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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Cultura e Memória na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro Vinícius Ferreira Natal Rio de Janeiro/2014 2 Cultura e Memória na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro Vinícius Ferreira Natal Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Orientadora: Profª Drª Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Rio de Janeiro 2014 3 Cultura e Memória na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro Vinícius Ferreira Natal Orientadora: Profª. Drª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Aprovada por: _________________________________________________ Profª. Drª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti _________________________________________________ Profª. Drª. Renata de Sá Gonçalves _________________________________________________ Profº. Dr. Luiz Felipe Ferreira Rio de Janeiro Junho/2014 4 “Eu sou mais de cantar Eu sou mais de aplaudir Eu sou de acreditar que a vida é melhor Quando a gente sorri” Toninho Geraes e Serginho BH 5 Agradecimentos Recentemente, ganhou força em mim a ideia de que os agradecidos o sabem, sem que seja preciso dar-lhes maiores explicações. Aqueles mais próximos, mais distantes, mas que de alguma forma torceram para que essa reflexão findasse e eu voltasse a ter algum tipo de vida social, certamente, saberão que não estão presentes somente nesta página destinada aos agradecimentos, e sim em cada linha, vírgula ou crase mal empregada desse texto. Perdoem-me, mas não tenho fôlego de enumerar a todos! Ainda mais em um fim de período de escrita da dissertação, tenso por natureza e pelo curto prazo que nos é dado. Portanto, agradeço à minha família que me deu o suporte necessário para chegar até aqui; aos amigos, que aturaram e revisaram o trabalho muitas vezes e me ajudaram com seu bom senso; ao CNPQ, pela bolsa de estudos; à Maria Laura Cavalcanti, que me ensinou a enxergar a antropologia; ao samba, por ter me revelado a face mais bela do que é viver bem. 6 SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................................... 8 CAPÍTULO 1 – Somos o Mundo Social Urbano! ................................................................ 17 1.1. Subjetividade e Familiaridade no Urbano ................................................................. 17 1.2. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro no Ambiente Urbano ................................. 19 1.3. Trabalhando em Campo na Antropologia Urbana e na Escola de Samba ................. 23 1.4. Uma Ideia de Cultura nas Escolas de Samba ............................................................ 27 1.5. Uma Ideia de Memória nas Escolas de Samba .......................................................... 30 CAPÍTULO 2 - Nós Somos a Cultura! ................................................................................. 38 2.1. Compreendendo o Departamento Cultural ................................................................ 39 2.1.1. Narrativa(s) de Fundação.................................................................................... 39 2.2. O Drama Social do Enredo "Caras” .......................................................................... 47 2.2.1. A Crise ................................................................................................................ 52 2.2.2. A Expansão da Crise........................................................................................... 54 2.2.3.Desfecho: Esforços de Reconciliação? ................................................................ 60 2.3. A Memória Como Outra Face de Ação do Departamento Cultural .......................... 65 2.3.1. Breve Histórico de Ações ................................................................................... 65 2.3.2. Vasculhando a Memória-Acervo do Departamento Cultural ............................. 68 2.3.3. Re-organizando a Memória Como Estratégia de Pesquisa ................................. 75 CAPÍTULO 3 – Eu Sou o Samba!........................................................................................ 78 3.1. Os Sabiás do Salgueiro .............................................................................................. 78 3.2. Diário de Campo – Tentativas, Frustrações e Repensando pelo Difícil .................... 80 3.2.1. Rio de Janeiro, 26 de Novembro de 2012 - O Primeiro Contato ....................... 80 3.2.2. Rio de Janeiro, 29 de Outubro de 2013 – Novo Contato, Novos Objetivos ....... 91 3.2.3. Rio de Janeiro, 1 de Novembro de 2013 - Uma Amigável Conversa ................ 92 3.2.4. Rio de Janeiro, 26 de Novembro de 2013 – Imprevisto do Campo ................ 103 3.2.5. Rio de Janeiro, 17 de Dezembro de 2013 - Estratégia de Pesquisa ................. 109 3.3. Reflexões sobre o Ator Djalma Sabiá ..................................................................... 111 3.3.1. Uma Construção de Si ...................................................................................... 111 3.3.2. Breve Panorama da Titulação do Samba Carioca ............................................ 113 3.4.O Que Deseja Djalma Expor de Si? O Depoimento do CCC ................................... 118 3.5. Uma Outra Construção de Si: O Caso da Revista "O Globo" ................................. 126 3.6. Sabiá: Um Velha Guarda? ....................................................................................... 128 3.7. Sabiá: o Compositor Entre a tensão Samba no Pé (Tradição) x Visual (Modernidade) ........................................................................................................................................ 130 3.8. Sabiá: Um Narrador? ............................................................................................... 136 3.9. Memória, Narrativa e Representação do Eu em Djalma Sabiá ............................... 140 Algumas Considerações ..................................................................................................... 143 ANEXOS ............................................................................................................................ 149 Anexo 1 – Carta de Demissão de André Albuquerque ................................................... 149 Anexo 2 – Manifesto “Nossa Avenida Vai Além do Carnaval” .................................... 155 Anexo 3 – Manifesto a Favor da Plena Liberdade de Expressão ................................... 161 Anexo 4 – As Duas Versões de Sinopse......................................................................... 163 Anexo 5 – Sambas de Enredo Vencidos por Djalma Sabiá ............................................168 Anexo 6- Inventário das Paredes de Djalma Sabiá......................................................... 175 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 183 7 RESUMO O presente trabalho busca compreender as narrativas acerca da memória e da cultura empreendidas a partir de duas posições distintas situadas no contexto do meio social do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, uma das mais notáveis escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro. São elas: o Departamento Cultural, composto por Eduardo Pinto e Gustavo Melo; e o compositor Djalma Sabiá, que é nos dias de hoje o único fundador vivo da agremiação. Investigo como esses atores sociais utilizam as ideias de cultura e memória em suas narrativas, em seus planos e ações cotidianas, em seus conflitos e falas. Busco também entender de que forma, por meio de suas ações e de seus posicionamentos dentro da agremiação, eles constroem e negociam, no meio social do carnaval como um todo, suas próprias identidades sociais e imagens de si mesmos através desses conceitos. ABSTRACT The present study focuses the narratives on memory and culture held by different social actors of Salgueiro Samba School, one of the main samba schools of Rio de Janeiro’s Carnival. In this samba school’s wider ambience, I have chosen to analyse the perspectives on memory and culture forged by Salgueiro’s Cultural Department, composed by Eduardo Pinto and Gustavo Melo, and by the composer Djalma Sabiá, who is nowadays the only living founder of Salgueiro. I investigate how these social actors understand the ideas of culture and memory analysing their actions, their plans, quarrels, conversations and speeches throughout the making of each annual carnival. I argue that while acting in favour of Salgueiro’s memory and culture, they also create and negotiate their social identities and images of their own selves in the social environment of Rio de Janeiro’s Carnival. 