situação de vulnerabilidade e da relação entre policiais 
militares, travestis e pessoas em situação de rua. Utiliza-se, inclusive, de um exercício 
próximo ao fazer literário, em que a rua torna-se o objeto e a provedora de análise, trazendo a 
ideia da realidade enquanto produção. O exercício procura de maneira livre dar o tom da 
discussão da pesquisa, dando luz ao entendimento de que não há elementos isolados que num 
tempo específico se relacionam, mas sim elementos que só podem ser entendidos enquanto 
em ou na relação. 
Após a delimitação do campo e das entradas da pesquisa, os capítulos posteriores 
exploram diferentes dispositivos, que visam construir um conjunto coeso em torno dos 
processos históricos deflagrados no campo da segurança pública carioca, mantendo-se a 
preocupação central de discutir, por um lado, as formas de segregação e exclusão promovidas 
pela ênfase hierárquica da alteridade e, por outro, a possibilidade de promoção da cidadania e 
dos direitos humanos por meio de práticas que efetivem o contato entre diferentes e sejam 
25 
 
acolhedoras e tolerantes à diversidade. Objetiva-se ir ao encontro da discussão de Luiz 
Eduardo Soares (2013) sobre as raízes do imobilismo político na segurança pública, 
enfatizando sobre como as formas de construção do “outro” pode potencializar suas 
transformações paradigmáticas. Dessa maneira, são elencados alguns dos atravessamos 
presentes na sociedade da capital fluminense desde a chegada do primeiro aparato policial, em 
1808, que permitem acompanhar o processo produtor de mentalidades ainda atuantes, bem 
como as nuances que estabelecem rotas de fuga e dão vazão à novidade e singularidade. São 
trazidas, também, articulações e interfaces com a experiência escocesa e norte irlandesa, 
provenientes do período de doutoramento sanduíche, para ampliação e criação de 
contrapontos para a discussão. 
Assim, no capítulo 03, intenta-se a cartografia de alguns processos atuantes nos 
Novecentos e na sua passagem para o século XX, lançando luz a como certas formas de 
gestão de vida capturam a diferença e a esquadrinham entre o que é aceito, punível e 
indiferente, fazendo com que as práticas de proteção e produção da segurança sejam pautadas 
pelo medo e pela segregação e exclusão de grupos e práticas específicas. Utilizando-se da 
figura do “capoeira” e do “menor” como dispositivo para fazer ver e falar as produções 
sociais, a busca é pelos modos de como a sociedade informou o espaço público em uma 
leitura que enfatiza o risco e se retroalimenta pela sensação de insegurança. Discute-se como 
os referenciais colonialistas e escravagistas acabam por configurar uma relação de 
superioridade e inferioridade entre grupos que sustentam, entre outras, as teorias eugênicas e 
higienistas, bem como a Doutrina da Situação Irregular e o Código do Menor. Observa-se 
como as distinções jurídicas entre criança e menor, entre o contexto moral-familiar regular e 
irregular são transpostos para a sociedade, com implicações na discricionariedade policial e 
no acesso ao direito. 
No capítulo posterior, a procura é pelas urgências às quais as políticas públicas de 
segurança têm respondido desde o Regime Civil-Militar. O intuito é realizar um percurso em 
três localizações históricas interconectadas e articuladas, que envolvem: o governo militar 
entre 1964 e 1985 e a política de segurança nacional; o processo de redemocratização iniciado 
na década de 80 e a política de segurança pública; e algumas questões emergentes no século 
XXI, com ênfase ao programa nacional de segurança pública com cidadania. Busca-se discutir 
as continuidades e rupturas paradigmáticas entre os períodos, observando os diferentes 
posicionamentos e relações entre Estado, Forças Armadas e Auxiliares e cidadãos nas práticas 
de segurança. É colocado em análise as proximidades e distanciamento que o governo, e 
também a polícia, tem estabelecido com as populações mais locais e em comunidades, 
26 
 
acarretando em baixa capilarização dos processos decisórios e de planejamento, bem como 
esvaziamento de processos participativos que aproximam a população em geral das políticas 
públicas. 
O capítulo 05, por sua vez, versa sobre os dados produzidos a partir do doutoramento 
sanduíche realizado na Universidade de Dundee, na Escócia-Reino Unido. Com sete meses de 
duração, o período permitiu a imersão no contexto de segurança pública da Escócia e da 
Irlanda do Norte. Assim, o interesse foi o de trazer elementos das reformas policiais escocesas 
e, sobretudo, norte irlandesa para ampliar a discussão do contexto carioca e observar como 
outros países responderam às demandas da segurança pública. Destacam-se os processos de 
profundas transformações ocorridos na Irlanda do Norte, que atravessam de sobremaneira os 
pontos de discussão da pesquisa: o rompimento do imobilismo político na área de segurança a 
partir do reconhecimento e acolhimento da diversidade e de uma ritualização mais evidente da 
passagem entre um paradigma ao outro. 
O capítulo também se utiliza de informações produzidas pelo intercâmbio da polícia 
militar do estado do Rio de Janeiro, realizado no primeiro semestre de 2013, na Escócia e 
Irlanda do Norte. Tal intercâmbio surgiu do network criado com as universidades de Dundee e 
de Ulster, por solicitação da PMERJ pelo coronel Robson e pela iniciativa e articulação desta 
pesquisa, sendo já, a priori, um dos frutos deste trabalho e da relação anteriormente 
estabelecida entre Fernando Lannes, Pedro Bicalho e Nicholas Fyfe. 
Posterior à articulação com o Reino Unido, há o capítulo final, em que se procura 
uma revisitação aos temas precedentes, no sentido de ver como a intensificação do risco e do 
medo acaba por acirrar elementos comuns da sociedade e amplificar o distanciamento e a 
alteridade radical entre os grupos sociais. Observa-se como a promoção de uma segurança 
cidadã que valorize e integre a diversidade, passa também pela valorização e maior integração 
da própria polícia à sociedade, flexibilizando suas barreiras institucionais e fazendo emergir 
suas multiplicidades internas. Defende-se, assim, a formação de mecanismos efetivos que 
permitam o contato entre diferentes, deslocando o monitoramento das políticas públicas da 
ênfase aos resultados para a ênfase aos seus processos constituintes, tendo a fomentação de 
travessias e maior porosidade cultural como referência. 
Por fim, a pesquisa procura apontar para novas formas de monitorar e produzir as 
práticas de segurança, de maneira que o encontro com o “outro” seja vivenciado não pela 
hierarquia que a coloca em termos de superioridade e inferioridade, mas a partir das 
possibilidades de mundo que a presença de outrem apresenta. Possibilidades que abrem 
27 
 
caminhos para uma nova configuração, para uma nova forma de encontro, para uma nova 
forma poética, que diz dos corpos, dos corações e da vida. 
 
Figura 2: Foto da Rua do Catete, Rio de Janeiro, 15/01/2014. 
 
28 
 
2 OLHARES AOS PERIGOS E POTÊNCIAS DA VIDA NO CONTATO COM 
OUTREM: AS ENTRADAS DA PESQUISA PELO MÉTODO CARTOGRÁFICO E A 
ALTERIDADE COMO ANALISADOR 
 
(...) Tudo isto diz respeito à relação com o outro, e é por isso que a chegada 
de um “estranho” estremece a segurança cotidiana. O estranho seria a síntese 
da “sujeira” automática, autolocomotora e autocondutora. É por isso que as 
sociedades lutam porclassificar, separar, confinar ou aniquilar os estranhos. 
(BATISTA, 2003, p.78) 
O uso da palavra segurança é uma ação que intensifica a necessidade de explicitação 
de contexto. As suas variações de sentido fazem com que seu engendramento em determinada 
situação, e se está ‘seguro’ em dizer isto, seja o meio pelo qual consigamos apreender que tipo 
de segurança se está expressando. Dentre as quinze definições encontradas no dicionário 
Houaiss, de 2013, destacam-se as seguintes: ação ou efeito de tornar seguro - estabilidade, 
firmeza, seguração; situação em que não há nada a temer - a tranquilidade que dela resulta; 
estado, qualidade ou condição de uma pessoa ou coisa que está livre de perigos, de incertezas, 
assegurada de danos e riscos eventuais, afastada de todo mal. 
Destas definições surgem as questões: Que ações ou efeitos estão sendo produzidos 
para se tornar algo estável e qual é esta estabilidade desejável? Quais critérios são utilizados 
para definir o que causa temor e o que é necessário para que este temor se ausente e resulte na 
tranquilidade? Quais saberes são convocados para se produzir estado, qualidade ou condição 
de uma pessoa ou coisa livre de incertezas? 
Ao notarmos a fala que abre este tópico percebemos que se trata de uma reflexão 
sobre algo que transversaliza todas as questões assinaladas acima: a aventura, as potências e 
as dificuldades de se viver em sociedade e o medo que a presença de outrem, do desconhecido 
pode provocar às pessoas e às instituições que sustentam o viver social. É nesta empreitada, 
em que vivemos e agimos pela e na relação com outros, que a segurança e sua garantia 
tornam-se o último vestígio do cordão umbilical que nos liga a um espaço reconfortante, em 
que, ao existirmos, percebemos a nossa volta condições favoráveis de vida em conjunto. 
São demais os perigos desta vida, nos diz Vinícius de Moraes na composição de seu 
samba homônimo. E destes perigos somos alertados a todo instante, cuidando de nossas 
mochilas no metrô, saindo rapidamente das estações quando pegamos os trens, fechando as 
janelas dos carros, evitando a rua no período noturno, enfim, atualizando os discursos e 
conselhos que vêm de todos os lados, de especialistas na área de segurança a amigos e 
familiares. Viver é perigoso, nos dizem, e por isso nos cercamos de cuidados, principalmente 
29 
 
quando nos deparamos com aqueles que não conhecemos, ampliando o ditado “não converse 
com estranhos”, para ações em que aprendemos a discernir e evitar quem é estranho. 
As produções de perigo e de segurança colocam-se como complementares e o 
desconhecido encarnado em outrem figura-se seu motor. A relação com as pessoas que nos 
circundam, sejam elas reguladas pelas 
categorias de família, de trabalho ou de 
lazer, parece se embasar num jogo de 
semelhança e diferença. A segurança 
passa a ser algo relevante, passa a ser um 
objeto de efeitos quando em uma 
formação do viver a diferença de outrem 
é constituída pelo estranhamento que 
provoca: Suspeitemos de tudo aquilo que 
não nós é familiar? 
 
Figura 3: Montagem feita por esta pesquisa a partir de diferentes 
recortes de jornais. 
As pessoas emergem enquanto sujeitos por meio de uma lógica que as aproxima e as 
diferencia de outros sujeitos, distribuindo-os dentro de um regime de poder. Para tornar a vida 
de um grupo social segura parece ser necessária, em muitos casos, a ausência de todos aqueles 
grupos e pessoas que possam parecer estranhos, ou por sua aparência, ou por sua linguagem, 
ou por seu comportamento, ou seja, pela estranheza que seus modos de ser e estar no mundo 
podem provocar. 
Como analisa Gilberto Velho (2000, p.10), “a diferença é, simultaneamente, a base 
da vida social e fonte permanente de tensão e conflito”. Neste sentido, a reciprocidade entre 
os diferentes figura como balizadora das trocas e práticas sociais. Institui-se o que é esperado 
dos sujeitos, quais são as expressões condizentes e as respostas que podem surgir dessas 
expressões. Respostas convocadas por saberes mais ou menos compartilhados pelas pessoas e 
com assentamento em uma processualidade histórica que se atualiza no cotidiano. Conforme 
arremata Velho (2000, p.12), “a construção de um sistema de reciprocidade através do qual as 
partes de uma sociedade se relacionam, sejam elas indivíduos ou grupos, não é um dado da 
natureza, mas sim um fenômeno sócio-histórico”. 
Fazendo parte de construções sócio-históricas, o que regula o encontro entre as 
pessoas - entre o que é conhecido e o que é estranho, entre o que se acorda e o que se discorda 
- é sempre uma zona fronteiriça que estabelece seus limites de acordo com as partes 
envolvidas. Há sempre uma margem para impasses, sejam eles sociais, econômicos, estéticos 
ou de outras ordens, acarretando, ao mesmo tempo, a urgência de algo que responda a essas 
30 
 
diferenças que desacomodam o encontro, uma urgência que dê conta dos perigos da vida. 
Produzir segurança é produzir estabilidades em que se assegura que o mal está afastado, é 
produzir situações em que o temor se ausente ou ao menos seja amplamente atenuado, 
colocando o que é incerto em uma posição não ameaçadora, incapaz de provocar risco ou 
dano. 
“Se os homens definem situações como reais, elas são reais em suas consequências”, 
é a conclusão de W. I. Thomas, que Howard Becker (2009) traz no prefácio de seu livro 
intitulado Outsiders. A obra se dedica à questão de que pessoas agem com base em 
compreensões de mundo que podem divergir e serem até contrastantes, o que corrobora a 
ideia de Velho e traz o meio social enquanto uma arena de conflito e disputa entre diferentes 
modos de ser e estar no mundo. No caso da reflexão sobre a realidade enquanto produtora de 
efeitos e consequências, W. I. Thomas comenta sobre um diretor que recusou a ordem judicial 
para permitir que um preso tivesse momentos fora da prisão. O diretor justificou-se alegando 
que o homem era perigoso em função de seu histórico de ter matado inúmeras pessoas na rua 
que eventualmente estivessem falando sozinha, por acreditar que os movimentos de sua boca 
estariam sendo usados para chamá-lo por nomes vis (THOMAS, 1928). Diante da tensão e do 
conflito que o comportamento do preso causava, o diretor penitenciário optou por recursar o 
benefício, provavelmente ponderando que: se há pessoas e grupos diferentes, há diferenças 
que acarretam uma realidade por demais insegura, portanto, não passível de se estabelecer no 
convívio com outros. Ao definir a situação de pessoas movimentando suas bocas como sendo 
pessoas insultando com nomes vis, o sujeito em questão produz uma consequência real que 
pode ser a morte de um indivíduo, não havendo, assim, espaço para a sua tolerância. 
As ideias de Becker e Thomas trazem à discussão os saberes que se implicam nas 
relações e nas formas de expressão. Em cada local em que as pessoas se estabelecem 
enquanto grupo, em pequenas aldeias ou em centros urbanos, algum tipo de regulação de 
poder se torna presente. São produzidas realidades e inteligibilidades dessas realidades. De 
maneira semelhante à diferença entre os que ao olhar uma montanha rochosa veem uma 
paisagem bucólica e os alpinistas que ao olhar a mesma montanha veem fendas possíveis ou 
não de serem escaladas, cada grupo investe mais ou menos num determinado tipo de produção 
de realidade, que consequentemente irá regular suas relações. 
Não existe sociedade que não seja feita de investimentos de produção de realidade 
nesta ou naquela direção, com esta ou aquela estratégia e, reciprocamente, não 
existem investimentos de desejo que não sejam os próprios movimentos de 
atualização de um certo tipo de prática e discurso, ou seja, um certo tipo de 
sociedade. (ROLNIK, 1989, p.58) 
31 
 
A questão que se coloca é como os investimentos de produção de realidade nesta ou 
naquela direção, por parte da sociedade, relacionam-se com a diferença,com a diversidade e 
com as produções de realidade de cada grupo social. Não há garantia de que a reciprocidade 
comentada por Velho seja compartilhada e manifestada por todos, fazendo com que os grupos 
se defrontem com relações que não ocorram de acordo com as noções e entendimentos 
investidos por eles, como o homem que mata por supor que está sendo insultado. Sujeitos e 
grupos, que na perspectiva de Becker (2009), são outsiders, aqueles que deflagram o não 
esperado e que, na nossa primeira aproximação da segurança, produzem o que é incerto e 
inseguro. 
As diferenciações que constituem os sujeitos dizem sobre uma pluralidade que não 
escapa a uma rede do que é aceitável ou não aceitável pelos demais. Nesse processo, a 
interação com outrem desconhecido modifica-se junto às transformações dos espaços sociais, 
públicos e das instituições que se dedicam a regular a reciprocidade esperada. Olhar hoje ao 
que produz segurança pública no Rio de Janeiro é olhar a um espaço de diversas negociações, 
com a presença de atores os mais variados, característicos de um grande centro urbano. 
Refere-se a um domínio contemplado por grupos de diversas nomeações – funkeiros, punks, 
emos, skinheads, rastafaris, anarquistas, queer, evangélico, macumbeiro, favelado, playboy, 
torcedor de organizadas – que evidenciam tanto o caráter híbrido, como o caráter do que é 
excludente, do que é definido como outsider nos espaços públicos urbanos, pois, afinal, até 
onde podemos lidar com a diferença e seus efeitos? Quais critérios podem dizer sobre os 
efeitos cabíveis ou não cabíveis da diferença em um convívio social? 
O objetivo da pesquisa, portanto, se debruça sobre a questão da diferença, sendo a 
última ligada ao que um grupo social e/ou sujeito apresenta como peculiaridade e 
especificidade, ou seja, o que apresenta como estranho a outros grupos. Elegem-se, assim, 
dispositivos que irão figurar os capítulos e permitir observar como o campo da segurança 
atualiza esse processo de contato com a diferença, convocando saberes e práticas que, ora vão 
dar ênfase à hierarquização, produzindo segregação e exclusão do “outro”, ora vão acolher a 
diversidade, produzindo realidades em que caibam a tolerância e a pluralidade social. Busca-
se pautar a discussão dos paradigmas de segurança em termos do quanto seus territórios 
configuram-se como espaço de acolhida ou eliminação de diferentes modos de ser e estar no 
mundo. 
Tendo em vista a aproximação da pesquisa com a questão da segurança, que 
constituirá o contexto a ser problematizado, bem como a questão da diferença no encontro 
32 
 
com outrem, que será o analisador das discussões, a seguir, cabe apresentar a delimitação do 
campo problemático e as formas de entrada metodológica que serão utilizadas. 
2.1 PRODUÇÃO DE EFEITOS E NÃO TOTALIZAÇÃO DA REALIDADE: 
SEGURANÇA PÚBLICA NO RIO DE JANEIRO PELA HABITAÇÃO DE UM 
TERRITÓRIO PSICOSSOCIAL 
2.1.1 Caixa de ferramentas teórico metodológicas: Situando o olhar da pesquisa 
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É 
preciso que sirva, é preciso que funcione. (...) Proust, que o tinha dito tão 
claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes 
servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é 
forçosamente um instrumento de combate. A teoria não totaliza; a teoria se 
multiplica e multiplica. É o poder que por natureza opera totalizações e você 
(Foucault) diz exatamente que a teoria por natureza é contra o poder. (Deleuze em 
diálogo com Foucault, registrado na obra: FOUCAULT, 2008, p.71) 
A construção de um campo problemático não diz apenas do universo em que se 
pretende mergulhar e discutir como também da postura com a qual o pesquisador intenta fazê-
lo. Implica dizer tanto sobre o contexto, o grupo e a produção de realidade que se estuda, 
como sobre a própria definição conceitual de contexto e produção de realidade que se utiliza. 
Nesse sentido, cabe trazer que a pesquisa se vale da concepção de caixa de ferramentas 
discutida por Deleuze e Foucault na passagem acima, que será utilizada em dois âmbitos 
transversais: as discussões do campo da segurança pública no Rio de Janeiro como dispositivo 
para fazer ver e falar as produções de realidade atuantes na contemporaneidade, bem como a 
postura e práticas de pesquisa, em especial da psicologia e seus diálogos com outras 
disciplinas, no que tange a algumas formas de se conceber o homem e os efeitos que essas 
formas produzem nas relações sociais. 
Ferramentas que neste trabalho instrumentalizam um olhar não generalizante, mas 
sim atento ao que pode escapar das redes de poder totalizantes dos seres e das coisas. 
Ferramentas que aproximam a pesquisa de uma Psicologia crítica às noções e conceitos que 
visam um suposto desvelamento positivista da realidade (LANE, CODO, 1989). A pesquisa 
insere-se, portanto, em uma interdisciplinaridade que pensa o homem a partir da relação, da 
produção agenciada coletivamente em registros macro e microssociais, afetivos e subjetivos, e 
que refuta o biologicismo individualizante, que coloca as causas dos comportamentos 
individuais em fatores internos a si: há uma “tradição biológica da Psicologia, em que o 
indivíduo era considerado um organismo que interage no meio físico, sendo que os processos 
psicológicos (o que ocorre ‘dentro’ dele) são assumidos como causa, ou uma das causas que 
explicam o seu comportamento” (LANE, 1989, p.11). Na mencionada perspectiva entende-se 
33 
 
que para conhecer o indivíduo basta conhecer o que ocorre ‘dentro dele’, quando o mesmo se 
defronta com estímulos do meio. Como diz Ana Jacó-Vilela (2007, p.40) em seu texto sobre o 
estatuto da psicologia social, trata-se de uma concepção psicologizante em que o homem 
carrega muitos pronomes possessivos: “o indivíduo e seus processos cognitivos”, “seu 
comportamento”, “suas emoções” e “sua intimidade ou interioridade”. Jacó-Vilela ressalta 
que neste tipo de psicologia, mesmo quando se considera a dimensão social do sujeito, o faz 
de maneira coadjuvante, como um complemento, como algo que pode ser adicionado à 
pessoa. 
Como veremos adiante, essa abordagem do homem insere-se em um contexto em que 
a racionalidade moderna desdobra-se em um cientificismo objetivista. As ciências naturais 
são tomadas como base para o desenvolvimento das ciências humanas, produzindo “medidas, 
testagens e previsões, instituindo uma racionalidade que tudo classifica em termos de 
comportamento, analisado com base no indivíduo, cindindo-o do social e centrando no 
primeiro as origens das patologias e transtornos da psiquê” (HÜNING, GUARESCHI, 2009, 
p.160). Como efeitos, esses saberes científicos produzem uma primazia do indivíduo em 
detrimento do social, recaindo sobre o primeiro o mérito da adaptação satisfatória à sociedade 
ou a culpa por sua falta de habilidades para lidar com o meio. 
Esta concepção possui ressonâncias encontradas nos dias atuais, em que psicólogos 
são demandados a aferir laudos e pareceres que atestam ou não tal capacidade adaptativa do 
sujeito. Assim, desde início coloca-se aqui a problematização trazida pelo editorial do Jornal 
do Conselho Regional de Psicologia do Rio de janeiro (CRP-RJ), em 2011, que discute o 
quanto a culpabilização do indivíduo acaba por referendar a produção de pessoas e grupos na 
categoria de “perigosos”. Tal passagem do CRP aponta que, eventualmente, na interseção da 
psicologia com o judiciário ocorrem violações de direitos sob o argumento de tratamento e/ou 
de proteção. 
Entendemos que o campo segurança pública não diz respeito somente as ações da 
polícia militar e judiciária, mas também a uma lógica que perpassa diversas áreas 
das políticas públicas e afeta sobremaneira a atuação do psicólogo que é, muitas 
vezes, “bombardeado” com demandas que exigem um debate ético quanto ao papel 
que o profissional exerce ea quê o seu saber vem servindo. (Editorial do Jornal do 
CRP-RJ, nº 33 Julho/Agosto/Setembro, 2011, p.2) 
A pesquisa, ao contrário da psicologia individualizante, busca entender o homem 
enquanto relação, como alguém que é singular e não existe sem o outro, isto é, contém o outro 
em si mesmo: “afirmamos ‘pessoa=relação com um sinal de igual (=), e não ‘pessoa em 
relação’ (...) importante aqui a definição de ‘relação, ‘ordo ad aliquid’, isto é, a ‘ordenação 
34 
 
intrínseca de uma coisa em direção a outra’, ou ‘algo que não pode ser, sem que haja 
outro’”(CAMINO, GUARESCHI, 2007, p.2). 
 
Figura 4: Drawing Hands de M. C. Escher. 
Homem como relação em uma alteridade que 
se faz pela emergência dos sujeitos enquanto 
conjuntos complementares entre si. Algo 
como o que o poeta Fernando Pessoa, em 
uma de suas prosas, define como sua 
multiplicidade: “Sinto-me múltiplo (...) Sinto-
me viver vidas alheias, em mim, 
incompletamente, como se o meu ser 
participasse de todos os homens, 
incompletamente de cada, por uma suma 
 de não-eus sintetizados num eu postiço” (PESSOA, 1985, p.31). 
Dessa maneira, o intento é o de se criar um campo de interação disciplinar que 
possibilita diferentes tipos de leitura, mas que compartilham entre si a postura ética 
comentada por Fuganti (2001), na qual é necessária observar as implicações práticas do que se 
produz, seja das outras instituições, seja da própria instituição acadêmica que, por vezes, 
“bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem 
própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e 
destituindo-os de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação” 
(FUGANTI, 2001, p.2). Uma perspectiva como a defendida por Ronilda Ribeiro (2005), que 
ao realizar uma articulação entre a psicologia e a etnologia, reverberada neste trabalho pelas 
autoridades etnográficas, defende o “moldar de múltiplas lentes”. Enfatizando a importância 
da não restrição à leitura da realidade mediante apenas um padrão de intervenção 
estabelecido, a autora completa que “a superposição de duas ou mais lentes de leitura, se 
utilizada adequadamente, possibilitará, uma vez superada a fase do borrão, o delinear de 
formas configuradas com nitidez, que permitem alcançar significados antes insuspeitados” 
(RIBEIRO, 2005, p.181). 
Dessa maneira, a pesquisa dispõe em sua caixa de teorias e métodos contribuições, 
entre outros, da análise institucional (BAREMBLITT, 2002) e da produção de subjetividade 
(GUATTARI; ROLNIK, 2005). Utilizando-se também da metodologia da cartografia 
psicossocial, pensada por Deleuze e Guattari (1997) e desenvolvida por Rolnik (1989), bem 
como por Passos, Kastrup e Escóssia (2009), o trabalho busca dar ênfase ao aspecto dinâmico 
dos processos sociais e ao caráter produtivo da realidade. Instrumentos teórico-metodológicos 
35 
 
que inscrevem os sujeitos em circunstâncias sociais específicas que, como apontam Thomas e 
Zizanieck (1918/2005, p.15), distinguem-se dos fenômenos que supostamente tem sua fonte 
“na natureza humana” ou no que é “genérico” ao homem. 
Segundo Baremblitt (2002), o campo da análise institucional considera que a 
sociedade está ordenada em um conjunto aberto, ou seja, não totalizável de instituições, sendo 
as últimas “um sistema lógico de definições de uma realidade social e de comportamentos 
humanos aos quais classifica e divide, atribuindo-lhes valores e decisões, algumas prescritas 
(indicadas), outras proscritas (proibidas), outras apenas permitidas e algumas, ainda, 
indiferentes” (BAREMBLITT, 2002, p.78-79). As instituições, portanto, corresponderiam às 
lógicas formalizadas em leis, em normas escritas ou discursivamente transmitidas, podendo 
ainda corresponder aos costumes e aos hábitos não explicitados. “As citadas lógicas se 
concretizam ou se realizam socialmente em formas materiais ou ‘corporificadas’ que, segundo 
sua amplitude, podem ser: organizações, estabelecimentos, agentes, usuários e práticas” 
(BAREMBLITT, 2002, p.79). 
A perspectiva institucional de Baremblitt (2002, p.26) coloca a sociedade como “um 
tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a 
reprodução da vida humana sobre a terra e a relação entre os homens”. O autor, contudo, 
chama a atenção para produção sensível desse tecido em organizações, que podem 
compreender um grande complexo organizacional, como o Ministério da Justiça ou a 
Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), até um pequeno estabelecimento, como 
uma escola, quartel, batalhão de polícia ou uma prisão específica. “As instituições não teriam 
vida, não teriam realidade social senão através das organizações. Mas as organizações não 
teriam sentido, não teriam objetivo, não teriam direção se não estivessem informadas como 
estão, pelas instituições” (id, ibid). 
Nessa perspectiva, a segurança pública não deve ser considerada um campo 
totalizável, fechado sobre si mesmo, ou seja, não está restrita às relações entre suas 
organizações, estabelecimentos e agentes. Ela constitui um tecido de instituições que se 
interpenetram e se articulam entre si na produção que vai além da segurança ou insegurança. 
Ela se refere à produção de toda uma realidade conectada com outras esferas sociais e que 
possui efeitos sobre as pessoas e as coisas. Sendo parte constituinte da produção de realidade, 
aglutina em torno de si os saberes e práticas ligados à segurança, mas que não devem ser 
analisados de forma desconectada a um processo maior, contínuo e não generalista. 
Ministérios e secretarias, diretrizes nacionais e estaduais, doutrinas, ensino, treinamento e 
sistemas de controle, corporações militares e estatísticas de violência, abordagens policiais e 
36 
 
profissionais de segurança; certamente todos esses elementos constituem o campo da 
segurança pública, mas cabe destacar que esse é um conjunto aberto, tanto em função das 
diferentes realidades sociais e comportamentos humanos que pode constituir, como pela 
questão de ser apenas uma das lentes possíveis com a qual enxergamos e investigamos o 
mundo a nossa volta. A ferramenta da análise institucional coloca-se, assim, como opção 
antipositivista uma vez que prefere os efeitos às leis, pois como defende Heliana Conde 
Rodrigues (2005, p.18), “ao contrário das leis científicas, em que o ver faculta o prever - 
preceito sintetizado pela fórmula ‘assim tem sido, assim será’ -, os efeitos estão 
invariavelmente ligados à preservação, deliberada ou involuntária, de determinadas condições 
de efetuação”. A autora ainda destaca os efeitos enquanto contingências repetidas ou 
reforçadas, no intuito de diferenciá-los das legalidades universais às quais estamos sujeitados. 
Equacionar as práticas relacionadas à segurança pública nessa perspectiva é, ao mesmo 
tempo, desapropriá-las de um aspecto universal a todos os homens e lugares e situá-las dentro 
de um aspecto local e específico: não constitui a natureza humana, mas sim uma produção 
social, e enquanto produção, passível de tomar outros rumos e sentidos. 
Na tarefa de problematizar os processos de preservação e descontinuidades de 
determinadas condições de efetuação da segurança pública, entendendo a última como um 
conjunto de práticas e lógicas relacional e aberto, cabe destacar a já intrínseca 
heterogeneidade de seu contexto. 
O que caracteriza a problemática da segurança pública, no Brasil – entre outros 
aspectos relevantes, que também poderiam ser destacados – é seu caráter babélico: 
não há consenso nem quanto aos seus pontos de dissenso. Quando há acordo quanto 
aos focos de divergência, organiza-se o debate público, ordena-se a agenda política, 
estrutura-se o repertório temático para o desenvolvimento de pesquisas, estudos, 
avaliações, investimentos acadêmicos, investigações jornalísticas (...) Desse modo, 
asdivergências são mapeadas no plano mais profundo, matricial, e em matéria 
derivada, por assim dizer, que se oferece ao varejo das decisões ad hoc ou a 
avaliações circunstanciais. (SOARES, 2009, p.136-137, grifo do autor) 
A segurança pública, como outros objetos de investigação, não constitui um campo a 
ser decifrado, como um mapa. Diz respeito a produções históricas que atualizam modos de 
vida regidos em nome da segurança. Fazer pesquisa sobre a segurança é caminhar por terrenos 
como dunas desérticas, que estão em constante transformação pelo contato com os ventos de 
norte, sul, leste e oeste. A própria escrita da pesquisa está implicada, ao passo que está ligada 
aos discursos de quem também vive em terras cariocas e se defronta com as ruas da Glória, 
Lapa, Catete, Laranjeiras, Botafogo, Flamengo e tantos outros bairros. Uma não neutralidade 
que deve ser exposta tanto por quem escreve como por quem concede depoimentos ou lê o 
que se segue, pois como destaca Luiz Eduardo Soares (2009, p.137), “no cenário babélico, as 
37 
 
vozes mais legítimas e democráticas, apesar de sua sensibilidade social, frequentemente, 
atiram nos próprios pés, uma vez que ignoram as implicações das teses que sustentam e as 
consequências dos pleitos que vocalizam”. 
O trabalho percorre um caminho de diferenças, de multiplicidades como a de 
Fernando Pessoa, de reciprocidades e tensões como apontadas por Gilberto Velho, de insiders 
e outsiders como discute Becker, e tantos outros, que ganharão texto pelas ferramentas 
teóricas de Foucault, Guattari e Deleuze, bem como pela cartografia de Rolnik, Kastrup, 
Passos e Escóssia. Assim, cabe apontar que quando estiver sendo indicado o campo 
problemático da pesquisa estará sendo indicado um território existencial. Isto é, um campo de 
problematização concebido enquanto “conjunto dos projetos e representações em que vai 
desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos 
tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (GUATTARI, ROLNIK, 2005, 
p.388). 
2.1.2 Segurança pública enquanto território existencial 
A conceituação de território inicia-se na obra de Deleuze e Guattari (1997) em que 
desvinculam a expressão de uma noção exclusivamente geográfica. Conforme comenta 
Haesbaert e Bruce (2002), o conceito tem sido tratado por alguns autores como um ambiente 
psicossocial, que não pode ser objetivamente localizado, mas construído por interações de um 
grupo ou coletivo, que assegura uma certa estabilidade e localização. Algo próximo da 
discussão de trabalho anterior (MELICIO, 2009), em que foi refletida a noção de ambiente 
pensante proposta por Serge Moscovici (2003), domínio social específico com um conjunto 
de sentidos e práticas relativamente coeso que traz inteligibilidade à realidade. 
Ao iniciar estudo do universo da segurança pública carioca está se iniciando um 
contato com domínios simbólicos-materiais específicos, algo que pode tanto abrir para o 
novo, como para a reatualização do familiar. Dedicar-se a adentrar este campo convoca 
acompanhar processos que produzem a segurança e/ou a necessidade de segurança em uma 
sociedade. Convoca o contato com os profissionais que expressam seus discursos reguladores; 
com os sujeitos e as relações que se encarnam pela lógica desses discursos; com as noções 
que imputam ao público e ao que se entende por segurança na dimensão pública um órgão 
moderador, constituído pelo Estado. 
Mais do que uma ênfase psicológica, o território de Deleuze e Guattari é composto 
de matérias de expressão, de todas as naturezas. “Cada território, cada habitat junta seus 
planos ou suas extensões, não apenas espaços-temporais, mas qualitativos: por exemplo, uma 
38 
 
postura e um canto, um canto e uma cor, percepções e afetos” (DELEUZE, GUATTARI, 
1992, p. 239). Os territórios referem-se à organização e à articulação de regimes de existência, 
envolvendo um espaço vivido e um sistema em que os seres e as coisas se tornam visíveis 
enquanto objeto, estando inseridos em uma trama de poder. 
Um dos desdobramentos que interessam a Deleuze e Guattari é o rompimento com as 
dicotomias entre consciente e inconsciente, subjetivo e objetivo, natureza e história. A 
filosofia dos autores é denominada como “teoria das multiplicidades”. Embora reconheçam a 
formação de territórios e seus processos de subjetivações, totalizações e unificações, 
enfatizam que as multiplicidades não remontam a nenhuma unidade e tampouco remetem a 
um sujeito (HAESBAERT, BRUCE, 2002). 
Cada território engloba ou recorta territórios de outras espécies, ou intercepta trajetos 
sem território, formando junções interespecíficas (DELEUZE, GUATTARI, 1992). Os 
territórios podem também se desterritorializar, denominação dos autores aos processos em 
que a pragmática de um território perde seu viço à medida que a pragmática de outro território 
ganha mais espaço. “Um bastão”, dizem os autores, “é um galho desterritorializado”(op. cit., 
p.90). 
Os territórios, tal qual proposto por Deleuze e Guattari, dizem sobre todas as formas 
e significados que ganham registro na realidade social. Uma vez que a realidade não é um 
dado objetivo, mas uma produção, o relativismo daquilo que vemos a nossa volta se impõe. 
Como já visto com Veyne e a ideia de raridade em Foucault, tudo o que é poderia ser 
diferente. Todavia, o relativismo coloca-se enquanto possibilidades que podem emergir e não 
isenta a produção de realidade de sua concretude sensível. Toda territorialização remete a uma 
configuração regulada de efeitos; toda vez que me situo no mundo a partir de uma relação 
específica com o que está a minha volta, estou inserido numa rede de poder concreta, que 
exerce uma gestão sobre o que é aceitável, punível ou indiferente. 
Portanto, no intuito de trazer a discussão de territórios mais próxima de seus 
processos de produção e valendo-se de contribuições de Foucault (2008) nos textos sobre a 
microfísica do poder e da concepção de Rolnik (1989) sobre a questão do viço, a pesquisa 
convida o leitor a um breve intervalo textual. Realiza-se abaixo uma ligeira aproximação dos 
conceitos de poder, regimes de verdade e produção de efeitos por meio de exploração próxima 
do fazer literário, da territorialização da rua enquanto plano das relações entre três 
personagens presentes no campo da segurança pública: pessoas em situação de rua, travestis e 
policiais militares. 
39 
 
2.1.2.1 A rua enquanto plano de territorialização e desterritorialização: um 
breve exercício próximo do fazer literário 
A rua é comumente vista como via de passagens, um local de trânsito, de 
movimento, onde o medo e o desconhecido revezam com a sensação de segurança e 
familiaridade. Um espaço em que se agrupam moradias e locais de troca. Num olhar ela é 
sede do entre, do que conecta, do que se multiplica em diversas possibilidades de novos 
caminhos. Noutro olhar ela é algo que convoca uma paisagem psicossocial já visitada, que 
alimenta a memória e as histórias que se faz, a cada instante, não só em seu domínio espacial, 
como em seus domínios sociais, institucionais, afetivos e outros mais. 
Os elementos que constituem a rua são diversos, heterogêneos e transitórios. Eles 
podem ser físicos, materiais e emocionais. Ela, como outros objetos, não é uma entidade 
fechada e circunscrita, com fronteiras intransponíveis. Ela é uma rua-paisagem, um território 
existencial que se constitui ao passo que elementos emergem no presente, podendo mudar de 
cor, ritmo e intensidade a cada instante, a cada nova composição que ganhe terreno. Quando 
olhamos a rua, quando percebemos a rua e as formas que nelas conseguimos identificar, 
estamos nos situando numa territorialização de significados e de relações de poder. “A 
‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos 
de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’da verdade” (FOUCAULT, 2008, p.14). 
Todavia, a própria territorialização sempre pode dar passagem a outro território 
existencial. Se na rua pudéssemos lançar um olhar a partir de uma câmera cinematográfica 
poderíamos observar a multiplicidade de tais relações. Numa lente mais aberta, ganharia 
formas o asfalto, os muros, janelas, pessoas e práticas sociais que nela se desencadeiam. Por 
esta lente da câmera observaríamos um território com esses elementos e essas relações. 
Porém, numa lente mais focalizada, em olhar mais detido em um dos elementos de sua 
configuração, como em uma pessoa, veremos que a pessoa é também uma composição de 
elementos e que só ganha emergência na paisagem estando em relação com os outros. 
Os elementos que compõem a territorialização da rua estão em relação. Não há a 
priori uma janela, muro, pessoa ou prática que podem ser ‘coladas’ em sua paisagem. Cada 
um desses elementos só serão janela, muro, pessoa ou prática se ganharem formas dentro de 
uma lógica em que existam essas denominações, em que se expressem suas formações 
enquanto verdades, com seus respectivos efeitos. “Entendendo-se, mais uma vez, que por 
verdade” não se quer dizer “‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar’, 
mas o ‘conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao 
verdadeiro efeitos específicos de poder’” (FOUCAULT, 2008, p.13). 
40 
 
Ao nos debruçarmos sobre a rua-paisagem, notamos que no trânsito dos elementos 
que a constituem há a configuração de redes de trocas e expressão, há a configuração de uma 
pragmática. Se tomarmos um exemplo de paisagem em que estão presentes três pessoas, 
conforme elas ganhem contornos mais definidos, inexoravelmente manifestarão 
diferenciações entre si, entre seus modos de ser e estar no mundo. Há aquele que veste uma 
roupa preta e azul e que se pode dizer policial. Há aquele sobre saltos altos e que se pode 
dizer travesti. Há aquele enrolado num cobertor e que se pode dizer morador de rua. 
Mais do que definições por vestimentas, o que chama atenção nesse exercício- 
convite é notar como as relações entre esses personagens, bem como entre todos os 
constituintes da paisagem, vão se estabelecendo em um regime de práticas, em um conjunto 
discursivo e não discursivo, que instituem uma lógica relacional, em suma, um regime de 
poder. “O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito 
do investimento do corpo pelo poder” (FOUCAULT, 2008, p.146). O que emerge como 
travesti, policial e morador de rua poderia desembocar e emergir em outras possibilidades, 
como a de pai, mãe, capoeira, torcedor de futebol, estrangeiro, brasileiro, paulista, carioca. 
Em cada uma dessas possibilidades de emergência um novo regime se manifestaria, ao passo 
que convocaria outros enunciados de verdade para responder a sua urgência. Se na paisagem 
essas mesmas três pessoas estivessem como torcedores de um mesmo time de futebol a sua 
composição se transformaria. Outros conjuntos de saberes se fariam presentes, bem como 
outras relações se estabeleceriam. Mas se estas três pessoas encontram-se em uma situação 
que as diferenciam como travestis, morador de rua e policial, o regime de verdade, o sistema 
de poder se manifestará a partir dos discursos que prescrevem e proscrevem estes três atores 
sociais. 
Na rua, e em todas as paisagens, o que salta aos olhos são os regimes de poder e de 
verdades que ganham passagem. No exemplo em que estão presentes travesti, morador de rua 
e policial, aos poucos, toda uma cadeia de sentidos, de construções de mundo, começa a se 
atualizar em práticas possíveis a cada um. As pessoas vão, assim, se diferenciando em sujeitos 
sociais, se assentando em ancoragens históricas que estão atuantes em seu tempo. Nesse 
momento há um jogo em que dois movimentos de força se complementam, como dois lados 
de uma moeda. As relações entre as pessoas se sustentam pelas redes de sentido que as 
diferenciam (como policial, travesti e morador de rua), da mesma maneira que as redes de 
sentido que as diferenciam se sustentam pelas relações que estabelecem entre si (as pessoas se 
relacionam a partir do que é esperado, do que é cabível ao policial, travesti e morador de rua; 
a partir dos saberes que informam e situam cada um desses grupos; a partir das instituições 
41 
 
que se interconectam e se articulam em torno dos mesmos). “Na verdade, nada é mais 
material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder...” (FOUCAULT, 2008, 
p.147). 
Ao retomarmos o exercício vemos que, ao adquirirem evidência as diferenciações 
entre os sujeitos, um conjunto de discursos sobre ser policial, travesti e morador de rua passa 
a reger as trocas, materializando as conjunturas sociais e históricas que darão visibilidade ao 
território formado. Instaura-se uma lógica em que conhecimentos e práticas compartilhados, 
como os que permitem ao que é policial portar uma arma e empregar o uso progressivo da 
força, são os que irão sustentar o que pode emergir na paisagem. Caso aconteçam ações não 
sustentadas por essa lógica, por esse regime de verdade que informa e captura as formas de 
relações entre as pessoas, como uma agressão ao policial pelo morador de rua, elas produzirão 
visibilidades ligadas ao estranho, ao perturbador, ao desviante, estando imersas às 
consequências que esta condição lhe traz. 
Neste sentido, a composição dos elementos da rua-paisagem – toda paisagem 
psicossocial remete a constituição de um território existencial - se manifestará por meio do 
exercício de um regime de poder. Não um poder que desce de superestruturas sociais e que 
exprime exclusivamente regulações jurídicas, dinâmicas econômicas ou formações morais e 
familiares. Nem um poder que transborda de uma qualidade interna dos sujeitos ou das coisas, 
seja ela física, natural, universal, inconsciente e/ou intrapsíquica. Mas um poder que é 
justamente o que conecta esses aspectos; um poder que condensa todas essas forças e produz, 
nesse nexo, o que entendemos como realidade. Um poder que não é abstrato, mas, sim, 
manifesto e produtor de efeitos. 
A ideia de território existencial traz a formação de regimes de verdade, que por sua 
vez também está na gênese do poder. Não um poder que se institui de fora para dentro. 
Conforme apontado por Foucault (2008), a noção de poder aqui difere-se da visão marxista, 
que aponta para segmentos sociais hierarquizados por uma força que se impõe de cima para 
baixo, como se quem estivesse em cima fosse possuidor do poder. O poder não é de posse de 
uma pessoa, grupo ou esfera social, o poder é exercício – exercício de poder. Ele coloca-se 
nas, e a partir das, formas de relações que se estabelecem. O poder remete, portanto, mais a 
um regime de verdade, ou seja, a um conjunto de normas, formas e leis que situam as formas 
e viver. Relaciona-se com o conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do 
falso. Por isso Foucault aponta que a questão política não deve centrar-se na alienação, na 
ilusão ou na ideologia, mas na própria lógica que hegemonicamente é tida como verdade: 
42 
 
Não se trata de libertar a verdade de todo o sistema de poder – o que seria quimérico 
na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da 
verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das 
quais ela funciona no momento. (FOUCAULT, 2008, p.14) 
A importância de trazer os 
regimes de verdade do campo de 
segurança pública por meio do conceito de 
territórios remete ao entendimento não 
totalizante do campo de discussão. Um 
território engloba, recorta e intercepta 
território de outras espécies, sempre 
havendo passagem para outros 
investimentos. 
 