8 Introdução Era um sábado do mês de Abril de 2012 e a feijoada corria bastante animada. Estava eu em meio à uma grande comemoração regada - para variar - à samba e cerveja. Um simples toque de celular me fez perder toda a graça do resto de sábado que se anunciava. Gilberto Velho tinha morrido. Eu não era seu amigo, mas fui seu aluno em seu último curso de Antropologia Urbana, ministrado no Museu Nacional no primeiro semestre de 2012. Sua morte foi por mim sentida não em um nível pessoal de proximidade, mas em um nível que eu mesmo, naquele momento, não sabia explicar. Lembro que ouvia falar muito em seu nome. Gilberto Velho. Era bastante respeitado, mas eu, iniciante nos estudos de Antropologia, não fazia ideia de sua importância para a compreensão da vida social, e principalmente, para a antropologia do urbano. Por que introduzo o trabalho com esse tema? Não é mera petulância em querer demonstrar conhecimento de causa. Em sua última aula ministrada, apresentamos eu, Carolina Nogueira e Daniele Ferreira, um seminário sobre o livro "Sociedade de Esquina", de William Foote-Whyte (2005). Fui conhecer ali, em sua aula, aquela obra. Sempre tinha ouvido falar muito bem desse livro, mas não tinha noção do que tratava. Sabia, somente, que era um livro sobre gangues. Isso era sensacional e bastava. Ao entender a dinâmica da pesquisa de Foote-Whyte, sua gafe ao quase ser preso ao fraudar eleições locais, me identifiquei e me diverti com o pesquisador. Mas além disso tudo, tinha ali meu primeiro contato com um texto de análise social onde pude apreender o que seria uma pesquisa antropológica: surpreendente, por vezes perigosa e emocionada, mas acima de tudo, verdadeira enquanto se relaciona com a existência de pessoas reais. Os atores da pesquisa de Foote-Whyte eram humanos, como eu, com os mesmos questionamentos. Não eram os "outros", e sim "nós". No decorrer do curso, percebi quem era Gilberto Velho. Em uma das aulas em que cheguei atrasado, implicou comigo pois, ao entrar preocupado, deixei a porta aberta. Gilberto parou a aula dizendo que se eu não fechasse a porta, ela não iria fechar sozinha. Internamente, ri bastante, pois sua ironia era de um senso de humor que me cativava. 9 No dia do seminário, Velho elogiou bastante o grupo. Em meio à discussões sobre a criatividade de Foote-Whyte em seu trabalho, um grande questionamento - muito meu, mesmo - vinha à tona: Para que escrevemos e fazemos mestrado, doutorado? Para que serve, afinal de contas, o conhecimento que produzimos? E por último - e mais complexo ainda - Por que, afinal, a academia escrevia só para a academia? Postas as questões na mesa, Velho me pareceu sorrir. Eu, um mestrando que nem sabia direito quem era a tal da Antropologia, estava perguntando coisas, no mínimo, pertinentes. O professor disse: "Se você fizer um trabalho que sirva, ao menos, para alguém que não seja você ler, fique satisfeito". Foi sua última aula. O que naquele momento me pareceu uma resposta genérica, agora, neste momento de conclusão da escrita, após dois anos de estudos, ganhou todo sentido para mim. Pesquisando narrativas da memória e da cultura no G.R.E.S. Salgueiro percebi, ao menos para o meu entendimento, para que servia o mestrado, doutorado e outros "ados": Produzir conhecimento novo. Aprender a conhecer. E era, assumidamente, uma forma de produção dentre tantas outras que coexistem. Se eu tiver conseguido produzir um trabalho que sirva para alguém, além de eu mesmo, ler; ou mesmo para alguém que apenas replique, de alguma forma, o que foi produzido aqui, já me sentirei recompensado pelo esforço em pensar e compreender os assuntos sobre os quais discorro. Mas para esse "replicar" ocorrer, é preciso ação. Cabe ao antropólogo sair de sua comodidade e buscar que sua pesquisa atinja algo/alguém. Faça mover. As aulas de Velho, com seu ácido senso de humor, o livro de Foote-Whyte. Tudo ficaria tatuado em minha memória como uma lembrança e, mais ainda, como um incentivo para a produção de conhecimento social. *** 10 Minha ligação com o tema “escolas de samba” se iniciou desde muito cedo, quando ganhei o apelido de “sombrinha” nas rodas de samba da ala de compositores do G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel. Sombrinha, pois acompanhava minha avó, Ivanísia, compositora, advogada – a quem tinha, e tenho, como figura referência na minha vida de sambista – em todos os lugares em que ia, tal qual uma sombra. Os compositores da ala – Helinho, Irani olho verde, Mariazinha, Jarbas, Fernando Partideiro – trataram logo de me apelidar, mas graças aos deuses, o apelido não pegou. Já mais velho, comecei a frequentar os ensaios assiduamente, mas curiosamente não pude desfilar antes de 2002. Explica-se: Era tomado por um medo imenso dos fogos que pipocavam antes dos desfiles. Por esse motivo, só a maturidade foi suficiente para superar tal pavor, e em 2002 ingressei na bateria da escola tocando tamborim. Em 2011 me graduei em História, na Universidade Federal Fluminense, iniciando a pesquisa acadêmica sobre a cultura popular e o carnaval. Muito me incomodavam algumas situações de desigualdade no mundo do samba, como a presença de pessoas abnegadas por suas escolas em barracões, construindo carros e fantasias exaustivamente, mas que no dia dos ensaios de quadra da escola não conseguiam uma mesa e cadeira para curtirem seu ambiente de amor, enquanto figuras ausentes do cotidiano da escola lá se acomodavam. Isso me inquietava e a possibilidade de fazer algo, ou pelo menos dizer algo sobre esse assunto, já me deixava bastante animado. Com o curso de mestrado e o contato com a antropologia, comecei a questionar o próprio conceito de cultura dentro da escola de samba: Se os estudiosos do assunto e mesmo o senso comum enxergavam as escolasde samba como uma manifestação cultural, como poderia existir dentro dessas agremiações um Departamento que cuidasse especificamente “da cultura” nas escolas de samba? Não seria a escola de samba em si expressão máxima de cultura? Por que um Departamento para dar conta desse elemento constitutivo das escolas? Essas indagações geraram uma enorme inquietação e me fizeram perceber que nem sempre, na vida social concreta, tratar algo como “cultural” dá conta da dimensão antropológica desse mesmo objeto ou manifestação. Na monografia de final do curso de História (NATAL, 2011), observei que nem todas as escolas de samba possuíam os tais Departamentos Culturais. Algumas o possuíam, 11 mas eles ocupavam lugar inexpressivo no tocante às ações empreendidas pela agremiação. Por vezes, entretanto, esses Departamentos exerciam papel ativo na preparação do carnaval e na guarda do que era considerado a “memória da escola”, em suas variadas matizes. Esse é o caso do Departamento Cultural do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro aqui abordado. Na monografia, comparei o surgimento desses Departamentos com a situação atual. Na década de 1960, enfoquei a Imperatriz Leopoldinense; na década de 70, o Império Serrano. Nesses dois casos, a iniciativa de criação desses Departamentos possuía o sentido político de resistência à ditadura militar e indicavam a ligação partidária de seus arregimentadores, respectivamente Hiram Araújo e Rachel Valença, com o Partido Comunista Brasileiro. O terceiro caso analisado, que serviu de contraponto entre o passado e o presente, foi o do Salgueiro. Nessa ocasião me aproximei de Eduardo Pinto e Gustavo Melo, Diretores Culturais da escola, que por sua vez são dois dos interlocutores principais deste