Figura 5: Trabalho em estêncil de Banksy, 
A constituição do campo da segurança pública enquanto produção de territórios de 
existência lhe trazuma referência - elementos mais estáveis que lhe permitem a distinção 
enquanto campo da segurança pública, como policiais, políticas da Secretaria de Segurança, 
representações de grupos minoritários que implicam medidas de segurança – ao mesmo tempo 
que lhe traz uma delimitação fluida e em disputa com outros territórios. A realidade 
apresenta-se como uma disputa de forças, uma paisagem em que diferentes habitat, diferentes 
ambientes psicossociais vêm à tona. Cada um dos grupos que se situa nesta pesquisa faz 
emergir um ambiente específico. Desse modo, entra em jogo como esses domínios se 
transversalizam e por quais regimes de poder ocorre essa transversalidade: o que a 
fundamentação da suspeita, característica da abordagem policial, diz sobre as relações grupais 
e espaciais brasileiras? A que demanda e contexto social o programa de segurança cidadã 
intenta responder? Quais relações se estabelecem entre as ideias de Estado mínimo e 
segurança máxima? Como a difusão midiática do medo é convocada para pautar os debates de 
campanhas eleitorais? 
2.1.3 Habitando o campo 
A investigação que se preocupa em produzir paisagens em que os regimes de poder 
se tornem visíveis por meio de suas tramas históricas, não naturais, traz também a questão 
metodológica. Postura que abriu este trabalho desde a introdução, a cartografia psicossocial 
envolve uma argumentação ad hoc, desenvolvida passo a passo pela capacidade de reflexão 
sobre situações específicas. A metodologia da cartografia refere-se à análise que se faz 
mergulhada na experiência coletiva em que tudo e todos estão implicados, em uma postura em 
43 
 
que, como aponta Passos e Barros (2009, p.19), “todo conhecimento se produz em um campo 
de implicações cruzadas, estando necessariamente determinado neste jogo de forças: valores, 
interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenças, etc.”. 
A proposta da metodologia, que se relaciona à resignificação de Deleuze e Guattari 
de conceitos geográficos, é cartografar territórios existenciais. Produzir paisagens 
psicossociais sensíveis a “tudo o que serve para cunhar matéria de expressão e criar sentido” 
(ROLNIK, 1989, p.66). O intuito é o de habitar os territórios do campo de pesquisa, que como 
destaca Alvarez e Passos (2009, p.135), “não nos coloca de modo hierárquico diante do 
objeto, como um obstáculo a ser enfrentado (conhecer = dominar, objeto = o que objeta, o que 
obstaculiza [...]. Cartografar é sempre compor com o território existencial, engajando-se 
nele”. 
Dedicando-nos a essa demanda, notamos primeiramente que a segurança se 
territorializa em diferentes espaços do Rio de Janeiro. Ao direcionarmos o olhar para o 
contexto carioca percebemos que o tema está presente em todos os meios midiáticos. Seja no 
jornal mais vendido no Leblon, ou no mais vendido na Baixada Fluminense, seja nos 
programas de TV ou nas conversas de botequins, as incursões policiais em favelas, a 
investigação de assassinatos, a violência nas escolas ou em governos ditatoriais espalhados 
pelo mundo estão sempre presentes. Conforme apontam estudos neste sentido (OLIVEIRA, 
2002; RAMOS, PAIVA, 2005; TAVARES, 2011), pautada na maioria das agendas 
institucionais, a segurança pública é hoje um dos objetos mais relevantes não só do viver 
carioca, como do brasileiro como um todo. Nas campanhas eleitorais para presidência, dos 
anos de 2002, 2006 e 2010, o plano de maior discussão entre eleitores, repórteres e opositores 
foi o do programa para o combate à criminalidade: “Notável, ainda que requentada, foi a 
presença da ideia de endurecimento contra o crime com medidas de segurança que vão desde 
um aparato policial vigoroso a um sistema punitivo impiedoso, tanto por parte de programas 
de governo como por parte da opinião pública” (TAVARES, 2011, p.127). 
 
Figura 6: Foto de passarela da Rua Pinheiro 
Machado. Rio de janeiro/RJ. 
No caso da capital fluminense, acresce a esse quadro 
a eminência da realização da Copa do Mundo de 
Futebol em 2014 e o sediamento dos Jogos 
Olímpicos de 2016. Políticas de segurança, como as 
Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), iniciada em 
2008, passam a adquirir o selo dos jogos em 
seus documentos e debates. Segundo informe da 
44 
 
Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG) à matéria do jornal O 
Globo, de 30/05/2011, a instalação de UPP na favela da Mangueira, faz parte do planejamento 
da Secretaria de Segurança de ocupar as comunidades que ficam no entorno do Maracanã 
(onde se encontra o maior estádio de futebol do país), o que inclui, ainda, as comunidades do 
Turano, Salgueiro, Formiga, Andaraí, Borel, Macacos e São João. 
A cidade vai, então, criando um aparato de equipamentos que garantem o aparente 
cerco aos que colocam em risco a tranquilidade da coletividade e ficam a todo momento 
lembrando dos perigos desta vida aos habitantes da cidade maravilhosa. Os espaços vão sendo 
ocupados por “unidades de pacificação” ao passo que os que deflagram perigo vão sendo 
encaminhados para espaços, formalmente, sócio-educativos. Tal é a intenção de outra das 
políticas cariocas, como o do recolhimento compulsório de crianças e adolescentes em 
situação de rua e usuários de crack. 
A Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro regulamentou um 
Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social em 2011 (Resolução SMAS n° 20 
de 27/06/2011). Em termos institucionais, a política envolve o recolhimento e a internação 
compulsória, à revelia da vontade dos apreendidos e de suas famílias, para tratamento médico, 
com a justificativa da desintoxicação. 
“Ei, ei”, pergunta o agente da prefeitura a um adulto transeunte no Jacarezinho 
(Bairro da Zona Norte do Rio), que estava com vestimentas aparentemente velhas e 
cabelo descuidado. “Deixa eu ver seu dedo!!”. O transeunte mostra, então, o 
indicador e o polegar com espessas cascas pretas. E o agente da prefeitura responde: 
“Porra! Com esses dedos ai?! Pode ir pra a van” (veículo da prefeitura em que se 
transporta os usuários encaminhados pela internação compulsória). [Diário de 
Campo, 05/10/2011
4
] 
O que está em jogo é a sensação de medo e insegurança que se espalha pelas 
sociedades e atualiza demandas punitivas produzidas através de discursos da lei (RAUTER, 
2007), sustentando diferenciações entre as pessoas por meio do que é criminalizável ou não. 
Na passagem descrita acima, observa-se como algo institucionalmente voltado a crianças e 
adolescentes acaba por destinar-se à abordagem e encaminhamento de uma pessoa adulta, que 
estava caminhando nos arredores de um centro comercial popular do Jacarezinho, em função 
de ter sinais em sua mão de desgastes provenientes, supostamente, do uso do entorpecente 
crack. Não ocorre uma simples aplicação de orientação institucional, mas sim a instauração de 
um saber que ancora tanto a orientação institucional como outras práticas sociais, 
desencadeando ações aparentemente veladas dos profissionais que dela se ocupam. 
 
4
 Acompanhamento de abordagem de pessoas em situação de rua por equipe da Prefeitura do Rio de 
Janeiro e profissionais de segurança. 
45 
 
Habitar o território da segurança pública no Rio é habitar um campo em que 
constantemente objetos são polarizados. “É uma luta do bem contra o mal”, como diz José 
Mariano Beltrame, secretário de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, ao se referir 
sobre a implantação da UPP na Rocinha em novembro de 2011 (GPI, 13/11/11). O que se vê é 
que a colocação dos acontecimentos em termos maniqueístas serve como justificativa em si 
mesmo para a ação do poder público. Como destaca o Coordenador da Secretaria Nacional de 
Assistência Social do Ministério de Desenvolvimento Social, Luiz Otávio Pires (AGÊNCIA 
BRASIL, 03/08/11), sobre o fato do Rio realizar a internação compulsória de crianças e 
adolescentes,“o Rio de Janeiro está demonstrando que não está passivo, está tendo uma 
iniciativa”. 
Parece haver, assim, todo um processo que orienta o homem a eleger critérios sobre 
o que deve ser evitado, como diz Batista (2003), sobre o que é sujo, sobre o que está fora do 
lugar, sobre o que faz do estranho a síntese da sujeira a ser separada, confinada ou aniquilada. 
Ação que se faz, como vimos, por uma das definições de promoção da segurança, em que a 
qualidade ou estado da pessoa é livre de incertezas, isto é, promoção de situações em que há 
apenas a pessoa em estado de pureza, livre de danos e riscos eventuais e afastada de todo mal. 
Como Bauman aponta e Batista (2003) corrobora, em nome da beleza, limpeza e ordem, a 
civilização limita a liberdade em nome da segurança. A pureza e a higiene, que Mary Douglas 
(1991) aponta serem padronizadas de diferentes modos em cada cultura, associam as ações 
humanas à ideia de ordem, de colocação das coisas certas em lugares certos, pois o que estaria 
fora do lugar ameaçaria as fronteiras entre as diferenças. Busca que ocorre mesmo quando 
coloca em xeque aqueles que a realizam, pois como alerta Mary Douglas (1991, p.118), “o 
derradeiro paradoxo da busca da pureza é ser uma tentativa de coagir a experiência a rimar 
com as categorias lógicas da não contradição. Mas a experiência não se presta a tanto e 
aqueles que a isso se arriscam entram, eles próprios, em contradição”. 
Ao nos aproximar de um dos mais importantes domínios da segurança pública no 
Brasil, observamos o embasamento dos critérios que distinguem pessoas e coisas em termos 
de produção de segurança. A Constituição Federal brasileira, de 1988, dispõe em seu artigo 6° 
a segurança como um “direito social”, enquanto que no artigo 144 define segurança pública 
como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, tendo como finalidade a 
“preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. 
O conjunto discursivo do documento que orienta o legalismo da sociedade brasileira 
traz a segurança pública em um registro de direito, em que o regime de poder operado na 
diferenciação dos sujeitos responde ao que se insere ou não na concepção de ordem pública, 
46 
 
ao que isenta ou não de perigo e dano as pessoas e os patrimônios. Assim, o ponto de 
destaque refere-se à eleição dos critérios utilizados para diferenciar as coisas e os seres entre 
ordenada e não ordenada, isenta ou não de perigo, é a mesma que produz as coisas e os seres, 
que dá passagem a seus territórios existenciais. 
Ocorre que toda uma produção discursiva remete ao Estado o dever de vigiar e julgar 
o que se insere ou não dentre os critérios eleitos, cabendo a punição aos que não se inserirem. 
Sob a esfera do Direito Penal, as produções de realidade são capturadas e registradas 
sistematicamente em função de sua transgressão ou não das normas emanadas por sua 
legislação. “É a partir de uma transgressão, ou seja, da adequação de uma conduta à 
tipificação legal, que nasce o direito de punir do Estado e, após a prolatação da sentença, o 
direito de executar a pena” (RODRIGUES, 2010, p.50). A transgressão é relacionada ao crime 
e, este, passa a ser punível pelo Estado, que enquadra e executa sua pena. A produção de 
realidade que não condiz com o esperado pela lógica da legislação penal é tratada como 
desviante e o desvio algo a ser interpretado e infligido de pena. 
Todavia, o universo da segurança pública, com que fazemos as primeiras 
aproximações, constitui-se como um campo de disputas de forças. Não há a detenção do 
poder nas práticas de segurança pública pelo Estado, mas sim posicionamentos que o Estado 
efetivamente ocupa nas relações de poder operadas no campo. Da mesma maneira, não há um 
privilégio na pesquisa das legalidades e diretrizes federais ou estaduais da política de 
segurança. Na postura cartográfica, busca-se “participar, embarcar na constituição de 
territórios existenciais, constituição de realidade” (ALVAREZ, PASSOS, 2009, p.67-68). 
2.2 ALTERIDADE COMO ANALISADOR 
O primeiro efeito de outrem é, em torno de cada objeto que percebo ou de cada ideia 
que penso, a organização de um mundo marginal, de um arco, de um fundo que 
outros objetos, outras ideias podem sair segundo leis de transição que regulam a 
passagem de uns aos outros (...) A parte do objeto que não vejo, coloco-a ao mesmo 
tempo como visível para outrem; tanto que, quando eu estiver feito a volta para 
atingir essa parte escondida, terei alcançado outrem por trás do objeto, para dele 
fazer uma totalização previsível. (DELEUZE, 2007, p.314-315) 
A presença de outrem, segundo a perspectiva de Deleuze, é o que assegura a 
contiguidade e a semelhança na formação do real, como também o fator que nos distrai e nos 
apresenta novos modos de ser. Na infinita possibilidade com que os mundos podem adquirir, 
a constituição de outrem se torna uma das potencialidades para fazer as coisas se tornarem 
reais e produzirem efeitos. É um jogo em que ora um objeto emerge como figura e outros se 
marginalizam como fundo, ora outros viram fundo e aqueles viram figura. Os elementos que 
47 
 
me atingem, que me afetam na realidade em que sou produzido, são encarnados em objetos 
que a minha diferença e semelhança ao outro cria como efeito: “eu não desejo nada que não 
seja visto, pensado, possuído por um outrem possível” (DELEUZE, 2007, p.315). 
A alteridade coloca-se como forma de sustentação para a emergência do mundo 
percebido como real. O processo que diferencia os seres e as coisas, que os manifestam 
enquanto objetos e nos conferem a mínima inteligibilidade destes, nos defronta com o 
desenho que fazemos de outrem. Mais do que um retrato, um desenho próximo de um 
holograma, como coloca Arruda (2002, p.17), “uma projeção em movimento, e como tal, 
também um pedaço de mim, prestes a esvaecer”, uma produção de representação que aplaca 
instantaneamente o conteúdo perturbador do outro, retrabalhando-o e tornando-se assim a 
diferença incorporada. 
Outrem é estrutura que condiciona o conjunto perceptivo que se deflagra, tornando 
possível a aplicação de categorias ao que nos circunda. Ele é expressão de um mundo que só é 
possível por sua presença. Todavia, não remete a um essencialismo, ou a uma relação entre 
‘eu’ e ‘não eu’ situados como naturezas. Como apontado anteriormente, outrem não é nem 
objeto do campo de minha percepção, nem sujeito que me percebe, ele é parte do que 
avistamos a nossa volta, sem a qual este campo no seu conjunto não funcionaria como o faz. 
O que entendo como ‘eu’ e o que entendo como 
outrem se faz ao mesmo tempo. Mesmo que os 
feitos desse campo perceptivo se efetuem em 
personagens reais, sujeitos variáveis que 
conjuguem “eu para vós” e “vós para mim”, ele 
remete à organização geral, ao processo que 
atualiza o vosso e o meu no campo perceptivo - 
sujeito=relação. Quando falamos em outrem e 
em mundos possíveis, dizemos sobre o que se 
torna tangível a partir da sua presença, algo que 
 
Figura 7: Bond of Union de M. C. Escher. 
só acontece em função das relações, da realidade em que ao mesmo tempo o ‘eu’ e o ‘outro’ 
se constituem (DELEUZE, 2007). 
O holograma que aplaca a perturbação que outrem nos traz é uma projeção em 
movimento, que se dá pela passagem sempre provisória em que pedaços do ‘eu’ se esvaece e 
outros elementos passam a constituí-lo. O mesmo se diz sobre o que é figura e fundo. Há, pela 
ideia de Deleuze, uma gama infinita de possibilidades que podem ganhar emergência na 
configuração social, possibilidades sempre em potência para emergir, mencionadas pelo autor 
48 
 
como virtualidades. Dessas virtualidades, um conjunto emerge em objetos pela estrutura 
perceptiva e desse conjunto, que é momentâneo, se forma tanto as figuras como o fundo. E é 
justamente a presença de outrem na realidade em que me situo, que organiza tanto o que se 
faz figura, quantoo que se faz fundo. Tal processo pode ser observado, por exemplo, na 
realidade emergente e compartilhada entre pessoas em situação de rua em que se encontram 
apenas membros de seu grupo, e a realidade emergente que esse mesmo grupo compartilharia 
ao constatarem a presença do policial. Alguns dos elementos que antes tinham ênfase na 
realidade que acessavam, perdem espaço para outros elementos que se territorializam na nova 
configuração junto ao policial, ou seja, o que antes existia apenas em virtualidade, apenas em 
potência, passar a compor a realidade, enquanto que alguns elementos antes presentes no 
território existencial deixam de se manifestar e voltam à condição “virtual”. 
A presença do outro perturba, afeta e mobiliza o mundo a nossa volta. Se 
retomássemos ao exercício literário descrito anteriormente poderíamos utilizar o recurso 
cinematográfico em que ora vemos a cena como espectador, ora vemos como protagonista. 
Recurso utilizado pelo diretor Luchino Visconti no filme Morte em Veneza, que conta sobre a 
vida e o conflito de um músico que achava que a arte era produto da razão e da reflexão. Após 
passar toda a história sob a perspectiva de espectador, o filme apresenta a cena em que o 
músico, com a saúde debilitada, encontra-se no saguão de um hotel em Veneza. A partir do 
momento em que o músico avista um garoto que estava transitando pelo hotel a imagem passa 
a ser a do olhar do protagonista, nos levando ao mundo que se criava pelos olhos do 
personagem principal. Abre-se então a percepção de como a presença do garoto traz um 
mundo de possibilidades, das quais o filme não encerra em esclarecer qual foi concretizada. 
5
 
Voltando ao exercício, dentre todas as virtualidades em potência que podem emergir 
na imagem, constitui-se a que apresenta a rua composta por bares, esquinas, policiais, armas, 
travestis, silicones, carros, clientes, prédios e moradores de rua. No meio a essa paisagem 
diversa e plural são eleitos sucessivamente figuras que se destacam do fundo. Numa primeira 
focalização avistamos uma travesti debruçada sobre a janela de um carro. Percebemos uma 
negociação, um acordo que envolve preços e condições para uma relação sexual; a pessoas 
que estão ali habitam o território enquanto profissional do sexo e cliente. Ao mesmo tempo, 
outro carro passa ao lado destes e os que estão em seu interior gritam: “ai moçada, vocês 
deviam desaparecer da rua!”. 
 
5
 Discussão baseada em aula gravada do professor de filosofia Claudio Ulpiano. Fonte: 
www.claudioulpiano.org.br 
http://pt.wikipedia.org/wiki/Luchino_Visconti
49 
 
Mais ao fundo desta imagem encontra-se uma pessoa que passa progressivamente a 
ganhar destaque na paisagem, passa a ser figura. Ela transporta uma mochila preta, com uma 
alça, da qual tira jornais impressos que esparrama em frente a um prédio, para então deitar-se 
sobre ele. Ao focalizarmos mais detidamente esta ação, vemos que na fachada do prédio há 
um degrau largo e extenso, na qual é possível acomodar-se. Este processo de acomodação 
ocorre até o momento em que sai uma pessoa, dizendo-se porteiro, empenhando a voz para 
que ele se retire da frente do prédio. Inicia-se uma discussão. É então que um homem deixa 
seu café no balcão do bar e dirige-se ao prédio. Neste momento, nos direcionamos ao olhar da 
pessoa que estava deitada e vemos a imagem pelos seus olhos. Na medida em que o homem 
se aproxima observa-se seu boné, uniforme e armas na cintura: é um policial. Vemos ele 
colocar a mão sobre arma, sem a tirar da bainha, e perguntar: “o que está acontecendo?”. 
Se parássemos a imagem neste momento, olhando o policial pelos olhos de alguém 
que estava prestes a buscar noite de sono na fachada do prédio, pararíamos o processo no 
instante em que a pessoa estaria construindo um mundo que é possível pela presença de 
outrem, no caso policial. Para darmos continuidade à cena faríamos o que Rolnik (1989) 
chama de antropofagia pelo viés da cartografia. Estaríamos ‘devorando’ os outros, na postura 
antropofágica, tanto na posição de expectadores, como, nesse caso mais específico, na 
condição de se colocar na posição desse outro, nos apropriando dele. E nessa metabolização 
do outro se criaria um relevo psicossocial a ser cartografado textualmente pela pesquisa, que é 
a escrita sobre o mundo manifestado por esses outros. 
No caso em questão, a diferença que faz da outra pessoa policial é formadora 
também da pessoa que o vê. O ‘eu’ que está olhando o homem que saiu do bar se aproximar 
tem, progressivamente, partes de si esvaecidas, enquanto outras se tornam atuantes. A cada 
instante ele deixa de ser um ‘eu’ que se faz pela vontade de descanso de seu corpo e se torna 
um ‘eu’ que se faz em um mundo no qual há presença de policiais, um mundo no qual há a 
presença de um senso de ordem e segurança que esse policial re(a)presenta e que produz 
efeitos sobre ele. 
Percebe-se assim que a constituição de sujeito não ocorre isoladamente. Ela implica 
uma relação, um regime de verdades que varia de acordo com a composição da realidade. 
Regimes que, por exemplo, faz da diferenciação entre travesti, cliente e pessoas que gritam a 
estes personagens algo que não mereça atenção especial ao olhar do profissional de 
segurança, enquanto a discussão entre morador de rua e o porteiro de um prédio o faz. 
O entendimento do sujeito enquanto produção remete, nesta pesquisa, à discussão de 
Guattari e Rolnik (2005) sobre a produção de subjetividade. Partindo da noção de produção 
50 
 
maquínica, os autores recusam a ideia do sujeito enquanto entidade individuada, prescrita pela 
sua identidade. Para Guattari (2005, p.42), a “subjetividade é manufaturada como o são a 
energia, a eletricidade ou o alumínio”. A proposta é que do mesmo jeito que se injeta 
moléculas no leite para transformá-lo em leite condensado, são necessários modelos culturais, 
leis, instituições educacionais, linguagem e outros mais para que algumas o sujeito ganhe 
matéria em um território existencial. 
O interesse pelos processos de subjetivação pode ser tratado pela busca dos autores 
em descentrar a subjetividade. A produção de subjetividade, assim, não é centrada nem em 
agentes individuais, mais próximos das instâncias intrapsíquicas, egóicas e microssociais, 
nem em agentes grupais. Ela se produz no entre, na ligação de modos de expressão que 
podem ser tanto de uma natureza infrapessoal (sistemas de percepção, sensibilidade, afeto, 
inibição, automatismos), quanto de natureza extra-pessoal (sistemas econômicos, sociais, 
tecnológicos, ecológicos). Como coloca Guattari (2005, p.41), “o que se poderia dizer usando 
a linguagem da informática, é que, evidentemente, um indivíduo sempre existe, mas apenas 
enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de 
subjetividade”. 
Ao mesmo passo em que nossos personagens vão se constituindo conforme as 
relações que estabelecem – morador de rua e descanso na fachada do prédio, morador de rua e 
porteiro, morador de rua e policial – pode ser colocado que a cada instante eles são 
“terminais” de passagem de diferentes produções de subjetividade. Noutro enfoque, o da 
relação da travesti com seu cliente, há um processo de subjetivação específico do 
oferecimento e consumo de serviços profissionais do sexo, que momentaneamente é abalado 
no momento em que outro carro passa e pessoas gritam. 
Nesta perspectiva, o campo da pesquisa, constituído pelo contexto da segurança 
pública carioca, será problematizado por meio de sua emergência em territórios existenciais. 
Os sujeitos, sejam eles trazidos enquanto policiais, ou outros grupos, não serão entidades que 
ora podem ser considerados isoladamente, ora podem ser considerados em relação. Eles serão, 
a todo instante, elementos de relações. Serão sujeitos cuja constituição só adquire forma em 
seus planos de emergência. Talentendimento é trazido pelo interesse da pesquisa em enfatizar 
a realidade enquanto produção. Assim, uma vez que não possui uma constituição natural, a 
mesma poderia dar vazão a transformações que impliquem novas formas de segurança 
pública, que inclua expressões da diversidade em que o fator da diferença não seja 
necessariamente produtora de risco e, por isso, passível de intervenção. O jogo entre o 
estranhamento e a perturbação causada pela presença de outrem e os regimes de verdade que 
51 
 
são convocados a situar esse outrem em exercícios regulamentados de poder é o plano pelo 
qual se orienta a discussão que segue. 
2.2.1 O outro no texto acadêmico e nas relações sociais: a questão das 
autoridades etnográficas 
A pesquisa procura se debruçar sobre como a figura de outrem regula as relações de 
poder nas práticas de segurança. Todavia, uma questão que se apresenta é como debater e 
conferir a presença do outro também no texto acadêmico. O trabalho procura trazer algumas 
reflexões acerca de como os diferentes períodos e posturas em que as ciências humanas 
transitaram interferiram e ainda interferem na postura do pesquisador social e na sua 
consequente produção de conhecimento sobre outrem. Tendo a alteridade como fio condutor, 
procura-se alguns apontamentos sobre a contribuição da antropologia e das modalidades de 
autoridades etnográficas que delas suscitaram. 
A autoridade etnográfica, segundo Clifford (2008), diz respeito às estratégias 
retóricas que o antropólogo utiliza enquanto autor do texto, bem como à maneira com a qual o 
texto ganha legitimidade e validade ao representar um contexto sociocultural específico. 
Trazendo as questões relacionadas às autoridades experiencial, interpretativa, dialógica e 
polifônica, Clifford, bem como as valiosas contribuições de Brandão (2003) e Caiafa (2007), 
destaca a preocupação sobre como o grupo estudado é representado na escrita. 
A alteridade situa-se no centro da produção antropológica. Como pode ser visto em 
Goldman (2006), essa disciplina constitui-se como palco privilegiado de se pensar a 
diferença. Este autor aponta que o cerne da questão do antropólogo, é a “disposição para viver 
uma experiência pessoal junto a um grupo humano com o fim de transformar essa experiência 
pessoal em tema de pesquisa que assume a forma de um texto etnográfico” (op.cit., p.167). 
Contudo, o que impulsiona esse pensamento abre margens para variados e distintos modos de 
produção de conhecimento. 
O fazer antropológico sempre esteve enredado em agenciamentos que estão além da 
experiência do trabalho de campo. O desenvolvimento da ciência etnográfica que se tornou 
uma atividade do antropólogo, academicamente treinado, durante a virada para o século XX, 
“não pode, em última análise, ser compreendida em separado de um debate político-
epistemológico da alteridade” (CLIFFORD, 2008, p.20). 
O fato do trabalho etnográfico poder ser enxergado como um todo coerente, 
alcançado pelo poder de observação do etnógrafo, abriu margem para que a teorização sobre 
esse conjunto fosse próxima da interpretação funcionalista, onde “certas instituições sociais, 
52 
 
eram recortadas no contexto de um presente que se reduzia ao período de sua presença no 
grupo” (CAIAFA, 2007, p.137). Assim, os grupos eram estudados de maneira generalista e a 
alteridade se construía sob a forma de representação de um universo coerente, composto por 
instituições que ocupavam o primeiro plano contra o pano de fundo cultural. A objetividade 
do pesquisador, garantida pelo rigor científico de que eram representantes, fazia com que a 
construção do “outro” fosse legitimada sem necessariamente haver um esclarecimento de seu 
processo. A base realista herdada de outras ciências, fez com que, por meio da empatia, se 
chegasse ao que seria a realidade de outrem, que era geralmente posto a exemplificar alguma 
teoria geral sociológica. 
De modo geral, a diferença do ‘outro’ convergiu para assegurar a sustentabilidade 
dos padrões que se buscavam ordenar na experiência do grupo estudado, representando o 
nativo a partir de uma essência, fechada sobre si mesmo. Este argumento nos ajuda a observar 
que, como a psicologia positivista, a antropologia por vezes insere-se no contexto em que há 
uma predominância do realismo empírico. A disciplina eventualmente opta por abordar a 
realidade como um todo objetivo, em que os dados observáveis constituem relações de causa 
e efeito. O homem, como parte da natureza, é concebido a partir de sua exterioridade, e da 
mesma maneira em que há leis atuantes no mundo natural (como a lei da gravidade), há de 
haver leis que regulam suas práticas cotidianas. Assim, criam-se dois mecanismos que 
acabam por hierarquizar a relação entre os povos ditos primitivos e os ocidentais 
economicamente desenvolvidos. Uma vez que a realidade e o homem são entidades naturais e 
objetivas, são subtraídas as possibilidades de relativização de suas ações. Por outro lado, 
sendo o comportamento do homem regulado por leis (em que as construções sociais e 
históricas são coadjuvantes), torna-se possível uma comparação entre culturas, baseada 
supostamente em graus distintos de evolução. O nativo e seu grupo são representados, 
portanto, a partir de um referencial proveniente de quem o estuda, “etnocentrismo”, 
acarretando na inferiorização de suas manifestações (CLIFFORD, 2008). 
Segundo a discussão proposta por Rapport e Overing (2000), a ideologia de 
exclusão, encontrada no confronto do pensamento ocidental que constrói o “outro” como 
exótico, está vinculada a um projeto de dominação, constituindo-se numa estratégia de 
desautorização do mesmo. Ganhando fôlego com a linguagem popular do evolucionismo, a 
inferiorização e exclusão do “outro” tornou-se uma constante no desenvolvimento do 
pensamento europeu, obtendo ressonâncias na produção científica – como veremos adiante 
com a eugenia e higienismo. 
53 
 
Dessa maneira, a negociação da diferença se processa de maneira diversificada em 
cada lugar e momento histórico, estabelecendo representações hegemônicas sobre temas 
diversos. Empreendimentos como o colonialista e o imperialista deixaram marcas profundas 
emergentes no processo histórico contemporâneo. Assim, ao longo da discussão que se segue, 
procura-se elucidar alguns desdobramentos dessa prática que possam contribuir para a maior 
flexibilização da produção da alteridade. Nas palavras de Goldman (2006, p.460-461), “no 
caso específico da democracia, uma teoria etnográfica ainda possui, creio, uma vantagem 
suplementar: ajudar a suspender os julgamentos de valor quase inevitáveis quando um tema 
tão central em nossas vidas é submetido à análise”. 
 A incitação de Goldman aponta que, uma vez dedicado à discussão da diferença, 
faz-se necessário apreendê-la sem suprimi-la, intencionando impulsionar o pensamento ao 
invés de explicar um objeto: 
O nativo não é mais simplesmente aquele que eu fui (como ocorre no 
evolucionismo) ou aquele que eu não sou (como ocorre no funcionalismo), ou 
mesmo aquele que eu poderia ser (como ocorre no culturalismo); ele é o que eu sou 
parcial e incompletamente (e vice-versa, é claro). (GOLDMAN, 2006, p.463) 
Ao comentar a obra de Foucault, Faé (2004) coloca que para uma proposição 
pertencer a uma disciplina, em um domínio específico, é necessário que ela responda a 
condições estritas e complexas: “precisa dirigir-se a um plano de objetos determinados e deve 
se inscrever num horizonte teórico singular” (FAÉ, 2004, p.411). Segundo Faé, o que está em 
jogo é a oposição entre, de um lado, a fecundidade de um autor e os comentários que 
possibilitam novos recursos para a criação de discursos e, de outro, os princípios de coerção, 
que na sua função de filiar as produções em um arcabouço coeso restringem o papel positivo 
do multiplicador. 
Desse modo, as críticas provenientes das autoridades etnográficas são pertinentestanto ao texto da pesquisa, como ao modo com que ela discute as relações sociais. 
Instrumentaliza, assim, a escrita e as maneiras com as quais o trabalho visa abordar a 
realidade, trazendo sob os olhos o cuidado aos processos que descolam o “outro” de seus 
contextos culturais, os homogeneizando e cristalizando em uma representação fechada. Nesse 
sentido, para atenuar e flexibilizar a relação com a diferença, são destacadas as contribuições 
das autoridades dialógicas e polifônicas, que conforme Brandão (2003), comprometem-se 
com as interlocuções, contextos e situações em que a pesquisa se desenvolve. 
O informante (ou co-autor) não fala como uma testemunha ocular neutra, que falaria 
sempre as mesmas coisas para qualquer pessoa – um vizinho, um parente ou o 
antropólogo. O informante fala dentro de situações intersubjetivas específicas. Nesta 
perspectiva não é possível fazer a separação entre o “factual e o alegórico” nas 
54 
 
produções antropológicas, pois o dado etnográfico somente faz sentido dentro da 
narrativa que é construída ao seu redor. (BRANDÃO, 2003, p.13-14) 
2.2.2 Entremeios da pesquisa: entrevistas e o refazer de direcionamentos 
Em meio ao debate das autoridades etnográficas, a pesquisa procura valer-se de 
entrevistas e diários de campo como estratégias pertinentes à cartografia da segurança pública. 
Nesse sentido, respondendo às proposições de análise da implicação do pesquisador na 
produção dos dados e também das dificuldades que a pesquisa qualitativa se depara, cabe, 
primeiramente, apontar o interesse destinado às entrevistas no processo da cartografia e, 
posteriormente, apresentar ao leitor um pouco da dinâmica do trabalho ao longo de sua 
realização, comentando seus redirecionamentos. 
No âmbito da metodologia cartográfica, busca-se com a realização de entrevistas e 
observação participante a habitação de territórios existenciais (Alvarez e Passos, 2009) e o 
agenciamento de discursos junto aos grupos que compõem as discussões. Baseada no 
acompanhamento de processos que ocorrem junto às relações (entre pessoas, coisas, estéticas, 
ritmos, temperaturas e outros), a metodologia da cartografia se interessa no próprio processo 
de produção de sentidos e inteligibilidades, ou seja, na maneira com a qual um universo 
psicossocial se constitui - “mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em 
relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos” (ROLNIK, 1989, p.15). 
A atitude do cartógrafo não se orienta no sentido de descobrir o que é um objeto e 
assim representá-lo, mas sim no sentido de descrever processos que estão em andamento. Não 
se tem o interesse de revelar o universo desses grupos, mas sim de construir paisagens por 
meio da comunicação compartilhada. A ideia é explorar a concepção de alteridade que temos 
desenvolvido junto à discussão de Deleuze (2007), buscando criar mundos que sejam 
possíveis, que se tornem visíveis por meio da diferença que as pessoas desses grupos podem 
imprimir. Uma postura que se aproxima do que Goldman descreve ao falar da experiência 
etnográfica pela perspectiva de Guimarães Rosa, uma “contaminação positiva e criativa que 
toda linguagem sofre quando busca traduzir, ou se aliar a outras linguagens – e que o escritor 
brasileiro João Guimarães Rosa chama de ‘fecundante corrupção das nossas formas 
idiomáticas de escrever’” (GOLDMAN, 2006, p.169). Não se busca criar discursos sobre os 
grupos, mas sim com os grupos. 
Nesse sentido, as entrevistas terão como objetivo a antropofagia dos sentidos 
expressos pelos entrevistados, em que “sinais dos estrangeiros” são devorados desencadeando 
diferentes direções na composição do texto, “um relevo formado por vozes reminiscentes das 
mais variadas origens, sintonias e estilos misturando-se e compondo-se” (ROLNIK, 1989, 
55 
 
p.16). Almeja-se, por meio dessa interlocução, ver se apreendemos alguns signos singulares, 
alguns fios soltos e rugosidades (KASTRUP, 2008) que possam dar passagens a novas e 
potentes produções de realidade. 
Nesse contexto, tendo visto os direcionamentos apontados pela cartografia quanto à 
utilização das entrevistas e das observações como estratégias de produção de dados, cabe 
refletir sobre as mudanças de estrutura que ocorreram na organização da presente pesquisa. 
 Partindo da experiência disparadora no trabalho com policiais em Belo Horizonte, a 
pesquisa, inicialmente, organizou-se no sentido de problematizar a temática da segurança 
pública carioca a partir da relação entre policiais militares, travestis e pessoas em situação de 
rua. Tal interesse é proveniente das orientações da Secretaria Nacional de Segurança Pública, 
a Senasp, no tocante à abordagem policial face grupos em situação de vulnerabilidade. Com 
treinamentos e concepções provenientes de experiências de integração das normas de Direitos 
Humanos e princípios humanitários à atuação policial, como a realizada pelo CICV, a partir 
de 1998, este tipo de abordagem ganhou mais atenção do Pronasci, sendo lançada ao final de 
2010 a cartilha com título “Atuação Policial na Proteção dos Direitos Humanos de Pessoas em 
Situação de Vulnerabilidade”, que tem a seguinte finalidade: 
 
Fornecer elementos teórico-práticos para que profissionais de Segurança Pública 
possam pautar o exercício de sua atividade no respeito aos direitos e liberdades 
individuais, conscientizando-se de sua capacidade de promover e proteger os 
Direitos Humanos de mulheres, crianças, idosos, lésbicas, gays, bissexuais, 
travestis, transexuais, vítimas da criminalidade e abuso do poder, moradores de rua, 
vítimas do preconceito de raça ou cor e pessoas com deficiência. (BRASIL, 2010a, 
p.13) 
 
Nesse momento inicial, chamava atenção da pesquisa, por um lado, a demanda em se 
produzir conhecimento em torno da atuação do policial militar junto aos grupos em situação 
de vulnerabilidade e, por outro, a própria colocação desses grupos enquanto vulneráveis. O 
processo diz sobre a necessidade de elementos teórico-práticos para pautar a atuação dos 
profissionais de segurança no respeito aos direitos e liberdades, ao mesmo passo que trata de 
“grupos de pessoas que se encontram com maior vulnerabilidade a violações de Direitos 
Humanos” (BRASIL, 2010a, p.13). Então, foram produzidas perguntas norteadoras das 
discussões, como: o que faz promover elementos que pautem a atividade policial que respeite 
os direitos e liberdades individuais? O que isso pode dizer sobre a atividade do policial 
militar? Quais processos históricos fizeram com que esses grupos se encontrem com maior 
vulnerabilidade a violações de Direitos Humanos? 
A relação entre esses personagens ganhou destaque em função das redes analíticas 
que permitem estabelecer com a inclusão ou não da diversidade nos territórios habitados pela 
56 
 
segurança pública. Observou-se a fecundidade de discutir estas relações em função de 
fazerem ver e falar tanto as emergências históricas em relação às práticas de segurança no Rio 
de Janeiro, como as urgências com que o campo se defronta nos dias atuais. Dentre os grupos 
vulneráveis abarcados pela cartilha encontram-se mulheres, crianças, adolescentes, idosos, 
pessoa com deficiência, lésbicas, gays, travestis, transexuais e pessoas em situação de rua, 
além dos grupos relacionados à discriminação de raça ou cor. Assim, optou-se por escolher os 
personagens que possuem a rua como um de seus principais planos de constituição, sendo o 
grupo das travestis delimitados pelas que são profissionais do sexo. Tal elo integrativo, a rua, 
ganhou força na medida em que realça o espaço ao qual a pesquisa se dedica, que é o espaço 
público e dos encontros. Como diz João do Rio (1952, p.2) 
A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa 
do seu calçamento. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a 
mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladoradas obras humanas. A rua criou 
todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos rifões, 
dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o 
consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam, lhe 
resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de 
sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, 
treme com a febre dos delírios. 
Nesse sentido, a pesquisa recorreu a um mapeamento de instituições e contatos que 
permitissem a realização de entrevistas com esses três grupos: policiais militares, travestis e 
pessoas em situação de rua. 
 Para as entrevistas com policiais militares foram contatados um coronel reformado, 
ex-comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) e três capitães que participaram 
da elaboração da cartilha referente à abordagem do policial militar juntos aos denominados 
grupos em situação de vulnerabilidade. A partir desses contatos foi estabelecida uma 
continuidade em “bola de neve”, na qual o entrevistado é solicitado a indicar outras pessoas a 
participarem da pesquisa. No caso dos policiais militares, vale destacar que após o 
doutoramento sanduíche, realizou-se entrevista com outro coronel da PMERJ, Robson 
Rodrigues, que acabou por originar, em articulação da pesquisa junto ao network estabelecido 
no Reino Unido, um intercâmbio internacional em que um grupo de oficiais da PMERJ 
realizaram visitas às polícias e universidades escocesas e norte irlandesas. 
No tocante às pessoas em situação de rua, foram realizadas entrevistas individuais, 
com pessoas que usufruem do Hotel de Acolhida Santana (que recebe adultos em situação de 
risco para pernoite) e do Centro de Referência Especializado em Atendimento à Pessoal de 
Rua (CREAS POP), situado na Rua do Líbano, ambos na região central. Também foram 
realizadas entrevistas com profissionais do Programa de Saúde da Família (PSF) Oswaldo 
57 
 
Cruz, que possui um programa destinado à pessoa em situação de rua, denominado de 
Consultório de Rua. Outro grupo visitado é o que compõe o Fórum sobre População de Rua, 
que se reúne mensalmente no CREAS, situado na Rua México. Além destes locais, também 
foram efetuadas duas observações, em 30/09/2011 e 05/10/2011, junto à equipe da prefeitura 
que realiza abordagem à população de rua, dentro do contexto do Programa Municipal de 
Internação Compulsória, das quais participaram psicólogos, assistentes sociais e agentes 
comunitários da Prefeitura do Rio, bem como policiais militares. Nestas ocasiões, duas 
entrevistas coletivas foram feitas com pessoas em situação de rua, cada uma em dia, ambas 
em frente à Delegacia, no momento em que os mesmos ficam aguardando, na van, até sua 
entrada para identificação
6
. Por fim, quanto às travestis, os contatos estabelecidos ocorreram 
através do PSF da Lapa e de profissionais que atuam no Centro de Educação Sexual 
(CEDUS). Todavia, foi encontrada dificuldade na realização das entrevistas com esse grupo, 
sendo efetuada uma entrevista coletiva, de cerca de uma hora, com cinco travestis em um bar 
na região da carioca, centro do Rio
7
. 
Todavia, o planejamento inicial da pesquisa, voltado para a problematização da 
relação entre esses três atores, acabou por se transformar. Conforme comenta Kastrup (2007, 
p.18) a respeito da metodologia cartográfica: “em realidade, entra-se em campo sem conhecer 
o alvo a ser perseguido, ele surgirá de modo mais ou menos imprevisível, sem que saibamos 
bem de onde. Para o cartógrafo o importante é a localização de pistas, de signos de 
processualidade”. Assim, junto às dificuldades em se acessar esses grupos, principalmente o 
das travestis, ocorreu o progressivo deslocamento da atenção para se discutir a diversidade em 
segurança em âmbito mais geral, no sentido em que os grupos citados e sua condição 
enquanto vulneráveis passassem a figurar como analisadores tangenciais e não em dispositivo 
central. A pesquisa iniciou um novo movimento, no qual houve a quebra temporal que o 
doutoramento sanduíche trouxe às entrevistas, bem como a atenção que o mesmo 
proporcionou às experiências escocesas e, sobretudo, norte irlandesa. As questões do 
policiamento e dos paradigmas de segurança ganharam mais evidência e grande parte do 
esforço acadêmico direcionou-se para a articulação e realização do intercâmbio da PMERJ no 
Reino Unido, no primeiro semestre de 2013. 
 
6
 Após a população de rua ser recolhida pelos agentes da prefeitura, as pessoas são levadas à delegacia mais 
próxima, para averiguar se possuem pendências judiciais, até serem, então, encaminhadas às casas de acolhida. 
7
 Para a visualização das entrevistas e observações de campo encontra-se uma tabela informativa em anexo 
(ANEXO II), ao fim do trabalho. 
58 
 
 Dessa maneira, manteve-se a alteridade enquanto analisador central e fio condutor 
da discussão, elencando-se, em cada capítulo, temáticas que permitissem a visualização de seu 
processo. Nesse contexto, as entrevistas e as observações realizadas, acrescentando-se as 
efetuadas no período fora do Brasil, foram utilizadas e referenciadas como disparadores de 
tópicos específicos, que visam trazer a vivacidade do campo às reflexões estabelecidas. 
Debruçando-se sobre a utilização das entrevistas na pesquisa cartográfica, Tedesco, 
Sade e Caliman (2013, p.300), reforçam que um dos principais norteadores da atividade é o 
entendimento de que “os processos e suas transformações consistem em forças cuja condição 
de possibilidade e efeitos surgem do plano coletivo”, indicando “ser a experiência, presente 
nesse plano de coengendramento entre pesquisador e campo problemático, o principal 
objetivo da entrevista”. Os autores ainda destacam que “a entrevista na cartografia não visa 
exclusivamente a informação, isto é, o conteúdo do dito, e sim o acesso à experiência em suas 
duas dimensões, de forma e de forças, de modo que a fala seja acompanhada como 
emergência na/da experiência e não como representação” (op. cit., p.303). 
2.4 DISPOSITIVOS DE CARTOGRAFIAS: ACOMPANHAR PROCESSOS POR 
DIFERENTES ENTRADAS NO CAMPO PROBLEMÁTICO 
É necessário distinguir, em todo dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), 
e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual. A história é o 
arquivo, é a configuração do que somos e deixamos de ser, enquanto o atual é o 
esboço daquilo em que vamos nos tornando. 
Devemos separar em todo dispositivo as linhas do passado recente e as linhas do 
futuro próximo (...) Se Foucault é um grande filósofo é porque se serviu da história 
em proveito de outra coisa: como Nietzsche dizia, “agir contra o tempo, e assim, 
sobre o tempo, em favor de um tempo futuro”. (DELEUZE, 1990, p.160) 
Após dispor textualmente as ferramentas teóricas e metodológicas, a pesquisa traz a 
questão de como colocar o fio condutor de discussão em um conjunto coerente. O intento, 
portanto, é o de trazer à tona as maneiras com que se busca conferir coesão aos capítulos, o 
que se realizará a partir da questão norteadora do trabalho: como o exercício e a promoção da 
cidadania em segurança pública relaciona-se com a acolhida ou não da diversidade pelos 
espaços e práticas sociais? 
Conforme visto anteriormente, a cartografia tem como objetivo o mergulho nas 
intensidades dos contextos, para que, com as linguagens que o cartógrafo encontrar, formar 
cartografias que se fazem potentes para a discussão da sociedade. Uma vez que difere da 
análise totalizante da realidade, cartografar implica acompanhar processos. No caso dessa 
pesquisa, processos que envolvem o acirramento de elementos comuns ao social e que 
suprimem a diferença em termos de comparação e hierarquização, ou processos que, por sua 
59 
 
vez, ampliam as possibilidades de expressão e dão margem ao pluralismo intergrupal.Assim, 
para fazer emergir as estratégias utilizadas para cartografar tais processos, retoma-se o 
conceito de dispositivo: 
 (...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, 
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, 
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o 
dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode 
estabelecer entre estes elementos. (FOUCAULT, 2008, p. 244) 
O dispositivo é, conforme pensado por Foucault e desenvolvido por Deleuze (1990, 
p. 155), “uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear”, uma composição de 
linhas de diferentes naturezas que “não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua 
própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam 
processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma 
das outras”. 
Ao utilizar essa conceituação a pesquisa faz referência a um “trabalho de terreno”, 
em que se buscam as curvas de visibilidade e enunciação: “o certo é que os dispositivos são 
como as máquinas de Raymond Roussel, máquinas de fazer ver e de fazer falar, tal como são 
analisadas por Foucault” (DELEUZE, 1990, p.155). Foucault utilizou-se, por exemplo, do 
dispositivo da prisão para poder lançar luz aos regimes da sociedade operada pela vigilância e 
punição. Como diz o autor, o dispositivo constitui “um tipo de formação que, em determinado 
momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência” (FOUCAULT, 
2008, p.244). 
A pesquisa procura, então, trazer em seus capítulos algumas das formações sociais 
que, em localizações históricas específicas, procuraram responder às urgências da época no 
tocante à segurança pública. Tais são os casos do capoeira e do menor, no século XIX e início 
do XX, trazidos no próximo capítulo. Ambos figuraram como personagens de destaque, aos 
quais os saberes da época destinaram atenção e formaram redes discursivas. Por meio das 
trajetórias em que estiveram presentes, o capoeira e o menor possibilitaram o acompanhar de 
processos ligados, por exemplo, à questão da circulação de negros em vias públicas, então 
vista como produtora de riscos e perigos, e à questão da gestão do Estado junto a crianças em 
situações familiares tidas como “irregulares”, em função do Código do Menor de 1927. A 
emergência desses personagens permite a análise tanto da anátomo-política destinada aos 
“corpos estranhos” circulantes nas ruas, como da biopolítica direcionada à população 
brasileira e em especial à carioca da época (FOUCAULT, 2005). 
60 
 
Busca-se, a partir dos dispositivos da pesquisa, a discussão não só das políticas 
implementadas no tocante às diferenças entre grupos e sujeitos, como também os critérios que 
a sustentaram. Como diz Foucault (2008, p.152), “o interessante não é ver que projeto está na 
base de tudo isto, mas em termos de estratégia, como as peças foram dispostas”. 
O mesmo se aplica aos dispositivos dos capítulos seguintes, que versam sobre os 
paradigmas de segurança pública no Brasil, do período do golpe militar aos dias atuais, e 
sobre as reformas ocorridas nas polícias escocesas e norte irlandesa. No tocante ao caso 
brasileiro, intenta-se observar as raízes do imobilismo político do campo da segurança, tal 
qual comentado por Soares (2013) e discutida por outros autores (MISSE, 1997; FREIRE, 
2009; entre outros). Os obstáculos trazidos pelos autores perpassam, necessariamente, as 
formas de inclusão e exclusão da diferença, tal qual também ocorre, por exemplo, na Irlanda 
do Norte, em que o equacionamento balanceado entre protestantes e católicos - unionistas 
(favoráveis à integração ao Reino Unido) e republicanos (favoráveis à independência) – 
constitui-se como peça chave para a promoção de ideais e práticas ligadas à isonomia de 
direitos e respeito à diversidade. 
A coesão do trabalho manifesta-se, portanto, pelo olhar atento à produção da 
alteridade; pelo acompanhamento dos processos que dizem sobre os critérios utilizados em 
cada localização histórica para diferenciar as pessoas; pela observância dos mecanismos que 
promovem a segregação e exclusão e dos que promovem o acolhimento e a tolerância. 
Acompanhamento de processos que, em todos os dispositivos utilizados, se valerá das 
linguagens circulantes em seu período, como as das figuras utilizadas, e das texturas que dão 
cores à realidade e são perceptíveis à arte da flanação. E o que significa flanar? João do Rio 
(1952, p.3) nos responde: “Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o 
vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, 
meter-se nas rodas da população, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os 
garotos o lutador do Cassino”. O autor, posteriormente, ainda finaliza: “Flanar é a distinção de 
perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur 
ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente 
adiadas” (id, ibid.). Nessa antropofagia cartográfica, os discursos devorados serão os de todas 
as qualidades, os inúteis, artísticos e jurídicos, tudo aquilo que pode ser imprescindível, 
mesmo que em sua condição eternamente adiável. 
 
61 
 
3. O VIÇO NA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE E OS EFEITOS DAS 
DIFERENCIAÇÕES EM RESPOSTA À INSEGURANÇA: O CAPOEIRA E O 
MENOR COMO DISPOSITIVOS DE ANÁLISE 
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem o poder (...). A 
verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele 
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, 
sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz 
funcionar como verdadeiro; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir 
os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as 
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o 
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. 
(FOUCAULT, 2008, p.12) 
 
Ao nos atentarmos aos coletivos humanos, aos modos de vida, às diferenciações 
entre sujeitos e seus efeitos correlatos, nos deparamos com regimes de verdade específicos, 
que convergem e/ou tensionam-se entre si. Regimes de verdade que dizem sobre o discurso 
que possui legitimidade, sobre as fontes sociais que sustentam debates e práticas, e aquelas 
tratadas com indiferença ou oposição. Tem-se uma economia política geral de verdades que 
diz sobre as instâncias e mecanismos que permitem distinguir enunciados verdadeiros 
daqueles compreendidos como falsos. 
Entender que os grupos sociais investem em regimes específicos de verdade, que não 
necessariamente são compartilhados-investidos por outros grupos, é entender que se há algo 
considerado natural, trata-se não de uma natureza universal, mas de uma natureza produtiva. 
O que vivemos, o que sentimos e o que fazemos se produz nesses regimes, se produz nas e 
pelas lógicas que operam nesses regimes. Afinal, considerar que não há uma realidade 
universal, mas sim realidades produzidas por regimes de verdade específicos não implica 
dizer que a realidade não possui efeitos e que esses efeitos não sejam materiais e sensíveis. 
Como diz Foucault na passagem acima, “a verdade não existe fora do poder ou sem o poder 
(...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz 
efeitos regulamentados de poder”. Não há verdade e efeitos de poder senão aqueles que se 
manifestam no cotidiano, nos modos de ser e estar no mundo, nas mais variadas formas de 
gestão da vida. 
E como pensar a segurança nesta perspectiva? Como pensar as localizações 
históricas em que certos elementos adquirem mais visibilidadeem detrimento de outros? 
Pensar a segurança pública nesta perspectiva é pensar que a sociedade investe, a um 
só passo, tanto numa determinada lógica de classificação e diferenciação dos sujeitos e suas 
práticas, como em formas específicas de responder a essas classificações e diferenciações, o 
62 
 
que por vezes entra num ciclo em que a elas se retroalimentam. Colocando em outras 
palavras, em torno do que se chama segurança pública são convocados enunciados científicos, 
proposições filosóficas e morais, organizações arquitetônicas, entre outros, que dão 
visibilidade às categorias de seguro, inseguro, crime, criminoso, risco e prevenção. Uma vez 
que há algo estranho a nos rodear, todas essas instituições são trazidas para capturar a 
estranheza e colocá-la dentro de uma inteligibilidade. Estando em categorias, estando dentro 
de um plano registro em que o estranho é classificado, por exemplo, como irregular, perigoso, 
anormal, surge uma necessidade, uma urgência de responder a essas classificações. Cria-se 
um aparato social que responde às dificuldades de se viver em conjunto com a diferença, 
delimitando quais medidas serão tomadas para confrontar ou eliminar seu perigo. Ocorre uma 
leitura social que esquadrinha o território de sentidos formado. Assim, tal sistema lógico de 
verdades coloca-se como instituído, legitimando e reforçando as visibilidades de sua 
categoria. O poder, a que se refere Foucault (2008), ou o império nomadizado como o 
problematiza Pelbart (2003), encontra-se no centro desse processo, “vampirizando” os 
arranjos de visibilidade que irão ganhar força, excluindo simbólica e/ou materialmente 
aqueles que levam para outros territórios. Se há várias possibilidades de estar no mundo com 
a diferença, o poder trata justamente de classificar e regular essas possibilidades, fazendo com 
que uma ganhe viço em detrimento de outras; visando a continuidade de tais sistemas lógicos 
por meio de uma gestão positiva da vida. 
Assim, o capítulo visa cartografar as redes de sentido atuantes no campo da 
segurança pública carioca, lançando luz a como certas formas de vida ganham viço nos 
grupos sociais, têm suas diferenças capturadas e delimitadas segunda a leitura social, que, por 
sua vez, retroalimenta essa leitura pela sensação de insegurança. O intento é refletir sobre o 
contexto sociopolítico que de alguma forma vem acirrando elementos que estão presentes na 
sociedade como um todo e que faz com que as práticas de proteção e produção da segurança 
sejam pautadas pelo medo, risco e pela segregação e exclusão de grupos e práticas 
específicas. Utilizando-se da figura do capoeira e do menor como dispositivo para fazer ver e 
falar as produções sociais, a busca é pelos modos como a sociedade tem informado o espaço 
público e o campo da segurança, bem como tem ocorrido as ressonâncias dos processos do 
modernismo em solo brasileiro; quais têm sido os olhares sobre o que é sentir-se seguro; 
como o risco tem sido identificado e sobrecodificado nos discursos circulantes e quais os 
efeitos na relação com a diferença que esses processos produzem. É explorar, nesse sentido, a 
reflexão de Guattari (1995) sobre a perda de aspereza da alteridade, uma vez que modos de 
63 
 
vida humanos individuais e coletivos por muitas vezes têm evoluído no sentido de uma 
progressiva deterioração da subjetividade. 
3.1 A QUESTÃO DO VIÇO 
A segurança pública está entre as maiores preocupações da sociedade brasileira nos 
dias atuais. Disputa com a saúde e a educação a prioridade na atenção de autoridades 
e imprensa. Não há plataforma de governo que não contemple ações no âmbito da 
segurança, seja na prevenção, seja no enfrentamento da violência. O noticiário, por 
sua vez, acompanha diariamente tudo o que diz respeito a essa questão. Trata-se de 
um desafio de todos. (...) E o ponto de partida dessa mobilização é a percepção da 
real dimensão do problema. É preciso reunir dados, confrontá-los, analisá-los, 
interpretá-los e apresentá-los à sociedade para que, de posse deles, ela possa agir 
com mais confiança. Somente com o triste fenômeno da violência devidamente 
dimensionado, pode-se realmente enfrentá-lo. (WAISELFISZ, 2012, p.5) 
 
A fala de abertura do Mapa da Violência de 2012 aponta questões pertinentes a essa 
pesquisa. O tema da segurança pública é sem dúvida um dos pontos de maior interesse de 
autoridades, imprensa e público em geral no Brasil. Das conversas de botequim aos debates 
eleitorais, passando pelas capas de jornais, encontramos a segurança e os seus temas 
correlatos ocupando lugar de destaque. Ela tem sido objeto relevante nas discussões e 
formações de opiniões, sempre aglutinando em torno de si uma vasta rede discursiva, capaz 
de mobilizar diferentes grupos. 
Todavia, o segundo ponto ressaltado pela passagem do estudo refere-se ao que pauta 
o debate da segurança e aos instrumentais empregados em seu dimensionamento. Por mais 
que a própria Constituição brasileira corrobore a ideia de que a segurança pública é um 
desafio de todos, tem sido difícil creditar às autoridades e à imprensa a utilização de fontes 
qualificadas para informar o tema. Reunir dados, confrontá-los, analisá-los, interpretá-los e 
apresentá-los à sociedade para uma ação mais qualificada tem sido, ao contrário, um exercício 
muitas vezes sustentado pelo clamor da opinião pública, face algum crime de violência 
intensa e grande exposição midiática, como a discussão da redução da idade penal após 
homicídio ou estupro praticado por um adolescente. Como aponta Luiz Eduardo Soares 
(2013), profundas transformações têm ocorrido em diferentes esferas da experiência coletiva 
brasileira, permanecendo inerte e impotente, porém, problemas históricos ligados à questão da 
insegurança pública. As altas taxas de homicídio, o intenso crescimento da população 
carcerária e a falta de planejamento para utilização dos recursos federais mostram os efeitos 
desse processo. 
Nesse sentido, cabe refletir sobre como um tema que fomenta tantos debates, que 
penetra tantas discussões e orienta políticas públicas pode estar sendo associado à impotência 
e inércia se comparado a outras esferas da experiência coletiva. Não se quer, com isso, 
64 
 
legitimar ou deslegitimar que outras áreas, como saúde e educação, andam a passos largos no 
sentido de resoluções e eliminações de problemas. Não se acredita nessa pesquisa em tal 
empreitada objetivamente finita, uma vez que lidamos com produções do real que são 
dinâmicas e, como tal, perecíveis às novidades e aos novos contextos que se apresentam a 
cada instante. O que se concentra aqui é a leitura dos movimentos que obstaculizam as 
transformações na área de segurança, apostando-se que o lançar luz aos capoeiras e à 
categoria de menor forneçam cartografia dos processos históricos que encontram ressonância 
nos dias atuais. Processos que dizem sobre uma cultura do ‘jeitinho’, dos favores, ou como 
diz Michel Misse (1997), de mercadorias políticas que marcam uma banalização sobre 
“ligações perigosas” entre práticas ilícitas e a incongruência do discurso social, produzindo 
uma construção moral ambivalente que contribui para a complexidade do quadro atual. 
A história aqui não deve ser entendida como uma reconstrução de algo obsoleto e 
definido, restrito ao passado. Seguindo a proposta de Baremblitt (2002), a tarefa histórica é a 
das localizações, encontros com aquilo que de alguma forma já teve início em um passado. 
Não uma história única, que seja verdade inquestionável e que totalize todo o devir da vida 
social em um único espaço e tempo. Mas, sim, histórias, econômicas, culturais, ideológicas, 
do desejo, do afeto - sendo que cada uma delas ocorre num tempo próprio que não se pode 
uniformizar. Trata-se de tentativas de experimentação dos diferentes tempos e processos 
históricos. “Não é o passado que gera o presente, e sim o presente que explora, que aproveitaou atualiza as potencialidades do passado para construir um porvir” (BAREMBLITT, 2002, 
p.43). 
No tocante à segurança pública observamos que o medo tem sido um grande 
aglutinador das atualizações dos processos históricos. Ao passo que se observa, segundo 
Waiselfisz (2013), um estancamento da espiral de violência que vinha se manifestando no 
Brasil, com a estagnação da taxa de homicídio nos últimos 13 anos em torno de 26 por 100 
mil habitantes, ocorre a evidenciação do medo no país. Em pesquisa realizada pelo Instituto 
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2010, em todas as regiões brasileiras, 
constatou-se que 79% da população brasileira têm muito medo de ser assassinada; 18,8%, 
pouco medo; e somente 10,2% manifestaram nenhum medo. Na mesma pesquisa, 
questionados sobre a confiança que possuem na polícia civil e militar, 4,2% declararam 
confiar muito, 27,4% confiam, 42,8% confiam pouco e 25,6% não confiam. Dados esses que, 
além de demonstrarem baixa confiança da população em relação aos profissionais de 
segurança, segundo análise dos autores do Mapa da Violência 2012, refletem o caráter difuso 
da violência: “se a velha violência tinha atores claros, com nome, sobrenome e até endereço, 
65 
 
tanto das vítimas quanto dos algozes, nossa violência atual adquire um caráter totalmente 
difuso, nebuloso, tem a virtude da onipresença e da ubiquidade, embora não possa ser muito 
bem identificada” (WAISELFISZ, 2013, p.8). 
Para além do expressivo resultado de que um em cada dez cidadãos não tem temor de 
ser assassinado e oito em cada dez têm muito medo, destaca-se a própria colocação da 
pergunta em pesquisa. De fato, o Ipea não se interessou em pesquisar apenas o assassinato 
como também outras formas de violência, o que foi expresso pelas seguintes questões por ele 
utilizadas: você tem medo de ser assassinado, assaltado à mão armada, ter sua casa arrombada 
e ser vítima de agressão física? Muito medo, pouco medo ou não tem medo? 
 A pesquisa reflete os questionamentos 
constantemente difundidos na mídia e nas 
conversas mais variadas, o medo ao assalto, ao 
roubo, à arma; o medo de, por não ter medo, 
colocar-se em risco. São demais os perigos desta 
vida?! 
 
Figura 8: Não alimente seus medos 
Ressalta-se que responder ao medo não é exclusividade dos respondentes da pesquisa 
do Ipea, mas prática constantemente observada em todos os locais, com uso das mais variadas 
linguagens. Por isso todo um aparato social que diz sobre a ordem da vida comum e o 
controle da violência tende a ganhar viço quando faz eliminar ou atenuar a sensação do medo. 
Guattari (1995, p.20), em comentário sobre os modelos de pensamento que influenciam uma 
sociedade, aponta que: “assim como em outras épocas o teatro grego, o amor cortês ou o 
romance de cavalaria se impuseram como modelos ou, antes, como módulos de subjetivação, 
hoje o freudismo continua a obcecar nossas maneiras de sustentar a existência da sexualidade, 
da infância, da neurose”. Portanto, trazendo a reflexão à temática da segurança, cabe 
perguntar quais módulos de subjetivação podem ser localizados historicamente e que 
continuam a obcecar nossas maneiras de gerir a vida, sustentando a existência da reclusão de 
liberdade, retirada de poder familiar e intervenção discricionária do Estado. 
3.2 A DIFERENÇA DOS CORPOS NEGROS NAS RUAS DA CAPITAL 
COLONIAL: O DISPOSITIVO DO CAPOEIRA 
Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não 
dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso 
cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa 
casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E 
já não podemos dizer nada. (Eduardo Alves da Costa, no poema No caminho com 
Maiakóvski) 
http://pensador.uol.com.br/autor/eduardo_alves_da_costa_no_poema_no_caminho_com_maiakovski/
http://pensador.uol.com.br/autor/eduardo_alves_da_costa_no_poema_no_caminho_com_maiakovski/
66 
 
O modo de relacionar-se com a diferença sempre produziu forte impacto no Brasil. 
Como observado em pesquisa do mestrado (MELICIO, 2009), há uma específica 
configuração em terras cariocas, que passou por intensas transformações desde a chegada da 
família real em 1808. O aspecto de uma urbanização carioca de contrastes, lenta e ainda 
embrionária na passagem do século XIX ao XX, e explosiva e acelerada entre as décadas de 
1950 e 70, acarretam em realidades de profundas diferenças nos dias atuais, integrando favela, 
o ‘asfalto’ e o subúrbio, enquanto que no século XIX integrava traços da sociedade colonial e 
as inovações da progressiva utilização do espaço público. 
Ao nos aventurarmos pelo Rio dos Oitocentos poderemos ver uma localidade que 
apresenta uma crescente diversidade de modos de ser, que confrontava um regime 
escravocrata e rural, com o de desenvolvimento de trocas tipicamente urbanas e concepções 
europeias de ordenamento público que desembarcaram junto à corte. Há dois séculos, o Rio 
de Janeiro vivia uma ordem transitória que contemplava ao mesmo tempo sociedades 
hierárquicas tradicionais, pensadas por Freyre (1978) pela relação casa grande e senzala, e um 
número crescente de redes de trocas laborais caracteristicamente urbanas. E é nesse contexto 
que começamos a observar tanto as classificações de seguro e inseguro que informam a 
experiência coletiva, como o surgimento das práticas policialescas em resposta a essas 
classificações. Habitar o território da segurança de então é habitar um território em que se vê 
o crescimento da população escrava e a presença de um contingente urbanizado pobre e livre, 
que subsiste sem formas assalariadas, circulando no espaço a ser entendido como público. 
O aumento da circulação dos escravos, com destaque ao escravo de ganho
8
, acarreta 
na criação e exploração de novos espaços da cidade. A transição de atividades 
caracteristicamente rurais para atividades urbanas acontecem juntas ao desenvolvimento do 
espaço público carioca, visualizado pelas vias de trânsito da jovem urbe brasileira. As ruas, 
vielas, praças e becos são cada vez mais habitados e essa habitação é feita por negros livres e 
escravos, bem como por outros grupos provenientes das imigrações europeias, que 
enfrentavam condições semelhantes de segregação. Durante o século XIX, “há sinais de 
interpenetração de escravos de ganho, libertos e imigrantes disputando as mesmas brechas de 
subsistência na cidade, notadamente aquelas inscritas no circuito mercantil, como o transporte 
de cargas e o comércio de rua” (LESSA, 2000, p.159). 
 
8
 Carlos Lessa (2000) informa que o típico escravo urbano era o doméstico do homem rico ou de mediana posse, 
ou o transportador de cargas para o comércio, com destaque à figura do escravo de ganho - atuante na venda de 
serviços e produtos, dos quais tem que dar parte ao senhor. 
 
67 
 
As atividades de controle e vigilância, antes exercidas pelo capitão-do-mato, 
guardas, capangas e antigas milícias do período colonial são substituídas por um aparato mais 
profissional. Instituição bicentenária, a polícia militar carioca tem sua origem ligada à 
chegada do corte portuguesa. Em 1808 desembarca em São Sebastião do Rio de Janeiro a 
Intendência Geral de Polícia de Lisboa, que resulta, ainda neste ano, na criação da 
Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado. Todavia, o desembarque não é apenas o de 
uma corporação que se converteria na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, é também 
o desembarque de uma organização institucional, que como tal irá se articular e interpenetrar 
outras instituições (BAREMBLITT, 2002). 
A chegada da Intendência Geral acaba por aglutinar em suas práticas muito dos 
saberes que informam a sociedade da época. A economia e a política essencialmente 
escravocrata e uma racionalidade colonizadora são os principaissubstratos para 
fundamentação da ação policial. Com organização militar, a polícia vai constituindo-se em 
um lugar fronteiriço, entre os grupos de elite e não-elite, sendo produzida e sustentada pelos 
primeiros e exercendo vigilância e controle sobre os segundos (BICALHO, 2005). 
As articulações e recortes institucionais em questão inserem-se num contexto em que 
os espaços da cidade do Rio de Janeiro são cada vez mais tomados pela “negregada” 
(SOARES, 1994). O perigo de se ter tal população de negras corpulências em sua vias 
públicas é constantemente lembrado pela realeza, bem como pelos artistas viajantes e oficiais 
estrangeiros. A competência do império português e das regências de D. Pedro I e II é 
colocada à prova em função das providências que tomavam em relação à insegurança pelas 
produzidas. Como diz o relato de um representante da República Francesa, em 1887, durante 
todo o século XIX há no Rio grupos de negros, capoeiras ou não, que fazem grande número 
de vítimas; “atacam transeuntes inofensivos que não estão sendo perseguidos por nenhuma 
inimizade [...] o certo é que já existiam em 1812, como o prova uma ordenação do rei D. João 
VI. A fraqueza do governo brasileiro diante dessa horda de bandidos é objeto constante de 
espanto. Essa fraqueza não tem desculpa”
9
. 
Na mesma direção, Enders (2002, p.203) comenta: 
Um dos flagelos do Rio de Janeiro do século XIX é a capoeira. Hoje em dia, trata-se 
de uma arte marcial pacífica, um esporte nacional que faz adeptos além das 
fronteiras do Brasil. Entre o fim do século XVIII e o do século seguinte, contudo, a 
simples menção da palavra capoeira suscita o medo de grande parte dos cariocas. 
Sob o Império, o termo capoeira designa principalmente os que a praticam (hoje 
mais comumente chamado capoeiristas). Estes últimos usam uma técnica de 
 
9
 Extraído de ENDERS, 2002, p.204 
68 
 
combate extremamente perigosa, baseada em ágeis movimentos de pernas e terríveis 
pontapés, aos quais muitas vezes vinham acrescentar-se a faca e o punhal. 
A cidade do Rio de Janeiro observa mudanças relacionadas às formas de controle. De 
maneira sucinta, é possível observar uma sobreposição de produções da realidade, que 
passaram por sucessivas transformações do final do século XVIII ao final do século XIX. Na 
passagem para os oitocentos, via-se uma localidade ainda eminentemente rural, em que a 
vigilância e o controle dos corpos eram centralizados em torno dos senhores de engenho e 
seus empregados. Os poderes decisórios, bem como a maioria das atividades econômicas, 
eram mais circunscritos às propriedades particulares. Com a chegada da família real e sua 
corte, o Rio torna-se a capital não apenas do Brasil como, por um período, do próprio império 
português, acarretando intensas mudanças na organização social. O processo de urbanização 
dá os seus primeiros passos, as vias públicas ganham destaque, bem como as novas formas de 
troca e comércio, ao mesmo em que ocorre a maior circulação de negros libertos, forros e 
escravos, que agora se dedicam com maior assiduidade ao trabalho fora das grandes 
propriedades (MELICIO, 2009). 
Ao desbravar e ocupar os contornos do Rio de Janeiro, a população escrava e de 
outros grupos pobres iniciam também a expansão das vidas lúdica e cultural. É quando 
aparece o que será conhecido como a Pequena África no Rio de Janeiro, compostos por 
remanescentes quilombolas, que se dedicaram, em outros, à música e à religião de matrizes 
africanas (MOURA, 1995). As manifestações expressas pelos cativos e forros possuem forte 
comunicação entre si, agregando, assim, os diferentes grupos que viviam à margem da elite. 
Práticas religiosas relacionadas à feitiçaria, o batuque de ritmo sincopado e o andar esguio 
tornavam-se elementos cada vez mais presentes, chamando atenção das autoridades policiais e 
eclesiásticas que as associavam como algo a ser evitado, ou pelo caráter de perturbação da 
ordem ou pelo caráter religioso atípico aos olhos católicos (SOARES, 2001). 
Conforme destacado em pesquisas da época (CAPOEIRA, 1992; MOURA, 1995; 
SOARES, 2001; ENDERS, 2002;), há uma cadeia de acontecimentos que alimentam “o medo 
do branco ao negro”: cultos religiosos praticados em espaços abertos, acarretando a mudança 
de postura do governo imperial, antes de consentimento para a repressiva; sequência de 
revoltas camponesas em solo nacional, principalmente na década de 1830, como Balaiada, 
Sabinada, Farroupilha, Praieira e dos Malês conhecido como o “medo branco da revolta 
negra” (MOURA, 1995); crescente disputa por domínio territorial entre grupos de capoeira, 
responsáveis por conflitos sanguinários em diferentes bairros do Rio (SOARES, 2001). 
69 
 
Dessa maneira, vemos que a mesma cidade antes sob domínio de seus senhores, tida 
como vitrine do Brasil, passa agora a deflagar de maneira aberta aos olhos circulantes nos 
espaços públicos uma cultura negra de universo simbólico específico e inquietante, agravando 
o desconforto das autoridades (SOARES, 1994). Assim, em resposta a essas manifestações ao 
longo dos espaços da capital, a atuação do aparato policial desenvolve práticas repressivas 
mais sofisticadas, acarretando maior atenção à movimentação de negros. A busca e a 
interpelação de práticas “subversivas” aumentam de intensidade. Qualquer sinal de desordem 
na capital era alvo da recém organizada força policial, sendo o critério para a configuração de 
desordens demasiadamente amplo, abarcando repressões a práticas que não necessariamente 
ameaçassem a ordem pública. 
A respeito das medidas tomadas pelo aparato policial, baseando-se em Carlos Soares 
(2001), tem-se que: 
O critério para a configuração de desordens era demasiado amplo, abarcando 
repressões a práticas que não necessariamente ameaçassem a ordem pública. Os 
motivos pelos quais os escravos eram levados para o Calabouço, espécie de prisão 
da época, eram os mais variados e fúteis, como: ‘fora de horas’, ‘suspeito’, ‘atitude 
estranha’, etc.”. (MELICIO, 2009, p.69). 
Nesse sentido, cabe fazer uma reflexão acerca da linha de pesquisa estabelecida por 
este trabalho, que permeia as discussões decorrentes. Seguindo a proposta foucaultiana, 
entende-se o poder por um jogo de forças, onde o mesmo “não é uma instituição e nem uma 
estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma 
situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 2008, p.89). 
Nesse sentido, a cartografia das localizações históricas no Rio de Janeiro diz não apenas sobre 
uma repressão aos negros, a outros grupos pobres e seus modos de ser, mas também sobre 
uma incitação para a colocação de suas práticas em discurso. Observa-se o desenvolvimento 
de categorias e classificações que colocam a diferença apresentada por esses grupos em uma 
leitura política, econômica e moral mantida pelos grupos de elite e ressonante na atividade 
policial. O critério para a identificação da desordem pública – fora de hora, suspeito, atitude 
estranha – diz também sobre como a dimensão de público era considerada e sobre o que era 
levado em conta para definir o que o deveria constituir. Dizer que o aparato policial nasce no 
bojo das transformações da cidade e sob a ótica dos grupos de elite é dizer que os policiais 
utilizavam-se de critérios provenientes desse universo para situar-se no mundo e entender o 
que está à sua volta. A produção da alteridade, nessa lógica, faz com que o espaço público 
uma vez habitado por homens com outros hábitos e costumes que não o da elite fossem 
classificados como “suspeitos”, de “atitude estranhas”. 
70 
 
Personagem de destaque nessa época, o capoeira pode ser trazido como um 
dispositivo valioso para a cartografia desse processo. Os enunciados sobre os capoeiras 
passam gradativamente a produzir e delimitar a sua diferença sob uma lógica específica, uma 
convençãoque se torna naturalizada. Pode-se dizer que de uma grande variedade de potências 
afetivas, estéticas, semióticas e simbólicas que podem se territorializar por aquilo que se 
nomeia por capoeira, cria-se uma maquinaria classificatória que a delimita em objetivações 
mais precisas e homogêneas: o capoeira como negro estranho e suspeito, de costumes imorais 
e violentos que coloca em risco o ordenamento público. Assim, o que esse dispositivo diz 
sobre como as instâncias administrativas e, por consequência, o aparato policial relacionam-se 
com a diferença? Há espaço para a diversidade, ou, ao contrário, busca-se uma eliminação de 
tudo aquilo que exprime modos de ser diferentes dos de seus grupos? 
As representações vinculadas à violência tiveram respaldo na grande quantidade de 
disputas envolvendo os capoeiras cariocas. Confrontos entre as maltas
10
 de capoeira tornaram-
se constantes no decorrer do século, demonstrando a complexa geografia escrava da cidade, 
referentes a redutos e locais de trabalho de africanos e crioulos (SOARES, 2001). O próprio 
enfraquecimento, por parte dos escrivães policiais, do termo capoeira para designar a 
manifestação da capoeiragem, “jogando capoeira”, para a designação de um tipo social, “o 
capoeira”, acentua a postura que não se relaciona de maneira aberta a sua diferença, mas sim, 
a de definir critérios de classificação que possibilitam identificar quem são os sujeitos que a 
praticam (MELICIO, 2009). As relações de poder, então, tratam de um registro da produção 
do social em termos de associar esse grupo ao perigo . 
3.3 O ESPAÇO PÚBLICO E A GESTÃO DA VIDA PELA ELIMINAÇÃO DA 
DIFERENÇA: PENSANDO O MENOR 
Guattari (1995, p.36) ressalta que “a produção de subjetividade constitui matéria 
prima de toda e qualquer produção”. Segundo o autor, a subjetividade refere-se aos modos de 
expressão que passam não só pela linguagem, mas também pelos níveis semióticos. Como 
vimos no capítulo anterior, a subjetividade não se confunde com uma interioridade identitária, 
marcada por uma biografia familiar; ela é produzida no registro social. Mesmo que ela venha 
terminar num indivíduo – Guattari utiliza a noção de “terminal” da informática - ela é 
produzida no coletivo. A marca dessa produção é que ela comporta componentes 
heterogêneos de poder, agenciando o corpo, o espaço urbano, os componentes de mídia e de 
 