trabalho. Quando exerciam alguma função de fato dentro da agremiação, os Departamentos observados pareciam possuir características bem definidas. No Império Serrano e no Salgueiro, por exemplo, havia em seu ideário a valorização do colecionamento de materiais antigos relacionados à história de suas agremiações. Na prática, esse ato de colecionar, que constituía parte importante de suas iniciativas, implicava a reunião de materiais encontrados com diferentes componentes das escolas, ou recolhidos por eles mesmos, e em seu armazenamento na residência dos seus articuladores. Esse material formava assim verdadeiras coleções pessoais de documentos de diversos tipos que sempre correspondiam ao desejo de obtenção de registros do passado da escola e da experiência de figuras consideradas importantes na história da escola de samba. Já na Imperatriz Leopoldinense, mesmo que Amauri Jório, pioneiro organizador do Departamento, possuísse uma coleção pessoal de materiais sobre a escola, o Departamento Cultural assumia um papel ativo na confecção do carnaval, atuante na construção dos enredos anuais. Nos anos 2000, encontrei a mesma valorização da participação do Departamento Cultural na confecção dos enredos no Salgueiro, que também atuava no processo de criação do enredo e defesa dos desfiles 12 enviados para a entidade organizadora dos desfiles do grupo especial do carnaval carioca, a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) 1 . Quando o tema da pesquisa de campo faz parte do cotidiano de vida do pesquisador, a observação participante é um exercício diário de estranhamento. Essa familiaridade foi motivo de grande inquietação quando decidi estudar assuntos que permeavam o meu próprio convívio social como sambista e, mais ainda, tratar da minha maior amargura pessoal que era o descaso com a memória das escolas de samba que envolvia o mundo do samba. Determinados materiais relacionados às escolas de samba - fotografias, jornais e outros objetos - poderiam adquirir, para uns, valor simbólico de um documento digno de constituir um acervo, e na mesma medida, para outros, o valor simbólico de "velharia" e "papel velho", digno da lata do lixo. Isso me inquietava. No meu entender, a memória das escolas deveria ser perpetuada e promovida constantemente. Eu tinha um posicionamento bem definido a esse respeito. Porém, na medida em que me inseria no campo de pesquisa, comecei a perceber um panorama diferente. Através da própria prática antropológica do "estranhamento", eu logo colocaria minhas próprias certezas em xeque. O que eu via até então como "desleixo" com a memória por parte das escolas de samba talvez se relacionasse à natureza dinâmica efêmera mesma das escolas de samba, onde a “memória” se espraiaria no céu das escolas de samba como uma luz difusa, sob diversas formas, não definidas em seu alcance e direções. Inicialmente, achei que meu tema estaria restrito ao Departamento Cultural do Salgueiro, onde comecei a observar somente os fatos que envolviam diretamente esta instância da escola de samba, composta por Eduardo Pinto e Gustavo Melo. Porém, minha pesquisa ia tomando rumos que nem eu mesmo percebia. Pesquisar, seja na Antropologia ou em qualquer outra área, é exatamente o não saber o que irá acontecer como o próximo passo a ser tomado. Se fizéssemos previsões e, pior ainda, se elas se concretizassem e essas 1 LIESA foi criada em 1984 pela cúpula do jogo do bicho, substituindo a Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Os enredos, atualmente, devem ser defendidos e encaminahdos à instituição. Essa defesa constará no Manual do Julgador que servirá para embasar o julgamento dos diversos quesitos no dia do desfile. 13 fossem a base das pesquisas, a espontaneidade dos dados que emergem sem nossa vontade inexistiria. Logo, a antropologia inexistiria, não? O fazer antropológico tem como uma de suas bases a relação direta entre antropólogo e os atores sociais presente em sua pesquisa de campo. Se o pesquisador não criar uma empatia com seus interlocutores, não haverá trabalho antropológico possível. Um simples gesto, ato, palavra, um não ou sim, podem definir rumos inusitados de pesquisa, ocasionar recuos ou avanços. Pesquisar é também lidar com a incerteza do não saber o que irá acontecer; é o esforço feito pelo pesquisador para entender o campo em sua própria dinâmica e atores característicos. Essa abertura com o campo, conquistada de uma forma não-clara, porém eficaz a esse trabalho, foi essencial para criar as alianças necessárias para a realização desta pesquisa. Na medida em que o trabalho de pesquisa transcorria com suas muitas dificuldades, fui compreendendo um pouco do ofício antropológico e a relação entre as peças do jogo de tabuleiro que é a vida social. Nela, o campo e seus sujeitos estão imersos e entendê-los em diferentes dimensões se torna importante para compreendermos quem somos nós, o que fazemos, sentimos e vivemos. Como revela Luciana Carvalho, “(...) o campo sempre nos brinda com situações, boas ou ruins, das quais nem sequer suspeitamos e que se revelam, queríamos ou não, essenciais para nosso trabalho”. (Carvalho, 2005, p.54). Foi no contexto desse aprendizado que percebi o compositor Djalma Sabiá como possível interlocutor a ser incluído nesta pesquisa. Essa mudança ocorreu quando eu ainda atuava como pesquisador no Centro Cultural Cartola (CCC), onde permaneci entre Junho de 2011 e agosto de 2013. A instituição é até hoje coordenada por Nilcemar Nogueira, neta do compositor Angenor de Oliveira, o Cartola (11/10/1908-30/11/1980) e de sua segunda esposa Euzébia Silva do Nacimento, Dona Zica (06/02/1913-22/01/2003) 2 . 2 Cartola criou o Bloco dos Arengueiros, que deu origem à escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Compôs em parceria diversos sambas, tendo como um de seus mais constantes parceiros Carlos Cachaça. Fez sucesso com diversas canções na década de 30 e teve composições gravadas por Carmen Miranda e Francisco Alves, entre outros. Se tornou figuraidentitária importante na Mangueira, levando o nome do morro em suas canções e Lp´s. Dona Zica, sua esposa, ficou conhecida na região da Mangueira por se tornar uma liderança feminina dentro da escola de samba Mangueira. 14 O CCC liderou o pedido de registro do samba do Rio de Janeiro como Patrimônio Cultural Imaterial (PCI) e coordenou a elaboração do dossiê que informou o processo, dando origem à titulação do samba carioca nas modalidades de samba de terreiro, samba de partido alto e samba de enredo como Patrimônio Imaterial Brasileiro pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/ Ministério da Cultura. A titulação foi obtida em 2007, com a inscrição dessas modalidades de samba no Livro de Registro das Formas de Expressão. Como desdobramento do registro, um dos objetivos de salvaguarda do samba como um novo bem cultural imaterial seria, então, o de “realizar a manutenção da memória e fomentar a sua difusão no meio social em que o bem se encontra inserido” (DOSSIÊ, 2007,p.117). Dessa forma, ir até a casa de alguns “detentores” - termo utilizado pelo IPHAN para designar os praticantes do bem imaterial titulado - e lá, obter os acervos pessoais para o CCC, seriam ações alinhadas aos anseios de preservação da memória das modalidades do samba patrimonializadas. Estabeleceu-se que o primeiro personagem a ser visitado seria Djalma Sabiá, e eu era o responsável por sua entrevista e captação de acervo. Já tinha alguma noção de quem era Djalma Sabiá e o que ele representava para o mundo do samba e do carnaval, além de sua relevância para a escola de samba Salgueiro como único fundador vivo e colecionador ferrenho de material sobre a agremiação. Porém, não havia me dado conta de que estava diante de parte relevante de minha pesquisa, de uma porta de entrada interessante para observar narrativas de memória e cultura no G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro. Segui com o objetivo estabelecido pelo CCC de conhecer o que se denominava como “seu acervo”, mas também com a curiosidade pessoal aguçada para conhecer Djalma Sabiá e entender um pouco mais quem ele