10
 As maltas de capoeira referem-se a ‘ajuntamentos’, grupos organizados que reuniam negros cativos, libertos e 
forros, assim como brancos e mestiços, com sistema específico de linguagens e gestos corporais. Dividiam-se 
por freguesia e eram responsáveis por disputas entre seus grupos e por resistências às ações da polícia frente aos 
ambulantes e às moradias ilegais, havendo capoeiras famosos por defenderem seus cortiços (LESSA, 2000). 
71 
 
linguagem. Como o autor arremata: “ao invés de sujeito, de sujeito de enunciação ou das 
instâncias psíquicas de Freud, prefiro falar em ‘agenciamento coletivo de enunciação’. O 
agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade 
social predeterminada” (GUATTARI, 1995, p.39). 
A noção de agenciamento coletivo de enunciação remete à discussão utilizada nessa 
pesquisa em torno do homem enquanto relação (homem=relação). A produção de realidade 
não se trata da soma ou da reunião de indivíduos e/ou de indivíduos com outros seres 
animados e inanimados. Não se trata de um ‘eu’ que produz a realidade projetando o seu 
psiquismo sobre o que o rodeia, pois na imagem de indivíduos enquanto “terminais”, o 
próprio psiquismo é constituído a partir da relação com o que o rodeia, a partir dos elementos 
que estão sendo agenciados junto ao psiquismo. É o agenciamento que nos coloca a presença 
de outrem na organização do campo perceptivo, dando passagem às linguagens, às formas 
sociais e às leis que se aglutinam num mundo que se faz real. 
Para demonstrar esse processo, Deleuze (2007) reflete sobre o personagem de Michel 
Tournier, chamado Robinson, que após um naufrágio passa a viver isoladamente em uma ilha. 
O que se coloca em questão no isolamento Robinson é como ele seria capaz de manter a sua 
“humanidade”, se não há mais o seu mundo habitual, se não há mais os seus pares para ajudá-
lo a sustentar e compartilhar um território existencial comum. 
Uma das possibilidades a Robinson seria o da constante regressão, algo que faria 
assemelhar a sua trajetória de vida à trajetória histórica de seu grupo como um todo. Como 
alerta Ciampa (1989) é a história, é o viver em sociedade que nos humaniza: a história “é a 
progressiva e contínua hominização do homem, a partir do momento em que este, 
diferenciando-se do animal, produz suas condições de existência, produzindo a si mesmo 
consequentemente” (CIAMPA, 1989, p.70). Todavia, Deleuze comenta que Robinson não 
inicia sua volta à origem, como se voltasse a seus tempos de criança e relembrasse os 
processos em que esteve envolvido e que o formaram como homem. O personagem de 
Tournier, ao contrário, busca os fins, busca a sua troca incessante com os elementos que a ele 
se fazem presentes. “O fim, o alvo final é a ‘desumanização’, o encontro da libido com os 
elementos livres, a descoberta de uma energia cósmica ou de uma grande Saúde elementar, 
que não pode surgir a não ser na ilha e ainda na medida em que a ilha se tornou aérea e solar” 
(DELEUZE, 2007, p.313). 
Na ausência dos efeitos provocados pela presença daquele que regula o poder, o 
mundo para de se romper em termos de consciência e seus objetos: “não simplesmente porque 
outrem não está mais lá, constituindo o tribunal de toda a realidade, para discutir, infirmar ou 
72 
 
verificar o que acredito ver, mas porque, faltando em sua estrutura, ele deixa a consciência 
colar ou coincidir com o objeto num eterno presente” (DELEUZE, 2007, p.320). 
A constituição de outrem no mundo em que vivemos é o que alimenta a gestão da 
vida em termos do que se define como aceitável, punível ou indiferente. Nesse processo, 
outrem se coloca em duas funções: a de um objeto insólito, que nos leva a experimentação da 
diferença e das novas formas de ser e estar no mundo; ou a de um estranho cúmplice, que 
regula o agenciamento daquilo que conhecemos e temos expertise para lidar. As pessoas 
entram em conflitos e coalizões, em amores e ódios, como na música Corações e Mentes de 
Sérgio Britto e Marcelo Fromer, “Meu amor, minha guerra, eu erro e você erra. Todos são tão 
diferentes, corações e mentes”. 
A humanidade não é garantida pela nascença, nem certificada pelos documentos de 
identidade. A reflexão sobre como poderia ser a experiência isolada de outros traz a 
fundamentação histórica em que o presente se vitaliza. A vida com outros é produtora de 
mundos e efeitos, ao passo que a produção de mundos é o que delimita as humanidades em 
momentos específicos, é o que penetra e diz o homem. Entre o amor e a guerra, o viver 
distingue os erros e os sujeitos errantes em uma emergência que se faz histórica. As ruas, as 
cidades e os outros de outrora não são algo isolado em tempos que se foram, mas sim tempos 
que o presente explora e atualiza para seu porvir. 
Na viagem ao Rio de Janeiro do século XIX vemos a produção de uma relação 
marcada pela alteridade segregadora e excludente. O mundo produzido é um mundo em que 
as pessoas diferenciam-se pela cor e pelas proposições morais que hierarquizam o que é um 
modo de viver ordenado e seguro (senhores de engenho, grandes proprietários e nobres com 
valores ancorados nas culturas ocidentais europeias) e que são os modos de viver 
considerados bárbaros e primitivos (negros e outros grupos marginalizados transitando pelas 
ruas e praticando atitudes estranhas ao primeiro grupo). As ‘hordas de bandidos’, os 
feiticeiros, macumbeiros, sambistas, vagabundos e desordeiros são as classificações 
convocadas paradar conta da dimensão afetiva com destaque nessa relação: o medo do 
desconhecido, o receio que corpos de trejeitos avessos às etiquetas, vestimentas e bons 
costumes deflagravam. 
O próprio desenvolvimento do espaço público está, assim, ligado ao perigo do 
desconhecido. Ao se debruçar sobre a expressão em público por meio do processo de 
interação entre história e teoria, Sennett (1998) aponta que há na contemporaneidade uma 
vida pessoal desmedida, resultante de uma mudança iniciada com a queda do Antigo Regime 
e com a formação de uma nova cultura urbana, capitalista e secular (século XIX, no contexto 
73 
 
dos processos ocidentais europeus e norte-americano). O autor diz sobre uma linha divisória 
entre privado e público que constituía as exigências de civilidade daquela época e que 
passaram por transformações que desembocam na atualidade. Nesta linha contrapunha-se uma 
suposta natureza humana destinada ao privado e uma potencialidade da expressão humana 
pela cultura, que tinha seu lugar no público, sendo responsável por tornar o animal humano 
em social. 
Sennett (1998) avalia que semelhante a um atleta excepcionalmente forte, que 
sobrevive à juventude com forças aparentemente intactas e, subitamente, manifesta a 
decadência que estivera dilapidando seu corpo internamente ao longo de sua vida, a sociedade 
atual expressa um processo em que se buscou resolver o problema do público negando que o 
problema existia, o que serviu para entrincheirar os aspectos ligados a três emergências 
principais: o crescimento e desenvolvimento da vida urbana, que contou com a migração de 
grande contingente de áreas rurais, acentuando a qualidade e quantidade de estranhos que 
compunham a cidade; a mercantilização da vida social em função do capitalismo, em que as 
trocas e valores econômicos tornaram-se cada vez mais racionais e impessoais, ao mesmo 
tempo que valorativos da personalidade em espaço público; e o imediatismo e valorização de 
todas as ações públicas, em função do progressivo enfraquecimento das regulações sociais 
pelo sagrado. 
O que interessa nesse momento é pensar como as transformações políticas e 
econômicas emergentes junto ao desenvolvimento urbano impactaram e foram impactadas 
pela relação entre as diferenças (ou entre os diferentes) no espaço público. O intuito é o de 
averiguar a relação do “entrincheiramento” do espaço público comentado por Sennett (1998) 
com o que temos chamado de acirramento de elementos comuns à sociedade, no sentido de 
ver como a polarização entre grupos de elite e grupos não elite favorece um clima de disputa 
que gera violência e é retroalimentada pelo medo. 
Para Sennett (1998) o público adquire seu significado moderno ao constituir não 
apenas uma região da vida social, separada do âmbito da família e dos amigos íntimos, mas 
também o domínio público dos conhecidos e dos estranhos, que inclui uma diversidade 
relativamente grande de pessoas. Ao mesmo tempo, há o aumento da ênfase no homem e no 
conhecimento sobre o homem em detrimento do religioso, o que sustentou o desenvolvimento 
de saberes sobre a personalidade. Os aspectos de ‘natureza pessoal’, antes protegido e restrito 
ao ambiente familiar, passam a compor e a serem observados fora do espaço privado. As 
aparições em locais públicos tornam-se progressivamente aparições do privado no âmbito 
público, em que se forneciam pistas sobre a pessoa oculta por trás da máscara social, o que 
74 
 
intensificou as vestimentas como marcas públicas e os objetos materiais como investimentos 
psicológicos, algo que faz com que utensílios materiais demonstrem características de 
personalidade. 
Apresenta-se, assim, uma sociedade intimista regulada pela erosão entre público e 
privado, na qual o público é regido por valores íntimos e familiares. As pessoas e suas 
supostas características pessoais ficam expostas a leituras dos outros, fazendo com que o 
silêncio se torne o único escudo possível. “O isolamento em meio à visibilidade para os outros 
era uma consequência lógica na insistência no direito de se ficar calado ao se aventurar nesse 
domínio caótico, porém ainda atraente” (SENNETT, 1998, p.44). 
O enaltecimento do silêncio e o isolamento na esfera pública expostos brevemente 
pelas reflexões de Sennett nos permite observar as primeiras pistas de como o homem, 
ocidental e dos grandes centros urbanos, teve transformado seu viver no espaço 
explicitamente social. No exercício acima apresentamos a rua, as pessoas e todos os 
componentes enquanto objetos que adquirem forma por meio de relações e efeitos 
regulamentados de poder. Ao tomarmos o campo social como um campo de negociações e 
conflito, em que a reciprocidade está em tensão, notamos o quanto as diferenças entre as 
pessoas configuram o motor das trocas expressas e de seus efeitos. Quem é esse outro? O que 
esperamos desse outro? Questões, estas, que se tornam cada vez mais frequentes com o 
crescimento urbano, uma vez que o capitalismo industrial colocado por Sennett apontam para 
diluição da fronteira privado - público, em que as características pessoais predominam a todo 
instante: Como os outros me veem? O que mostro de mim? Como me diferencio e me 
aproximo de outrem? Quais efeitos essa diferenciação produz e por que vias as relações 
ocorrerão de modo seguro? 
Ocorrem a supervalorização do indivíduo e o efeito paradoxal do intimismo e da 
impessoalidade. O privado invade o espaço público e o isolamento, o direito ao silêncio e à 
privacidade surge para garantir a sua proteção. Para se comprar uma mercadoria basta olhá-la 
na vitrine ou na prateleira e levar até o caixa. Não é mais necessária a troca, a interação mais 
alongada entre diferentes que confere e agrega valor ao objeto pela relação pessoal. Algo que 
se aproxima da civilidade moderna, que nas palavras de Sennett (1998, p.323), “é a atividade 
que protege as pessoas umas das outras e ainda assim permite que elas tirem proveito da 
companhia uma das outras. Usar máscara é a essência da civilidade”. Nesse sentido a 
civilidade, que é o que integra as relações e produz efeitos de poder entre as pessoas, orienta-
se pela proteção dos indivíduos de serem sobrecarregados por alguém estranho. 
75 
 
Cabe ressaltar que os processos históricos trazidos não dizem sobre uma totalidade e 
não se referem a uma sucessão linear. É possível nos dias atuais, por exemplo, ver atuando 
diferentes lógicas, como a vista em certas ruas do centro carioca em que a venda de produtos 
se realiza com aglomerados de pessoas em torno de uma pessoa que apresenta o produto junto 
à sua performance. Todavia, na discussão em torno da vivência social, encontram-se os 
processos que nos encaminham às formas de produção de segurança contemporâneas, sobre as 
quais buscamos nos aproximar. 
A sociedade intimista desenhada por Sennett favorece a formação de grupos com 
interesses comuns em que o perigo ameaçador da diferença seja eliminado. “Manter a 
comunidade se torna um fim em si mesmo; o expurgo daqueles que realmente não pertencem 
a ela se torna a atividade da comunidade” (SENNETT, 1998, p. 319). Assim, os espaços 
públicos definem-se pela tentativa de ampliar laços íntimos que não necessitem se defrontar 
com a impessoalidade que a presença do estranho acarretaria. Busca-se a ausência do 
desconhecido para atenuar (ou seria acentuar?) o esforço dedicado à proteção de si. O 
desgaste em torno da privatização e do silenciamento das relações públicas, em função da 
proteção das características privadas, se cessaria a partir da ausência do desconhecido, do 
incerto, daquilo que não tem caráter de ser íntimo. 
Mas o que estaria encarregado de mediar as reciprocidades, de garantir a proteção, de 
servir de diapasão ao que, nas relações, deve ser esperado e garantido pela segurança? Quais 
critérios estariam sendo convocados para delimitar o que se figura como outsider e objeto de 
medidas jurídicas e legais?Para além de uma resposta totalizante, a questão percorre todo este 
trabalho que a problematiza por sucessivas aproximações. 
Indo de encontro à discussão trazida por Sennett (1998), em que as pessoas 
preocupam-se com o que vão mostrar de sua intimidade no espaço público, observamos que 
no contexto imperial do Rio de Janeiro eram raras as participações da vida pública por parte 
dos grupos senhoris. Ao comentar a obra de Lília Lobo sobre “Os infames da história”, Erika 
Santos (2011, p.48) aponta a quase ausência das famílias de elite nas ruas da época, 
“permanecendo no interior das residências com camisolões, pés descalços, seios nus, camisas 
desabotoadas e chinelos, o que contrastava com o exagero de enfeites nas raras ocasiões em 
que saíam de casa, quando se cobriam com joias, rendas, sedas e mantilhas”. 
Todavia, como vimos anteriormente, desde a chegada da família real há uma 
progressiva utilização das ruas e vielas por parte da elite, gerando a necessidade de um 
aparato, o policial, que se colocasse como os olhos e os corpos responsáveis pela 
intermediação com o espaço público. Espaço este que era ocupado apenas pelos 
76 
 
desclassificados; território dos ambulantes, dos empalhadores, dos lustradores, dos 
reparadores de eletrodomésticos, dos trapeiros e de tudo aquilo que João do Rio (1952, p.17) 
chama de “profissões ignoradas” de miséria. 
Em função da erosão do público pelo privado, a tarefa de ir às ruas já era por demais 
dispendiosa, uma vez necessária a manutenção das máscaras sociais comentadas por Sennett 
(1998). Um grande empenho era realizado pela elite, no sentido de não deixar à mostra o seu 
lado tido como primitivo. No espaço de encontro, era a parte cultural que deveria se fazer 
presente, ou seja, tudo aquilo que demonstrasse um pouco do conhecimento civilizatório. É 
nesse momento, por exemplo, que as questões de etiquetas, de maneira de se comportar à 
mesa e de se vestir ganham maior importância (SANTOS, 2011). Assim, ir às ruas e vielas e 
se deparar com comportamentos estranhos, era algo que a elite passava a desejar evitar. 
Retomando a noção de dispositivo (DELEUZE, 1990), vemos surgir uma urgência a qual 
seria a polícia o grupo destinado a responder: como ordenar o espaço público, de modo que 
nele não insurjam estranhezas que perturbem o cotidiano da classe dominante? 
Nesse cenário, vê-se o entrincheiramento apontado por Sennett (1998), na medida em 
que a espacialidade pública configura-se como arena de encontro e, por suporte 
representacional principalmente proveniente de ideais escravagistas, de hierarquização, 
distinguindo os locais e modos que ali poderiam habitar. É nesse passo que se contrastam as 
maneiras de utilização da coisa pública, uma vez que a cidade é dividida em subáreas, que são 
destinadas ou à elite ou aos grupos não-elite, com demarcações precisas sobre o lugar que 
cada um ocupa. No tocante aos últimos grupos, é o momento em que se vê maior 
complexidade das trocas entre os marginalizados, com as observadas nos ‘jogos de 
casquinha’, efetuados nas praças e praias, que contavam com a presença de tabuleiro, copos e 
dados. O jogo se constituía em uma das formas de lazer e de resolução de conflitos, sendo 
alvos da ira dos zeladores da ordem. Outro elemento importante diz respeito às ‘casas de 
angu’, ou zungus, que serviam como espaço de venda de produtos por parte, principalmente, 
dos negros, e também como local de abrigo de escravos fugitivos e de reuniões para tratar de 
assuntos de interesse da comunidade negra (SOARES, 2001). 
Se por um lado as trocas criavam resistências aos registros de saber sobre as formas 
de ser e estar no mundo propagadas pela elite, elas também acarretaram numa generalização 
excludente por parte dos últimos. Mobilizadas pelo temor e repulsa, os grupos são 
evidenciados como ‘selvagens’, ‘manchas na civilização’ a serem extirpadas
11
. Portanto, 
 
11
 Expressões utilizadas pelos jornais, na passagem do século XIX ao XX, referindo-se aos grupos que 
aglomeravam-se nos cortiços (REIS, 2000). 
77 
 
trazendo discussões de trabalho anterior (MELICIO, 2009), observamos a constituição da 
alteridade radical, no qual o “outro” é expulso do espaço intersubjetivo, ou seja, “foge ao 
campo das formas de sociabilidade” (JODELET, 1998, p.58). Ao comentar este tipo de 
produção sobre o “outro”, Jodelet aponta que o processo tem duas facetas, uma social, no qual 
há a necessidade de purificação social, protegendo o grupo de uma suposta promiscuidade 
alheia, fazendo com que a presença de outrem no espaço público representasse uma ameaça; 
outra teórica, em que toda uma rede discursiva é produzida por intelectuais, no sentido de 
sustentar a associação de “outro” ao risco, acarretando, assim, na produção de estereótipos. 
A alteridade radical rompe com a abertura à novidade, visto que marca uma profunda 
lacuna entre os diferentes grupos. Classifica e exclui não só o outro grupo de seu convívio, 
como também delimita as possibilidades de manifestação do seu próprio. Tal fato se 
explicaria pela ameaça que a diferença acarreta, pois, segundo Joffe (2003, p. 317), “quando 
ocorrem mudanças ameaçadoras no ambiente social, as representações da mudança servem 
para dar às pessoas um sentimento de controle da situação potencialmente incontrolável”. A 
partir do momento em que a vida coloca grupos aristocratas, então com profundas raízes 
colonialistas, em contato com uma nova demanda, em que se deparavam com costumes 
desconhecidos, passam a operar sistemas classificatórios que, primeiramente, os distanciam 
daquilo que é espantoso e, posteriormente, inferiorizam aquilo que lhe é estranho. 
Neste sentido, e agora voltando a uma discussão mais geral, não específica do caso 
brasileiro, é trazido o contexto de constituição do Estado moderno, que possui uma dupla 
demanda quase paradoxal: a garantia de que todos indivíduos sejam vistos como iguais e 
garantia a todos indivíduos de serem diferentes e expressarem diferentes características 
pessoais (BARROS, JOSEPHSON, 2007). Mesmo que a erosão da fronteira entre as duas 
esferas tenha produzido uma preponderância do privado em relação ao público na 
modernidade, o processo não tirou de cena as diferenciações entre, de um lado, o que é 
característico da “condição” humana (ligada ao privado) e, do outro lado, o que é 
característico da “criação” humana (ligada ao público). Nesta perspectiva, trazida por Sennett 
(1998), a condição humana, vinculada ao âmbito privado, refere-se à dimensão psíquica, 
íntima ao homem e a sua personalidade. Partindo dos valores evolucionistas presentes na 
época, estaria relacionada aos aspectos supostamente primitivos, ou seja, a tudo aquilo que 
liga o homem a sua condição animal e instintiva. A criação humana, por outro lado, relaciona-
se aos processos evolutivos do homem, que permitiram o desenvolvimento da linguagem, da 
cultura e das novas estruturações sociais, manifestando-se, portanto, no âmbito público. 
78 
 
Dessa maneira, são difundidas ideias que racionalizam e qualificam o homem de 
maneira polarizada, em termos de condição natural e primitiva, destinada ao ambiente 
privado, e de processo evolutivo, criação de estruturas sociais e desenvolvimento da cultura, 
direcionadas ao espaço público. Em suma, os saberes atuantes nesse contexto apontam tanto 
para algo que seria inexorável à condição humana - a constituição do homem por uma espécie 
de natureza universal, que é comum a todos e os une num âmbito de igualdade; como para o 
aspecto que seria da criação humana - a constituição do homem por meio de diferentes 
culturas, que garante a todos o direito de ser diferente (SENNETT, 1998). 
Nesse sentido, o Estado moderno se desenvolveu no intuito de promover e assegurar 
a civilidade, que segundo Sennett estão intimamente relacionados com a experiência das 
cidades e dos contatosentre estranhos em que estamos nos debruçando. Mesmo que estejam 
inseridos em coletividades, os indivíduos aparecem como unidade social, com direitos que 
devem ser regulados. Assim, o poder público, por meio de suas instâncias, emerge como 
resposta à necessidade dos indivíduos em encontrarem meios para encaminhar os entraves de 
suas diferenças, coordenando esta negociação e visando o bem-estar (VELHO, 2000). 
Atentamos, então, à produção de um espaço social em que as trocas são reguladas de 
maneira a garantir a proteção aos direitos dos homens. Surge a criação de um solo comum, 
que orienta as formas com que as pessoas devem se relacionar, universalizando modelos 
sociais que as pessoas devem seguir. Em conjunto, há também a característica mais cara ao 
capitalismo neoliberal, em que a formação do Estado moderno está inserida, que é o direito à 
individualidade em suas diferenças, que, como coloca Barros e Josephson (2007), permite que 
cada um possa almejar ao seu modo lugares destacados na estrutura da sociedade. 
É neste sentido que as dificuldades e potências da vida humana, constituída pelas 
relações sociais, vão se configurando por meio de investimentos de uma sociedade em modos 
específicos de ser e estar no mundo. Diante do impasse entre, de um lado, a criação de 
padrões comuns para as relações sociais e, de outro, a igualdade de direitos e a defesa das 
individualidades, são fomentadas uma arena de disputa em que se elegem os estilos de vida 
que devem se emitidos à maioria. Mesmo que tenha em seu contexto o hibridismo e 
pluralidade característicos dos tempos atuais, a sociedade, a partir dos valores médicos, 
estéticos, jurídicos, escolares e outros, acaba por hierarquizar as formas de expressão, 
identificando aquelas que favorecem ou não o ordenamento e a beleza que almeja. É o que, 
como coloca Becker (2009), traduz as ações em termos de grupos insiders e outsiders, em 
termos do que é aceito, do que é indiferente e do que deve ser punido. 
79 
 
Barros e Josephson (2007, p.445) apontam que “a sociedade incide, assim, no vigiar 
permanente das expressões de cada um, desestimulando comportamentos em público que 
pudessem revelar o que se passava na interioridade das pessoas”. As autoras comentam que 
essa vigilância das expressões individuais, a busca pela não revelação de sentimentos 
particulares em público, é parte de uma função disciplinadora dos corpos. Tal processo se 
insere na concepção foucaultiana de biopoder. Interessado nas direções que recobrem a 
emergência da sociedade moderna, Foucault relaciona tal conceito ao investimento nas 
populações sob uma perspectiva política. Trata-se de um sistema classificatório que identifica 
e agrupa, atuando tanto no processo econômico quanto no ordenamento geral da sociedade 
moderna por meio de exercícios de controle precisos e de regulações em conjunto 
(FOUCAULT, 2005). 
Foucault aponta que nos séculos XVII e XVIII surgem técnicas de poder 
essencialmente centradas no corpo. Tais técnicas visavam prioritariamente a produção de uma 
sociedade disciplinar, na qual os indivíduos eram submetidos a uma racionalização e 
economia que exerciam vigilância, hierarquias, inspeções e outros: “eram todos aqueles 
procedimentos pelos quais se assegura a distribuição espacial dos corpos individuais (sua 
separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em 
torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade” (FOUCAULT, 2005, 
p.288). O autor traz, assim, formas de gestão do corpo, por ele denominada como “anátomo-
política”. 
Todavia, para além da gestão centrada nos corpos, há, segundo Foucault, o 
surgimento de uma nova tecnologia, ao final do século XVIII, que não exclui a primeira, mas 
sim “que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la 
implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica 
disciplinar prévia” (FOUCAULT, 2005, p.289). Foucault refere-se à “biopolítica” que, como 
seu nome indica, diz sobre a gestão da vida, não em escala individual, mas em escala 
populacional, ocupando-se do homem como espécie. Conforme diz o autor, “são esses 
processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade 
do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos, 
constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa 
biopolítica” (op.cit., p.290). Ambas as tecnologias apresentadas, em conjunto, formam o 
“biopoder”, que denota justamente o sistema composto e articulado entre anátomo-política e 
biopolítica, em que ocorrem regulamentações em torno da vigilância e disciplinamento 
80 
 
corporal-individual, e se exprimem regimes de verdade que informam e gerem o que é 
esperado pela população como um todo. 
O que entra em jogo é a própria constituição da vida. Para ilustrar, Peter Pelbart 
(2003) traz as reflexões de Kafka sobre o intuito do Imperador da China em construir uma 
muralha que contornasse a imensidão do império chinês, o protegendo da invasão dos 
nômades. Conforme o autor apresenta, o empenho numa construção dessa magnitude tem 
relação ao esforço de se afastar, tanto física, como simbolicamente, tudo aquilo que 
deflagrasse elementos estranhos ao que havia no interior de seu contorno. Mesmo a muralha 
nunca sendo completada, contando com lacunas quilométricas, viu-se a instauração de uma 
ideia que conferia coesão interna, que “protegia” os valores chineses e segregava e excluía a 
diferença estrangeira. Orientados pelo que se chamava Comando Supremo, os processos não 
eram personificados em ninguém, não tinham um desígnio de fim conhecido (como a 
conclusão da muralha), mas alimentavam a gestão auto-referenciada da vida chinesa, mesmo 
ocorrendo a concentração de nômades na praça em frente ao império. 
A questão que surge é que, por mais que se tinham partes físicas a construir, o 
império não ficou indiferente a essa desacomodação que o estranho lhe provocara, com o 
perigo de esfacelar-se, de perder os elementos que o tornavam um conjunto imperial. E é a 
esse tipo de urgência que os impérios e os Estados passam a responder, ou mais precisamente, 
é a esse tipo de urgência que os conjuntos sociais, dos quais o Estado é componente vital em 
sua territorialização, passam a responder. Não respostas emanadas originalmente por 
personalidades, governantes, que acarretam em medidas legalistas e físicas, mas respostas por 
lógicas igualmente nômades, que transversalizam as relações e, aí sim, se materializam em 
medidas de representação política, forças econômicas, textos judiciais, etc. 
De fato, como poderia o Império atual manter-se caso não capturasse o desejo de 
milhões de pessoas? Como conseguiria ele mobilizar tanta gente caso não plugasse o 
sonho das multidões à sua megamáquina planetária? Como se expandiria se não 
vendesse a todos a promessa de uma vida invejável, segura, feliz? Afinal, o que nos 
é vendido o tempo todo senão isto: maneiras de ver e de sentir, de pensar e perceber, 
de morar e vestir. O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida (...). 
(PELBART, 2003, p.20, grifo do autor) 
 Diferentemente do Império Chinês do conto de Kafka, na contemporaneidade o 
funcionamento não é o de base em muralhas e trincheiras (não apenas, se vermos os muros 
que rodeiam algumas favelas do Rio de Janeiro, ou divisões das cidades por orientação 
político-religiosa que traremos adiante na Irlanda do Norte). O que acontece, como aponta 
Pelbart, é que o império se nomadizou, ou, por outras palavras, constituiu-se como resposta à 
nomadização generalizada. Neste sentido, quando Foucault trata do Biopoder, por meio da bio 
81 
 
e anátomo política, ele está tratando de formas que se dedicam à produção da vida como um 
todo. Algo que não vem de fora para dentro, mas que pulsa diretamente nafonte produtora de 
subjetividade. O contingente de saberes médicos, psicológicos, judiciais e de outras 
especialidades não se restringe a uma regulação da reciprocidade entre as pessoas, no sentido 
estrito de somente limitar as expressões. Esses saberes destinam-se justamente à produção das 
formas de expressão, construindo e difundindo os modos de ser, ver e pensar. Em seu 
processo há disciplina, vigilância e produção de docilidades dos corpos, sendo que, caso 
corpos se insurjam, haverá efeitos. Todavia, na outra ponta desse processo, ou melhor, nos 
corações e mentes desse processo, há, sobretudo, a produção de sensibilidades, no sentido de 
captura e fragmentação das possibilidades a serem investidas para se viver a vida. 
Nos tempos atuais, não há apenas a construção de quebra-molas, placas de ‘pare’ e 
limites de velocidade, há também a construção da própria ideia de se caminhar. E nesta 
construção, o que intentamos ver é como se articula a produção de segurança, visto que é ela 
que traz às pessoas as sensações de proteção, enquanto condição mínima para os caminhos 
que se abrem. Afinal, quais caminhos serão percorridos se não houver segurança? De quais 
ruas as pessoas serão transeuntes se não estiverem livres das incertezas e seus perigos? 
3.4 PROCLAMAÇÃO DA COISA PÚBLICA E A DESQUALIFICAÇÃO DOS 
POBRES? A SUPRESSÃO DA DIVERSIDADE NA PRODUÇÃO DE 
SUBJETIVIDADE CARIOCA 
Ao adentramos o universo da segurança pública percebemos o quanto este campo é 
composto por lógicas, por regulamentações de poder que não se restringem a personificações 
e textos legais, mas que dizem sobre formas de gestão da vida, de regulação e de produção de 
territórios existenciais. Retornando aos processos acompanhados na experiência carioca, 
notamos que no decorrer do século XIX, principalmente na segunda metade, a questão da 
escravidão torna-se não apenas o ponto de disputas políticas entre monarquistas e 
republicanos, como também o grande aporte simbólico que orienta, por um lado, as práticas 
de vigilância e, por outro lado, em oposição, as concepções do que seria uma nação ideal e 
saudável. Assim, de forma semelhante à muralha que conferia coesão e proteção aos chineses 
em relação aos estrangeiros, a alteridade radical baseada nas superioridades e inferioridades 
das raças, passa a constituir uma importante engrenagem da tecnologia social, que convoca 
saberes evolucionistas para informarem as práticas de segurança no Rio. 
Todavia, diferentemente do período de colônia e império, o final do século XIX e a 
passagem para o XX são marcados também por um contexto em que se pensava a 
plausibilidade do Brasil como nação. Junto ao histórico de segregação racial, que também era 
82 
 
estendido à segregação econômica, inicia-se um processo de construção da identidade 
nacional, mais radicalmente desvinculada de Portugal – uma vez que mesmo após a 
independência, as regências brasileiras foram ministradas prioritariamente por descendentes 
da família real portuguesa. Nesse momento torna-se potente um olhar à produção da noção de 
“menor”, bem como à junção dos discursos médicos e judiciários que ganharão cores 
principalmente pelos movimentos higienistas e pelas teorias eugênicas. Trata-se da 
sofisticação da tecnologia disciplinar que irá coincidir com o período de proclamação da 
república brasileira e da preocupação intelectual com o futuro nacional. 
Assim, ocorre que o nascimento da República brasileira se realiza sob o signo da 
ordem pública. O rompimento com o imperialismo coincide com o processo de absorção e 
reelaboração por parte da intelectualidade nacional das concepções iluministas e modernas. 
Há continuidades com o período anterior, como o fato de ser “elitista, conservadora, anti-
industrialista, agrarista” (PATTO, 1999, p.168). Mas há também a progressiva sofisticação 
das gestões da vida, que passam primeiramente pelo recrudescimento da repressão policial e, 
posteriormente, mas em conjunto, pela questão do controle populacional em geral, 
principalmente pelas teorias eugênicas e higienistas. 
No tocante ao primeiro processo, Patto (1999, p.171) comenta que “sob a alegação 
de que estavam em jogo interesses do conjunto da Nação, o Estado brasileiro primeiro-
republicano não agia com sutileza disciplinadora para garantir a ordem pública. Ao contrário, 
os donos do poder não hesitaram em valer-se, até a náusea, da violência física para imobilizar 
os indesejáveis”. Assim, a “questão social” passa a ser definida como “caso de polícia”, como 
apontou Wahsington Luis, um dos presidentes da primeira metade do século XX, do qual a 
autora comenta, antes de concluir: “bastava ser pobre, não-branco, desempregado ou 
insubmisso para estar sob suspeita e cair nas malhas da polícia” (op.cit., p.175). 
No que se refere ao segundo processo, nota-se a manifestação, em solo brasileiro, de 
sistemas de gestão que se aproximam da biopolítica apontada por Foucault (2005). Não se 
quer dizer que tal lógica não estivesse presente nas localizações históricas anteriores, mas 
talvez esse seja o momento em que sua observação possa ocorrer de maneira mais explícita. A 
habitação dos antigos casarões por pessoas pobres, criando os cortiços, bem como a habitação 
das encostas dos morros em moradias improvisadas e insalubres, faz operar uma 
regulamentação do poder em que a diferença é hierarquizada em termos de pertinentes ou não 
ao projeto nacional. Fazendo ressonância com as questões intelectuais da época, a pergunta 
que o Estado republicano procura responder é sobre qual a viabilidade do Brasil em se 
83 
 
constituir enquanto nação moderna, ou seja, pautada bela beleza, ordem e racionalidade 
(REIS, 2000). 
A virada do século XIX para o XX é marcada historicamente pelo vigor do 
determinismo biológico e pela aposta na ciência como resposta para a organização racional do 
social. Nesse contexto, observa-se que o evolucionismo, rapidamente difundido após a 
propagação das ideias de Darwin, encontra seu correspondente na trajetória do homem
12
. É 
assim que, ao nos debruçarmos sobre a teoria da evolução das espécies, notamos que a ênfase 
recai sobre os animais e outros seres, em detrimento da análise mais ampliada do meio. A 
grosso modo, a teoria de Darwin aponta que o meio é igual a todos os seres, cabendo aos 
últimos manifestar a sua capacidade de adaptação. Uma vez adaptados, estarão aptos para 
produzir descendentes. Nesse processo, tem-se que, por um lado, ao longo do tempo o 
ambiente passa por constantes transformações, decorrentes, por exemplo, de alterações 
climáticas, pragas, epidemias, alterações no equilíbrio do ecossistema e outros; e, por outro 
lado, os seres passam por sucessivos processos de mutação, extremamente longos e 
demorados, em que, por meio das características que possuem, se tornam capazes ou não de 
dar continuidade a suas formas de vida. Entretanto, no momento em que tal entendimento 
passa a informar mais precisamente o homem, no que se chamou de darwinismo social 
(PATTO, 1999), nota-se a permanência arbitrária da ênfase no indivíduo em detrimento do 
social. Assim, surgem inúmeras teorias científicas e outras redes discursivas em que se analisa 
a capacidade de adaptação das pessoas em função, quase que exclusivamente, de suas 
capacidades biológicas, trazendo o meio e os contextos históricos como coadjuvantes. No 
caso brasileiro, por exemplo, tal ideia acabou por desonerar toda uma falta de planejamento 
político que combinou séculos de escravidão e o súbito arremesso de centenas de milhares de 
negros em um sistema de trabalho formal que não os absorvia. Segundo tal perspectiva 
evolucionista social, se havia grande contingente de negros sem emprego, vivendo na miséria, 
a causa não era o descaso do governo, mas sim a sua suposta inferioridade racial (MELICIO, 
2009). 
Nesse sentido, nos aproximamos do dispositivo “menor”, para entender como as 
práticas e gestõesdestinadas às crianças podem possibilitar cartografias da biopolítica operada 
na época. Santos (2011) aponta que a diferença entre criança e menor está ligada aos 
processos históricos do século XIX e à criação de práticas tutelares por parte do Estado e dos 
experts. A autora comenta que as primeiras menções à expressão “menor” datam do Código 
 
12
 Discussão baseada no filme documentário “Homem Sapiens 1900”, do diretor sueco Peter Cohen. 
84 
 
Criminal do Império, que define penas aplicáveis no caso de cometimento de crimes “por 
menores de idade”. 
A expressão resvalou do universo jurídico para o social ao final do século XIX, 
passando a designar as crianças nascidas nas camadas mais baixas da pirâmide 
social. Nesse trajeto, do jurídico ao social, a expressão assume conotação de 
controle, pois, ao segmentar setores sociais, cria categorias consideradas “suspeitas” 
e “potencialmente perigosas”, na associação entre perigo e a pobreza, tal como 
sonhara a Epistéme Moderna e tal como o higienismo propôs logo a seguir. 
(SANTOS, 2011, p.47-48) 
A categoria de menor está vinculada a uma ideia de distinção entre diferentes formas 
de vida. Conforme visto no trabalho de Santos (2011), ela é sustentada pelo critério 
comparativo de crianças, em termos de aptidão biológica e familiar para o desenvolvimento 
moral. Ganhando forma pela Doutrina da Situação Irregular, que embasava o Código do 
Menor de 1927, bem como a Lei do Menor de 1979, a categoria conferia ênfase ao 
individualismo, tal como visto no darwinismo social, fazendo averiguar quais crianças 
reuniam ou não condições de adaptação ao meio. O último, no caso, estava sendo pautado, 
como vimos, pelo interesse em disciplinar os corpos nos espaços públicos e pelo viés de se 
identificar os que poderiam compor o futuro da nação. E quais critérios eram empregados para 
tal identificação? Como o nome da doutrina indica, critérios apoiados nas ideias do que seria 
uma situação regular (família nuclear burguesa) e do que seria uma situação irregular 
(famílias não burguesas e/ou não nucleares que, portanto, não forneciam base para o 
desenvolvimento moral da criança, tida então como menor). 
Dessa maneira, apenas os menores em situação irregular eram alvo do Poder Tutelar 
do Estado, permitindo com que o último atuasse diretamente nos núcleos familiares, 
destituindo o poder pátrio (hoje “poder familiar”), alegando abuso, incapacidade ou 
negligência do pai ou da mãe: 
Alegavam os defensores da Doutrina da Situação Irregular que a intervenção do Juiz 
seria sempre supostamente protetiva, o que garantiria a preservação dos interesses de 
seus tutelados sem a necessidade do recurso ao contraditório, à ampla defesa ou aos 
prazos de representação e contestação da sentença. Esses argumentos, contudo, 
ignoravam o interesse da ordem na criminalização do jovem pobre e na privação de 
sua liberdade através da internação (BATISTA, 1998), interesse forjado no olhar 
criminal do século XIX e perpetuado no modelo da Situação Irregular. (SANTOS, 
2011, p.54-55) 
O que está em jogo é um duplo processo presente neste período, de transição do 
paradigma de raça para o de cultura, bem como o de aferir as consequências da miscigenação 
ao processo evolutivo brasileiro. Havia o receio de “degeneração das raças”, defendida pela 
teoria eugênica, que estabelecia uma divisão supostamente clara entre as capacidades das 
diferentes etnias em promover a beleza e ordenamento almejados pela racionalidade moderna. 
85 
 
Assim, buscando responder a pergunta “quem somos nós”, a intelectualidade brasileira passa 
a aferir sobre a composição do brasileiro. Um exemplo neste sentido é o trabalho de Silvio 
Romero, considerado o pai dos folcloristas brasileiros, que utiliza da teoria darwiniana para 
afirmar que, pela lei da adaptação, as raças se modificariam na mestiçagem, formando um 
tipo em que predominaria o branco (CATENACCI, 2001). O interesse brasileiro na formação 
de uma civilização nos moldes europeus, então, fez com que as diferenças fossem suprimidas 
ao passo que teorias discriminatórias e voltadas à gestão populacional, como a eugenia e 
higienismo, sustentassem as práticas sociais. “no caso brasileiro, a campanha higienista esteve 
sobretudo a serviço de dois projetos da classe dominante: superar a humilhação frente ao 
‘atraso’ do país em relação aos ‘países civilizados’, pela realização do sonho provinciano de 
assemelhar-se à Europa, e salvar a nacionalidade pela regeneração do povo” (PATTO, 1999, 
p.178-179). 
O paradigma culturalista emergente no início do século XX busca ao mesmo tempo 
recuperar as raízes da cultura nacional e eliminar seus aspectos de exploração, colonização e 
escravidão (VASSALLO, 2003). Há a retirada de cena de uma análise histórica preocupada 
com os condicionantes das desigualdade, ao mesmo passo que emergem políticas voltadas à 
produção da imagem brasileira enquanto nação progressista e ordeira. O Rio de Janeiro, 
enquanto capital nacional, torna-se o laboratório cultural do país, em que se buscam a 
eliminação daquilo que deflagrava a miséria e a falta de higiene, como os cortiços e os 
casebres das favelas, tidos como “lepra esthetica”, e a construção daquilo que possa lembrar o 
cenário europeu (seria como nos dias atuais?). 
No bojo dessas transformações, os saberes médicos ganham destaque. Com a 
descoberta de Pasteur no século XIX de microorganismos e consequentemente da causa física 
e ambiental das doenças, a medicina passa a servir como instrumento de controle de vários 
aspectos da vida
13
. Inicia-se uma patologização da vida social que será enfatizada, no caso do 
Rio de Janeiro e Brasil, com os ideais republicanos de ordem e progresso. “Nessa empreitada 
a medicina social e a psiquiatria apresentam-se como aliadas, sustentando cientificamente a 
intervenção do Estado e reivindicando a exclusividade de um saber relacionado às questões de 
saúde física e mental do louco, a partir da afirmação de um poder hegemônico nesse sentido” 
(BICALHO, 2005, p.51). 
O que se vê, portanto, é a manifestação do biopoder, que, aqui, passa a lançar luz ao 
aspecto da “população perigosa”, atuante tanto no aspecto geral, como mais precisamente no 
 