era. Ao travar esse contato com Djalma, percebi – o que ficará claro de maneira mais explícita e detalhada à frente - que o compositor colecionava, assim como o Departamento Cultural, grande quantidade de material sobre a escola. Além disso, me chamou atenção a forma com que tanto Djalma quanto Eduardo e Gustavo se moviam internamente na agremiação. Seus posicionamentos políticos eram defendidos em uma busca, por vezes não consciente, do que parecia ser uma luta por espaço de atuação e, consequentemente, por 15 reconhecimento, onde todos almejavam mais participação e presença nas decisões da escolas relativas a seu cotidiano administrativo e ao carnaval anual. Face ao exposto, trabalhei em meio a esses dois lugares diferenciados do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro em que as ideias de cultura e memória saltam aos olhos: Djalma Sabiá e Departamento Cultural. Walter Benjamin, apesar da visão pessimista que vê o declínio da narrativa como decorrente do acesso de massa à informação (1994, p.200), descreve o narrador como uma figura fantástica, capaz de dar vida aos fatos durante o processo de contar e rememorar. Porém, antes de se personificar em um indivíduo, a narrativa é sempre uma versão, uma forma de contar um caso. Em nosso caso, percebi que os dois lugares centrais de análise do presente trabalho narravam - ou seja, contavam uma história e defendiam suas ideias, principalmente aquelas que remetem às idéias de cultura e memória - como uma estratégia que visa ser eficaz ao convencimento, deles mesmos e dos outros, de que suas narrativas deveriam ser alçadas ao patamar de verdade sobre o Salgueiro. O que se segue, portanto, são análises das narrativas desses atores - Departamento Cultural e Djalma Sabiá - que demonstram, dentre outros aspectos, narrativas banhadas em significados próprios do que é compreendido como a cultura e a memória no Salgueiro: O que é a memória e cultura do Salgueiro? O que é, afinal, o Salgueiro? No primeiro capítulo "Somos o mundo social urbano", busco localizar o lugar das escolas de samba do Rio de Janeiro nos estudos de Antropologia Urbana, as vicissitudes do trabalho de campo nesse meio complexo, compreendendo a relação das ideias de cultura e memória para as escolas de samba do Rio de Janeiro. O segundo capítulo, "Somos a Cultura!", fala sobre o Departamento Cultural do Salgueiro, mostrando de que forma o grupo, baseado em duas atuações principais na escola – a participação da elaboração do enredo anual e o desenvolvimento do papel de "guardião da memória" da agremiação - constrói uma narrativa perpassada por, dentre outros aspectos, dramas sociais vividos na busca pelo reconhecimento. Para tanto, busco compreender como a noção de cultura é entendida por seus agentes centrais. O que Eduardo Pinto e Gustavo Melo consideram como cultural dentro do Salgueiro e do mundo social das 16 escolas de samba, e o que eles alijam como não-cultural? De que forma utilizam a memória como uma instância de afirmação de uma posição política dentro da escola de samba? Para entender essas questões, problematizo as atividades por eles empreendidas. O terceiro capítulo, "Eu sou o Samba!", propõe uma etnografia de Djalma Sabiá. Em uma série de visitas a sua residência, pude observar como Sabiá, ao expor as fotografias e outros materiais do Salgueiro em suas paredes, constrói e oferece uma imagem de si aos frequentes visitantes e pesquisadores que ali aportam. Através de uma cena construída, Djalma assume o papel de um personagem que, com posicionamentos embasados em seu passado de único fundador vivo da agremiação, encena sua narrativa biográfica aliada à uma ideia de tradição e memória, gerando uma visão particular das escolas de samba do Rio de Janeiro. Todo esse jogo serve como uma justificativa de uma noção de cultura, que, mesmo que não-explícita, pode ser constatada. 17 CAPÍTULO 1 – Somos o Mundo Social Urbano! 1.1. Subjetividade e Familiaridade no Urbano Quando tentado a trabalhar com a perspectiva antropológica, um dos meus maiores questionamentos era como pesquisar um tema tão próximo ao meu cotidiano e vivência sem pôr em xeque a objetividade científica exigida pelos padrões acadêmicos e sentida mais fortemente por mim no curso de graduação em História. A ideia de subjetividade que eu havia adquirido era impeditiva. Mesmo na metodologia da história oral, por exemplo, que valoriza as subjetividades narrativas, a exigência de fontes objetivas, fidedignas, estava sempre por perto. Como já dito na introdução, desde minha infância frequentava as reuniões da ala de compositores da Vila Isabel. Com o passar dos anos, dei-me conta de que ouvia mais samba do que qualquer outro gênero musical. Eu tocava na bateria de diversas escolas de samba e quase todos os meus amigos eram sambistas. Logo, estava do lado de dentro, observando os problemas, confrontos, alianças e outras características com o apuro de quem vivencia uma situação cotidiana. Como lidar com isso? Estranhar o familiar. Nunca essa afirmativa faria tanto sentido para mim que via o mundo do samba com uma visão cotidiana e corriqueira. Lendo os trabalhos de Gilberto Velho, observei o quão normal poderia ser estudar um caso próximo à minha realidade. Eu deveria aprender o “estranhamento do familiar”, pois uma situação, a principio familiar, nem sempre é conhecida. Nesse sentido, Velho defende: "o estudo do familiar oferece vantagens em termos de possibilidades de rever e enriquecer os resultados das pesquisas. Acredito que seja possível transcender, em determinados momentos, as limitações de origem do antropólogo e chegar a ver o familiar não necessariamente como exótico, mas como uma realidade bemmais complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classe através dos quais fomos socializados" (VELHO, 1978, p.131). 18 Ricardo Barbieri em “A Acadêmicos do Dendê Quer Brilhar na Sapucaí” também explora esse tema. Antropólogo inserido no meio do “mundo do carnaval”, relata sua dificuldade em estudar um universo familiar, onde “Foi necessário me concentrar no esforço de estranhar o familiar, por conviver com o cotidiano das escolas de samba, e desempenhar funções neste meio (as de intérprete e compositor)” ( BARBIERI,2013,p. 32). Quando falamos em pesquisa social é necessário transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico. Via de mão dupla, pois pertencer a uma cultura não necessariamente significa que a conheçamos e, quando não, precisamos torná-la familiar para podermos operar dentro dela e com isso compreendê-la (DA MATTA, 1978, p. 4). Na experiência antropológica, a subjetividade, então, seria inerente à pesquisa, que tem também por “vocação” científica a busca de objetividade em dados e resultados. Maria Laura Cavalcanti, por sua vez, também observa a necessidade do estranhamento na pesquisa antropológica, afirmando que, no campo, o conhecimento antropológico não se daria pelo que se passa, de fato, entre os nativos, e sim através de uma visão organizada e percebida pelos antropólogos do que ocorre nessas experiências. Logo, há uma percepção aproximativa, mediatizada, permeada pela subjetividade, entre os atores pesquisados e pesquisador. Esse contato, portanto, pode mesmo ocasionar mudanças em ambos os lados: "Consideremos então a nós mesmos como um bando de nativos, um grupo social cuja vida profissional ganha forma entre o campo, a etnografia e a academia. Se a etnografia é, como quer Claude Lévi-Strauss, uma certa experiência de objetivação da subjetividade, creio que quem a exercita desenvolve também gradualmente uma noção de pessoa peculiar. Um eu ambivalente e diverso que, com o ir-e-vir refletido e sistemático entre múltiplas realidades e sistemas classificatórios, cruza zonas de perigo que o ameaçam por vezes de dissolução. O exercício profissional de um certo tipo de mediação, a mediação entre sistemas cognitivos e morais, visando à produção de conhecimento novo, deixa o sujeito/antropólogo potencialmente muito perto da metamorfose (...). (CAVALCANTI,2003,p.134). 19 Seria necessário desfazer-me das certezas pessoais do meu círculo de amizades. Desnudar-me de qualquer posição ou tendência foi atordoante. Afinal, atuo como sambista e me posiciono acerca dos assuntos que observo e pesquiso. Encontrar a alteridade do grupo estudado – e minha própria alteridade - foi um exercício árduo e constante de auto- reflexão. Como cientista social, pretendi observar os dados criticamente, em uma espécie de equilíbrio analítico. Considerando minhas opiniões e posicionamentos, introjetadas em meu próprio ethos, busquei o exercício do fazer antropológico, analisando as relações e os desdobramentos dos fatos, mesmo quando isso colocava em xeque meu próprio bem-estar. Subjetiva e familiar é, portanto, a complexidade do ambiente urbano com a qual me defrontei. Adentrar nesse emaranhado de vidas requer cuidado e atenção especial. Vale explicitar a concepção do ambiente urbano que orienta esta investigação sobre diferentes aspectos da vida das escolas de samba do Rio de Janeiro. 1.2. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro no Ambiente Urbano Relações sociais são tecidas a cada instante. O fato de interagirmos com indivíduos distintos em nossa sociedade já embasa o surgimento - ou rompimento - de laços entre sujeitos. Esse modelo interativo permite considerar as relações sociais no ambiente urbano como uma porta de entrada interessante para entender o mundo das escolas de samba cariocas. Inspirada nos estudos promovidos pela chamada Escola de Chicago, que acompanharam a vertiginosa urbanização daquela cidade nas primeiras décadas do século XX, a Antropologia Urbana enxerga a cidade como um palco onde atores diferenciados encenam interações diversas: dramas são vividos, alianças são feitas, desfeitas, refeitas. Nesse ambiente social heterogêneo composto por diferentes camadas, segmentos e grupos sociais, múltiplas visões de mundo operam como diversos prismas sob os quais podemos enxergar um fato. Simmel, ao escrever "As Grandes Cidades e a Vida do Espírito", contribuía já no início do século XX para os estudos de antropologia urbana que se consolidariam como uma grande alternativa para o entendimento das sociedades contemporâneas (SIMMEL, 20 2005). Para o autor, a vida urbana torna possível encontrar pessoas de origens e identidades sociais diferentes, articuladas e inseridas em um mesmo meio (Op. Cit.). Nesse espaço compartilhado, o conflito e o dinamismo assumem papel central no fluxo de interações entre diferentes camadas e grupos sociais. Ao trabalhar com a dicotomia cidade x campo, abordando o ritmo (acelerado x lento), as mudanças e o lugar da individualidade como temas discutidos pelas disciplinas sociais de sua época, o autor dá pistas importantes sobre o lugar da cidade em um mundo de transformações. A impessoalidade, a estranheza e o personagem blasé – portador de indiferença diante de situações cotidianas citadinas (Op. Cit, p.581) - dariam o tom de uma nova concepção de cidade que então emergia. A partir daí, com o decorrer dos estudos urbanos, a cidade passa a ser entendida como um lugar possível de estudos antropológicos. Gilberto Velho (1973) aborda o assunto: " (...) A Antropologia, tradicionalmente, tem estudado os "outros" e eu me propus estudar "nós". É evidente que outros autores já o fizeram, mas a Antropologia Urbana ainda engatinha e enfrenta sérios problemas de metodologia. (...). Na Antropologia Urbana ainda se está muito na fase das intuições, das primeiras tentativas. Há uma razoável polêmica e, relativamente, poucos resultados"(VELHO, 1973, p.11). Ao mesmo tempo, Roberto Da Matta iniciava na década de 1970 o entendimento do carnaval como um processo sócio-ritual, onde a observação da festa através de um "close up", ou seja, a evidência de um episódio pontual, descortinaria processos vividos pela sociedade de um modo mais abrangente (DA MATTA, 1980). Mesmo vendo um carnaval diminuto em conflitos, o autor contribui decisivamente para a visão do festejo como um ritual, característica preservada por grande parte dos estudos antropológicos sobre o tema na atualidade (CAVALCANTI, 1995; SANTOS, 2009; GONÇALVES 2007; ERICEIRA,2009; BARBIERI 2010). Neste trabalho, entrelaço as noções da Antropologia Urbana com a abordagem dos rituais, buscando destacar, porém, a dimensão do conflito e dissenso que permeia as relações sociais no ambiente das escolas de samba, vistas como parte constitutiva do ambiente urbano. Esta forma carnavalesca de brincar o carnaval, constantemente 21 transformada e ressignificada na cidade do Rio de Janeiro é plural, e na contemporaneidade, acolhe aos mais diferentes grupos dentro do espaço de convivência devotado à produção de seu desfile anual. Tanto do ponto de vista artístico como do administrativo, são diversos os setores que compõem uma escola de samba que emerge como um mosaico, onde cada qual detém função específica e interligada a todas as demais: a ala da bateria é responsável por dar o ritmo ao samba de enredo, que por sua vez é composto por um grupo pertencente à ala de compositores da escola; a figura do carnavalesco concebe o enredo e desenha croquis de fantasias, alegorias e adereços; a velha-guarda é composta por sambistas idosos, entre outros. Apesar de poderem possuir visões distintas e encararem o processo ritual de desfile a partir de diferentes perspectivas (CAVALCANTI, 1995), todos os componentes de uma escola de samba desembocam na Avenida Marquês de Sapucaí, a chamadaPassarela do Samba, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, com um objetivo em comum: defender a sua agremiação no desfile anual. Esse processo reverbera então na cidade, agitando diversas dimensões sociais, como um fato social total (MAUSS, 1978). Movimenta a economia com valores de patrocínios e venda de ingressos que ultrapassam a cifra dos milhões, a política com a querela da presença de banqueiros do jogo do bicho no controle das agremiações - onde, obviamente, o sentido de política das escolas de samba, o entendimento de cultura da cidade do Rio de Janeiro e o sentido de pertencimento a uma manifestação festiva vai muito além dos presentes apontamentos. São, portanto, parte constitutiva da malha urbana, absorvendo e expressando os conflitos da cidade (CAVALCANTI, 1995). Comento brevemente alguns trabalhos que focalizaram nos últimos anos as escolas de samba em conexão com a experiência urbana. Simone Toji comentou sobre a situação de ter provocado o seu próprio campo de pesquisa, do qual participou ativamente: um curso de passistas da Mangueira, em 2006. Toji enxerga o "samba no pé" dos passistas como forma de expressão simbólica de um grupo social. Esse grupo, consequentemente, localiza-se inserido no meio social urbano em meio a tantas outras visões do que seria a escola de samba. Felipe Ferreira (2004) também deu ênfase nas disputas aos espaços simbólicos em torno do lugar do carnaval na cidade do Rio de Janeiro. Esses conflitos, segundo o autor, 22 fazem parte da constituição do carnaval enquanto evento festivo onde, no caso das escolas de samba do Rio de Janeiro, pode-se pensá-las também no contexto da disputas por lugares espaciais da cidade. Mayra Poubel (2012), por sua vez, analisou a relação da escola de samba G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel com o bairro de Vila Isabel. Ao perceber as interações entre os indivíduos tecidas na interseção entre o bairro e a cidade como um todo, Poubel ilumina a ligação entre o bairro de Vila Isabel e a escola de samba G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel. Uma identidade social e uma ideia de tradição emergem, assim, como conceitos-chave para o entendimento da localidade através de relações sociais costuradas na malha urbana carioca. Renata Sá Gonçalves (2007) também estudou os Ranchos carnavalescos, organizações que tiveram seu auge de popularização no Rio de Janeiro da primeira metade do século XX. A autora enfocou as relações entre os Ranchos e a cidade, em plena transformação ocasionada pela crescente urbanização e reordenação espacial. Em sua análise, a cidade se torna palco, se mobiliza e revela através dessa manifestação cultural. Tal qual a cidade do Rio de Janeiro em