13
 Ver jornal do Conselho Regional de Psicologia-RJ, ano 2, n°11, setembro de 2006. 
86 
 
dispositivo do menor. Foucault (2005) comenta que, na segunda metade do século XIX 
ocorre, no contexto europeu, uma conjugação entre os registros jurídicos e disciplinares, na 
qual a apreciação e o diagnóstico do criminoso adquire prevalência em relação à ocorrência 
do crime. O autor destaca que desde o Antigo Regime ocorreram mudanças significativas no 
âmbito da pena. A principal mudança refere-se ao fato de que nessa época a pessoa que 
cometia uma infração passava a assumir o papel de inimiga do soberano – todas as relações 
aconteciam em articulação ao soberano, sendo que o poder se exercia sempre nessa 
intersecção. Contudo, a partir do contexto contemporâneo ao humanismo e ao iluminismo 
ocorre um processo de descentralização. O infrator já não é mais inimigo do rei, do soberano, 
mas sim inimigo de todos. E é nesse movimento que os reformadores juristas produzem uma 
série de mudanças legislativas, que implicarão novas formas de vigilância e de exercícios do 
poder – próximo do que vimos com o desenvolvimento da biopolítica. 
Num processo que envolve, por um lado, os saberes em torno de um universalismo 
humano, característico de uma suposta ‘natureza humana’ e, de outro, a garantia à diferença 
desde que condizente à ideia de um organismo social saudável, o ato da infração perde terreno 
em relação ao homem infrator. A atenção do sistema judiciário não recairá, assim, somente à 
ação do criminoso após ter cometido o crime, mas também, e sobretudo, às motivações e 
condições que levarama pessoa a cometer esse crime. A mudança de ênfase do ato criminal 
para a autoria é alimentada por saberes do positivismo lógico e do evolucionismo. Toda uma 
rede de discursos, como os da antropometria, que associavam características físicas e 
biológicas à propensão para o crime, informaram o debate intelectual brasileiro desde meados 
do século XIX (ALVAREZ, 2002), o que teve forte impacto nas estratégias de ordenamento e 
criminalização. 
No caso do Brasil, essa utopia desenha uma imagem do que deveria ser a polícia. De 
início, haveria polícia suficiente para patrulhar o espaço urbano. Sua presença 
ostensiva intimidaria os possíveis criminosos, evitando a ocorrência de crimes. Mas 
‘a mente do criminoso é marcada pela impulsividade’: algum crime vai ocorrer. 
Desse modo, a polícia, próxima à ocorrência ou atendendo prontamente a qualquer 
chamado, interviria, impedindo a consumação do crime sem ameaçar inocentes que 
porventura estivessem na proximidade do ato. E, claro, a polícia, que garante a lei e 
a ordem, não seria jamais criminosa ou aliada dos criminosos. Se algum crime fosse 
cometido pela polícia, seria um caso isolado, a conhecida ‘maçã podre’, e nunca 
uma falha sistêmica. (VAZ et al, 2005, p.10) 
O que ganha destaque é o desenvolvimento de uma tecnologia voltada para a 
virtualidade, ou seja, para o acontecimento em potencial, que ainda não aconteceu mas tem, 
supostamente, grandes possibilidades de acontecer. Como diz Santos (2011, p.46), “a junção 
entre os dois tipos de discurso – o judiciário e o médico – circunscreve e inventa o indivíduo 
87 
 
perigoso, ou seja, aquele que nem é louco e nem é criminoso, mas que eventualmente pode 
ser perigoso”. 
Nesse sentido, cabe destacar a relação de tal tecnologia às crianças e aos menores. 
Um conjunto de fatores de tal processo tem ligação com a forma com que majoritariamente a 
sociedade do século XX vê o jovem, o enquadrando na categoria de um ser em formação, que 
acentuam as ideias de crescimento e desenvolvimento. Enfatizam-se, assim, os enunciados 
médicos que tratam das mudanças hormonais, glandulares e físicas, bem como das qualidades 
que seriam típicas do jovem, como entusiasmo, vigor, impulsividade, rebeldia, agressividade, 
timidez, etc. Como dizem Coimbra e Nascimento (2003, p.19-20), “tal período, considerado 
de transição, carrega certas marcas que têm sido afirmadas como elementos de sua natureza”. 
O ponto que as autoras procuram destacar é a associação da infância e juventude a 
aspectos supostamente naturais, que acabam por ser aplicados de maneira negativa a uma 
parte da população, em função de sua associação à inadaptação social e ao perigo. 
Debruçando-se sobre as teorias eugênicas e suas aplicações no Brasil, apontam o papel de 
destaque do controle das virtualidades na constituição das subjetividades sobre a pobreza. Ao 
referenciar a obra de Morel, o Tratado da Degenerescência, em que aparece o termo das 
“classes perigosas”, comentam sobre como, na ótica capitalista, a miséria passa a ser 
entendida como advinda da ociosidade, da indolência e dos vícios inerentes aos pobres. 
Conforme a perspectiva eugênica presente no Brasil, “deve ser esterelizada toda a população 
pobre brasileira que não seja inserida no mercado de trabalho capitalista, todos aqueles que 
não são corpos úteis e dóceis para a produção” (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.23). 
Ocorre a paulatina associação de perigo e pobreza, processo que temos acompanhado 
ao longo das localizações históricas aqui trazidas, por uma rede de sentidos que liga numa 
aparente sequência causal as condições biológicas e econômicas à constituição de perigo. O 
que ganha especial ênfase é o informe supostamente científico da época, que conferia aos 
efeitos da diferenciação entre grupos abastados e não abastados a legitimidade de uma 
explicação pela natureza dos corpos e das mentes: a sociedade segura é a sociedade de boas 
condições higiênicas e de desenvolvimento moral. 
Dessa maneira, vemos por meio dos dispositivos do capoeira e do menor como os 
grupos de elite e as instâncias administrativas brasileiras, em especial as cariocas, 
responderam ao encontro com a diferença. A partir do momento em que a circulação no 
espaço público se configurou como prática rotineira, surge a necessidade de se regular o que é 
passível ou não de habitar esse território. Assim, seguindo as indicações de Sennett (1998) 
sobre a privatização do espaço público, observa-se a presença de dois processos 
88 
 
complementares: um que diz sobre a preocupação em não demonstrar em público os lados 
primitivos supostamente inerentes à condição do homem enquanto animal, e a outra sobre a 
utilização de signos culturais, que demonstrassem o grau de civilidade que a elite era capaz de 
carregar em sua máscara social. Todavia, os critérios que sustentavam a definição de 
civilização tinham como referência os modelos branco-europeus. Em diálogo com os saberes 
escravocratas, que hierarquizavam as diferenças das raças entre superiores e inferiores, 
ocorre, portanto, a progressiva busca pela eliminação daqueles que deflagravam 
estranhamento e faziam aproximar o ambiente da “animalidade” humana. É nesse sentido que 
os capoeiras, durante o século XIX e início do século XX, condensam em si as práticas 
destinadas aos negros e, posteriormente, aos outros grupos pobres e miseráveis. São 
justamente os policiais, espécie de intermediários entre a elite e os grupos pobres, garantido a 
proteção dos primeiros em relação aos últimos, que se dedicam a entender a manifestação e 
sua prática, fazendo da capoeiragem, como vimos, um dos principais motivo de prisão desta 
localização histórica. 
O período republicano chega à cena e se observam continuidades e transformações. 
São mantidas as ideias oligárquicas, agrárias e de discriminação de etnias, ao mesmo passo 
que se sofisticam as maneiras de gestão da vida. Preocupados com o futuro e plausibilidade da 
nação, políticos e intelectuais da época dedicam-se a solucionar a degeneração da espécie 
brasileira, em função da mistura das raças, bem como as “sujeiras” sociais, em função do 
grande contingente miserável, vivendo em habitações improvisadas e insalubres. Realiza-se, 
assim, uma desoneração dos condicionantes históricos, pela ênfase no indivíduo: se a pessoa 
era adaptada ou não ao ambiente embrionariamente urbano do Rio, se a pessoa era 
pertencente ou não ao projeto que se desenhava para a nação, a causa (ou culpa) era não outra 
senão a sua própria constituição biológica e/ou provimento familiar. Padrões como os 
destinados a gestão do menor, entre regular ou irregular, ganham força junto à instalação de 
uma política preventiva que antecede o crime e identifica os criminosos em potencial. Como 
na fala do Delegado Sergio Paranhos Fleury, atuante na ditadura brasileira: 
Você cria cachorro? Numa ninhada de cachorro vai ter sempre o cachorrinho que é 
mau-caráter, que é briguento e vai ter o outro que se porta bem. O marginal é aquele 
cachorrinho que é mau-caráter, indisciplinado, que não adianta educar 
(BENEVIDES, apud COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.22) 
Instaura-se um sistema da suspeição, que aplaca sobre o desvio da normalidade as 
determinações biológicas. A diversidade não tem espaço, senão para permitir a comparação 
entre os grupos que supostamente justificaria a alteridade radical, discriminante e repressiva: 
se prende, se tutela, se higieniza, se mistura em direção ao embraquecimento, por que há os 
89 
 
que evoluíram e os que continuam confinados à condição de primitivos, ausentes de 
desenvolvimento moral. 
 Os dispositivos emergem, assim, como ferramentas para se observar os processos 
que não cessam de se atualizar nos dias atuais. Como na proposta de Baremblitt (2002), é pela 
potencialidade com que emerge no presente e se direciona para o futuro, que nos dedicamos 
aos fenômenos históricos. Nesse sentido, veremos no capítuloposterior como algumas das 
causas para o imobilismo político no campo de segurança, que dificultam transformações 
mais profundas nos paradigmas da área, se assentam sobre as supressões da diferença acima 
discutidas. É na tarefa de lançar luz aos processos de construção das práticas discricionárias 
de segurança, que visamos contribuir para a sua desconstrução, tendo como objetivo final a 
valorização do encontro entre os diferentes na produção de territórios que deem passagem a 
uma maior diversidade de possibilidades. 
 
 
 
 
90 
 
4 RESPONDENDO A QUAIS URGÊNCIAS? 
PARADIGMAS DE SEGURANÇA E A ALTERIDADE NA PRODUÇÃO DAS 
POLÍTICAS PÚBLICAS DESDE A DITADURA CIVIL- MILITAR 
O aumento da percepção de insegurança e a elevação dos índices de criminalidade 
têm colocado o debate sobre a efetividade das ações de prevenção e controle da 
violência cada vez mais em evidência. Mas será que essa é uma preocupação 
recente? Será que a violência tem sido percebida da mesma forma ao longo das 
últimas décadas? E as políticas de Segurança, adotaram sempre estratégias 
semelhantes? (FREIRE, 2009, p.49) 
 
Direitos humanos é uma cachaça, é uma ilusão que dura pouco. (Travesti Anônima, 
em reunião na Estácio Lapa, de 09/11/2011) 
 
O presente capítulo procura problematizar as urgências às quais as políticas públicas 
de segurança têm respondido desde o golpe Militar em 1964. O intuito é realizar um sucinto 
percurso em três localizações históricas interconectadas e articuladas, assim separadas por 
motivo de organização textual: governo civil-militar entre 1964 e 1985, processo de 
redemocratização iniciado na década de 80 e algumas questões emergentes no século XXI. 
Procuram-se as formas de prevenção e controle da violência e ordenamento urbano que se 
atualizam nestes períodos, por meio da cartografia de conjuntos discursivos e não discursivos 
que: informam as percepções do que seria considerado violento ou não violento, ordenado ou 
desordenado, fundamentando as urgências que deveriam ser respondidas; pautam as normas e 
diretrizes das políticas públicas da área de segurança, com continuidades e rupturas 
paradigmáticas entre os períodos; sustentam diferentes posicionamentos e relações entre 
Estado, Forças Armadas e Auxiliares e cidadãos nas práticas de segurança; colocam em 
análise as definições do Brasil enquanto nação, bem como as lógicas sociais que ganharam 
expressão junto a tais definições. 
Tal recorte histórico é trazido em função da relevância que os paradigmas de 
segurança destes períodos possuem na leitura atual do contexto de segurança. Por tratar-se de 
um governo hegemonicamente militar, o regime presente no Brasil entre as décadas de 1960 e 
1980, implicou no posicionamento das Forças Armadas tanto no topo hierárquico do Governo 
como na atuação de ponta das práticas de segurança, possuindo importantes impactos no 
ensino, doutrina, treinamento e sistemas de controle das corporações militares, dentre as quais 
se situa a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Considerando que o comando militar é 
centralizado nos oficiais de alta patente, encontram-se ainda hoje comandantes da corporação 
que tiveram a sua formação no período da ditadura brasileira, tendo passado pelos diferentes 
contextos políticos e ideológicos do país. Assim, tendo em vista o ligeiro olhar ao século XIX 
91 
 
e primeira metade do século XX por meio dos dispositivos do capoeira e do menor, a pesquisa 
apoia-se, aqui, nos três períodos em questão, para abranger a processualidade das dinâmicas 
sociais, que fazem com que programas de orientação cidadã, como o Pronasci, divida espaço 
com práticas de cunho punitivo, que legitimam formas de exclusão e segregação. 
Breves digressões temporais, como apontamentos sobre o intenso processo de 
urbanização entre os 1950 e 70, serão realizados para uma maior amplitude histórica. 
Todavia, fica claro a não intencionalidade de se abarcar um desenvolvimento histórico 
totalizante desde a chegada da família real e do primeiro aparato policial no Rio de Janeiro de 
1808. Não haveria fôlego e tampouco competência historiográfica para tanto. Conforme 
enunciado no segundo capítulo, a intenção da pesquisa é a de se apostar em dispositivos que 
façam ver e falar a segurança pública no Rio. No capítulo anterior os dispositivos escolhidos 
fomentaram a discussão sobre o histórico nacional colonizador e escravagista e a medicina 
social eugênica e higienista, que acabaram por transpor do campo jurídico ao social o 
entendimento de uma classe perigosa, produzindo aparente divisão populacional entre 
indivíduos “regulares” (dentro de padrão normativo específico do que seria um homem 
saudável física e moralmente) e os indivíduos “não regulares” (aqueles que supostamente não 
apresentavam constituição biológica e/ou familiar para o desenvolvimento moral e que, 
portanto, deveriam ser retirados do convívio social e/ou tutelados pelo Estado). No presente 
capítulo os dispositivos são as próprias políticas públicas de segurança, procurando 
compreender a construção paradigmática presente nos diferentes contextos. O analisador da 
alteridade, aqui, centra-se na relação entre Estado, Forças Armadas e Auxiliares e o cidadão, 
problematizando quem integrou e integra a categoria de cidadão e quem constituiu e constitui 
o cliente e o alvo das atuações do aparato de segurança nos diferentes períodos. 
Este capítulo inicia o percurso sobre os objetivos e estratégias do âmbito das políticas 
públicas, observando os paradigmas conceituais que alimentaram três conjuntos principais: 
Segurança Nacional, vigente durante o período da Ditadura Militar; Segurança Pública, 
fortalecida e instituída com a promulgação da Constituição Nacional de 1988; Segurança 
Cidadã, perspectiva contemporânea que tem abrangido grande parte da América Latina, 
influenciando o debate em segurança no Brasil desde meados de 2000 (FREIRE, 2009). 
 
 
 
92 
 
4.1 DOUTRINA NACIONAL DE SEGURANÇA: O ‘OUTRO’ COMO ALIADO 
OU INIMIGO 
Cidadão, num país em que não há nem sombra de cidadania, significa apenas cidade 
grande. (MILLOR FERNANDES) 
 
 O geógrafo Milton Santos (2002) comenta que cada Estado se organiza a partir de 
uma combinação entre horizontes temporais, que vão de um longínquo prazo ao cotidiano 
atual. Segundo o autor, “as estruturas fundamentais do poder e a sua prática de todos os dias 
apreendem e retratam essa dicotomia, como um guia na regulação da existência coletiva” 
(SANTOS, 2002, p.23). A questão trazida é como pensar a interação das localidades, das 
diferenças culturais, espaciais e econômicas de cada momento, de diversos grupos, de maneira 
que novos equilíbrios da dicotomia - longo prazo das políticas públicas e cotidiano – se 
instalem em benefício da coletividade. 
Pensar a articulação das diretrizes e princípios das políticas públicas e as 
especificidades contextuais diz também, nesta pesquisa, sobre como a alteridade integra tal 
processo, pelo viés da normatização, segregação, infantilização e patologização da diferença. 
Na obra Micropolíticas, Guattari (2005) comenta que a definição de subjetividade é sempre 
dupla: de um lado ela habita processos infrapessoais e, de outro, agencia relações sociais, 
produtivas, aberta a todas as determinações socioantropológicas, econômicas. A 
subjetividade, portanto, se faz sempre em um “entre” polifônico e multidimensional, que situa 
o sujeito não numa esfera redutiva ao indivíduo fechado sobre si mesmo, mas sim a um 
âmbito produtivo, de fabricação semântica e estética. 
A produção de subjetividade trazida por Guattari é importante para a exposição das 
noções de identidade e processos de singularização que o presente trabalho utiliza: 
Existe a linguagem como fato social e existe o indivíduo falante. A mesma coisa 
acontece com todos os fatos de subjetividade. A subjetividade está em circulação 
nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos:ela é essencialmente social, e 
assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo 
qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação 
de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a 
recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria 
dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de 
singularização. (GUATTARI, 2005, p. 42, itálicos do autor) 
 
Os modos de subjetivação em que ocorrem as relações de alienação e opressão 
relacionam-se ao que vimos anteriormente sobre as relações de poder discutidas com as obras 
de Foucault (2008) e Pelbart (2003). Há um movimento de forças que, conforme diz Pelbart 
(2003), “pluga” as produções de subjetividade a uma rede relacional específica, informando 
quais são os modos de ser e estar no mundo possíveis dentro das coletividades. São as 
regulamentações de poder que, segundo Foucault (2008), capturam os modos de existência e 
93 
 
os identificam dentro de categorias e redes discursivas e não discursivas, fazendo com que tais 
relações de forças insiram-se em formas gestão de vida localizadas histórica e socialmente. 
É neste sentido que a noção identitária deve ser problematizada, uma vez que a 
identidade pode constituir “aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de 
existir por um só e mesmo quadro de referência identificável” (GUATTARI, 2005, p.80). O 
autor comenta que se um pintor encontra-se num processo de singularização, ou seja, numa 
relação de expressão e de criação que escapa às redes de significação dominantes nas 
sociedades, ele estará em um processo que não interessa para ao mainstream, ou seja, aos 
valores dominantes na sociedade. O que interessa aos últimos é em que identificação este 
processo se recairá. 
O ponto que se intenta discutir neste momento refere-se a como os processos 
singulares, presentes nas diferenças, nas diversidades, nas formas estéticas não vinculadas às 
ideologias circulantes acabam por serem capturados e categorizados em “pseudo-entidades” 
(GUATTARI, 2005), causando a supressão de suas múltiplas inteligibilidades em detrimento 
de um julgamento social preciso e unidirecional. Tendo em vista que, “sempre se tem que 
partir de alguma coisa, ou seja, sempre se tem que dispor de uma cartografia mínima” (op. cit, 
p.92), debruçar-se sobre um período histórico e suas políticas públicas, é também, neste caso, 
debruçar-se sobre os elementos que compõem a cartografia mínima das capturas identitárias 
dos que estão no mundo enquanto policiais militares e outros atores sociais que ganharam 
destaque nas práticas de segurança. Por mais diversos que possam ser os interesses e as 
relações sociais que se estabelecem, há um movimento que os ligam a uma identidade, a uma 
categoria e às práticas que dela decorrem. Por mais diversos que possam ter sido, por 
exemplo, os interesses e as práticas de um sujeito no contexto brasileiro do governo civil-
militar
14
, o fato de ser associado a uma identidade de ativista político de esquerda acarretaria 
uma postura muito específica por parte do agente de segurança. 
Tendo em vista a discussão acima, nos aproximamos do primeiro recorte do capítulo, 
que é o do período iniciado com o golpe de estado de 1964, quando em 31 de março é 
destituído o governo do então presidente João Goulart e instaurado, em 01 de abril, o regime 
militar. Este é o momento em que as Forças Armadas ficam à frente do governo nacional, 
com apoio de grupos conservadores brasileiros que procuravam evitar um suposto 
crescimento de movimentos comunistas e socialistas no país. Inseridos no contexto global da 
 
14
O trabalho usa do termo “civil-militar” para se referir ao período entre 1964 e 1985, por entender que havia um 
governo hegemonicamente militar, mas que prescindia de participação civil. Todavia, o texto também se valerá 
dos termos “regime militar” e “ditadura” em função de suas recorrentes utilizações na bibliografia consultada. 
94 
 
guerra fria liderada por Estados Unidos da América e União Soviética, é notável a 
observância, tanto nas Forças Armadas, como nas classes elitistas e conservadoras, da 
influência de concepções políticas norte americanas que visavam evitar no Brasil o que 
ocorrera em Cuba, com a revolução socialista de 1959 liderada por Fidel Castro e Che 
Guevara (FREIRE, 2009; WOLFF, 2013). 
Durante o regime militar (1964-1985), foi adotada a concepção de Segurança 
Nacional, na qual a defesa do Estado e a ordem pública constituíam seus pilares. Tal período é 
caracterizado pela forte centralização de poder na presidência, sempre ocupada por militares, 
e pela lógica de supremacia do interesse nacional, o qual se valeria do uso sem medidas da 
força para a manutenção do ordenamento social. “O período foi caracterizado por supressão 
de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão a qualquer manifestação 
contrária ao regime militar. A ditadura representou uma brusca e violenta ruptura do princípio 
segundo o qual todo poder emana do povo e em seu nome é exercido” (FREIRE, 2009, p.50). 
Conforme aponta Moema Freire (2009), a atuação do Estado na área de segurança 
estava baseada na Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, produzida pela Escola 
Superior de Guerra, contento elementos provenientes do treinamento de oficiais superiores 
das Forças Armadas no National War College (Centro de treinamento do exército 
estadunidense). Ocorre, portanto, a disseminação dos valores de defesa nacional, sintonizados 
a metas de segurança implantadas no Cone Sul
15
, na qual as Forças Armadas assumiam o 
papel de intérpretes da vontade nacional. Segundo a autora, é nesse âmbito que se cria o 
aparato repressivo composto, entre outros, pelo: “Serviço Nacional de Informação (SNI) e 
órgãos de informação das Forças Armadas, como o Destacamento de Operações de 
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI- CODI)” (op. cit., p.51). 
Em entrevista realizada, no âmbito da já mencionada avaliação do programa de 
Direitos Humanos do CICV (MELICIO, 2010a), com o então comandante-geral da Polícia 
Militar de Minas Gerais, coronel Renato Souza, o último comenta que durante a Ditadura a 
polícia militar dos diferentes estados brasileiros agia como “exército estadual”, não prestando 
serviço orientado para a segurança pública. Segundo o comandante, as ações de segurança 
eram pensadas do Estado para a sociedade, de maneira que a sociedade civil possuía pouco ou 
nula participação na formulação nas políticas públicas da área, corroborando a ideia de Freire 
 
15
 Assim como os oficiais militares brasileiros, oficiais de outros países da América do Sul também possuíram 
trocas e treinamento no War College norte americano, os quais tiveram influência nas Ditaduras implantadas nos 
países do Cone Sul - Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai e Bolívia - nas décadas de 1960, 70 e 80 
(WOLFF, 2013). 
95 
 
(2009), da qual as Forças Armadas seriam os “intérpretes das vontades nacionais”. No 
período, haveria uma preponderância do ensino policial com características militares do 
exército, ocorrendo durante a formação de praças e oficiais da corporação uma aprendizagem 
voltada para a identificação daqueles que prejudicassem a ordem, identificados como 
“subversivos”. Ainda de acordo com entrevistas com oficiais da PMMG, era presente no 
regime militar a ideologia da operacionalidade, com maior ênfase no número de policiais nas 
ruas em detrimento de maior eficiência na formação e treinamento dos mesmos. 
Vale destacar a paradoxal organização social que se instala com o governo militar 
brasileiro. A Doutrina Nacional de Segurança e Desenvolvimento possui tanto elementos 
típicos da formação militardas Forças Armadas, na qual a base é a sustentação da soberania 
nacional, como elementos provenientes das concepções geopolíticas de interesse norte 
americano de conter o suposto avanço de ideais de esquerda no país. Assim, observa-se 
a postura característica do exército, 
marinha e aeronáutica, de identificação 
daquele que seria o inimigo da nação. Os 
critérios que informam tal identificação, 
ou seja, os discursos que compõem o 
campo representacional daqueles que 
seriam compreendidos enquanto 
subversivos, eram provenientes 
majoritariamente da própria “lógica de 
guerra” que as Forças Armadas aplicavam 
 
Figura 9: Foto no ônibus da linha 239, Rio de Janeiro/RJ. 
ao campo social. Portanto, neste contexto, para se defender a nação faz-se necessária a 
intensificação de tensão e do conflito no ambiente interno. Arbitrariamente, será 
compreendido como suspeito todo e qualquer cidadão que puder atentar contra a “vontade 
nacional”. Vontade, esta, que é identificada, interpretada e difundida a partir dos interesses 
das Forças Armadas e das classes conservadoras e de elite. Newburn e Sparks (2004), ao 
discutirem a justiça criminal e as políticas culturais, comentam a ideia de Max Webber 
(1978), de que a criminologia e a justiça é classicamente relacionada, de maneira integral ou 
definitiva, à legitimação das capacidades e reivindicações de um Estado-Nação. A questão 
que se coloca aqui é: qual representatividade populacional a formação desse Estado-Nação 
possui durante o período militar? 
Conforme apontam Coimbra e Nascimento (2003, p30), “os ‘inimigos’ não eram 
somente os que se opunham politicamente ao governo instalado no Brasil com o golpe militar 
96 
 
de 1964: eram também todos aqueles que não se ajustavam aos modelos, padrões e normas 
vigentes – em especial, os pobres”. Ocorrem, dessa maneira, continuidades dos processos 
históricos operantes nos períodos precedentes. De fato, como ainda comentam as autoras, 
desde o início do século XX, diferentes dispositivos sociais, como a já vista Doutrina de 
Situação Irregular e o Código do Menor de 1927, “vêm produzindo subjetividades onde o 
emprego fixo e uma família organizada tornam-se padrões de reconhecimento, aceitação, 
legitimação social e direito à vida” (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.26). 
Fazendo ressonância à discussão do capítulo anterior, Santos (2011) diz que no 
período vigente da política de Segurança Nacional, as crianças, então vistas como “menores”, 
eram tidas como risco para a coletividade ao circularem livremente pelas ruas; uma vez 
entendidos como potencialmente criminosos, deveriam ser controladas e contidas. “Em 
consequência, o Estado passou a adotar um conjunto de medidas que tem por alvo a ‘conduta 
antissocial do menor’, como o recolhimento de jovens pela polícia e seu posterior 
encaminhamento à Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FEBEM), criada em 1964” 
(SANTOS, 2011, p.57). 
Observa-se, portanto, o diálogo entre os dispositivos presentes no capítulo anterior e 
atual. Patto (1988, p.75), em texto sobre a produção do fracasso escolar, traz à reflexão de 
Moreira Leite sobre o Brasil e arremata que “num país em que, a linha que divide classes é 
praticamente a mesma que divide etnias, essa crença encontra receptividade e pode facilmente 
se transformar num caso de preconceito racial e social travestido de conhecimento científico”. 
A crença a qual Patto se refere é a de suposta relações causais entre influências negativas da 
cultura de grupo étnicos e sociais e o insucesso escolar, promovida, entre outros, por teorias 
como da carência cultural. Esta teoria foi formulada nos EUA dos anos 1960 e introduzida no 
Brasil nos anos 1970. De forma sucinta, abarcava a ideia de “crianças carentes”, portadoras de 
distúrbios no desenvolvimento psicológico, que as tornam menos capazes do que a criança de 
“classe média” para o aprendizado escolar; é estabelecida uma relação entre a suposta pobreza 
de estimulação ambiental e a precariedade das práticas familiares com a origem destes 
distúrbios (PATTO, 1988). 
Tal teoria, presente nas práticas escolares dos anos 70 no Brasil, constitui mais um 
exemplo de como, por um lado, manifesta-se o biopoder neste contexto, e por outro, as 
instituições se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção da vida humana. 
Recuperando a análise institucionalista de Baremblitt (2002), as instituições são sistemas 
lógicos de definições de uma realidade social e de comportamentos humanos aos quais 
classifica e divide. Observa-se que a mentalidade escravocrata que recaía sobre os capoeiras e, 
97 
 
posteriormente, em toda uma sorte de pobres e miseráveis na passagem para o século XX, se 
reatualiza, entre outros, nas diretrizes de educação e nas legislações penais sobre o ‘menor’: 
Código do Menor de 1927, criação da FEBEM em 1964 e Lei do Menor de 1979. Nota-se 
uma interpenetração, em diferentes instituições, da lógica que Coimbra e Nascimento (2003) 
relacionaram ao pertencimento laboral, familiar e cultural como padrão de reconhecimento e 
aceitação social: o que a pessoa possui enquanto qualificação profissional, bem como as 
condições que sua família e ambiente relacional apresentam para o desenvolvimento moral e 
cívico, servirão de critério para a definição de que direitos e deveres elas poderão acessar. 
Trata-se, portanto, de um conjunto disciplinar e produtivo de corpos e mentes, que podem ser 
analisados à luz dos dois componentes conceituais do biopoder já descritos por Foucault 
(2005): o primeiro, do qual a Ditadura valeu-se exaustivamente, ligado à tecnologia 
disciplinar do corpo, anátomo-política, que põe em ação todo um sistema de vigilância e 
hierarquia sobre o que o corpo pode ou não pode expressar; o segundo, mais voltado ao 
homem enquanto espécie, diz sobre a política da vida, biopolítica; uma vez que é centrada nos 
grupos populacionais como todo. 
O biopoder pode ser cartografado neste momento pelas práticas de controle exercidas 
durante o regime militar, que vão tanto na direção da individualização, como da massificação. 
A questão da individualização relaciona-se aos conjuntos de saberes econômicos, políticos e 
científicos, presentes na consolidação do liberalismo. Ao comentar o âmbito científico e a 
inserção da psicologia nesta esfera, Heliana Conde Rodrigues (2005, p.85) faz uso do 
conceito institucional de Lourau, denominado “efeito Lukáscs” para explicar que: “à medida 
que progride, a ciência tem tendência a esquecer as condições de seu aparecimento, de seu 
desenvolvimento, por trás dos imperativos do objeto e do método”. A autora intenta frisar a 
ausência de análise dos condicionantes históricos e sociais na produção científica sobre 
objetos específicos, o que acarreta na naturalização de determinadas leituras da realidade 
enquanto verdades: “produz-se, com isso, mais e mais não-saber pela codificação particular 
de alguma disciplina, pela alocação num sistema, pelo recorte de um campo e rejeição de tudo 
o que existe antes e em torno desse campo” (id, ibid). 
A presente discussão visa recuperar a análise de responsabilização e culpabilização 
que determinados saberes lançam sobre o indivíduo; concepção que migrou da esfera 
científica para a social. Da mesma maneira que a constituição biológica e física foi, por vezes, 
tratada como a causa para o “fracasso escolar” (PATTO, 1988), a mesma constituição 
biológica e física, que sobrecarrega o indivíduo e subtrai da análise a dimensão social e 
relacional, foi tratada como causa para o “fracasso social” (COIMBRA, NASCIMENTO, 
98 
 
2003; RODRIGUES, 2005; SANTOS, 2011). Tal fracasso corresponderia a não inserção do 
sujeito ao padrão hegemônico da sociedade, que, no caso brasileiro, produziu-se junto a uma 
mentalidade de raízes colonizadoras e escravocratas, que fez coincidir em grande parte dos 
casos a condição étnica com a econômica: a colonizaçãoe, posteriormente, os governos 
ditatoriais em que não há representatividade do Estado em relação à população, atualizam um 
contexto em que a elite centraliza as decisões políticas, bem como as produções e regulações 
das legalidades que regem o convívio social; a escravidão e, posteriormente, as teorias 
eugênicas e higienistas atualizam um contexto em que há uma hierarquização das 
características biológicas e culturais constituintes dos sujeitos, que supostamente interfeririam 
em sua capacidade de adaptação aos valores morais predominantes de sua época. 
O presente argumento diz sobre saberes que, em interpenetração das instituições 
científicas, políticas e econômicas, primeiramente identificam o sujeito não adaptado ao 
modelos sociais circulantes na sociedade, para posteriormente, culpando-o pelo seu fracasso 
adaptativo, centrar nas medidas “sócio-educativas”. Fazendo ressonância às discussões 
anteriores, há neste contexto uma desoneração dos aspectos políticos e históricos de uma 
sociedade na produção do insucesso individual. Se há miséria, se há delinquência, se há 
loucura, se há pobreza, essas seriam causadas pela carga biológica do indivíduo. Mesmo que 
os aspectos sociais e culturais fossem tomados em análise, eles apareceriam ainda de maneira 
circunscrita e isolada: “o indivíduo e sua estrutura familiar irregular”, “o pobre e o seu 
ambiente cultural amoral e não higiênico”. 
É neste sentido que, no segundo capítulo, foram apontadas correntes psicológicas 
positivistas, que enfatizavam a utilização dos pronomes possessivos: “o indivíduo e sua 
constituição biológica”, “o indivíduo e sua conduta”, “seu ambiente” (JACÓ-VILELA, 2007). 
Houve, na passagem para o século XX, uma ênfase intimista, que posicionava o discurso 
médico e psi em um entendimento que reduzia a subjetividade a uma dimensão psicológica 
interiorizada, isolada de um contexto mais amplo (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003). Vale 
notar que se dedicar a uma análise do período da ditadura, procurando elementos discursivos e 
não discursivos presentes nas práticas de sua época, diz também sobre a cartografia desses 
saberes circulantes em períodos anteriores. Ao passo que as instituições sociais não são 
totalidades fechadas em si, mas, pelo contrário, se articulam em combinações contínuas de 
poder, tais concepções de homem foram convocadas para dar inteligibilidade às atividades 
instituídas em seus processos. 
Com relação às teorias eugênicas discutidas no capítulo precedente, observa-se: 
99 
 
Durante o período da ditadura militar em nosso país, em 1974, por exemplo, em 
duas cidades satélites de Brasília, Ceilândia e Taguatinga, por ‘ordens superiores’, 
em duas pré-escolas públicas, crianças – em sua maioria filhos de imigrantes 
nordestinos – foram colocadas em fila para terem seus crânios e faces medidos. 
Posteriormente, os dados foram enviados à direção, e professores dos referidos 
estabelecimentos elaboraram laudos que descreviam as características emocionais e 
intelectuais dessas crianças. (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.22) 
Um outro processo importante e presente neste período refere-se ao boom da 
urbanização brasileira, de grande intensidade entre as décadas de 1950 e 1970. Conforme 
aponta Soares (2013), há um deslocamento do eixo de gravidade nacional do campo para a 
cidade, em um fenômeno de migração interna peculiar e rara, mesmo no comparativo 
internacional: “Importa destacar mais do que a natureza do processo, a escala, a velocidade e 
as implicações. O Brasil era 75% rural, nos anos 1950, e se tornaria 75% urbano, ao longo dos 
anos 1970” (SOARES, 2013, s/p). 
Tal fenômeno de migração acarretou em profundas mudanças não só na paisagem 
brasileira e nas atividades comerciais, como também e principalmente nas formas de 
sociabilidades encontradas pelo migrante. “Passar a viver na cidade implica revolucionar as 
relações de trabalho, envolver-se em diferentes ambientes normativos e em distintas 
experiências com o tempo e a natureza, submetendo-se a diferentes disciplinas e rotinas” 
(SOARES, 2013, s/p). 
Soares procura enfatizar que a mudança ao meio urbano abarca também uma 
redefinição da relação com a religiosidade, com a família, em suma, com as formas de 
relacionamento social como um todo. O autor destaca as transformações que ocorrem no 
âmbito da significação da propriedade e dos vínculos com a terra, bem como as modalidades 
de consumo, arrematando: “O convívio com a complexidade urbana promove a mudança na 
visão relativa a justiça e lealdade, nas percepções a respeito das instituições públicas e nas 
próprias ideias sobre a distinção entre público e privado” (id, ibid). 
Na mesma direção encontram-se os argumentos de Milton Santos (2002), para quem 
a mudança rápida e brutal de ritmo e significação relaciona-se tanto ao ambiente, aos lugares, 
como ao próprio homem: 
As grandes migrações são, aliás, uma resposta e representam, na maior parte dos 
casos, uma queda de valor individual: o abandono não desejado da rede tradicional 
de relações longamente tecidas através de gerações; a entrada já como perdedor em 
uma outra arena de competições cujas regras ainda tem de aprender; a ruptura 
cultural com todas as suas sequelas e todos os seus reflexos. (SANTOS, 2002, p.22) 
Ao comentarem a transição urbana brasileira, Martine e McGranahan (2010) 
destacam a forte concentração desse processo nos centros urbanos já consolidados. Portanto, 
Rio de Janeiro, que na passagem para o século XX já representava uma “grande cidade”, visto 
100 
 
os padrões nacionais da época (CARDOSO, 1968), recebeu em suas terras uma grande 
quantidade de migrantes, principalmente da região nordeste brasileira. Tal processo teve como 
característica, entre outros, o modelo de modernização agrícola conservador adotado pelo 
regime militar desde 1964, que “visava aumentar a produtividade sem alterar a estrutura 
social predominante, utilizando para isso o crédito subsidiado, os pequenos produtores de 
todo tipo foram expulsos do campo em grandes números, provocando uma aceleração da 
migração rural-urbana” (MARTINE, MCGRANAHAN, 2010, p.16). 
Neste contexto, observa-se ao mesmo passo um intenso aumento demográfico e a 
falta de política estatal que abarcasse um acolhimento sustentável dessa população. O cenário 
da segunda metade do século XX no Brasil conjuga um fracasso político agrário e a ausência 
de planejamento urbano. Às dificuldades materiais, como o desemprego e as moradias 
improvisadas dos novos habitantes urbanos, acrescentam-se as dificuldades de socialização e 
rupturas culturais comentadas acima por Luiz Eduardo Soares e Milton Santos. Não é de se 
surpreender, portanto, que neste período há uma elevação das taxas de criminalidade que, por 
sua vez, serão respondidas pelo governo militar com o recrudescimento da atividade 
repressiva. 
O que fez a classe média carioca, desde o início dos anos 70, se cercar em seus 
prédios e condomínios, não foi inicialmente provocado pelo desenvolvimento do 
tráfico de drogas nas áreas urbanas pobres da cidade, mas decorreu, como se poderia 
demonstrar, do aumento dos assaltos, com ou sem arrombamento, de bancos, carros, 
residências e apartamentos, bem como dos furtos e roubos nas ruas (...) Não existem 
estatísticas de fonte policial razoavelmente confiáveis para o período anterior a 
1977, mas é significativo que, na área da delinquência juvenil, para a qual existem 
estatísticas desde o início dos anos 60, se verifique uma extraordinária mudança de 
padrão de infrações a partir da primeira metade dos anos 70. O furto, infração 
amplamente dominante até o início dos anos 70, vai sendo substituído 
tendencialmente pelo roubo, a partir do mesmo período, até que as curvas se 
invertam em meados dos anos 80. (MISSE, 1997, p.95-96) 
Por fim, cabe apontar o elemento destacado no início deste subcapítulo, a 
classificação da ideologia política como critério constituintedo subversivo, ou, do inimigo da 
nação. Desde o golpe de 1964, a justificativa do avanço comunista manteve-se no horizonte 
doutrinário e regulatório das práticas nacionais, não sem a associação arbitrária desta 
orientação política ao “perigo vermelho”: 
 
Figura 10: Charge de 
Kinfe. 
 
Na cabeça do meu pai, os comunistas estavam prestes a tomar o apartamento dele e 
botar três ou quatro favelados para morar lá. O nosso sitiozinho em Miguel Pereira, 
de menos de um alqueire, certamente seria confiscado pelas Ligas Camponesas para 
fazer a reforma agrária. E a classe média, de maneira geral, comungava desse pânico. 
(SIRKIS, 2004, apud BICALHO, 2005, p.71) 
101 
 
Durante o governo militar, todo e qualquer ato percebido como ameaça ao Estado 
justificava a adoção de atividades repressivas. “Em suma, o paradigma de Segurança Nacional 
caracteriza-se pela prioridade dada, inicialmente, ao inimigo externo, materializado no 
combate ao comunismo; e, posteriormente, ao inimigo interno, correspondente a qualquer 
indivíduo percebido como contrário à ordem vigente” (FREIRE, 2009, p.51). 
O ápice da discricionariedade do aparato repressivo e de ausência de direitos 
cidadãos, ocorre em dezembro de 1968 com o Ato Institucional de número cinco, conhecido 
como AI-5. Conforme comenta o jornalista Carlos Marchi, em entrevista ao Estado de São 
Paulo, de 06/12/2008, desde 1964, o governo militar notabilizou-se por produzir atos 
institucionais, que representavam documentos legais, que eram outorgados à sociedade, sem 
necessidade de apreciação do Congresso Nacional, conferindo progressiva centralidade e 
acumulação de poderes na figura do general presidente. Assim, em 1968, em contexto que 
envolvia manifestações de estudantes pelas ruas das grandes cidades brasileiras, foi instituído 
o AI-5, que cedia poder irrestrito ao governo. A partir deste ato institucional, que foi vigente 
até 1978, entre os governos de Costa e Silva e Geisel, foi endurecida a censura aos meios de 
comunicação, proibiu-se reuniões e manifestações de cunho político, realizou-se intervenção 
federal nos estados e municípios e permitiu-se legislar por decreto-lei. 
Em estudo dedicado ao tema, Bicalho (2005) comenta que com a impossibilidade de 
qualquer tipo de manifestação e protesto ocorre, no período em questão, a opção pela luta 
armada e/ou clandestinidade por parte de inúmeros brasileiros imbuídos de espírito 
democrático. Todavia, mesmo muitos não chegando às vias de fato do confronto armado, a 
emergência dessa nova classe de perigosos, subversivos contrários ao Regime, fez por vezes 
prevalecer a análise maniqueísta – pertencente ou não pertencente a este grupo - que culminou 
na morte de pessoas que nunca participaram da luta armada. 
Neste período também se acentuam as práticas de torturas, produtoras de histórias 
nem sempre reveladas: 
 
Figura 11: Desenho de Latuff 
Histórias de torturas diversas e singulares, como a do Tenente Elias, 
preso e expulso do Exército após um jogo de cartas com os 
‘perigosos’. Histórias dos interrogatórios, das acusações de não-sei-o-
quê, dos pontapés, dos ‘telefones’, das sessões nos paus-de-arara, das 
revistas noturnas, da leitura – e censura – dos bilhetes, das perguntas 
sem fim. Histórias do Regimento Sampaio, do Batalhão da Polícia do 
Exército na Barão de Mesquita com sua sala roxa, ou o ‘famoso’ 
Maracanã. Histórias dos quartos sem janelas, dos DOPS, DOI-
CODIs, da ilha das Flores, das ‘viagens’ de Opala, do capuz, dos 
inchaços, da pressão nos pés sobre o tórax, dos espancamentos. 
(BICALHO, 2005, p. 74-75) 
 
102 
 
Dessa maneira, observa-se no período do governo militar, entre 1964 e 1985, um 
conjunto de elementos que reatualizam regulações do viver social precedentes em um 
agenciamento específico e discricionário, que, por um lado, informa os critérios de 
identificação de um suposto inimigo nacional a partir de uma ideologia de defesa e soberania 
nacional, sustentadas pela elite brasileira conservadora; e, por outro lado, pauta ações 
repressivas e de supressão de direitos humanos pelo legalismo autoritário. A sociedade não se 
apresenta como um campo de expressão das diversidades e pluralidades culturais e sociais. 
Pelo contrário, a alteridade é suprimida por uma dinâmica dualista entre os que “amam o 
país” e os que devem “deixá-lo”
16
. Assim, todas as formas de ser e estar no mundo deveriam 
ser enquadradas em padrões identitários que incluem as pessoas, necessariamente, em um 
bloco ou outro: as que aceitavam e/ou eram passíveis de se inserir no projeto de 
desenvolvimento nacional e as que negavam e/ou não eram passíveis de se inserir em tal 
projeto. Nota-se que o enquadramento em um ou outro não necessariamente passava pela 
escolha imdividual. Para além das orientações políticas – que também devem ser 
compreendidas em um contexto social dinâmico e de forças tensionadas, não reduzidas a 
opções ou escolhas individuais – havia toda uma sorte de grupos sociais que não se 
enquadravam ao ideário hegemônico da época, sejam os fracassados na escola, sejam as 
crianças e adolescentes que entram em conflito com a lei e devem submeter-se a medidas 
educativas, sejam aqueles de culturas e moradias desvalorizadas. Até mesmo o amor, utilizado 
no slogan ditatorial, não possuía caminhos livres a trilhar; amar o país, na perspectiva deste 
governo, é amar a ordem e a soberania imposta por um Estado, sem qualquer participação dos 
meios democráticos e cidadãos. 
Retomando a leitura em questão a partir do bipoder foucaultiano, tem-se que a 
individualização ocorre no sentido de centrar no indivíduo a vigilância irrestrita de seus 
corpos, autorizadas por atos institucionais que conferiam poder desmesurado ao Estado e seu 
aparato policial. No tocante à biopolítica, observa-se a gestão da vida pela massificação de 
valores nacionalistas, de amor indiscriminado à pátria, que também coincidia com a 
propagação de ideais políticos conservadores. O ponto em questão são as diferentes formas de 
controle mais difusas e sofisticadas que passam a substituir antigos sistemas fechados como a 
família, escola, fábrica, hospital e prisão. Há uma rede ao mesmo tempo aberta e articulada de 
elementos, entre outros, econômicos (capacidade produtiva no mercado de trabalho), políticos 
 
16
 As expressões entre aspas fazem menção ao slogan presente na Ditadura que dizia, referente ao Brasil da 
época: “Ame-o ou deixei-o”. 
103 
 
(ideologias políticas inseridas no contexto polarizado da guerra fria), sociais (indivíduos e 
famílias avaliados, por exemplo, segundo Doutrina de Situação Irregular), científicos (saberes 
médicos e psis que, numa mão, priorizam técnicas e práticas diagnósticas que desconsideram 
os condicionantes históricos e sociais e, noutra, salientam qual seria a constituição física e 
social provedora de saúde), nas quais cabe ao indivíduo adaptar-se ou não. 
Todavia, cabe fazer uma ressalva quanto ao risco de leitura totalizante do contexto, 
que recairia numa relação causal que tem como polo difusor o governo militar. Paul Veyne 
(1992, p.164) ao comentar a tese central de Foucault alerta que: “o que é feito, o objeto, se 
explica pelo o que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos 
que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito”. Assim, o risco é de não levar em 
consideração a concepção descentralizada de poder que Foucault propõe e que esse trabalho 
utiliza. A presente pesquisa, uma vez que propõe uma análise crítica das produções científicas 
pautadas na relações lineares de causa-efeito, intenta problematizar o papel do Estado de 
maneira não generalista. Como diz Veyne (1992, p.165), “isso não que dizer que o nosso erro 
seja acreditar no Estado, quando só existiram Estados: nosso erro é crer no Estado ou nos 
Estados, em vez de estudar as práticas que projetam objetivaçõesque tomamos pelo Estado ou 
por variedades do Estado”. 
A própria questão paradigmática insere-se nesta problemática. Conforme sugere 
Freire (2009), os paradigmas analisados não são estanques; ao mesmo passo que o surgimento 
de um novo paradigma não indica a supressão dos anteriores. Debruçar-se sobre paradigmas 
de segurança pública e cartografar seus elementos diz sobre uma discussão específica, 
transitória, que faz um recorte ou, mais precisamente, um pouso sobre algo que está em 
constante movimento (KASTRUP, 2007). Outro ponto é a possível confusão entre paradigma 
predominante em uma época e as políticas públicas do mesmo período: “Os paradigmas são 
crenças, valores e conceitos que predominam no governo e na sociedade em determinada 
localidade e em determinado período. Mas isso não quer dizer que essas mesmas crenças, 
valores e conceitos sejam automaticamente traduzidos em políticas públicas” (FREIRE, 2009, 
p.50). 
Tudo o que é produzido pela produção de subjetividade capitalística – tudo o que 
nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não 
é apenas uma questão de ideia ou de significações por meio de enunciados 
significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade ou a identificações com 
polos maternos e paternos. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes 
máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias 
psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo (GUATTARI, 2005, p.35). 
 
104 
 
Sobre o tema, Candiotto (2010, p.19) reforça que “detrás das práticas inexiste 
qualquer sujeito de verdade que determine sua compreensão e as constitua como tais: pelo 
contrário, trata-se de situar a constituição do sujeito a partir daquilo que se faz com ele num 
determinado momento, na condição de louco, doente, criminoso, dirigido, etc.”. Nesse 
sentido, tendo visto alguns dos elementos presentes no período do governo militar, a 
problematização vai em direção das produções de subjetividade que podem ser localizadas na 
segunda metade da década de 1980, em que novos ares chegam ao processo de 
redemocratização nacional. 
4.2 REDEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA E AS (DES)CONTINUIDADES NA 
SEGURANÇA PÚBLICA: LIMITES E DISTÂNCIAS ENTRE A FORMA E A 
PRÁTICA 
Se no capítulo 03 discutiu-se sobre como certas práticas e redes discursivas 
obtiveram viço em detrimento de outras, neste momento a reflexão deverá ocorrer em duas 
direções: quais novas configurações paradigmáticas de segurança passaram a ganhar terreno 
no período de redemocratização; por que certos avanços obtidos em outras áreas da 
experiência coletiva não ganharam viço na segurança pública, acarretando em aparente 
imobilismo institucional. A pesquisa objetiva pensar a questão levantada por Milton Santos 
(2002) no que se refere à combinação entre as estruturas fundamentais do poder e sua prática 
cotidiana: “De que forma deverá a Constituição levar em conta essa realidade e velar para que 
novos equilíbrios se possam instalar, em benefício da coletividade e tendo o território como 
pano de fundo?” (SANTOS, 2002, p.23). 
Em 05 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição Nacional, que é símbolo do 
processo de redemocratização iniciado na década de 1980, no Brasil. A partir de uma lenta e 
progressiva abertura política do governo militar, ainda no fim dos anos 70, a configuração de 
um regime autoritário passa a conviver com um horizonte democrático, que culmina, entre 
outros, no movimento de Diretas Já, entre 1983 e 84, na produção da Constituição em 1988 e 
na primeira eleição direta para a presidência desde João Goulart, em 1989, com posse de 
Fernando Collor em 1990. Observa-se, assim, a instituição de um Estado democrático de 
direito, junto a vigência de uma Constituição cidadã, que promovem “um quarto de século de 
experiência em um novo ambiente normativo, sob nova moldura institucional, recuperando o 
tempo perdido, atando linhas de tradição rompidas pelo arbítrio do regime militar (,,,)” 
(SOARES, 2013, s/p). 
No campo da segurança pública, ocorrem importantes mudanças estruturais. Como 
visto anteriormente, o artigo 144 da Constituição a estabelece como dever do Estado, direito e 
105 
 
responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da 
incolumidade das pessoas e do patrimônio. Representa, assim, a passagem da Segurança 
Nacional para a Segurança Pública, propriamente dita, que seria realizada pelos seguintes 
órgãos: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias 
Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares. Nesse contexto, as Forças 
Armadas, a partir do artigo 142, é direcionada à manutenção da segurança nacional, soberania 
nacional, defesa da Pátria e garantia dos poderes constitucionais (FREIRE, 2009). 
A mudança paradigmática ocorre no sentido da descentralização. Antes exercida e 
normatizada pela presidência militar e pelas Forças Armadas, passa, agora, a ser dever do 
Estado e direito e responsabilidade de todos. Há também uma diferenciação clara entre os 
papéis institucionais do exército e das polícias, que comunga com a mudança doutrinária de 
Segurança Nacional para Segurança Pública, sendo a primeira voltada à soberania e defesa de 
território da nação, exercida pelas Forças Armadas, e a segunda voltada ao ordenamento e 
contenção da violência dentro das fronteiras nacionais, exercida pelas Forças Auxiliares, nas 
quais se encontram as polícias. Em suma, há o deslocamento da perspectiva de segurança da 
defesa dos interesses nacionais para a defesa da integridade das pessoas e do patrimônio. 
Contudo, conforme salienta Freire (2009), a responsabilização das instituições policiais 
federais e estaduais pela segurança não abarca os possíveis papéis que outras instâncias 
governamentais poderiam assumir nesta conjuntura. 
A questão de Moema Freire relaciona-se ao vazio constitucional em se definir a 
atuação, por exemplo, dos municípios e das comunidades na produção da segurança. Tal 
ausência é sentida, uma vez que a Constituição de 1988, de maneira geral, favoreceu a 
administração descentrada, conferindo maior capilaridade a diversos campos das políticas 
públicas brasileiras. Um exemplo desse processo é a importância dada às municipalidades na 
gestão do Sistema Único de Saúde, o SUS. Tal sistema foi, inclusive, utilizado como modelo 
para a formulação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), pelo qual a Secretaria 
Nacional de Segurança Pública (Senasp) buscou maior articulação e integralidade entre as 
unidades federativas. Seis eixos compõem o SUSP: Gestão unificada da informação, Gestão 
do sistema de segurança, Formação e aperfeiçoamento de policiais, Valorização das perícias, 
Prevenção e Ouvidorias independentes e Corregedorias unificadas (FREIRE, 2009). 
A nova estruturação da segurança pública, bem como a implementação do SUSP 
mostrou-se, entretanto, insuficiente para mudanças práticas mais profundas. A autonomia na 
condução política de segurança conferida aos estados acabou por mudar a centralidade da 
esfera federal para a centralidade das unidades estaduais. A capilarização parece não ter 
106 
 
ganhado fôlego para atingir as gestões mais locais. Nesse sentido, as importantes 
transformações ocorridas na estruturação da segurança pública não se convertem em 
mudanças palatáveis à relação policial e cidadão. Enquanto outras áreas, mesmo que de forma 
gradual e também com seus problemas específicos, dão mais vazão às transformações, as 
corporações policiais militares parecem manter a mesma atmosfera simbólica. Ocorre o que 
Luiz Eduardo Soares (2013) chama de imobilismo político da segurança. Em uma paisagem 
que se torna cada vez mais habitada por movimentos amparados nos Direitos Humanos, como 
a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Código de Defesa do 
Consumidor (CDC), ambos em 1990, observa-seuma polícia com a mesma prática de 
momentos precedentes. 
No dia seguinte ao sepultamento formal da ditadura, tendo sido promulgada a 
Constituição, os poderes do Estado emitiam um sinal democrático, cuja mensagem 
definia os indivíduos como cidadãos e os convidava a participar do novo momento 
da vida nacional, compartilhando direitos. Por outro lado, a experiência na rua, na 
esquina, emitia sinais opostos, cujo conteúdo reafirmava a arcaica desigualdade de 
tratamento: o policial uniformizado, manifestação mais tangível e visível do Estado, 
agia com a violência de sempre, nos territórios populares, abordando, seletivamente, 
pobres e negros (SOARES, 2013, s/p). 
Cabe, portanto, nos debruçar sobre o contexto dos anos 1980 e 90, visando a 
emergência de algumas das forças e tensões atuantes na sociedade brasileira deste período. O 
intuito é averiguar as raízes do imobilismo político da segurança pública, discutindo-se, de 
maneira sucinta, os seguintes aspectos: o distanciamento entre a realidade almeja pelos ideais 
democráticos e as condições sociais econômicas e sociais da época; a articulação entre a 
ausência de um Estado de Bem Estar Social e a intensificação de um Estado punitivo; e o 
descrédito e o engessamento da arquitetura institucional da polícia militar frente aos avanços 
de ideários cidadãos. 
4.2.1 A cidadania de quais cidadãos? A Constituição e os elementos constituintes 
da população brasileira 
No percurso que vai da progressiva abertura política, ainda na Ditadura, até a eleição 
direta para presidente, é possível encontrar um otimismo em solo nacional, como o da espera 
da bonança após a tempestade. Na música Back in Bahia, Gil canta a alegria do retorno a sua 
casa brasilis, que mesmo que ainda fechada, já dava sinais de um ar menos denso do que o 
encontrado nos anos de chumbo, como ficou conhecido o momento mais severo do governo 
militar. Aos poucos já não era necessário “puxar os cabelos ou ouvir Celly Campelo pra não 
cair na fossa”, como se referia a canção tropicalista. 
107 
 
 Na década de 80 o esforço das lutas políticas encontra um desfecho favorável na 
promulgação constituinte. As vozes, antes caladas pela censura, ganham os palanques 
políticos. Os corpos, antes vigiados, perseguidos e eventualmente torturados, voltam a 
transitar pelas ruas. As ideias, antes restritas às reuniões clandestinas e aos livros não mais 
encontrados nas bibliotecas, encontram espaços para promover a sua leitura das realidades 
sociais. A cavalaria já não era tão presente nas universidades e as conversas de corredor eram 
menos sobre quem seriam os infiltrados e mais sobre qual seria o futuro nacional após as duas 
décadas de ditadura e privação das liberdades. A participação política da sociedade civil, a 
discussão intelectual, os acordos internacionais; todos eles passam a habitar o contexto 
brasileiro, antes fechado a sete chaves, por trás de janelas gradeadas. 
 Todavia, o abrir das portas e o andar pelas praças não permitiam chegar aos olhos 
outra paisagem que não fosse a da desigualdade social. O estancamento do milagre 
econômico, o crescimento urbano desordenado, o aumento das taxas de criminalidade, entre 
outros, conformaram um duro contragolpe àqueles que achavam que o pior já havia passado. 
Assim, como destaca Soares (2013), o período vê emergir dois processos, como se fossem 
dois Brasis: um, otimista, mais ligado ao desenvolvimento institucional, e outro, mais 
pessimista, que trazia sobre seus ombros a imagem da miséria em que se encontrava grande 
parte da população. 
Segundo o autor, há no país desta época, uma segunda dicotomia, que pode ser vista 
até os dias atuais. Uma dicotomia que separa o país “formal”, do país “real”, trazendo as 
adjetivações “formal” e “substantivo” para qualificar as instituições políticas: “Quando a 
forma se afasta da substância revela-se mera ilusão ideológica a mascarar a verdade histórica 
– é o que se conclui adotando-se essa distinção retórica” (SOARES, 2013, s/p). 
Os dois questionamentos a serem trabalhados, de maneira complementar, são sobre 
os motivos da área de segurança apresentar menos avanços que outras áreas de interesse 
público e os aspectos que diferenciam, entre si, as duas políticas públicas da área. 
Primeiramente, conforme exposto, há um distanciamento entre as formas de 
regulação social estabelecidas pela Constituição de 1988 e as condições sociais e econômicas 
em que se encontrava a maioria populacional do país. Os elementos deste distanciamento 
serão trazidos em sequência, neste tópico e nos subsequentes, pelas ideias de Soares, como 
com contribuições de outros autores. Todavia, pontua-se desde já a questão deficitária dos 
modelos participativos da sociedade civil. São evidentes os avanços encontrados nos 
processos de redemocratização, principalmente se levado em consideração a nulidade de 
representação popular durante a ditadura. O próprio movimento de Diretas Já, bem como as 
108 
 
manifestações sindicais na grande São Paulo, constituem bom indicativos da presença popular 
em movimentos organizados. Contudo, desde já, destacamos a ausência de modelos 
consultivos e deliberativos que promovam a participação mais efetiva do cidadão comum nas 
políticas públicas, o que será reavaliado no capítulo 06, no tocante à importância dos 
municípios e de outras formas de gestão mais local para o âmbito da segurança pública. 
Este fenômeno vai de encontro ao que Bárbara Hudson (2007) diz sobre a 
aplicabilidade da filosofia de Direitos Humanos em países que há acentuada desigualdades 
econômicas. Em texto que versa sobre diversidade, crime e justiça criminal, a autora enfatiza 
que, em geral, os propositores da filosofia de Direitos Humanos são provenientes dos países 
ocidentais industrializados e desenvolvidos. Desse modo, faz-se necessário averiguar como as 
culturas, os diferentes espaços, os valores e os conceitos específicos de cada agrupamento 
social serão impactados por essa filosofia que é pensada externamente. Na mesma direção, 
encontra-se Susanne Karstedt (2004), que expande a crítica às diferentes formas que as 
políticas criminais podem assumir: “Crime policies comprise more than a technology, a 
practice or a strategy. They have to be conceptualized as integrated concepts, which have 
emerged in a particular institutional setting and in a legal and public culture of crime 
prevention and control” (KARSTEDT, 2004, p.19-20). 
Em segundo lugar, considerando a diferença entre a orientação formal e a prática, 
encontra-se, entre outros, a extensão da desigualdade social e econômica ao campo de acesso 
à justiça e usufruto de direitos. Sobre este ponto Soares (2013, s/p) comenta que “a aplicação 
das leis é submetida à refração imposta por crivos seletivos bastante específicos e nada 
aleatórios”. A ideia de refração mostra-se potente, uma vez que diz sobre a mudança na 
direção de uma onda ao atravessar a fronteira entre dois meios com diferentes índices de 
refração. Dessa maneira, traduz a ideia de que a aplicação das regulações formais irão variar 
de acordo com o ambiente social, em suma, o acesso ao direito por parte de classes 
econômicas alta e baixa são distintos entre si. 
Ao comentar sobre a ausência de isonomia, que é base para toda e qualquer 
legislação, Soares traz o exemplo da pesquisa de Roberto DaMatta nos anos 70, que se refere 
à pergunta “sabe com quem está falando?”, utilizada por aqueles que objetivam gozar de 
privilégios junto aos profissionais de segurança. Outro pesquisador que também traz 
argumento nesta direção é Michel Misse (1997). Utilizando o “jogo do bicho” como prática 
exemplar, o autor aponta a diferenciação entre, de um lado, a política de criminalização mais 
geral e, de outro, a percepção social da criminalização: 
109 
 
No Rio de Janeiro, um padrão histórico estabeleceu-se com a mercadoria ilegal 
“jogo do bicho”. Esse padrão incluía, desde o início,uma contradição entre a 
política de criminalização mais geral, que atendia a uma parte importante da 
demanda moral da opinião pública, e a “percepção social” da atividade 
criminalizada e de seus agentes pelos seus consumidores, que incluiu, em diferentes 
épocas, também uma parte importante da população da cidade. Evidentemente, essa 
contradição facilitou o desenvolvimento da oferta de mercadorias políticas em todos 
os níveis, desde o clientelismo político até a corrupção mais desenfreada, com a 
consequente banalização seja da proibição do jogo, seja do poder dos bicheiros. 
(MISSE, 1997, p.106) 
Misse defende que essa distinção do que é criminalizável “de direito” e o que é 
criminalizável “de fato”, quando banalizada, gera uma relação informal e ilegal de 
mercadorias políticas. Tais mercadorias poderiam ser facilmente avistadas no sujeito que, 
costumeiramente critica a corrupção policial, mas que, ao ter seu carro abordado e estando 
irregular com seus documentos, faz uso do pagamento ilegal ao policial em troca de seu 
favorecimento, ou seja, compra tal mercadoria política que o policial, na configuração que se 
estabelece, pode oferecer. Há, portanto, uma cumplicidade entre o profissional de segurança e 
o cidadão, que atualizam a distinção entre o que deve ser punível e o que não deve, não pela 
letra da lei, mas por uma avaliação moral específica e compartilhada entre os envolvidos: 
“Não se trata, nesse caso, apenas de ‘impunidade’, já que essa banalização confrontava, na 
prática, a própria legitimidade dessa ‘criminalização’ e, portanto, o sentido último (e moral) 
da punibilidade” (id, ibid). 
Assim, as falas de Soares e Misse equacionam a conversão da “forma” na “prática” 
com fatores que envolvem um histórico colonialista e escravocrata que evoca uma 
discriminação do alvo da lei e das práticas de segurança, bem como, e de maneira 
complementar, um comportamento social que fragiliza a aplicação universal da lei e faz girar 
um jogo de privilégios e trocas, ao mesmo tempo ilegais e amplamente difundidas na 
sociedade. Ou seja, na transição entre “forma” e “substantivo” ocorre, por vezes, uma refração 
social e um varejo de mercadorias políticas que suprimem os valores de direitos iguais a 
todos. 
Em discussão tangencial, Foucault coloca: 
A sociedade não tem a menor necessidade de obedecer a um sistema disciplinar 
exaustivo. Uma sociedade vai bem com certa taxa de ilegalidade e iria muito mal se 
quisesse reduzir indefinidamente essa taxa de ilegalidade. O que equivale mais uma 
vez colocar como a questão essencial da política penal não como punir crimes, nem 
mesmo quais ações devem ser consideradas crime, mas o que se deve tolerar como 
crime. Ou ainda: o que seria intolerável não tolerar? É a definição de Becker em 
‘Crime e Castigo’. Duas questões aqui: quantos delitos devem ser permitidos? 
Segunda: quantos delinquentes devem ser deixados impunes? É essa a questão da 
penalidade. (FOUCAULT, 2004, p.351) 
 
110 
 
Nesse sentido, cabe diferenciar as discussões em torno da criminalização de certos 
objetos ou práticas sociais (como jogo do bicho ou descriminalização da Maconha), da prática 
social em si, que acaba por materializar, por exemplo, posturas discriminatórias de cunho 
étnico e/ou econômicos. O que entra em jogo são quais elementos estão sendo 
territorializados nas produções de subjetividade desta época, e da contemporaneidade, que 
implicam em práticas segregadoras e excludentes. Uma vez que a presente pesquisa possui a 
alteridade como analisador, cabe enfatizar a “reincidência” de certos grupos – pobres, negros, 
vagabundos e outras minorias tidas como vulneráveis – na condição de terem os direitos 
suprimidos, seja na refração social da aplicação da lei, seja pelo baixo poder persuasivo e de 
compra no varejo ilegal das mercadorias políticas. 
4.2.2 Redemocratização e Estado Punitivo: a fratura institucional da segurança 
Sinto no meu corpo / A dor que angustia / 
A lei ao meu redor / A lei que eu não queria... 
Estado Violência / Estado Hipocrisia 
A lei não é minha /A lei que eu não queria... 
 
Meu corpo não é meu /Meu coração é teu 
Atrás de portas frias / O homem está só... 
Homem em silêncio / Homem na prisão 
Homem no escuro / Futuro da nação 
 
Estado Violência / Deixem-me querer 
Estado Violência / Deixem-me pensar 
Estado Violência / Deixem-me sentir 
Estado Violência / Deixem-me em paz. 
(Música Estado Violência. De Charles Gavin - Titãs, 1986) 
O processo de redemocratização brasileira traz em sua bagagem conquistas de 
direitos que vão das crianças e adolescentes até à população idosa. Como se vê no caso dos 
primeiros grupos, a Constituição foi fermento para um novo documento regulatório: “Só na 
Constituição de 1988, pela primeira vez na história brasileira, há a concepção de criança e do 
adolescente como cidadãos e sujeitos de direitos sociais, políticos e jurídicos” (SANTOS, 
2011, p.58). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), assim, refere-se ao 
comprometimento nacional quanto aos valores sacramentados internacionalmente pelos países 
signatários da Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção dos Direitos da 
Criança de 1989. É com a mudança, por exemplo, da Lei do Menor para o ECA que se sai da 
estruturação pela “situação irregular”, pautada pelo terreno da imoralidade, anormalidade e 
mesmo patologia dos modos de vida das famílias pobres, e se vai para a “proteção integral”, 
desfazendo a separação entre menor e criança (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003). Todavia, 
o que se observa, em mais de duas décadas depois, são a falta de efetivação de normas, a 
crescente fomentação pela mídia da redução da idade penal e a centralização em medidas 
111 
 
sócio-educativas de baixa qualidade para responder à participação de crianças e adolescentes 
em práticas penalizáveis, os chamados atos infracionais. 
Debruçando-nos sobre a população como um todo e lançando olhar mais atento às 
práticas de segurança pública, nota-se, com certa facilidade, que ao mesmo passo que se 
promulga uma Constituição cidadã, ocorre, no campo da segurança, uma acentuação das 
práticas punitivas: a polícia passa a prender mais, a matar mais (em autos de resistência ou 
não), bem como as prisões passam a ter uma população cada vez maior (WACQUANT, 
2013). Entendendo a segurança a partir de uma habitação de território – simbólico, 
econômico, social, significante, entre outros – cabe observar que outras instituições, saberes 
discursivos e não discursivos são agenciados nessa fratura entre o processo de 
redemocratização e aumento das práticas punitivas. 
Um primeiro elemento refere-se à ausência de um Estado de Bem-Estar Social, o 
Welfare State, bem como à ampliação da onda neoliberal em solo nacional. Segundo Salla, 
Gauto e Alvarez (2006), o Estado de Bem-Estar é implantado, sobretudo, após a Segunda 
Guerra Mundial, nos países considerados desenvolvidos, tendo a função de prover suporte 
econômico e social, como auxílios desempregos, moradias e condições básicas de 
sobrevivência. Wacquant (2013)
17
, comenta que no período entre as guerras mundiais e a 
década de 1970, o Estado de Bem-Estar se expandia e se retraia para administrar a pobreza; se 
a pobreza aumentava, o Welfare State se expandia, se a pobreza diminuísse, o Welfare State 
retraia-se. Contudo, a partir da década de 70, com a referida expansão neoliberal, ocorre a 
substituição do Welfare para o que Wacquant denomina como “Workfare”, no qual o bem 
estar social limita-se à colocação do pobre no mercado de trabalho de qualificações mais 
baixas. Nesse contexto, em que o retraimento do Estado de Bem-Estar interrompe seu efeito 
sanfona, expandindo e retraindo conforme a pobreza, limitando-se a medidas de menor 
espectro, vê-se o aumento do Estado Punitivo. 
Em trabalho que versa sobre o tema, Garland (1996), comenta que em 1960 passam a 
ganhar força as dúvidas sobre a eficiênciadas instituições da justiça criminal então atuantes. 
A proposta do autor, como também comentam Salla, Gauto e Alvarez (2006), é de 
compreender a punição como uma instituição social, o que demonstraria o caráter complexo e 
multifacetado do fenômeno. Tal proposta permite a leitura das penas em uma rede mais ampla 
 
17
 As referências à Wacquant datadas de 2013 referem-se à palestra que o mesmo conferiu em 21/10/2013 na 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, portanto sem numeração de páginas, versando sobre “A 
Bastilha Brasileira: porque o hiperencarceramento veio para os trópicos”. 
 
112 
 
de ação social e significado cultural. Mais do que entender as causas das taxas criminais e do 
desenvolvimento da violência, o interesse concentra-se mais detalhadamente em como os 
Estados respondem a esses movimentos. Nesse sentido, em sucinta consideração sobre a obra 
do autor, Garland aponta que anteriormente às décadas de 1960 e 70, havia uma 
preponderância da ideia de soberania nacional, o que fazia com que o Estado assumisse para 
si as estratégias de controle criminal. O Estado de Bem-estar e sua atuação conforme as 
necessidades sociais apresentadas, como apontadas acima por Wacquant, constituiu um 
aparato de regulação e engenharia social. Todavia, a partir das últimas décadas do século XX , 
as altas taxas criminais passam a ser encaradas como fatos sociais: “High rates of crime have 
gradually become a standard, background feature of our lives – a taken for granted element of 
late modernity” (GARLAND, 1996, p.446). 
Dessa maneira, surge uma crise do sistema penal moderno, bem como das estratégias 
políticas assumidas pelos governos de Bem-estar. Segundo Garland (1996), o slogan 
“Nothing Works” ganha atenção durante a década de 1970 e início de 1980. O Estado passa, 
então, a criar novas estratégias que redimensionam o que seria o papel do público e do 
privado, bem como das sua responsabilizações: uma vez que as taxas criminais são fatos 
sociais, ou seja, imprimem funcionamento coercitivo da realidade, o Estado não centra sua 
ação sobre os aspectos causais e condicionantes, mas sim sobre os aspectos resultantes de tal 
realidade. “This Idea of reverting to a system of private prosecution shows how the 
responsibilization strategy merges nearly into strategies of privatization and public 
expenditure reduction which commanded such support from conservative governments in the 
1980s and 1990s” (GARLAND, 1996, p.453). 
Todavia, cabe-se ressaltar que o Brasil nunca contou com uma política de Bem-Estar 
social efetiva, o que passa ter movimentos embrionários apenas ao fim do governo de 
Fernando Henrique Cardoso e início das presidências petistas. Ao comentar as práticas 
violentas vista no Brasil e 80 e 90, Soares (2013, s/p) traz: 
Observe-se, ainda, que o sofrimento precipitado pela violência do fenômeno não 
encontrou a compensação de uma trama institucional tecida por um generoso 
Welfare State. O Brasil atravessou a tormenta sob ditadura –sem canais orgânicos de 
representação popular, portanto–, cuja política econômica promovia a concentração 
de renda e o aprofundamento das desigualdades. 
A presente pesquisa, ao mesmo tempo em que problematiza os processos de 
transição entre a “forma” e a “prática”, no que tange à diferença entre as filosofias e diretrizes 
das políticas públicas e as práticas manifestadas nas ruas, reassalta a também necessidade de 
problematização na utilização das ideias de autores debruçados sobre contextos internacionais 
113 
 
diferentes. Garland, por exemplo, diz sobre uma política e cultura de controle encontrada, 
principalmente, no Reino Unido e em outros países europeus, em constante diálogo com a 
América do Norte. Portanto, tais ideias são discutidas por uma contextualização mais ampla, e 
também limitada, das estratégias de governo encontradas nas culturas ocidentais. 
De qualquer maneira, destaca-se a importante relação entre os avanços da ideologia 
liberal, que passa a ganhar força neste período também no Brasil, com as estratégias que ora 
alimentam a soberania do Estado, ora lançam a responsabilidade da segurança aos indivíduos, 
organizações não governamentais e comunidades externas ao sistema criminal de justiça: 
The search for safety in the neo-liberal city increasingly depends on interventions 
that flow from the sovereign state and responsibilization agendas. On the one hand, 
the state continues to insist that it can ensure safe environments via investment in 
policing or by passing new laws, such as those to tackle antisocial behavior. On the 
other hand, the state also insists that tackling crime and maintaining safety are the 
responsibilities of individuals, private organizations and communities outside the 
criminal justice system. (FYFE, 2009, p.483-484) 
 
Nicholas Fyfe (2009), ao retomar as ideias de Garland demonstra a sintonia que pode 
haver entre um conceito neoliberal de cidade e as práticas de segurança nas últimas décadas 
do século XX. Na passagem acima, vemos a insistência do Estado em garantir ambientes 
seguros por meio de investimento em policiamento ou pela criação de novas leis, enquanto, 
por outro lado, há a difusão da responsabilidade da segurança. Assim, o artigo Constitucional 
que diz da segurança como “dever do Estado e responsabilidade e direito de todos”, acaba por 
ver sua tradução em uma linguagem socialmente limitada do Estado, que coloca maior 
quantitativo policial nas ruas e enfoca sua ação na criação de leis e sistemas carcerários. Tais 
desdobramentos, para infortúnio da criminologia crítica recente, podem ser vistos nos debates 
eleitorais que pronunciam o acirramento da “guerra contra o crime”, pelo aumento do número 
de prisões, ou em um dos argumentos de um dos filmes mais assistidos nos últimos anos, 
Tropa de Elite, que, por ventura, reduz o debate sobre o ciclo vicioso da criminalização das 
drogas à parcela da culpa que “estudantes playboys” têm em fazer consumo de entorpecentes 
e, com isso, alimentar o narcotráfico. 
O ponto em questão é que na prática, conforme argumenta Wacquant (2008), a 
manutenção e controle da ordem pública, na intensificação do Estado punitivo, vai representar 
o controle da delinquência, ou seja, o controle daqueles que imprimem expressões de vida 
distintas das modelas pelos padrões culturais hegemônicos. Em estudo que compara as 
políticas brasileiras e norte americanas, Wacquant aponta que ambas possuem em comum a 
orquestração do pânico e do medo, pela mídia e pelos ciclos eleitorais como justificativa para 
o tratamento penal severo. Contudo, para o autor, há paralelos entre as duas experiências, bem 
114 
 
como idiossincrasias. Por conta das similaridades, Wacquant aponta a estigmatização de 
bairros pobres, a divisão étnico-racial no tocante ao usufruto de direitos e o aprisionamento 
como uma das principais medidas de controle do Estado, acarretando em caótica superlotação 
e crescimento da população carcerária. Já no que se refere às especificidades entre as 
experiências estadunidense e brasileira, encontra-se a distinção da violência e arbitrariedade 
do policial: 
Indeed, criminal insecurity in urban Brazil is distinctive in that it is not attenuated 
but aggravated by the intervention of the Law-enforcement forces. The routine use 
of lethal violence by military police, in charge of order maintenance, and the 
habitual recourse of the civilian police, entrusted with judicial investigations, to 
torture means of the pimentinha (electrical shocks) and the pau de arara (hanging 
cross) to make suspect “confess” the sequestering and extortion of bribes from 
defendants, their witnesses and kin, as well as summary executions and unexplained 
“disappearances”, all maintain a climate of terror among the lower class that is their 
prime target and banalize brutality at the heart of the state (WACQUANT,2008, 
p.60, itálicos do autor) 
A banalização da brutalidade no coração do Estado pode ser explicado, entre outros, 
por medidas como a chamada Gratificação Faroeste. Carlos Cerqueira (1996), ao comentar 
reportagem do Jornal do Brasil, de abril de 1996, traz a crítica do então presidente do Clube 
de Oficiais, coronel Ivan Bastos, à política do General Cerqueira: “por causa da gratificação 
(participação em tiroteio aumentava em 150% o salário), os policiais militares do Rio se 
tornaram caçadores de recompensa. O discurso é esse: nós queremos resultado e, como 
resultado, eles (os PMs) entendem o seguinte: confronto, tiro, ferido, morto” (apud 
CERQUEIRA, 1996, p.192). 
Comum durante a década de 1990, a Gratificação Faroeste era destinada à premiação 
de policiais por atos de bravura, o que na prática convertia-se na premiação em dinheiro aos 
Batalhões e policiais que “matassem mais bandidos”. Dessa forma vemos que, se no campo 
político ocorre a promoção de direitos pela Constituição, no campo da segurança ocorre, 
literalmente, a promoção de mortes, tidas como atos de bravura. Instala-se, portanto, uma 
dicotomização e distanciamento brutal das formas de alteridade presentes, de um lado, no 
Documento Constituinte de 1988 e, de outro, nas corporações policiais militares, nos meios de 
comunicação que enfatizam o medo e, portanto, na resposta “à mesma altura” dos aparatos 
policiais, expressados pelos ditados: “bandido bom é bandido morto”; “a polícia deve atirar 
para depois perguntar”. 
Há, assim, uma diferenciação arbitrária de cidadania, que segundo Wacquant (2013), 
conjuga as condições econômicas e de honra: 
115 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Quadro apresentado por Wacquant na referida palestra em 21/09/2013. 
 
Na perspectiva apresentada por Wacquant (2013), que se aproxima da já apresentada 
por Coimbra e Nascimento (2003), o sujeito irá gozar de honra e, consequentemente, estará 
inserido na concepção moral de cidadão – nas práticas de segurança – ao passo que habita 
posição econômica hierarquicamente alta, patrimônio, ou, ao menos, atividade produtiva 
inserida dentro do mercado consumidor. Todavia, o mesmo não acontecerá com aquele que 
não apresentar tais características. Problema, este, que acaba por constituir uma das urgências 
que o programa de segurança com cidadania intenta responder. 
4.2.3 Estagnação da Arquitetura Institucional das Polícias e a não ritualização 
da transição paradigmática 
Um outro ponto que pode ser abordado para o imobilismo político das práticas de 
segurança diz sobre a arquitetura institucional das polícias. Soares (2013, s/p) comenta que 
“apesar do amplo consenso entre profissionais da área quanto à irracionalidade da arquitetura 
institucional, em especial do modelo de polícia, nenhum passo objetivo foi dado em direção à 
reforma”. Citando pesquisa que realizou junto a Marcos Rolim e Silvia Ramos, com apoio do 
PNUD (Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e Ministério da 
Justiça, em 2009, o autor constata que na opinião de 64.120 profissionais de segurança 
pública, em todo o país, 70% são contrários ao modelo policial fixado pelo artigo 144 da 
Constituição. A alegação da insatisfação relaciona-se ao comentado anteriormente, sobre a 
concentração proeminente do poder das polícias nos estados, com pouca ou nula autoridade 
C
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 Rico 
 
Com posses 
D
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M
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Pobre Sem posses 
Insider outsider Precário 
 Honra + Honra - 
116 
 
ao município e baixa responsabilidade atribuída à União, “condenando as instituições à 
ingovernabilidade e à mútua hostilidade” (id, ibid). 
A estagnação estrutural das corporações policiais acabam por não acompanhar a série 
de mudanças quanto às diretrizes e princípios que regem a sua atividade. No início dos anos 
1990, por exemplo, ocorre a ênfase da polícia comunitária, embasada na Diretriz de Polícia 
Comunitária de 1993. Conforme relatam oficiais entrevistados em 2010 (MELICIO, 2010a), a 
vertente de policiamento comunitário constitui uma das primeiras respostas da corporação à 
mudança de postura almejada pela Constituição. Tal filosofia, baseada em experiências 
provenientes do Canadá e Japão, são trazidas em um conjunto de medidas que visam o 
deslocamento de uma polícia “Estadocêntrica” para “Sociocêntrica”: 
A REARTICULAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE O ESTADO E A SOCIEDADE 
Paradigmas 
Conceitos de 
público, estilo de 
gestão e filosofias 
PÚBLICO ENQUANTO 
ESTATAL 
(1930 – 1979) 
Crise 
dos 
anos 
1980 
PÚBLICO EXTRAPOLA 
OS LIMITES DO ESTATAL 
(pós-1990) 
Modelos de estudo 
da administração 
Restritos ao aparelho do 
Estado e à burocracia 
governamental 
Estendem-se a uma série de 
atores envolvidos com 
questões públicas 
Instrumental 
teórico utilizado 
(FOCUS) 
Administrativo Político-organizacional 
Objetivo empírico 
do estudo 
(LOCUS) 
Aparelho do Estado 
Atores envolvidos nas 
questões públicas 
Visão Unicista e tecnicista Pluralista 
Inspiração 
Teorias administrativas 
clássica e científica de 
Taylor e Fayol – 
racionalidade técnica 
Administração mais flexível 
e criativa, que incorpora os 
avanços em termos de gestão 
pública, com visão mais 
política e voltada para a 
teoria organizacional 
Modelo de gestão 
Centralizado, estilo 
político-adminstrativo 
autoritário com ênfase na 
estrutura hierárquica – 
burocrática 
Descentralizado com maior 
capacidade institucional e 
responsabilidade pública – 
pós-burocrática 
Meta 
Eficiência – o nível de 
recursos empregados em 
um processo para atender 
requisitos dos clientes 
Eficácia – o grau em que os 
requisitos dos clientes estão 
sendo atendidos pelos 
processos 
Fonte: Fundação João Pinheiro, cedido pelo Comandante Geral da PMMG em 2010, coronel Renato Souza, 
presente em sua monografia de Análise da produção doutrinária da PMMG. 
 