dias de carnaval contemporâneo, o espaço da cidade na primeira metade do século XX se transformava com os desfiles festivos de então. Nesses estudos, as expressões carnavalescas possuem importante papel na constituição do espaço urbano e cultural. Distribuídas pelo território, interagem com os meandros da cidade e seus habitantes. Servem como ponto de encontro para moradores de uma mesma vizinhança e bairros por vezes distantes, assumindo o papel de núcleo de sociabilidade e entretenimento. Baianas, velha-guarda, compositores e tanto outros segmentos são atores da cena urbana e, por esse motivo, enxergar as escolas de samba como tal fenômeno é compensador no sentido de desvendar distintas facetas que a cidade encarna com a atuação dos sujeitos embasando a escola de samba enquanto espaço vivo e vivido, dinâmico. O G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro possui representação significativa de torcedores que, ano a ano, lotam as arquibancadas e agitam bandeirolas para ver a escola desfilar; ou ainda, lotam as quadras nos ensaios de fim-de-semana – geralmente nos dias de Sábado – e ensaios técnicos de rua, quando já próxima a data do desfile principal. Todos esses fatores considerados constroem a visão proposta do Salgueiro como um espaço de 23 convivência entre muitos grupos sociais, por onde transitam pessoas que absorvem e expressam as tensões e os dilemas das sociedades complexas. 1.3. Trabalhando em Campo na Antropologia Urbana e na Escola de Samba Gilberto Velho (1978) chamou atenção para as dificuldades de pesquisar o próximo, o "nós" mesmos, onde lidar com as complexidades e relativizar as certezas ao enfrentar nossas próprias vivências seria o grande "desafio" posto pela modernidade no fazer antropológico. Seu texto “Observando o Familiar” (Op. cit.) demonstra que durante uma pesquisa etnográfica é possível elaborar um contato mais aproximado com seu campo. O que deve ser feito, de fato, é estranhar o familiar, problematizá-lo, a ponto de se formular uma visão critica a respeito do seu próprio cotidiano, de suas próprias ações. No caso estudado, a pesquisa de campo se iniciou em 2011, antes mesmo do ingresso no mestrado do PPGSA. Como dito na introdução, o contato com alguns Departamentos Culturais integrou-se a meu círculo de amizades - ou teria sido o caminho inverso? Havia então uma observação descompromissada, gerando primeiras impressões não sistematizadas. Quando decidi o tema de minha pesquisa, me indaguei sobre como poderia acompanhar os trabalhos do Departamento Cultural do Salgueiro: não havia uma periodicidade de encontros, um espaço físico onde ocorriam as reuniões, muito menos uma possibilidade de participação das atividades do Departamento, pois essas, observava, eram de cunho restrito aos integrantes. Mesmo já tendo traçado relações de amizade com os membros do Departamento Cultural, creio ter sido primordial a definição de estratégias junto ao campo de pesquisa. Como bem descreve Wright Mills (1965), as estratégias de campo devem ser adaptadas de acordo com a situação em que se vive, além de enfatizar que se pode utilizar a experiência de vida no trabalho, mesmo que de forma dosada e crítica. Problematizar a dificuldade encontrada no contato do pesquisador com o pesquisado se fazia interessante. Becker (1999) também fala sobre os problemas na inserção do pesquisador no campo estudado, onde diversas gafes podem ocorrer. O autor 24 insiste que devemos elaborar métodos apropriados a cada caso de pesquisa, que possuam capacidade de penetração, assim como balancear erros e acertos para que possamos chegar a uma estratégia coerente e que possibilite o estudo. Nessa linha de raciocínio, pesquisar em uma escola de samba requer criatividade. Há o componente humano, ou seja, o indivíduo não somente como peça de análise, mas também como ser emotivo, afeito a ideais e que se move independentemente da pesquisa. O antropólogo vira quase um detetive à procura de pistas que possam ajudar a desvendar o mistério de sua pesquisa. Soma-se a isso o fato que um ator social não é, em momento nenhum, obrigado a servir de informante. A relação pesquisador e pesquisado, logo, se dá bastante diferente da que se dá entre historiadores e documentos, por exemplo: um papel não pode dar a negativa, torcer o nariz ou bater a porta diante de um pesquisador. Está exposto, indefeso então. A realidade social, entretanto, funciona como um organismo vivo que deve ser entendido nos seus próprios termos. É preciso negociar todo o tempo. Não há uma receita de bolo para dizer que tal situação se configura em um campo de pesquisa apto ou não. Um campo, na realidade, pode ser enxergado como um recorte feito pelo pesquisador passível de análise e observação. A partir daí, o pesquisador lança sobre o campo e os dados colhidos olhares e interpretações acerca do observado. Em um momento inicial, pensei que pudesse acompanhar as reuniões para escolha de enredo e o processo de escrita da sinopse para o carnaval de 2012, durante o qual o Departamento Cultural atuava diretamente junto aos carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage. Porém, essa tática se mostrou frágil logo nos primeiroscontatos com Eduardo Pinto e Gustavo Melo. Nunca cheguei a fazer essa proposta aos dois, pois estava claro que não era permitido participar dessas reuniões. O simples fato de me contarem algo ocorrido nesses contextos ganhava um tom dramático. Palavras eram medidas pois durante aquele ano, o clima de tensão havia se instaurado na escola. Um episódio pode ser bastante ilustrativo para registrar o que era de fato esse temor. Em 2011, logo que anunciei a intenção de pesquisar o Departamento Cultural do Salgueiro, Gustavo me levou na sala da presidência, localizada na parte superior da quadra onde ficam os camarotes, na rua Silva Teles, no bairro da Tijuca. Lá também se localiza uma galeria de fotos com os ex-presidentes da escola desde sua fundação, construída pelo 25 Departamento Cultural quando assumiram o posto, além de diversas salas administrativas e uma de reunião. Era semi-final da disputa de samba para escolher o samba de 2012 e o clima na quadra não era dos mais amistosos. Gustavo me recebeu às pressas – era nosso primeiro contato como pesquisador e pesquisado. Entrando na sala da presidência, vi uma grande mesa de vidro. Fotos, um sofá de zebra e carpete vermelho decoravam a sala. Não me atendo ao local em que me localizava e esquecendo da minha posição de pesquisador mas, principalmente, deixando o lado sambista em evidência explícita, imediatamente emiti minha opinião sobre a disputa de samba-enredo. Lembro-me: - Nossa Gustavo. Se o samba do Marcelo não ganhar será um absurdo. O diretor empalideceu. Logo, me cutucou e alertou: - As paredes tem ouvidos. Vamos falar de samba em outro lugar. Essa foi uma situação emblemática e definidora de minha inexperiência como pesquisador e da grande tensão que vigora em tantos momentos da vida de uma escola de samba. As informações, em geral sigilosas, são ditas ao pé do ouvido, nos corredores, nas entrelinhas, e a regra básica é não falar abertamente sobre certos assuntos. As informações que envolvem a presidência, por exemplo, relativas à confecção do carnaval, tramitam em regime extremamente vigiado, só sendo liberadas quando permitido. Pude constatar depois que, no Salgueiro, as paredes tem ouvidos, e ouvem, de fato! Nesse contexto, a pesquisa utilizou como estratégia não só as reuniões e encontros mais formais, mas também muitas conversas informais. Realizei também entrevistas mais estruturadas, além do mapeamento das notícias virtuais que versam sobre a escola de samba Salgueiro disponíveis em sites especializados de carnaval, como o Carnavalesco, O Dia na Folia, SRZD e Galeria do Samba. A opinião de sambistas em sites e listas de discussão do ambiente virtual também foram levadas em conta. Recorro também às anotações do caderno de campo e informações previamente adquiridas para contextualização da pesquisa. Geertz (1989, p.15). conceitua a descrição densa como o objetivo mesmo da pesquisa antropológica. Para o autor, a descrição