117 
 
Contudo, o que se observa é a dificuldade da materialização de um novo paradigma, 
sem que haja obstáculos provenientes de uma cultura arraigada e amplamente difundida nas 
corporações militares, ainda (re)atualizadoras dos ideais provenientes da ditadura. Mesmo se 
compreendendo a realidade como campo de forças e tensionamento ente diferentes 
“verdades”, bem como se entendendo que um paradigma não suprime o outro, mas, sim, 
convive com o mesmo e apenas gradualmente colhe os frutos da mudança (FREIRE, 2009), o 
caso da segurança pública brasileira para ser exemplar quanto à resistência de transformação. 
Sobre esse ponto, Soares (2013) acrescenta a dificuldade de rompimento do cordão umbilical 
que liga a polícia à ditadura. Segundo ele, parte desse processo se deve à negociação operada 
entre as lideranças militares e as civis democráticas. A não alteração profunda do aparato de 
segurança seria uma maneira de calibrar o “timing” e a “extensão da descompressão”. Outro 
ponto, que será retomado no capítulo posterior, com a experiência da Irlanda do Norte, seria a 
falta de ritualização de passagem, que marcasse a transição de uma orientação de segurança 
para outra: 
Além da manutenção das antigas estruturas organizacionais refratárias à gestão 
racional e ao monitoramento externo, o fator provavelmente decisivo para que os 
valores (e as práticas) tradicionais fossem, nas instituições da segurança pública, 
legados às gerações subsequentes, ainda que cedendo aqui e ali, foi a inexistência de 
um ritual de passagem entre a ditadura e a democracia. Refiro-me à marcação 
simbólica de uma ruptura com o passado de violações aos direitos humanos, 
torturas, assassinatos, prisões arbitrárias, etc. Mesmo na ausência de uma justiça de 
transição e de julgamento dos violadores, teria sido fundamental a afirmação oficial 
de que houve abusos perpetrados pelo Estado, sistematicamente, e de que essa 
prática é inadmissível, a tal ponto que o novoregime construir-se-ia para que jamais 
se repetisse a barbárie institucionalizada. (SOARES, 2013, s/p) 
4.3 O CONVITE À CIDADANIA 
Conforme visto anteriormente, em 24 de outubro de 2007, pela Lei de número 
11.530, institui-se no Brasil o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o 
Pronasci. Segundo o caderno produzido pela Assessoria Federativa (BRASIL, 2010b), o 
programa visa dar uma resposta mais afinada ao pacto federativo de 1988, priorizando a 
atuação cooperativa no campo das relações intergovernamentais, principalmente no tocante à 
ordem social. O programa teria três focos principais: 1) Territorial: atuando em regiões 
urbanas com altos índices de criminalidades; 2) Etário: priorizando a juventude, 
principalmente os jovens que vivem às margens da criminalidade ou já tiveram problemas 
com a lei; 3) Policial: favorecendo a formação das forças de segurança. 
De fato, o Pronasci surgiu como resposta a uma nova e complexa 
conjuntura. De um lado, garantir os direitos fundamentais aos 
cidadãos. De outro lado, como resposta a um contexto de tensão social 
do país, caracterizado pelo crescimento desestruturado das periferias 
118 
 
das grandes cidades brasileiras e marcado por altos índices de 
criminalidade e violência, que atinge principalmente os mais jovens. 
Por fim, para superar um modelo ultrapassado de política de 
segurança pública, que tem como fundamento, quase que 
exclusivamente, uma atividade que se desenvolve após o cometimento 
do delito em lugar de desenvolver ações que evitem que o mesmo 
venha a acontecer (BRASIL, 2010b, p.8). 
O Pronasci surge como a primeira institucionalização ampla e sistemática do 
processo iniciado com a redemocratização brasileira desde o fim do governo militar. Como o 
próprio texto diz, procura superar um modelo ultrapassado de política de segurança pública, 
até então embasado quase que exclusivamente em ações desenvolvidas após o cometimento 
das transgressões. Consoante com as discussões trazidas acima, o Pronasci institucionalmente 
se define como grande impulsionador da compreensão de que a segurança pública é uma 
questão transversal, demandando intervenção de várias áreas do poder público, de maneira 
integrada, não apenas com repressão, mas também com prevenção. Para tanto, tem-se que, em 
2011, os princípios e diretrizes introduzidos pelo Pronasci na área da segurança pública 
passaram a ser orientadores de toda a política nacional conduzida pelo governo federal. Tal 
fato demonstra a importância que a transformação da área de segurança pública assume, uma 
vez que o conceito do Pronasci deixou de ser restrito a um dos programas da União e passou a 
direcionar todas as ações realizadas
18
. 
Apresentam-se urgências que de alguma forma percorrem as discussões acima 
apresentadas: a necessidade de ordenamento dos espaços e de fortalecimento da coesão social. 
Acordos internacionais entre governos federais, bem como a integração e promoção dos 
Direitos Humanos e princípios humanitários são outros dos aspectos relevantes. Observa-se 
uma tentativa de resposta à defasagem em relação a outras áreas de interesse público. Um 
exemplo disto é a realização da primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, a 
Conseg, em 2009, em âmbitos municipais, estaduais e federal. Enquanto outras áreas como a 
saúde e a educação chegaram a um quantitativo maior de conferências, a área de segurança 
pública realiza sua primeira e, ainda, única mais de 20 anos após a Constituição de 1988. 
 Todavia, cabe destacar que a perspectiva de segurança cidadã possui uma origem 
geopolítica ligada à America latina como um todo, principalmente a partir da segunda metade 
da década de 1990. Tendo como princípio a implementação integrada de políticas setoriais no 
 
18
 As informações desse parágrafo foram retiradas do sítio eletrônico do Ministério da Justiça em dezembro de 
2013: www.mj.gov.br/pronasci 
119 
 
nível local, o conceito tem como marco inicial o êxito na prevenção e controle da 
criminalidade ocorrido na Colômbia, em 1995 (FREIRE, 2009). 
Atenta às necessidades de uma gestão mais localizada, próxima das comunidades e 
que confere maior autoridade ao município, a agenda do Pronasci visa que os municípios 
assumam os seguintes papéis no controle da violência e criminalidade: atuar na promoção da 
cultura de paz, mediante a implantação de ações integradas de prevenção e enfrentamento da 
violência e da criminalidade; mobilizar toda a sociedade, fomentando práticas democráticas e 
participativas com o fim de produzir e disseminar a percepção de segurança na população; 
priorizar a dimensão local, formulando pautas e ações conjuntas que atendam as realidades da 
cidade, uma vez que são nas localidades onde o cidadão reside que o mesmo deve se sentir 
seguro (BRASIL, 2010b). 
Conforme Freire (2009), a intervenção baseada no conceito de segurança cidadã deve 
abarcar a participação ampla das diferentes instituições públicas e da sociedade civil. Outro 
ponto que a autora destaca é que na perspectiva Cidadã, “o foco é o cidadão e, nesse sentido, a 
violência é percebida como os fatores que ameaçam o gozo pleno de sua cidadania. Em outras 
palavras, permanece a proteção à vida e à propriedade já presente no paradigma de Segurança 
Pública, mas avança-se rumo à proteção plena da cidadania” (FREIRE, 2009, p.53). 
Dimensão 
de 
análise 
Segurança Nacional Segurança Pública Segurança Cidadã 
1. Objetivo 
Proteção dos interesses nacionais, 
associados às preferências dos 
detentores do poder. 
Preservação da ordem pública e da 
incolumidade das pessoas e do 
patrimônio. 
Promoção de convivência e cidadania, 
prevenindo e controlando a violência. 
2. Contexto 
Histórico 
Ditadura Militar 
Redemocratização do país, 
 elaboração da nova Constituição, 
fortalecimento da cidadania, 
movimento de descentralização e 
fortalecimento das competências de 
estados e municípios. 
Consolidação dos direitos de cidadania. 
Fortalecimento da participação social e da 
atuação da sociedade civil. 
Crescimento da violência, demandando 
formas mais efetivas de prevenção e controle. 
3. Conceito 
de 
Violência 
Ameaça aos interesses nacionais, 
soberania e ordem pública. Atos 
contra 
o Estado e elite no poder. 
Ameaça à integridade das pessoas e 
do 
patrimônio 
Fatores que ameaçam o gozo pleno da 
cidadania por parte dos indivíduos. 
Violência é multicausal e por isso 
demanda uma estratégia multi-setorial de 
prevenção e controle. 
4. Papel do 
Estado 
Eliminação de qualquer ameaça 
aos 
interesses nacionais, podendo ser 
adotados quaisquer meios para o 
alcance 
desse objetivo. Foco na atuação 
das 
Forças Armadas. 
Controle e prevenção da violência. 
No 
entanto, maior foco é dado às 
estratégias 
de repressão à violência. Papel 
preponderante das instituições 
policiais 
na implementação da política de 
segurança. 
Implementação de políticas setoriais 
articuladas, com foco no âmbito local. 
Governo Federal, estados e municípios 
possuem papel nesse processo. 
Além das instituições policiais, instituições 
responsáveis pelas políticas sociais também 
participam da política. 
Nova importância é conferida à gestão local 
da segurança, em contraste com a perspectiva 
anterior que mantinha a esfera de atuação 
concentrada principalmente no âmbito 
estadual e federal. 
 
 
120 
 
5. Papel dos 
Indivíduos 
Submissão plena aos interesses 
nacionais, definidos pela elite no 
poder. 
Indivíduos não participam das 
decisões. 
Direitos cassados. 
Direito ao voto é restabelecido. 
O texto constitucional menciona que 
a segurança é papel de todos. No 
entanto, na prática, os indivíduos 
possuem pouca 
participação na política. 
Indivíduos como 
beneficiários das políticas de 
segurança. 
O cidadão é central a essa perspectiva. 
O indivíduo é o centro da políticae seu 
principal beneficiário. 
Possui papel preponderante na gestão local 
das políticas de segurança cidadã. 
6. 
Estratégia 
de 
Política 
Pública 
Serviço de informações e 
inteligência para identificação de 
ações potencialmente 
ameaçadoras à ordem e aos 
interesses nacionais. 
Criação de instituições de 
repressão a qualquer ato 
percebido como subversivo. 
Foco na atuação policial, 
principalmente em estratégias de 
controle da violência. 
Papel central dos estados na 
implementação das políticas de 
segurança, com o estabelecimento de 
diretrizes principais pela Secretaria 
Nacional de Segurança Pública. 
Sistema Único de Segurança Pública: 
estratégia de articulação entre os 
estados e integração de informações e 
ações. 
Implementação de políticas setoriais 
integradas voltadas à prevenção e 
controle da violência. Fomento à 
participação dos cidadãos e ao 
desenvolvimento de ações voltadas à 
comunidade. 
Tabela produzida a partir de três tabelas presentes no texto de FREIRE (2009). 
 
Como pode ser observado acima, mudanças significativas ocorreram no tocante às 
diretrizes de segurança, o que, de um modo ou de outro, oxigena as estratégias e as atividades 
de enfrentamento e controle da violência e criminalidade. Não há dúvida sobre a relevância 
das transformações entre um contexto em que as Forças Armadas posicionam-se como os 
tradutores da “vontade nacional” e que o policiamento é voltado para a soberania estatal e luta 
contra o inimigo da nação, e o contexto em que se reconhece a importância da 
descentralização da segurança e, principalmente, o reconhecimento e ampliação dos direitos 
de cidadania. Todavia, tornam-se importantes algumas ressalvas quanto às condições de 
transformação promovidas ao Pronasci. 
No tocante à distribuição regional e investimento orçamentário, segundo site do 
ministério da Justiça, o Pronasci chegou a 150 municípios, ao Distrito Federal e a 22 Estados: 
Acre, Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, 
Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio 
Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, São Paulo, Sergipe e Tocantins. Estima-se 
que o programa tenha recebido em investimentos a quantia de 6,707 bilhões de reais até 2012, 
com significativos acréscimos em 2013 e 2014, em virtude da eminência da realização da 
copa do mundo de futebol no país. Parte significativa foi destinada ao estado do Rio de 
Janeiro, com a qual ocorre a formação de Policiais Comunitários pela Rede Nacional de Altos 
Estudos em Segurança Pública (RENAESP) e o financiamento de 20 projetos, como o de 
Proteção de Jovens em Território Vulnerável, o Protejo. 
Contudo, conforme anuncia o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC, 2012), 
em estudo destinado ao orçamento empregado pelo Pronasci, ocorre com o programa um 
121 
 
crescente desmantelamento em virtude de como as verbas são direcionadas. A análise do 
instituto constatou que, para além de sua concepção inovadora, o programa pouco evoluiu no 
sentido de uma estruturação adequada ao enfrentamento do complexo quadro de violência no 
país: “Isto porque sua concepção inicial, no marco dos direitos humanos, foi abandonada ao 
se projetar as ações e os projetos que deveriam colocar em prática as ideias concebidas” (op. 
cit., p.4). O instituto ainda comenta que a evolução dos gastos concentra-se no projeto de 
Concessão de Bolsa Formação, destinados a auxiliar nos vencimentos dos profissionais de 
segurança. Assim, o INESC argumenta sobre a execução orçamentária do Pronasci: “está 
reduzida a uma política de aumento de renda para os agentes de segurança, o que não garante 
o cumprimento dos objetivos traçados e muito menos do indicador proposto. Será que 
somente profissionais mais bem pagos podem garantir a redução da taxa de homicídios? Ou 
reduzir a violência contra as mulheres?” (id, ibid). 
Conjuntamente ao processo de mau emprego da verba orçamentária, cabe destacar a 
manutenção de paradigmas antigos também em processos decorrentes do contexto dos 
megaeventos esportivos. Dessa maneira, vemos que nos últimos anos o Rio de Janeiro tem 
sido espaço de investimento voltado à copa do mundo de futebol de 2014 e aos jogos 
olímpicos de 2016, recebendo atenção de grande parte da mídia brasileira. Para além disso, 
em função da geografia da cidade, com morros cravados em boa parte da área urbana, o que 
atrai turistas e também corresponde a espaços em que se construíram as favelas, o Rio acaba 
por manter e até aumentar o espaço que possui nos noticiários. ‘É a cidade maravilhosa! É o 
cartão postal do Brasil!’ dizem muitos dos textos ao tratarem da capital fluminense, ao mesmo 
passo estampam “A guerra do Rio”
19
, ao trazer conflitos entre policiais e traficantes de 
drogas, que contam com armamento pesado. 
O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente ou um pouco 
de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de 
poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem 
do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso. E por isso que a teoria não 
expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Mas local e 
regional, como você diz: não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo 
aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e mais insidioso. Luta não para uma 
"tomada de consciência" (...), mas para a destruição progressiva e a tomada do poder 
ao lado de todos aqueles que lutam por ela, e não na retaguarda, para esclarecê-los. 
Uma "teoria" é o sistema regional desta luta. (FOUCAULT, 2008, p.71) 
A preparação do Rio para os eventos de escala internacional parece configurar a 
principal urgência da cidade. Em entrevista à revista Construir, da Associação das Empresas 
de Engenharia do Rio de Janeiro (AEERJ), o prefeito Eduardo Paes demonstra seu desejo de 
 
19
 O título “A Guerra do Rio” pode ser visto na matéria da revista Veja de 25/11/2010, em que trata dos 
confrontos entre os policiais e os traficantes das áreas que receberam as UPPs. 
122 
 
“transformar o Rio na melhor cidade para se viver e trabalhar em todo mundo” e para isso a 
importância de contar com os investimentos que permitem o usufruto “do legado das obras 
para a Copa e principalmente os Jogos Olímpicos”. O editorial da revista demonstra a 
importância das Unidades de Polícia Pacificadora nesta empreitada: “À medida que as 
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do governo do Estado se instalam nas favelas, os 
órgãos da Prefeitura seguem atrás para melhorar aquelas áreas, com coleta de lixo, iluminação 
pública, creche, clínica médica etc.”
20
. 
Ocorre, assim, a continuidade histórica no intuito de transformação dos espaços 
populares, com destaque à favela. Se numa discussão a ser realizada no capítulo precedente a 
favela foi confrontada por ações como o Bota Abaixo, hoje é pensada pelas lógicas da UPP: 
O objetivo da UPP é um só e muito claro: acabar com os muros dos territórios 
impostos pela força das armas. Se você entra numa área dominada pelo tráfico ou 
pela milícia tem de prestar contas de seu ir e vir a alguém armado. Eles cobram para 
deixar o caminhão de gás entrar, cobram da empresa que instala TV por assinatura. 
É o que chamam de pedágio. É inadmissível que o cidadão tenha de prestar contas a 
uma pessoa armada, que não é servidor do Estado (José Mariano Beltrame, 
Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, em entrevista para Revista Exame, em 
20/10/2010). 
 Não se destrói a parte física como anteriormente, mas, sim, se ‘retoma’ algo que 
antes não atendia a lógica do Estado. Se na música Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca, era 
cantado “eu nunca vi cartão postal que destaque uma favela, só vejo paisagem muito linda e 
muito bela”, em que faziam uma oposiçãodos olhares destinados às praias da zona sul e às 
favelas, hoje vive-se a época do “favela tour”
21
 e de manchetes como a da Veja, de 
13/11/2011, com o título: “Beltrame transforma favela em vitrine mundial do Rio”. Não se 
trata, contudo, de esgotar uma discussão em torno das práticas da UPP. São inúmeros os 
avanços que o programa trouxe, principalmente no tocante à acentuada diminuição de trocas 
de tiros e à quase eliminação da presença de grupos ilegais transitando com armamento 
pesado (MELICIO, 2010b). A permanência do efetivo policial em suas localidades geram 
possibilidades ressonantes ao policiamento comunitário e de proximidade. Mais do que uma 
crítica totalizante, destaca-se a lógica expressada em termos de guerra e “retomada” de 
espaço, como se último fosse de posse de alguma instância administrativa; tais 
direcionamentos parecem se basear mais instauração de um modelo específico de espaço 
público, do que na promoção de diversidade e encontros da diferença. 
 
20
 Revista Construir, n°49, dezembro/2010. Pág. 1-5. 
21
 Serviço de turismo destinado principalmente a estrangeiros, que consiste em visita guiada e grupo em algumas 
favelas cariocas, com destaque para a favela da Rocinha, localizada na Zona Sul da cidade. 
123 
 
No mesmo contexto, as ruas observaram práticas como as da internação compulsória 
de crianças e adolescentes e os chamados Choques de Ordem. Este último, criado em 2009, 
tem seu objetivo descrito no site da prefeitura do Rio de Janeiro, com o título de “Um fim à 
desordem urbana”
22
: 
A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de insegurança pública e a 
geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como 
uma coisa leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das 
ruas, contribuindo para a degeneração, desocupação desses logradouros e a redução 
das atividades econômicas. 
As ações da Secretaria Especial da Ordem Pública, conhecidas como Choque de 
Ordem, buscam ordenar o espaço público, fazendo valer as leis e o código de 
postura municipal. Criado em 2009, o Choque de Ordem tem como objetivo pôr fim 
à desordem urbana, desenvolvendo ações de fiscalização em suas várias áreas de 
atuação, tais como combate ao estacionamento irregular, à ocupação irregular do 
espaço público e à prática de pequenos delitos. 
Observa-se como a ideia de insegurança pública está associada a uma perspectiva 
específica de ordenamento urbano. Se no capítulo passado lançamos luz às teses 
evolucionistas e às práticas higienistas, vemos nas datas mais recentes a ideia de que “uma 
coisa leva à outra”, ou seja, a desordem urbana e a insegurança que ela gera banem do espaço 
público “as pessoas e os bons princípios”. Até mesmo o tom de palavras como “degeneração” 
se faz presente nesta que é a prática de fiscalização nas várias áreas de atuação encontradas 
nas ruas. Mas afinal, quais têm sido as pessoas e os bons princípios banidos dos logradouros 
cariocas? O ordenamento é para o usufruto de qual parte da população? 
A Secretaria Especial de Ordem Pública (SEOP), responsável por esta demanda na 
cidade do Rio de Janeiro possui como documento norte, o Plano Municipal de Ordem Pública 
(PMOP), de 2010. Segundo o documento, o PMOP insere-se no esforço preventivo dos 
municípios no âmbito da segurança pública, sendo suas ações contempladas pelo Pronasci. O 
Plano, assim, tem o caráter de viabilizar a parceria entre a Prefeitura do Rio e o Ministério da 
Justiça, o qual irá financiar todas as “atividades de ordem”. O documento ainda, como vemos 
em todos os textos oficiais ou da mídia, reforça a importância da Copa do Mundo de 2014 e 
das Olimpíadas de 2016 para o sucesso do respectivo projeto e finaliza sua parte introdutória 
dizendo: 
Esse plano deverá, a partir desse documento, ser desenvolvido e submetido à 
população carioca, de forma a refletir um projeto adensado e respaldado na 
sociedade. Assim, a população do Rio de Janeiro, em um processo participativo, terá 
voz ativa na definição das estratégias de longo prazo em relação à ordem pública. 
O Plano Municipal de Ordem Pública será a nova base para a convivência e 
desenvolvimento da cidade maravilhosa (SEOP, 2010, p.9). 
 
22
 Acessado em 10/01/2014, no endereço eletrônico: 
 http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=1851209 
http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=1851209
124 
 
Contudo, não foram encontradas, por esta pesquisa, ações participativas de maior 
efetividade por parte da população do Rio em torno das novas diretrizes de ordenamento do 
espaço público carioca. Ao que parece, até o fim de 2013, o adensamento e respaldo do Plano 
não passou pelo crivo de ações consultivas, características da orientação do Pronasci. A 
orientação parece ter se restringido aos 50 servidores do corpo técnico e gerencial da 
Prefeitura que participaram dos seminários para a escrita do documento. Aspectos como “a 
cultura da ilegalidade”, “ocupação desordenada do espaço”, “violação do patrimônio 
ambiental” e suas relações com a criminalidade são os principais temas debatidos. 
O PMOP possui três eixos transversalizados pelo sediamento dos jogos olímpicos: 
Ordem Pública e Espaço Público; Ordem Pública e Desenvolvimento Econômico; e Ordem 
Pública e Segurança com Cidadania. Nesse sentido, intenta-se observar como esse programa 
tem impactado a vida dos que se valem das vias públicas como local de moradia ou de 
trabalho, mostrando algumas das negociações ali realizadas. Conforme entrevistas realizadas 
pela pesquisa: 
O nosso maior problema é esse pessoal do Choque de Ordem. E se eles 
tão com os policiais fica pior ainda. Eles não olham na tua cara. O que 
eles querem é colocar a gente na van. Só sossega quando fazem isso. Pra 
você ver, depois de horas com todo esse pessoal, a primeira pessoa que 
pergunta seu nome é o cara da delegacia. E pra quê? Pra saber se é 
bandido ou não. Viver na rua é isso, parceiro. Um olho no colega e outro 
na van. (Morador de rua, em 13/09/2011, após ter sido apreendido pela 
internação compulsória) 
O pessoal do Choque de Ordem não vem mexer comigo não. Até porque 
ele sabe que não sou fácil. Parece que o pessoal do centro tá com 
problemas. Mas aqui (Lapa), aqui a gente tá seguindo. E tem os que 
gostam, né? Mas esses só conversam depois do expediente, porque de 
uniforme dá bafão [sic]. (Fala de uma travesti em reunião organizada pelo 
PSF Lapa, realizada na Estácio de Sá, em 09/11/2011) 
Cabe ressaltar que a problematização é trazida no intuito de se compreender o 
discurso que se segue em uma das matérias da revista Veja, de 23/08/2010, em que se faz uma 
crítica à UPP: “o Brasil não pode mais admitir um modelo de segurança pública que se baseie 
neste tipo de prática (...)”. Quais práticas? Quais modelos que o Brasil não pode mais admitir? 
Continua o colunista Azevedo: “não pode se admitir que a UPP não prenda os bandidos. O 
lugar de bandido é na cadeia. Não podemos admitir que a polícia se omita de confrontá-los e 
prendê-los”. 
Portanto, voltamos a nos debruçar sobre os saberes que têm sustentado as práticas de 
segurança em terras cariocas, que estão em um âmbito muito mais amplo do que os dos 
documentos oficiais, apesar dos documentos fornecerem boas pistas das estratégias de que 
esses saberes imprimem. Lançamos luz às tecnologias, à produção de subjetividade, a qual 
125 
 
será o processo capaz de fazer valer a máxima da Constituição de que a segurança é direito e 
dever de todos. Assim, trazemos as contribuições de Luiz Antônio Baptista (1999), ao tratar 
dos amoladores de faca: 
O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui alguns aliados, 
agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou 
personalidade, podem ser encontrados em discursos,textos, falas, modos de viver, 
modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres, 
psicanalistas, etc. Destruídos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e 
enfraquecem a vítima, reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de 
cuidado, fraco e estranho a nós, estranho a uma condição humana plenamente viva. 
Os amoladores de facas, à semelhança dos cortadores de membros, fragmentam a 
violência da cotidianidade, rementendo-a a particularidades, a casos individuais. 
Estranhamento e individualidades são alguns dos produtos desses agentes. 
(BAPTISTA, 1999, p.46) 
Onde estão os amoladores de faca? Baptista responde que, invisíveis, eles são 
difíceis de encontrar, mas estão nos ataques aos homossexuais na avenida paulista, nas mortes 
violentas das travestis em ruas brasileiras, nas pessoas em situação de rua que são queimadas 
no planalto central. Para o autor, o que os amoladores de facas têm em comum é a presença 
camuflada do ato genocida, é o investimento na produção de realidade em que se retiram da 
vida o sentido de experimentação e de criação coletiva. “Retiram do ato de viver o caráter 
pleno de luta política e o da afirmação de modos singulares de existir. São genocidas porque 
entendem a Ética como questão da polícia, do ressentimento e do medo” (BAPTISTA, 1999, 
p.49). 
Desse modo, procuramos apontar para o descentramento da discussão sobre a 
segurança pública, por vezes focalizadas nas atividades dos profissionais de segurança e nas 
medidas de privação de liberdade. Se as práticas dos policiais militares, bem como eventuais 
olhares sobre outros profissionais como os policiais civis, agentes penitenciários e guardas 
municipais, são trazidos à tona é porque manifestam uma lógica que perpassa a produção de 
realidade do conjunto social. Produção, esta, que Guattari dá o nome de produção de 
subjetividade capitalística: “uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade 
industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força 
coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo” (GUATTARI, 2005, p.48). 
Guattari comenta que essa produção de subjetividade é serializada, normalizada e 
centralizada em torno de um consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei 
transcendental que esquadrinha a produção da realidade. O autor aponta que esta produção de 
subjetividade atende a três funções: a culpabilização, que propõe a imagem de referência na 
qual se individualiza os sujeitos em questionamentos como “quem é você? O que você vale na 
escala de valores reconhecidos enquanto tais na sociedade?”; a segregação, em sistemas que 
126 
 
“dão consistência subjetiva às elites (ou às pretensas elites) e abrem todo um campo de 
valorização social, onde os indivíduos e as camadas sociais terão que se situar”; a 
infantilização, como a das mulheres e loucos em certas emergências históricas, que “consiste 
em tudo o que se faz, se pensa ou se possa fazer ou pensar seja media pelo Estado (...) Essa 
relação em dependência com o Estado é um dos elementos essenciais da subjetividade 
capitalística” (GUATTARI, 2005, p.49-50). 
 A ordem da produção de subjetividade a que Guattari se refere é projetada na 
realidade do mundo e na realidade psíquica, penetra os esquemas de conduta, de ação, de 
gestos, pensamentos, etc.. Assim, se valermos da definição da palavra genocídio, do 
dicionário Aurélio Buarque de Holanda, teremos a seguinte caracterização: Crime contra a 
humanidade, que consiste em cometer, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um 
grupo nacional, étnico, racial ou religioso, qualquer dos seguintes atos: I) matar membros do 
grupo; II) causar-lhes lesão grave à integridade física ou mental; III) submeter o grupo a 
condições de existência capazes de destruí-lo fisicamente, no todo ou em parte [...]
23
. 
Podemos colocar em análise que uma produção de subjetividade que culpabiliza, 
segrega e infantiliza pode dar passagens a práticas que amolam as facas de velados 
genocídios. Pessoas e práticas transversalizadas por forças que sustentam a diferenciação 
criminalizante dos sujeitos em nome do ordenamento público que favorece alguns. 
Subjetividades que acentuam o medo e a preocupação com a potencialidade do risco das 
classes perigosas, acarretando formas de exclusões que submetem determinados grupos a 
condições de existência capazes de destruí-lo fisicamente, no todo ou em parte. 
Os mecanismos que põem em funcionamento a grande engrenagem, o “dispositivo 
da criminalidade”, integram agenciamentos de naturezas diversas, tais como, as 
prisões e os projetos sociais, por um lado, e as políticas públicas, por outro, que 
juntos operam um controle social amplificado, envolvendo as prevenções e o 
gerenciamento das virtualidades dos perigosos, produzindo inclusive as 
identidades/essências de ser humano, de bandidos, de gente inferior, de “elementos”, 
de meninos de projeto etc. (TAVARES, 2011, p.10). 
Portanto, faz-se necessária a discussão da segurança pública em torno da produção de 
subjetividade, para que possamos nos juntar a outros autores que, como Zamora, apontam 
para a necessidade de uma discussão não apenas centrada no Estado, mas mais próxima de 
todos, buscando ficar atentos às linhas de fuga que possam aparecer: 
Será que nós, os “rivotris”, não rimamos tragicamente com as vidas “por um triz” - 
elas ao menos perpassadas de alguma vibração, nem que seja para seu 
aniquilamento? Estaremos reduzidos às patologias do vazio, à despolitização do 
cotidiano, à desocupação de nossa cidadania, ao consumo narcotizante, à vida besta, 
 
23
 Extraído do Jornal do Conselho Regional de Psicologia-RJ, Ano 7, nº 33. Julho/Agosto/Setembro 2011, p.8. 
127 
 
à vida de besta?” (...) Não há caminho senão resistir. Mesmo o “muçulmano”, em 
seu casulo suspenso, onde não distingue frio de pancada, grosseria de fome, está de 
alguma forma longe da possibilidade de ser magoado ou maltratado. Inacessível à 
crueldade, indiferente, é imune a seu algoz. Matá-lo não é crime, mas também não é 
vantagem. Talvez só possamos traçar os planos dessa guerra, novas estratégias, se 
formos capazes de reconhecer que é aí mesmo onde reina a biopolítica que resiste a 
biopotência. Que nunca foi “tudo dominado”: que ali onde o poder decretava vitória, 
a vida pulsava, as cinzas fumegavam, desejos se juntavam. (ZAMORA, 2008a, 
p.112-113 
128 
 
5 DO LITORAL ATLÂNTICO ÀS ILHAS DO NORTE: 
ESTRANHAMENTOS E APROXIMAÇÕES COM AS EXPERIÊNCIAS 
ESCOCESAS E NORTE IRLANDESAS 
Durante a produção da pesquisa foi realizado o doutoramento sanduíche, com 
financiamento da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). 
Por um período de sete meses, entre fevereiro e setembro de 2012, o trabalho esteve vinculado 
à Universidade de Dundee, na Escócia - Reino Unido, sob a orientação dos professores 
doutores Nicholas Fyfe e Fernando Lannes Fernandes. A pesquisa inseriu-se tanto no Scottish 
Institute for Policing Research (SIPR), do qual Nicholas Fyfe é o diretor, como na School of 
Education, Community Education and Social Work, em que Fernando Fernandes leciona
24
. 
Tal período mostrou-se extremamente valioso em função da diferença cultural 
encontrada na Escócia, pelo excelente suporte da universidade e, sobretudo, pelo olhar 
diferenciado de ambos professores, que, assim como o orientador Pedro Paulo Bicalho, 
dedicam-se ao tema da segurança pública. O fato do professor Fernandes ser brasileiro e com 
formação e trajetória profissional no Rio de Janeiro, fez com que o mesmo fosse um grande 
facilitador no intercâmbio de ideias e trocas de experiências neste período. Foi realizada uma 
série de encontros no SIPR, bem como em outros locais da universidade, em que se buscou o 
diálogo e o enriquecimento da presente pesquisa com a experiênciabritânica. O objetivo em 
realizar o doutorado sanduíche na Escócia foi o de, primeiramente, usufruir da expertise já 
mencionada dos orientadores externos. O professor Fernando Fernandes, mesmo residindo na 
Escócia, então, há cerca de dois anos, possui vasta pesquisa sobre o contexto carioca, 
trabalhando tanto na Escócia como em projetos que coordena no Brasil, com temas 
relacionados à pobreza urbana, violência juvenil e desenvolvimento comunitário. O professor 
Nicholas Fyfe, por sua vez, é importante referência na discussão sobre os temas do crime, 
justiça criminal e práticas de policiamento. Assim, o doutoramento sanduíche na Universidade 
de Dundee poderia propiciar a ampliação da discussão, dimensionando elementos da 
experiência escocesa e de outros países britânicos, e buscando apreender como as instituições 
acadêmicas e policiais desses espaços respondem ao complexo contexto da segurança pública 
e do policiamento. Por outro lado, também havia o interesse em dar continuidade ao 
intercâmbio, já iniciado anteriormente com os professores Fernandes e Bicalho, entre a 
Universidade de Dundee e o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ. 
 
24
 Atualmente Fernando Fernandes é Senior Lecture in Inequalities, no Research Center in Inequalities, da 
Universidade de Dundee. 
http://www.capes.gov.br/
129 
 
Todavia, sempre que interpelado por acadêmicos ou pessoas de convívio pessoal, se 
faziam presentes as seguintes perguntas: “É possível articular a experiência de policiamento 
escocesa com a carioca? As duas não são por demais diferentes?”. 
A questão de dimensão territorial e o fato de um ser diferenciado enquanto país, 
Escócia, e outro enquanto estado de um país, Rio de Janeiro/Brasil, não constituíram 
obstáculo. Isso ocorre em função da já mencionada autonomia estatal presente no Brasil, 
conferindo um ambiente regulatório, de certa maneira, circunscrito ao território fluminense, e 
pelo perímetro territorial escocês ser comparável ao de um estado brasileiro. Contudo, de fato, 
para além desses aspectos, o contexto político, econômico, cultural, bem como os contextos 
institucionais policial nessas duas localidades são bem distintos. Tal diferenciação pôde ser 
percebida, por exemplo, em entrevista realizada com dois policiais que fazem atividades de 
rua na cidade de Dundee: 
 
Pesquisador: Em relação às armas de fogo, vocês nunca usaram? 
 
Policiais: Não. Aqui no Reino Unido não portamos armas de fogo. Apenas um 
grupo restrito, com treinamento e atividade específica que porta este tipo de arma. 
 
Pesquisador: E vocês não sentem falta, ou não veem a necessidade de utilizar este 
tipo de armamento? 
 
Policiais: Não, nenhuma (“Not at all”). Se nós usarmos armas os criminosos 
(“offenders”) também irão usar. Então, qual seria a vantagem? Nenhuma. Nós não 
sentimos falta de ter arma de fogo. 
 
Pesquisador: E que tipo de utensílios vocês carregam consigo? 
 
Policiais: Nós carregamos spray de pimenta e um cassetete. 
 
Pesquisador: E qual a frequência, mais ou menos, com que utilizam o spray e o 
cassetete? 
 
Policiais: Hum... (pausa para pensar). Eu acho que duas ou três vezes. 
 
Pesquisador: Duas ou três vezes em quê? São duas ou três vezes por semana, por 
mês? 
 
Policiais: Não, usei duas ou três vezes nos 23 anos em que estou na polícia (O outro 
policial, que estava na polícia há 18 anos, fez um sinal com a cabeça confirmando a 
média) 
[Entrevista realizada durante observação participante, ao caminhar pelas ruas de 
Dundee, em 07/06/2012.] 
A fala dos policiais provocou um estranhamento de difícil mensuração. O fato de não 
desejarem a utilização de armas de fogo por acreditarem que isso acarretaria na também 
utilização de armas por aqueles que cometerão alguma infração penal foi o primeiro ponto 
relevante. Tal ideia é muito contrastante com a experiência no Rio de Janeiro. 
Particularmente, como pessoa que morou no interior e capital paulista, além de seis anos em 
Minas Gerais, acho válido sinalizar a estranheza e o desconforto que foi avistar os policiais 
militares cariocas portando fuzis pelas ruas da cidade. Recordo que, em 2007, quando mudei 
130 
 
ao Rio, fiquei surpreso em ver um carro da PM passando ao lado do ônibus, com parte do 
armamento para fora da janela. Na mesma hora em que vi, perguntei ao passageiro ao lado se 
estava acontecendo alguma coisa, quando então o mesmo respondeu que “não 
necessariamente”, completando que isto (viatura policial, com parte da arma de grande porte 
para fora da janela) era parte rotina. Já o outro aspecto que chama a atenção é o quantitativo 
de utilização, por parte dos policiais escoceses, do armamento “menos-letal”
25
. Seria 
dificultosa a comparação com a polícia do Rio de Janeiro, que, por exemplo, apresenta em seu 
histórico alto índice de “autos de resistência”, quando há lesão corporal decorrente da 
intervenção policial, que chega ao número médio de 337 casos, por ano, entre 2009 e 2011 
(UFRJ, 2013), sinalizando acentuada ocorrência de utilização de armamento. 
Levando, então, em consideração as peculiaridades de cada um desses universos, 
escocês e fluminense, optou-se por seguir dois caminhos diferentes. Por um lado, a pesquisa 
manteve o referencial da Escócia como pano de fundo comparativo, justamente por mostrar 
uma realidade distinta e, assim, descolar as atividades de policiamento de contextos com 
constante confronto. Por outro lado, partindo do diálogo com o professor Fyfe, decidiu-se em 
investir no estudo das transformações ocorridas na Irlanda do Norte, uma vez que também é 
país membro do Reino Unido, mas que possui uma experiência de maior proximidade com as 
temáticas discutidas na pesquisa. 
De maneira introdutória, o interesse pela articulação entre Irlanda do Norte e Rio de 
Janeiro justifica-se pela presença comum de elementos como: liderança por parte do exército 
em alguns momentos históricos de conflito; o desenvolvimento de treinamentos específicos e 
aumento intenso do nível de armamento em virtude da frequência de confrontos com grupos 
armados ilegais; o questionamento destinado à militarização da polícia; práticas 
discricionárias como a política do “shot-to-kill”
26
 na Irlanda do Norte e a “gratificação 
faroeste” no Brasil; entre outros. 
Ao lançarmos um primeiro olhar no contexto norte irlandês, destacamos o embate relacionado 
à orientação religiosa entre protestantes e católicos e à inclusão ou não do país no Reino 
Unido. Tais elementos acabaram por configurar um histórico de conflitos, abaixo abordados, 
em que o aparato policial se confrontava com grupos paramilitares armados e organizados, 
como o IRA (Irish Republican Army – Exército Republicano Irlandês), culminando na 
 
25
 A nomenclatura “menos-letal” ou, em algumas variações “não-letal”, é utilizada a todos aqueles utensílios 
empregados no uso da força pelo profissional de segurança, que possuem menor poder de letalidade – 
principalmente se comparado às armas de fogo. 
26
 No período de alta ocorrência de conflitos e ataques de grupos paramilitares, final da década de 1960 e início 
de 1990, a polícia norte irlandesa valeu-se de uma política de confronto armado, em ações que resultaram em 
grande número de mortes. 
131 
 
progressiva militarização e aumento de poderio bélico da polícia. Nesse sentido, um ponto 
que chama atenção quanto ao policiamento na Irlanda do Norte diz sobre a reforma iniciada 
em 1999, que é considerada um marco para a mudança de política e percepção da polícia, 
sendo responsável inclusive pela alteração do nome institucional de RUC (Royal Ulster 
Constabulary) para PSNI (Police Service of Northern Ireland). Como destaca Aogán Mulcahy 
(2008, p.204), "embora as ‘lições’ históricas da Irlanda do Norte fossem invariavelmente 
negativas, o ambicioso programa de reforma da polícia,delineado no Patten Report 1999, se 
constituiu em parte fundamental do processo de pacificação do país e situou a Irlanda do 
Norte como um ‘modelo’ central para debates sobre reforma policial em geral”
27
. 
A notoriedade da reforma policial norte irlandesa evidencia-se de tal maneira que 
acabou por ser um dos motivos para a realização de um intercâmbio entre a PMERJ e as 
polícias escocesa e norte irlandesa. Em 15 de outubro de 2012, foi realizada entrevista com o 
coronel Robson Rodrigues da PMERJ para a presente tese. Nesta oportunidade, comentou-se 
sobre a realização do doutoramento sanduíche no Reino Unido e discutiu-se sobre a reforma 
policial que ocorreu na Irlanda do Norte, de tal maneira que o coronel se interessou em 
averiguar a possibilidade de articulação entre as instituições. A partir deste momento, foi 
acionada uma rede de contatos - que havia sido iniciada pelo professor Fernando Fernandes 
em experiências prévias com a PMERJ, pelo diálogo criado entre Fernandes e Bicalho em 
visitas institucionais, bem como pelas indicações do professor Nicholas Fyfe - que 
culminaram no planejamento de tal empreitada. 
Entre outubro de 2012 e fevereiro de 2013, por iniciativa e interlocução da presente 
pesquisa, foram realizadas reuniões e tratativas envolvendo oficiais da PMERJ no Rio de 
Janeiro, os professores Fernando Fernandes e Nicholas Fyfe, na Escócia e o professor Gordon 
Marnoch, na Irlanda do Norte, para o planejamento e execução de intercâmbio, no qual 
oficiais da PMERJ realizam visitas e encontros nos dois países citados do Reino Unido. Tais 
atividades, portanto, tornaram-se possíveis pela prévia criação de rede de contatos pelo 
professor Fernandes, pela posterior articulação e planejamento internos à Universidade de 
Dundee, na Escócia, e Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, bem como pela 
possibilidade aberta pelo coronel Robson na PMERJ. 
Cabe destacar que na Escócia, Nicholas Fyfe, enquanto diretor do SIPR, prontificou-
se em equacionar todo o conjunto de atividades no país, envolvendo outros professores que se 
 
27
 Livre tradução do original: “although the historical ‘lessons’ from Nothern Ireland were invariably negative, 
the ambitious police reform programme outlined in the 1999 Patten Report, and which formed a key pillar of the 
peace process, has moved Northern Ireland centre-staged as a ‘model’ for debates about police reform generally” 
132 
 
dedicam à área de segurança pública e a força policial escocesa, a Police Scotland. Houve 
também o direcionamento para a discussão do Commonwealth Games, que se refere a um 
grande evento esportivo a ser realizado em 2014, em Glasgow e que, portanto, faria 
ressonância aos interesses da PMERJ, uma vez que o Rio de Janeiro será cidade-sede na Copa 
do Mundo de Futebol, em 2014 e das Olimpíadas, em 2016. Em convite que Nicholas Fyfe 
endereçou à PMERJ, há a descrição das seguintes atividades: 
In the period 25th February-1st March 2013, the aims of the visit will be: 
 
• To discuss security planning for major sporting events with police officers and 
government officials and researchers involved in security planning for the 
Commonwealth Games in Glasgow 2014; 
 
• To discuss arrangements for community policing with police officers and 
researchers involved in this area in Scotland; 
 
• To discuss training in the area of strategic leadership in police organizations with 
staff from the Scottish Police College. 
 
• To discuss opportunities for Brazilian police officers to be involved in the police 
education programme provided by the Scottish Institute for Policing Research. 
No tocante à Irlanda do Norte, foi o professor Gordon Marnoch, da Universidade de 
Ulster, quem se encarregou pelo desenho da programação, envoldendo atividades com 
professores que participaram do curso de formação dos policiais da PSNI e também com 
policiais provenientes do período da RUC. Em carta à PMERJ, descreve as seguintes 
atividades: 
In the period 4
th
-6
th
 March 2013, the aims of the programme will be to give the 
group an appreciation of key elements in the change process undertaken by the 
police in Northern Ireland during the last 15 years and an understanding of how 
principles and practices can be adapted elsewhere. We will be able to use both our 
own staff and selected former senior PSNI officers to deliver a short programme for 
your officers. The former police officers are highly knowledgeable concerning the 
journey undertaken to create the PSNI. They also have extensive experience of 
transferring knowledge to other countries including Turkey, Albania and 
Afghanistan. The 2 day programme will be based around the following themes: 
 
 Institutional change in policing and justice, the Northern Ireland experience. 
To cover the PSNI and the extensive oversight system created in the last decade. 
 
 Key tasks in the creation of the PSNI. 
 
 Developing leadership styles for policing. 
 
 Adapting community policing to post-conflict Northern Ireland. 
 
 Human rights and the PSNI response to new expectations. 
 
 Public order policing in Northern Ireland. 
 
 Transferring policing principles and practices from one jurisdiction to another 
- what we have learnt. 
Nesse sentido, o intercâmbio foi realizado entre 25 de fevereiro e 06 de março de 
2013, com a viagem de 9 oficiais da PMERJ, com financiamento da mesma, tanto à Escócia, 
onde situaram-se no Police College e dirigiram-se a diferentes cidades, como na Irlanda do 
133 
 
Norte, onde centraram-se na capital Belfast. Neste período, o quadro de oficiais que 
participou do intercâmbio elaborou uma sistematização das informações produzidas, 
organizada em uma apresentação de 97 slides, que foram disponibilizadas à presente 
pesquisa
28
. Assim, o objetivo do capítulo será a discussão do contexto de policiamento na 
Escócia e na Irlanda do Norte, que servirá de suporte para breves articulações com o contexto 
fluminense (retomadas no capítulo posterior), utilizando-se de material proveniente do 
doutoramento sanduíche e do intercâmbio realizado pela PMERJ. 
5.1 ESCÓCIA 
A Escócia é um país situado na ilha da Grã-Bretanha e integra política e 
economicamente o Reino Unido. A população do país é de cerca de cinco milhões de 
habitantes, contando com 16 mil policiais em sua totalidade, o que gera a relação de um 
policial para cada grupo de 301 habitantes
29
. Segundo dados do intercâmbio, apesar de baixas 
taxas criminais de maneira geral, a sua cidade mais populosa, Glasgow, com 582 mil 
habitantes, é considerada a com maior índice de violência da Europa. A segunda cidade mais 
populosa da Escócia é sua capital Edimburgo, com 468 mil habitantes, seguida por Aberdeen, 
com 220 mil e Dundee, com 148 mil habitantes. 
A polícia escocesa passou por uma significativa mudança estrutural no último ano. 
Em abril de 2013 foi estabelecida a unificação da polícia, Police Scotland, responsável por 
atuar em toda a dimensão territorial da Escócia, que compreende aproximadamente 73 mil 
km². Tal processo de centralização teve como objetivos, segundo o relatório do intercâmbio, a 
redução de custos com o enxugamento da máquina administrativa, o aumento do efetivo, a 
homogeneização do treinamento e fortalecimento da aproximação entre polícia e comunidade. 
Como pode ser visto em seu site oficial
30
, o serviço de policiamento é comandado 
por um chefe de polícia (Chief Constable), que possui o suporte de quatro chefes adjuntos 
(Deputy Chief Constables), chefes assistentes (Assistent Chief) e três diretores. Há ainda a 
divisão em 14 departamentos de polícias locais; cada uma com um Comandante Local. Em 
cada uma dessas divisões encontram-se policiais para pronta- resposta a ocorrências, policiais 
 
28
 Os dados produzidos pelos oficiais da PMERJ foram enviados poremail em 27/05/2013. Em todos os 
momentos que o texto desta pesquisa fizer referência a dados do referido intercâmbio, tratar-se-á, portanto, de 
dados produzidos e cedidos pelos policiais da PMERJ, de autoria exclusiva dos mesmos. A presente pesquisa 
terá a autoria das citações de entrevistas e bibliografias acadêmicas que serão articuladas em discussões junto às 
informações do intercâmbio. 
29
 Dado comparável à proporção de um policial para cada 252 habitantes, na Irlanda do Norte, um para 418 na 
Inglaterra e País de Gales e um para 472 no estado do Rio de Janeiro. 
30
Fonte: http://www.scotland.police.uk/. Acessado em 10/01/2014. 
http://www.scotland.police.uk/
134 
 
comunitários, investigação criminal local, policiamento rodoviário, proteção pública e 
inteligência local. Observa-se uma consonância com o objetivo de capilarização presente no 
paradigma de segurança cidadã brasileira, uma vez que essas 14 subdivisões visam assegurar 
que o policiamento de cada área seja responsivo, comprometido e adaptado às necessidades 
locais. O propósito do Police Scotland, ainda segundo seu site oficial, é melhorar a segurança 
e o bem-estar das pessoas, lugares e comunidades escocesas. 
 
Figura 12: Policiais escoceses em Dundee. 
De acordo com os dados do intercâmbio, 
até a década de 1970 havia na Escócia, 24 
unidades de polícia. Todavia, houve um 
progressivo processo para uma maior unificação, 
como a transição para 8 unidades e o processo de 
ingresso dos policiais, que já era único em todo o 
território mesmo antes de 2013. No contexto 
atual, uma vez ingressante, os policiais passam 
por uma formação de 104 semanas, divididas em cinco módulos, tendo um curso teórico de 
três meses e estágio prático de 320 horas, com prova ao final. As promoções ocorrem 
exclusivamente por meritocracia, provas internas e sistema de ranqueamento, sendo suas 
subdivisões hierárquicas: Chief Constable, Deputy Chief Constable, Assistent Chief 
Constable, Chief Superintendent, Superintendent, Chief Inspector, Inspector, Sergeant e 
Police Constable (Regular e Especial). 
Os crimes mais frequentes no país, em ordem do maior índice para o menor, segundo 
o intercâmbio, são: crime com facas; violência relacionada ao uso de álcool e a torcidas nos 
estádios de futebol; roubo de veículos; pequenos furtos; e uso de maconha. Cabe destacar as 
brigas de torcida nos estádios, principalmente relacionadas à rivalidade entre dois times 
situados em Glasgow, o Celtic e o Rangers, que de certa maneira possui características 
semelhantes ao contexto norte irlandês, havendo conflitos de cunho religioso (protestantes e 
católicos) e ligado a grupos favoráveis e contrários à integração da Escócia ao Reino Unido. 
De maneira geral, em função da reforma cristã protestante ocorrida no século XVI, contexto 
em que foi criado o Anglicanismo inglês, a orientação protestante é mais observada entre 
aqueles grupos favoráveis ao integralismo do Reino Unido, por isso conhecidos como 
“unionistas”. Por outro lado, a orientação católica é mais observada naqueles grupos 
favoráveis à independência do país em relação ao Reino Unido e à sua capital Londres, 
compondo o grupo dos “republicanos” (MULCAHY, 2008). Dessa maneira, os times de 
futebol de Glasgow sintetizam uma questão cara aos países membros do Reino Unido que diz 
135 
 
sobre o pertencimento ou não a esta lógica política, bem como sobre a distinção conflituosa, 
interconectada ao primeiro aspecto, entre católicos e protestantes. Nesse caso, por exemplo, o 
Celtic conta com maior simpatia entre os católicos e imigrantes irlandeses, enquanto o 
Rangers possui na maioria de sua torcida pessoas protestantes e adeptas da coroa britânica 
(GIULIANOTTI, 2005). 
5.1.1 Polícia de proximidade e o respeito à igualdade e diversidade social 
No tocante à orientação institucional da polícia escocesa, há a ênfase no policiamento 
comunitário. Foi levantada na visita da PMERJ à Escócia que no país o curso de polícia 
comunitária é realizado em 04 semanas, tendo como pilares a segurança, saúde, criatividade e 
força. Seguindo as premissas básicas de tal filosofia, o policiamento comunitário é empregado 
como estratégia para redução da criminalidade, fazendo com que o policial vá à comunidade 
para verificar as necessidades da população e também para informar às pessoas o que a polícia 
espera delas. No caso escocês, a polícia também trabalha integrada com outros órgãos e é 
sempre consultada para a execução de projetos arquitetônicos para grandes eventos, de forma 
que os mesmo contenham elementos favorecedores à segurança pública. Outro ponto é que os 
policiais promovem cursos de prevenção e redução de todo tipo de violência entre os jovens, 
sendo que a maioria das escolas possui um policial capacitado para tratar desses assuntos com 
os jovens ao decorrer do dia letivo. Ainda segundo produção do intercâmbio, há o destaque da 
existência de uma espécie de júri nas escolas, no qual ocorrem as práticas da defesa e da 
acusação dos envolvidos, para que com isso os jovens desenvolvam a percepção de há 
consequências para os seus atos e ações. 
Em observação participante realizada junto em 07/06/2012, em Dundee, foi notado 
um intenso diálogo entre os policiais e os cidadãos comuns. No acompanhamento da rotina de 
dois policiais na região central da cidade, na manhã e tarde, além de convencionais 
cumprimentos às pessoas, observou-se o conhecimento do nome dos oficiais por parte dos 
cidadãos, bem como a solicitação de informação ou de ajuda pontual por diferentes 
instituições, como, por exemplo, uma organização não governamental que se dedica aos 
moradores de rua. Os policiais demonstraram saber os nomes, a procedência e o quantitativo 
das pessoas em situação de rua na cidade e procuraram passar, sobretudo, os direitos que os 
mesmos poderiam reivindicar. 
Pode-se relatar, também, que durante esta observação, quando os policiais se 
aproximavam de grupos como o de pedintes, os últimos não apresentavam qualquer reação de 
alerta ou receio (era observado de maneira frequente um pequeno quantitativo de pessoas, que 
136 
 
almejavam contribuições dos transeuntes, ficando sentadas ao chão e com um pote a sua 
frente). O que se viu foi o questionamento dos policiais aos últimos se tudo estava ocorrendo 
bem e se tinham alguma observação a fazer. 
É necessário fazer a ressalva das consequências que a presença do pesquisador 
durante a observação pode trazer para as atividades dos policiais, bem como o baixo número 
de habitantes se comparado a um grande centro urbano, como o Rio de Janeiro. Contudo, em 
outras observações, ocorridas em momentos de caminhada pelo centro sem estar 
acompanhando os policiais de maneira formal, o mesmo tipo de relação aparentemente 
amigável foi notada. O que se destaca é a aproximação das atividades observadas na prática 
com as orientações da filosofia da polícia comunitária e de proximidade, ressalvando-se o 
caráter embrionário das observações participantes em questão. 
Em relatório produzido no ano de 2013, com introdução do atual chefe da polícia, Stephen 
House, é colocado que o principal comprometimento da polícia escocesa refere-se ao respeito 
da igualdade de direitos e diversidade dos cidadãos. Conforme o relatório, “pode-se 
argumentar que a essência do dever policial é eliminar a discriminação ilegal, promover a 
igualdade de oportunidades e garantir as boas relações” (POLICE SCOTLAND, 2013, p.3). 
De fato, as questões ligadas à alteridade e às diferentes práticas que dela decorrem situam-se 
no centro da orientação escocesa, uma vez que o cumprimento dos deveres específicos do 
policiamento relacionam-se à publicação e relatoria dos seguintes pontos: “dever prioritário 
de prover igualdade; efeitos da igualdade; informações de funcionários; informações de 
disparidades salariais em função do gênero; declaração sobre a igualdade de remuneração;avaliação de impacto igualdade; critérios e condições relativas aos contratos públicos” (id, 
ibid). 
A preocupação com a questão da igualdade e diversidade decorre, entre outros 
motivos, dos desdobramentos da morte de um jovem negro em abril de 1993. Stephen 
Lawrence, então com 18 anos, foi assassinado enquanto esperava um ônibus na parte sudeste 
de Londres. Após a prisão preventiva de cinco suspeitos, a investigação apontou que o 
acontecimento seria motivado por descriminação racial, bem como o tratamento policial 
também teria sido afetado pela questão étnica. Tal ocorrido acabou por ser tornar um caso 
célebre no Reino Unido, acarretando alterações legislativas e de práticas policiais. Com diz o 
relatório da polícia escocesa, ainda em sua terceira página: 
Desde o assassinato de Stephen Lawrence e subseqüente relatório de inquérito, 
considerações a respeito da diversidade e igualdade obtiveram maior 
amadurecimento e se tornaram mais integradas ao policiamento. As razões morais, 
éticas e objetivas para o avanço da igualdade têm sido fatores-chave e o Serviço 
(policial) tem orgulho em ser reconhecido líder do setor público nesta área. Nós nos 
137 
 
esforçamos para fazer as coisas corretas desde o princípio, mas também temos 
focado nos erros que cometemos no passado para descobrir como devemos mudar 
para o futuro. 
 
Nesse sentido, o policiamento escocês visa, em seu âmbito formal, promover um 
padrão de isonomia frente ao serviço que realizam, garantido principalmente pelas vias de 
comunicação e interação com a comunidade. Tal processo envolve, de um lado, a clara 
exposição à sociedade do código de ética policial e do comprometimento da corporação com 
os direitos humanos e, de outro, a exposição de quais ferramentas e procedimentos utilizam 
para a instituição garantir o respeito à igualdade e diversidade, sobretudo com o modo pelo 
qual eles sistematizam os procedimentos que executam e, posteriormente, disponibilizam 
essas informações. Observa-se, portanto, no Police Scotland a interconexão entre o respeito à 
igualdade e diversidade social e uma aproximação mais capilarizada com as comunidades 
locais para promover a segurança e o bem estar das pessoas, não sem passar pelas formas de 
produção e disponibilização das informações provenientes de suas práticas. Tal postura apoia-
se, entre outros, no juramento da polícia após a unificação de 2013, encontrada nos dados do 
intercâmbio: 
Eu, solenemente, sinceramente e verdadeiramente, declaro e afirmo que cumprirei 
fielmente os deveres do cargo de policial com justiça, integridade, diligência e 
imparcialidade e, de acordo com a lei, defenderei os direitos humanos fundamentais 
e tratarei de forma respeitosa e igualitária todas as pessoas. 
Para nos aproximar desse processo, o intercâmbio da PMERJ traz dados sobre as 
estratégias de aproximação da polícia escocesa adotados na região de Fife. No referido 
contexto, a polícia realiza como estratégia de aproximação: reuniões comunitárias bimestrais; 
mobilização comunitária, no qual a comunidade informa a polícia das irregularidades e a 
polícia fornece o feedback dois meses após; entrega de materiais informativos no comércio 
local; encontros com jovens nas escolas, nos quais procuram levar exemplos concretos; 
identificação de locais de maior necessidade de emprego policial; encaminhamento de pessoas 
em conflito com a lei a programas de ressocialização; identificação e apresentação de outros 
parceiros e instituições sociais para a divisão de responsabilidades; e participação em fórum 
nas escolas e universidades. 
Outro exemplo é proveniente da visita à Dundee. Neste contexto foi observada 
integração entre a polícia e o meio acadêmico. No caso, houve a explanação sobre o Scottish 
Institute for Policing Research (SPIR), que é composto por 12 universidades e considerado 
um relevante centro de pesquisa para a polícia escocesa, uma vez que as pesquisas auxiliam 
nas práticas policiais e orientam o treinamento. O foco do instituto é promover a relação entre 
polícia e comunidade por meio de pesquisa de satisfação, impacto social com a mudança da 
138 
 
polícia, produção de evidências e investigação criminal e discussão sobre liderança, 
gerenciamento e organização institucional. Os trabalhos de interesse policial produzidos pelo 
SPIR, como os de modelo de polícia e controle criminal, são repassados à polícia, além da 
realização de palestras anuais. 
5.1.2 Commonwealth Games in Glasgow 
O Commonwealth Games refere-se a uma competição multinacional e multiesportiva 
de países de língua inglesa que possuem ligações históricas com o império britânico. 
Realizados a cada quatro anos, os jogos são disputados atualmente por 70 delegações 
responsáveis por preparar, selecionar e enviar atletas à cidade sede, que no ano de 2014 será 
Glasgow. De acordo com seu site oficial
31
, atletas dos cinco continentes disputam 17 
modalidades esportivas, contando com a presença de 4.352 atletas em 272 eventos em sua 
última realização, em Delhi, Índia. 
O interesse em se discutir sobre a realização do Commonwealth Games relaciona-se 
ao fato do Rio de Janeiro sediar os dois maiores eventos esportivos nos de 2014 e 2016. No 
tocante aos jogos em Glasgow, há uma grande mobilização por parte da polícia para a 
garantia do êxito de sua programação e para a demonstração ao Reino Unido de que a Escócia 
é um país seguro e capaz de se gerenciar autonomamente. Conforme informações 
provenientes do intercâmbio, em função do referendo a ser realizado em 2014 sobre a 
permanência ou não da Escócia no Reino Unido, a boa organização dos jogos seria uma das 
estratégias de fortalecimento da identidade escocesa. 
Segundo os dados trazidos pelos oficiais da PMERJ, os Commonwealth Games 
recebeu um investimento de 90 milhões de libras esterlinas, algo em torno de 355 milhões de 
reais, exclusivamente destinados à segurança pública. São esperados 1,4 milhões de 
expectadores e cerca de 6.500 atletas, competindo em 15 locais diferentes, durante 11 dias. 
No tocante à polícia, será empregado um efetivo de 4 mil policiais, atuando 24 horas por dia. 
Deste total, 10%, cerca de 400 homens, serão compostos por policiais ostensivos, que são 
armados. Há também 11 mil seguranças particulares que atuam dentro dos estádios, além de 
um quantitativo não divulgado de policiais infiltrados, que atuam dentro e fora dos estádios e 
em locais de concentração de público não ligado diretamente ao evento esportivo, como bares 
e hotéis. Nos locais considerados de risco, será destinado de 5 a 6 mil policiais no dia mais 
crítico. 
 
31
Disponível em: http://www.thecgf.com/. Acessado em 10/01/2014. 
http://www.thecgf.com/
139 
 
Em relação ao programa de controle do uso da força, destaca-se que exceto a 
pequena percentagem mencionada do policiamento ostensivo, os policiais não utilizarão 
armas de fogo em seus serviços de rotina. Para controle externo e garantia de respeito aos 
direitos dos cidadãos, todas as ações policiais serão filmadas, sendo cabível ao policial, 
quando identificada situação em que as formas de contato anteriores foram esgotadas, o uso 
do bastão retrátil, de spray de pimenta e da taser (arma que envia uma descarga elétrica no 
alvo), sendo a última restrita a oficiais com treinamento específico. No tocante aos policiais 
que atuarão portando arma de fogo, todos passam por teste psicológico e treinamento de tiro, 
sendo habilitados apenas os mais capacitados nestes procedimentos. Ainda assim, com o 
intuito de otimizar o emprego de policial utilizando este recurso, ocorrerá o mapeamento das 
áreas de atuação, não sendo permitido o uso de arma de fogo em áreas de menor risco. 
Conforme aponta o relatório do intercâmbio, a polícia realiza a identificação das 
diferentes instituições e agências que farão parte do evento, visando compartilhar a 
responsabilidadeem relação à segurança. Assim, cada local do evento contará com uma 
estação de segurança de maneira a integralizar os órgãos envolvidos, como, por exemplo, a 
adoção por parte da agência distribuição de credenciais para funcionários e VIPs de 
procedimento de inteligência para evitar o acesso de pessoas ligadas ao crime organizado. 
O Police Scotland apresenta uma lista de 10 pontos principais a serem averiguados 
durante os jogos, que são: identificar possíveis ataques terroristas; prevenir a desordem 
pública, principalmente da ação de torcedores em forma de turba; suscitar o envolvimento do 
público interno para sucesso dos jogos; minimizar o quanto possível o impacto da rotina da 
cidade; treinar policiais com a Unidade de Inteligência, Análise de Informações e Busca de 
Informações pessoais; garantir a segurança de áreas não diretamente relacionadas aos jogos, 
divididos nas zonas residenciais (acomodação dos atletas), operacionais (Cinemas, Shoppings 
e Transporte Público) e internacionais (locais de confraternização como hotéis, bares e 
praças); averiguar disponibilização de ingressos com antecedência mínima de 8 meses; 
elaborar projeto de segurança da distribuição de credenciais, o que também envolve a 
coibição da atuação de cambistas; garantir a facilidade de transporte, o que engloba meios 
exclusivos aos atletas, estacionamento afastado do evento, faixas de transporte pública 
exclusiva aos torcedores e proximidade entre os locais de competição; monitorar a utilização 
da mídia, por motivos diversos, tais como protesto de pessoas oriundas de países 
politicamente sensíveis (como Índia e Paquistão), tentativas de suicídio e análise de risco para 
a imagem institucional na escala de 0 a 7. 
140 
 
Para a observância dos pontos apresentados acima e para a determinação de quais são 
as áreas de risco, será criado um centro de controle e comando. A partir deste centro serão 
estabelecidos cinco níveis de risco, que balizarão o emprego do efetivo de acordo com a 
necessidade, tanto no que tange ao quantitativo policial como em relação às práticas que 
podem ser realizadas, como a já mencionada utilização da arma de fogo. Assim, haverá um 
centro operacional exclusivo para jogos, desvinculado do centro operacional de rotina, que 
contará com a colaboração de subcomandos responsáveis por cada uma das zonas de ação. 
Segundo a apresentação do intercâmbio, a análise e o plano de risco são necessários 
em função da otimização dos recursos empregados e da atividade preventiva. Nesse sentido, 
levando-se em consideração o risco em potencial, são trabalhadas hipóteses de 15 eventos 
terroristas para cada local esportivo, como ataque às pessoas VIPs, carro e/ou homem bomba, 
ataque com veículos motorizados, ataques com bicicletas e etc. Portanto, será realizado um 
levantamento por oito semanas acerca da característica de funcionamento de cada local 
esportivo, que deverá promover plano emergencial de evacuação de área, possuindo 
orientação do efetivo em cada um dos corredores de policiamento. 
Observa-se que o planejamento destinado ao Commonweath Games diz sobre as 
práticas policiais durante a realização de mega eventos. No caso escocês, como na maioria das 
instituições profissionais, o planejamento é visto como primeiro pilar para uma experiência 
exitosa. Nota-se a relação que se procura estabelecer entre o sucesso do evento e o sucesso 
institucional, havendo, de um lado, a criação de metas, a estruturação da gerência e do alcance 
às atividades de ponta para o alcance das metas e previsão de possíveis acontecimentos para a 
atuação preventiva, enquanto, de outro lado, ocorre a identificação de outros agentes atuantes 
durante os jogos, para que a segurança seja compartilhada e as diferentes atividades sejam 
integradas. Há, assim, a participação da polícia no processo decisório, tanto no sentido de 
liderança quanto ao aporte ostensivo e de inteligência, como no sentido de compor de maneira 
conjunta a outras instituições as ações necessárias para a realização dos jogos como um todo. 
 5.2 IRLANDA DO NORTE 
A Irlanda do Norte é o único país do Reino Unido não localizado na Ilha da Grã-
Bretanha. Situa-se mais ao norte, na Ilha da Irlanda, que é dividida entre seu país e a 
República da Irlanda, sendo a última um país independente e soberano. De acordo com o 
censo de 2012, produzido pela Agência de Departamento Pessoal e de Finanças (NISRA), a 
Irlanda do Norte possui uma população em torno de 1,9 milhões de pessoas, distribuídas em 
13,6 mil km² de território. Sua capital, Belfast, possui em seu domínio pouco mais de 15% da 
141 
 
população, com 290 mil pessoas. A proporção entre o efetivo policial da (Royal Ulster 
Constabulary - RUC) e o total populacional, em 2013, conforme apurado pelo intercâmbio da 
PMERJ, é de um policial para cada grupo de 252 habitantes. 
Segundo artigo de 11 de janeiro de 2012 da BBC
32
, a Irlanda do Norte tem sua 
origem ligada ao Government of Ireland Act de 1920, no qual foi criado a República da 
Irlanda, conferindo a condição aos irlandeses de um Estado Livre. Nesse processo, entretanto, 
seis dos nove condados existentes na Ilha da Irlanda, todos pertencentes à província de Ulster, 
permaneceram integrados ao Reino Unido. Pela localização desses condados ao norte foi, 
então, originada a entidade política da Irlanda do Norte. 
Conforme o artigo, a maioria das pessoas residentes na Irlanda do Norte pertence a 
duas comunidades, a saber: a de protestantes, sendo a maioria composta por descendentes de 
escoceses e ingleses, de maneira geral com maior poder aquisitivo e acúmulo econômico, 
correspondendo a cerca de 2/3 da população; e a comunidade de católicos, que compõe cerca 
de 1/3 da população e possui parte do seu grupo em situação econômica menos favorável. 
Torna-se, assim, importante notar que no país tais tradições culturais e religiosas fundem-se 
com as práticas políticas. É nesse sentido que também ocorre a divisão entre, de um lado, os 
unionistas, de maioria protestante e que deseja a manutenção da integração ao Reino Unido; e 
os nacionalistas ou republicanos, em sua maioria católicos, que majoritariamente são 
favoráveis à união com a República Irlandesa. 
A partir de 1921 foi formado o parlamento norte irlandês em Belfast, de domínio dos 
ideais unionistas. Todavia, diferentemente de um histórico de acomodação e de respeito e 
convívio com as diferenças, foi observado uma sequência de estratégias de dominação e 
discriminação sobre a minoria católica, em que a força policial foi uma das protagonistas. 
 
Figura 13: Foto de um dos muros de Belfast. 
 
Como aponta Mulcahy (2008, p. 
205), “Royal Ulster Constabulary 
(RUC) desempenhou um notório 
papel na segurança do Estado, e foi 
apoiada nesta tarefa por uma força 
miliciana controversa, a Ulster 
Special Constabulary (também 
conhecida como ‘B’ Specials), e por 
uma extensa gama de poderes 
 
32
 Extraído de: http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/country_profiles/4172307.stm. Acessado em 10/01/2014. 
http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/country_profiles/4172307.stm
142 
 
legislativos (mais notavelmente, o Civil Authorities act 1923)”
33
. 
A Irlanda do Norte viveu um contexto de unicidade política ligada aos protestantes 
unionistas e de opressão discriminatória até o fim da década de 1960, quando as comunidades 
católicas iniciaram um movimento de reação. Surgiram, assim, campanhas e marchas que 
reivindicavam igualdade de direitos civis, tendo como um dos pontos de discussão a 
localização das casas de católicos em áreas mais degradadas das cidades. Contudo, o que se 
viu foi uma contrarreação de protestos por parte dos unionistas, que resultou em onda de 
violência que percorreu as décadas seguintes. Neste período, o aparato policial, RUC, sofreu 
duras críticas provenientes dos católicos, referentes à parcialidadenas ações de seu efetivo, 
que incluía tiros indiscriminados de arma de fogo com morte de civis (“shot-to-kill”), falhas 
na prevenção que evitasse a queima de casas dos católicos por parte de grupos protestantes, 
bem como falhas nas ações para restringir ou dispersar multidões ou proteger vidas e 
propriedades (MULCAHY, 2008). 
Mulcahy (2009) comenta que para responder a esse conflito foi elaborado, em 1969, 
o Hunt Committee Report, que aboliu a Ulster Special Constabulary e retirou da RUC a 
responsabilidade pela segurança do Estado, abolindo o uso de arma de fogo em seu quadro. 
Ocorrem, portanto, intervenções diretas do governo britânico no contexto, que foram 
acompanhadas por uma maior atuação do exército nas situações de conflito, em detrimento do 
aparato policial. Entretanto, as intervenções passaram a lidar com um nível cada vez maior de 
conflitos civis e intenso crescimento de atividade de grupos paramilitares, tanto entre os 
católicos, como o IRA (Irish Republican Army), como entre os protestantes, tal qual o UDA 
(Ulster Defence Association). 
 
 Figuras 14 e 15: Fotos de dois muros de Belfast. 
 
33
 Tradução livre do original: “the Royal Ulster Constabulary (RUC) played an overt role in the state security, 
and it was supported in this by a controversial militia force, the Ulster Special Constabulary (also known as the 
‘B’ Specials) and by an extensive range of legislative powers (most notably, the Civil Authorities act 1923)”. 
 
143 
 
De acordo com dados trazidos pelo intercâmbio, ao fim da década de 1960 a RUC foi 
tomada por uma crise de legitimidade e de expertise, visto que era desprovida de 
equipamentos para enfrentar atos terroristas e a desordem pública que se instaurava. A 
corporação possuía em seu efetivo uma grande maioria de protestantes, sendo apenas 7% 
católicos (o que não representa a proporção populacional de 2/3 protestantes e 1/3 católico), o 
quais eram vistos como “traidores” pelo IRA. Observa-se, como também é comentado por 
Mulcahy (2008), de que há uma latente divisão antagônica entre a comunidade católica e a 
polícia. 
Tendo visto em capítulos anteriores a conceituação de alteridade radical trazida por 
Jodelet (1998), visualiza-se na Irlanda do Norte um processo que carrega similaridades com a 
experiência brasileira e, mais especificamente, com a carioca. No Brasil, a mentalidade 
colonizadora, as teorias eugênicas e higienistas, bem como o momento ditatorial, promoveram 
práticas de segurança em que a polícia claramente assumia o papel de defesa do Estado e, por 
consequência, dos grupos de elite que compunham e/ou subsidiavam esse Estado, frente as 
demais classes e grupos sociais, em sua maioria pobre e/ou negro. No próprio período de fim 
da década de 1960 e decorrer dos anos 70, no Brasil, havia um cisão que opunha, de um lado, 
o Estado militarizado e os grupos de elite e, de outro, os grupos de militância política 
esquerdista, contrários ao regime militar, bem como a larga parcela miserável, vista como 
incapaz ao trabalho e ao desenvolvimento de poder aquisitivo. No caso norte irlandês, em 
função de sua continuidade no Reino Unido, apenas os grupos leais à coroa britânica, 
majoritariamente protestante, compuseram as altas instâncias administrativas. Nesse sentido, 
ao invés de ocorrer uma diluição das diferenças, houve uma acentuação das mesmas, opondo 
de maneira radical os católicos aos protestantes. 
Cada um dos contextos, brasileiro e norte irlandês, possui especificidades 
geográficas, políticas e culturais muito bem demarcadas. Não há a intenção, aqui, de traçar 
um paralelo reducionista e direto entre ambos. No caso norte irlandês, por exemplo, os grupos 
que tinham maior acesso à gestão da máquina estatal e à polícia, eram também o grupo de 
maior quantitativo de pessoas. No caso brasileiro, a parcela pobre, com acesso e 
representatividade limitada nos governos representava, mesmo que subdividida entre 
pequenos grupos sociais de minorias, a maior parcela populacional do país. Todavia, a 
articulação entre as experiências se dá pela lógica de produção de alteridade cindida, na qual 
os diferentes grupos não possuem pontos que os ligam, ou seja, na qual os diferentes grupos 
se relacionam de maneira antagônica e sem o compartilhamento de características de 
similaridade. Os aspectos comuns a todos, os aspectos que ligariam os grupos numa relação 
144 
 
de proximidade e maior identificação mútua, como a mesma nacionalidade, a mesma língua e 
outros padrões culturais semelhantes que favorecem o convívio em uma mesma sociedade, 
são abruptamente retirados de cena. Ocorre a ênfase, quase que exclusivamente, apenas dos 
elementos que os diferenciam, que os distinguem e os distanciam uns dos outros, acirrando 
uma atmosfera de disputa simbólica e física. Outro ponto relevante é que, frente a esta 
produção de alteridade radical, a polícia se apresenta como instrumento não de promoção de 
bem estar, de igualdade e de segurança, mas sim como instrumento que visa fortalecer e 
garantir a barreira entre ambos os grupos. Sendo uma instituição profissional vinculada e 
regulada pelo Estado, acaba por produzir ressonâncias em suas atividades da discriminação 
social que o Estado e a sociedade como um todo reproduzem. 
 
Figura 16: Foto de um dos muros de Belfast. 
Retornando à cartografia do contexto norte irlandês, no início da década de 1970 
ocorre o aumento de incidentes envolvendo, de um lado, grupos paramilitares e, de outro, uma 
força de segurança composta por exército e polícia sem acúmulo de experiência com situações 
como essa. Mesmo as situações que, aparentemente, não apresentavam necessidade de 
intervenção militar acabaram por acarretar trocas de tiros e mortes. O principal exemplo deste 
último é o acontecimento conhecido como “Bloody Sunday”. Durante uma marcha liderada 
por católicos, em janeiro de 1972, sem registros de uso de armas ou desordens por parte dos 
manifestantes, o exército acabou por fazer uma intervenção armada, na qual 13 pessoas do 
protesto foram mortas (CONWAY, 2003). 
Conforme relatado em entrevista à pesquisa, em 04/07/12, pelo britânico Erik 
Cownie, doutorando em ciências sociais na Universidade de Ulster, a partir dos anos 70 a 
cidade de Belfast adquiriu uma aparência de guerra, sendo facilmente visto barricadas e 
145 
 
bloqueios de trânsito. O mesmo relata que ações como ir ao shopping não aconteciam sem ao 
menos duas ou três interrupções por parte da polícia e exército. Para adentrar ou sair de um 
centro comercial era necessário passar por revistas. Outro ponto que Cownie destaca é a 
divisão geográfica da cidade em partes destinadas aos católicos e aos protestantes. A divisão 
chegou a produzir muros, vistos ainda em dias atuais, que separam uma área da outra. A cisão 
entre os grupos era de tal maneira que o trânsito de protestantes em áreas católicas, e vice e 
versa, poderia gerar um conflito seguido de morte – o que é outro elemento que se assemelha 
ao contexto carioca, principalmente entre 1980 e 2010, no qual o morador de uma 
comunidade dominada por uma facção de tráfico de drogas não deve adentrar comunidades 
em que há a presença de facção rival, por possível represália da última. 
 
Figura 17: Foto de um dos muros de Belfast. 
Tais fatos fizeram com que a atuação do exército fosse revista e que a RUC 
retomasse a liderança na promoção da segurança nas cidades. Para tanto, a mesma foi 
novamente militarizada, com progressivo aumento de seu poderio bélico e de treinamentos 
destinados ao confronto com grupos paramilitares. Nesse sentido, conforma comenta Mulcahy 
(2008), desde final dos anos 1970 a RUC demonstrou uma crescente preocupação com seu 
profissionalismo e imparcialidade, podendo ser observado mais ações da corporação contra 
grupos e atividades lideradas por unionistas. Todavia, esse processo não foi capazde reduzir 
satisfatoriamente as atividades paramilitares, nem tão pouco eximiu a polícia de Ulster de 
figurar na opinião pública por meio de escândalos de corrupção e de acusações de 
discriminação contra os católicos. 
 
 
146 
 
 1986 1989 1990 1991 1992/3 1993 1993/4 
% de protestantes que consideram que a RUC 
tratam protestantes melhor do que tratam católicos 11 13 12 18 22 17 19 
% de católicos que consideram que a RUC tratam 
protestantes melhor do que tratam católicos 56 52 54 48 55 48 50 
Fonte: Mulcahy (2006), apud Mulcahy (2008, p.207). 
Segundo dados do intercâmbio, o foco da RUC no referido período era 
predominantemente voltado para o controle dos distúrbios, principalmente em razão da 
grande quantidade de marchas e protestos. Assim, havia uma distância entre a polícia e a 
sociedade, que culminou na significativa redução do número de registros de ocorrência e 
acesso à justiça, pois a constante preocupação com novos ataques e manifestações dificultava 
a escuta por parte da polícia das demandas da comunidade. Como consequência desse 
afastamento entre, de um lado, os cidadãos comuns e, de outro, a escuta da polícia às 
demandas locais e o acesso à justiça, os grupos paramilitares passaram a produzir leis e 
executar julgamentos próprios, da maneira que lhe parecessem conveniente. 
A cisão entre a maioria dos grupos sociais e a escuta da polícia e acesso à justiça 
demonstra-se como outro fator de possível articulação com o ambiente carioca de 
comunidades com a presença de grupos armados ilegais. Discutido em grande número de 
publicações (MISSE, 1997; MELO, 2001; ZALUAR, 2004; MELICIO, 2010b; 
JOVCHELOVITCH, 2013; entre outros), as formas de estruturação política e de tomadas de 
decisão nas favelas com a presença de facções criminosas possuem uma organização 
específica, quase que totalmente autônoma e independente da organização formal oficial da 
cidade. Dessa maneira, o ponto que a presente pesquisa busca destacar é o quanto as formas 
de alteridade radical presentes nestes contextos constituem o sustentáculo vital para tal 
configuração social. Alimentada, sobretudo, pela propagação do medo e pelas formas 
preventivas de ação que, por definição, antecedem os acontecimentos e trabalham em cima do 
risco em potencial, esse tipo de alteridade promove a supressão dos aspectos condicionantes 
desta estruturação social, desonerando os processos históricos e o descaso anterior do 
governo, e lançando o foco das políticas públicas para a repressão desmesurada e 
aprisionamento de pessoas. 
De acordo do dados obtidos pelo intercâmbio da PMERJ na Universidade de Ulster, 
no período entre 1966 e 1998, com uma população total variante entre 700 e 820 mil 
habitantes, houve um total de 3.636 mortes relacionadas a ataques e/ou conflitos com 
paramilitares. Deste total, 1232 eram católicos, 698 protestantes, 59 policiais ou agentes de 
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segurança privada, 508 membros das Forças Armadas, 392 revolucionários, 144 membros de 
grupos apoiados pelo governo e 158 de pessoas de outros grupos . 
O número de pessoas mortas em função dos conflitos, considerado alto para os 
padrões europeus, fez com que ocorresse na Irlanda do Norte uma série de reivindicações, 
provenientes de todos os grupos, para o fim de ataques e confrontos. Conforme relata Erik 
Cownie, na referida entrevista: 
Durante esses 30 anos (1969-1999), a polícia não quis prender pessoas, mas matá-
las. Todas as vezes em que matavam não existia regras, não havia inquérito. 
(...) Mas o problema não é unicamente a polícia. Eles não mataram muito. Os fiéis 
ao Reino Unido e os Republicanos... as força paramilitares mataram muito mais. 
(...) Havia muita violência e as pessoas estavam cansadas disso. Havia barricadas, 
bombas... policiais foram mortos em universidades (...) Depois houve aquele ataque 
de republicanos na Inglaterra, quando dois garotos morreram. Houve um grande 
protesto em Dublin. Todo mundo.... católicos, protestantes, União Européia... todos 
reivindicaram a paz. Havia aquele sentimento de: “Isto está indo longo demais! 
Estamos cansados disso!”. 
 
 É nesse contexto que diversos artistas aderem à divulgação dos problemas 
enfrentados na Irlanda do Norte, como pode ser visto com a banda do país U2, em especial 
com a música “Sunday, bloody sunday”, em clara referência ao ocorrido no domingo de 1972, 
e com a banda irlandesa The Cranberries, com a música “Zombie”, que possui a seguinte 
letra: 
Another head hangs lowly / Child is slowly taken 
And the violence caused silence / Who are we mistaken? 
 
But you see, it's not me, it's not my family 
In your head, in your head they are fighting 
With their tanks and their bombs 
And their bones and their guns 
In your head, in your head, they are crying... 
 
Another mother's breaking / Heart is taking over 
When the violence causes silence / We must be mistaken 
 
It's the same old theme since nineteen-sixteen 
In your head, in your head they're still fighting 
With their tanks and their bombs 
And their bones and their guns 
In your head, in your head, they are dying... 
 
In your head, in your head / Zombie, zombie, zombie 
Durante meados da década de 1990 ocorreram uma série de negociações políticas 
que acarretaram no cessar-fogo por parte dos grupos paramilitares. O primeiro anúncio entre 
grupos unionistas e republicanos data de 1994, cercado, contudo, com grande parcela de 
desconfiança e receio. O IRA, por exemplo, teve seu último ato com ataques com bomba em 
Canary Wharf, em Londres, retornando ao cessar-fogo em 1997 (MULCAHY, 2008). Assim, 
mesmo que nos dias atuais possam ser encontradas notas sobre grupos radicais que visam 
continuar com as atividades paramilitares (NOLAN, 2013), iniciou-se uma nova etapa no 
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contexto de segurança pública, que culminou no “Belfast Agreement” (também conhecido 
como “Good Friday Agreement”), 1998, e na reforma policial, de 1999. 
5.2.1 Patten Report e a Mudança de RUC para a PSNI: A Reforma Policial 
Norte Irlandesa 
As negociações políticas realizadas no Belfast Agreement, em 1998, incluíram 
diferentes aspectos envolvidos nos conflitos do país, obtendo êxito, inclusive, na libertação de 
prisioneiros sob posse dos grupos paramilitares. Conforme relata Nolan (2013), o ponto 
principal para o acordo foi o reconhecimento da diversidade na composição populacional da 
Irlanda do Norte. O autor aponta que durante o encontro foram discutidos o longo período de 
conflito entre irlandeses e britânicos, iniciado ainda no século XVII, bem como o papel que a 
religião representa nesse processo. Fazendo menção aos conflitos que ganharam maior 
intensidade entre os fins das décadas de 1960 e 1990, Nolan comenta que não se trata de um 
contexto em que a religião por si só representa a causa dos confrontos: “this is not a conflict 
primarily about religion, but one where religion acts primarily as a maker of national identity” 
(NOLAN, 2013, p.13). A questão da identidade irlandesa, vinculada aos nativos, e a 
identidade britânica, ligada aos migrantes escoceses, ingleses e galeses que passam a povoar o 
país como maior força a partir do século XVIII, acaba por encontrar na religião uma forma de 
expressar os seus modos e valores, fazendo com que os atos de violência sejam também 
visualizados como entre católicos e protestantes. Dessa maneira, a forma com que se 
vislumbrou dar novas saídas ao problema foi não a supressão das diferenças, no sentido dos 
territórios existenciais de um grupo suprimir os do outro, mas o de valorizar a diversidade. 
Como diz Nolan (2013, p.14): 
The innovative thinking that led to the Good Friday Agreement did not consistently 
accept such a zero-sum equation. Instead of an either/or approach where one identity 
necessarily negated the other, the Agreement substituted a both-and alternative, 
allowing that individual residents of Northern Ireland could choose to be ‘Irish,

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