etnográfica deveria empreender a 26 interpretação e tradução dos dados, mas deveria principalmente ser "microcósmica" - ou seja, a forma como o antropólogo deveria ver seus estudos e se comportar no campo seria a de descrever o objeto com todas as suas particularidades, levando em conta a vida social na qual o tema investigado está inserido e observando atentamente os significados que o cercam. O autor exemplifica tal idéia com uma simples ação de piscadela que pode adquirir diversos sentidos de acordo com o contexto social a qual é feita e interpretada. Assim também, defende, são os atos sociais, que podem ter variados significados de acordo com o contexto social no qual estão inseridos (Op. Cit, p.9). Nesse sentido, o autor defende que não devemos generalizar ou interpretar “pela superfície”, e sim buscar os significados dentro da própria cultura, nos próprios termos nativos. Quanto mais densa e detalhada é a descrição, mais o antropólogo embasa seus estudos e pode legitimar suas teorias em uma interpretação acerca da cultura estudada. Ainda para o autor, a cultura é vista como um sistema entrelaçado de signos interpretativos, um contexto que permite a descrição densa. O papel do etnógrafo seria o de fixar um discurso e torná-lo pesquisável, anotar o fluxo vivido da ação social. Quando faz isso, transforma o acontecimento em discurso, fixa o acontecimento nos escritos e é nesse sentido que podemos entender a cultura como um texto. Sendo assim, os estudos antropológicos são interpretações a partir dos próprios nativos acerca do objeto que estudamos. O antropólogo busca o significado que as ações sociais possuem para seus atores (Op. Cit, p.19) e é a partir desse entendimento, estranhando e considerando os discursos e as ações dos atores, que esta pesquisa foi realizada. Nessa linha de pensamento, duas foram as categorias que saltaram aos olhos nas falas e ações dos atores sociais que conduziram esta pesquisa: Cultura e Memória. Em torno dessas categorias, articulam-se a experiência relatada pelos organizadores do Departamento Cultural do Salgueiro e por Djalma Sabiá. Vale conceituar minimamente esses dois termos para melhor entendimento do rumo do presente trabalho. 27 1.4. Uma Ideia de Cultura nas Escolas de Samba Falar em cultura dentro do universo das escolas de samba do carnaval carioca provoca diversas sensações. A escola de samba pode ser cultural para uns por conta dos enredos que apresentam; cultural para outros, por conta da interação que proporciona aos sambistas, funcionando como uma rede de relações intrincada, que vai da amizade ao conflito aberto. Pode ser cultura também pelo simples fato de existir, e ser ela, a escola de samba, o valor maior de existência de um indivíduo ou grupo social. Nesse ambiente perpassado pelas discussões que orientam a área institucionalizada das políticas públicas contemporâneas de cultura e os valores da modernidade de modo geral, noções como memória, identidade e tradição são cada vez mais evocadas no ambiente das escolas de samba a fim de justificar a vivência de grupos sociais em determinado espaço circunscrito ou em contexto mais amplo. Nesse contexto, vale refletir, ainda que brevemente, sobre o entendimento antropológico da cultura, ou seja, sobre a cultura como um conceito antropológico. Inicialmente, a antropologia classificava os homens em uma escala evolutiva básica e hierarquizada, dando firmes moldes ao pensamento denominado evolucionista. O "fardo do homem branco" de levar cultura aos "menos evoluídos" ditava o ritmo, e seria necessário que os “não-civilizados” atingissem gradualmente o status de civilizados. A cultura, então, ligava-se diretamente à idéia de civilização. “Cultos” eram os que olhavam o horizonte do topo da montanha, da cadeia hierárquica ( VELHO e CASTRO, 1977, p.5), e o modelo almejado de cultura era o modo de vida ocidental, moderno do europeu branco, onde as demais culturas eram consideradas inferiores. Porém, no decorrer do século XX, a alteridade ganhou espaço de ação decisivo para o entendimento do “outro”, e por conseguinte do “nós”, além de influenciar radicalmente a constituição da disciplina no cenário das ciências humanas e sociais. A noção de pluralidade ganha um espaço decisivo, onde enxergar uma cultura “diferente”, o outro, não significaria negá-la, e sim compreendê-la como forma distinta de pensamento. 28 Como bem observou Da Matta (1986, p.3), no senso comum ao estabelecer “o que é ou não cultura”, um grupo social acaba por classificar e hierarquizar os elementos que compõem a sociedade que o cerca. Portanto, mesmo que essa classificação seja flexível e as regras culturais tenham características mutáveis, entender algo como cultural é delimitar objetos e símbolos dentro de uma esfera bem circunscrita e por vezes perigosa, pois corre- se o risco de negar o outro em uma busca de autenticidade. Na acepçãoantropológica, cultura designa a diversidade de modos de vida possíveis existentes entre os homens das mais diversas épocas e sociedades. Busca-se então compreender o outro, o “nativo”, aquele que experimenta e vivencia diretamente sua própria cultura, através de seus próprios termos e categorias de pensamento. Sob esse ângulo, não faz sentido perguntar se uma cultura é válida, verdadeira. O ponto crucial é compreendê-la tal como foi construída pelo ponto de vista do pesquisado, pois as culturas seriam formuladas quando as práticas nativas passam a ganhar coerência e inteligibilidade pelo prisma do observador antropólogo (GONÇALVES,1996, p.172). Da Matta (1986) também aponta que há a visão da cultura como um acúmulo de leituras, títulos acadêmicos, sinônimo de inteligência. Logo, a cultura serviria para classificar as pessoas, discriminar, separar. Reina a ideia de que fulano é culto, tem cultura, logo possui maior nível intelectual que outro sujeito que “não tem cultura”, sendo essa uma visão comumente adotada pela sociedade da ideia de cultura. Porém, para a antropologia, a cultura pode se tornar uma porta produtiva para se entender e interpretar a vida social, considerando a maneira de viver de um grupo, seus códigos e símbolos partilhados, suas práticas e significados. (Op. cit, p.1). O autor afirma que nenhuma cultura seria superior a outra, ratificando que uma forma diferente de pensar e agir de uma dada sociedade ou de um grupo social é sempre uma forma cultural plena. Também destaca que a antropologia não é “dona” da noção de cultura, mas de todo modo não existe antropologia sem tal conceito. Como um conceito antropológico fundamental, a noção de cultura designa portanto uma realidade social vivida e experimentada por diferentes grupos humanos e estudada pela antropologia. Para Velho e Viveiros de Castro (1977), a antropologia seria a disciplina tradutora universal das diferenças para o discurso científico da multiplicidade de 29 esquemas, favorecendo a compreensão das diferenças e colaborando para a coexistência de múltiplas visões. Enxergar a cultura como sistema, para os autores, desemboca na idéia de aceitá-la como “um todo coerente, onde cada regra ou símbolo faz parte de um conjunto que dá sentido às partes”(Op. Cit,p.9). Esse mesmo caminho é apontado por Durham (1984), que vê a vida social ordenada por símbolos e organizada em sistemas, onde a existência da cultura organizaria o pensamento e a ação humana. A autora acrescenta que, por mais que haja um espaço de ação do individuo na construção do simbolismo em que ele próprio atua, os sistemas não precisam estar verbalizados e presentes na consciência humana para funcionarem na vida real. A cultura, então, seria como uma linguagem que poderia ser explicada através de uma estrutura, mesmo que ela não estivesse totalmente visível aos homens. Escrevendo nos anos 1980, a autora também chamou atenção para o problema da exclusiva associação entre os conceitos de cultura e de ideologia. Afirma que há uma tendência em se afirmar toda simbolização como ideologia, onde isso acabaria gerando um excesso de politização do universo simbólico em que “tudo se explica pela dominação”. A partir de então, defende que o conceito de ideologia possui uma implicação necessariamente política, se focando em sistemas cristalizados de representações e sugerindo uma oposição entre falso e verdadeiro, representando majoritariamente uma ideia de dominação. O conceito de cultura, de modo diverso, deveria ser preservado para analisar a dimensão simbólica como elemento que constitui a prática humana, importante na produção material e nas ideias. Por outro lado, o conceito de ideologia deveria ser preservado em seu conteúdo político, não o ampliando desenfreadamente para incluir todas as práticas culturais em seus símbolos e significações. Já nos anos 1990, em outro contexto de época, Gonçalves (1996) enfocou uma “mania” da sociedade contemporânea em falar e debater sobre cultura. Afirma que a noção de cultura se expandiu e se modificou através dos tempos, assumindo diferentes significados de acordo com os diferentes momentos do pensamento social e dos contextos acadêmicos em que dialogava. Isso significa que, ao falarmos de cultura, precisamos definir nosso entendimento desse termo e contextualizar o seu uso, tanto no terreno acadêmico quanto fora dele. 30 Para o autor, a cultura deve ser entendida como uma invenção e interpretação das nossas experiências e de outros pois, ao se estudar uma sociedade ou grupo, “inventa-se” uma cultura por onde as práticas dos nativos passam a ganhar coerência e inteligibilidade através da ótica antropológica. Esse ato de inventar uma cultura seria o de interpretar as ações nativas a partir não só dos seus próprios termos, mas também considerando o próprio papel do pesquisador e seus valores introjetados. Para fins desse trabalho, compreendo a “cultura” nas escolas de samba do Rio de Janeiro em duas acepções: a cultura como um conceito antropológico, significando um sistema de símbolos vividos e manuseados pelos sujeitos sociais e a cultura como um valor ideológico de determinados grupos ou sujeitos, usada com uma intenção política definida de atuação no meio social das escolas de samba. No curso de minha pesquisa, pude perceber que as ações e falas dos sujeitos pesquisados organizavam-se de modo central em torno das categorias de cultura e de memória. Essas duas noções emergiam como símbolos e códigos valorizados em cada caso e em torno dela articulam-se verdadeiras narrativas vivenciadas pelos atores. Será necessário assim considerar, inicialmente, quais são os símbolos e códigos dessas distintas narrativas e observar as apropriações e usos diversos que os diferentes atores fazem do termo cultura: para o Departamento Cultural, o termo não necessariamente possui o mesmo sentido e valor simbólico do que para Djalma Sabiá. Por mais que os termos possam repetir-se no meio das escolas de samba, o seu conteúdo de sentido e as interpretações acerca dos mesmos podem se dar de formas absolutamente distintas. O que está em jogo, portanto, são as diferentes narrativas de cultura que emergiram durante o trabalho, não só como um conceito em disputa por significados e interpretações acerca de seus símbolos e códigos, mas também como experiências vividas na escola de samba G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro. 1.5. Uma Ideia de Memória nas Escolas de Samba Os espaços urbanos são áreas recheadas de movimentos, símbolos e representações, funcionando como palco de relações sociais. Nele, os atores se movem, negociam, dramatizam, vivem a realidade de formas distintas. Em um de seus aspectos 31 possíveis, esses espaços interagem com diversos níveis de memória, que, por sua vez, podem apresentá-lo como constituidor de identidades e interações. Visto desse modo, o espaço urbano pode ser abordado a partir do conceito de memória coletiva, pois na cidade o sujeito se vê dentro de um cenário abrangente de muitas individualidades e coletividades. Para Halbawcs (1990), a memória individual estaria sempre necessariamente ligada à memória coletiva, mesmo que no caso de um grupo circunscrito. As idéias individuais, em sua visão, seriam sempre pontos de vista de uma memória coletiva. Nesse sentido, o argumento durkheimiano da primazia da memória coletiva sobre a individual feito por Halbawcs pode tender a anular o espaço de ação e de escolha dos indivíduos dentro do escopo social, mesmo que seja inegável a influência social sobre os indivíduos. Ressalto, portanto, o aspecto dialógico que atua sobre essas duas instâncias, coletiva e individual, constituindo como fruto o espaço social da memória. Adrian Forty e Susan Kuechler (1999) indicam como, dentro de uma dada sociedade, os indivíduos são obrigados a esquecer muitas coisas para suas própriassaúdes mentais e psicológicas, pois não seria possível lembrar-se sempre de tudo o que aconteceu à sua volta. Por esse motivo, a memória seria sempre seletiva e, assim como o indivíduo, os grupos sociais seriam convidados a aderir o processo de esquecimento. Esquecer, então, seria um processo constitutivo da memória, que pode, entretanto, ganhar formas diferentes e até mesmo culminar em um processo de silenciamento (Pollack, 1989), onde, em função de tramas históricas particulares, um indivíduo ou grupo pode ter aspectos de suas memórias silenciados de diversas formas em detrimento de outros. Esses aspectos valorizados e explicitados se desdobrariam na construção de um sentimento de pertencimento ligado a um tempo passado. Essa ligação do presente ao passado, segundo Pollack (1992), poderia manter a coesão de um grupo, dando o ponto de referência para uma unidade comum e servindo para a construção da identidade social de um grupo ou indivíduo. Como já observei, participando do mundo urbano das escolas de samba do Rio de Janeiro havia me chamado atenção o que eu enxergava como descuido com a memória do carnaval. Por que isso ocorreria? Esse sentimento se aguçou fortemente quando fui trabalhar no Centro Cultural Cartola em 2011. Juntamente com Rachel Valença, uma possível solução emergiu com a proposta de criação de um grupo de trabalho chamado 32 “Chá do Samba”. Essa proposta alinhava-se às diretrizes dos planos de salvaguarda e preservação da memória, elaborados no Plano Nacional de Patrimônio Imaterial, do IPHAN. A ideia do Chá do Samba – nome dado por Rachel, que aludia ao Chá das Cinco na Inglaterra, pois as reuniões aconteciam às 17:00 - partia dessa preocupação com uma “memória má cuidada”. O CCC, de acordo com o PCI, deveria modificar esse cenário. O que na época me passou inteiramente despercebido foi o fato de que a iniciativa de criação de um grupo de discussão sobre a memória já havia emergido em um seminário promovido pelo próprio Centro Cultural Cartola em 2010, antes que pudesse mesmo conhecer ou trabalhar na instituição. O seminário se chamou “I Seminário Escolas de Samba e Memória – Práticas, Desafios e Cooperação”, e os palestrantes do seminário e seus respectivos temas foram: Dia 5 de Fevereiro: Abertura – Rachel Valença e Aloy Jupiara Mesa 1: 14h – “ A Salvaguarda da Memória das Escolas de Samba, Institições e Repositórios” Ementa: Relato de experiêncas de três instituições voltadas para a preservação das escolas de samba e do carnaval: o desafio, os problemas as vitórias. Participantes: Nilcemar Nogueira – Centro Cultural Cartola Felipe Ferreira – Centro de Referência do Carnaval da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Hiram Araújo – Centro de memória da LIESA Mesa 2: 16hs – “ O Papel da Internet na Preservação e Difusão da Memória do Samba” Ementa: Como a tecnologia se tornou poderosa aliada da preservação e da difusão da memória do samba. As primeiras experiências, o compromisso com o rigor documental, a adesão dos apreciadores. Participantes: Marcelo O´Reilly – Site Academia do Samba 33 André Albuqueque – Site Galeria do Samba Fábio Pavão – Site Portela WEB Gustavo Mello – Diretor Cultural do Salgueiro Alexandre Medeiros – Documentalista do Centro Cultural Cartola Dia 12 de Fevereiro – “Apresentação de Experiências de Preservação de Memória nas Escolas de Samba” Ementa: Experiências Oficiais e Experiências Individuais. Conscientização da Importância da Preservação. Paixão, rigor, perseverança. obstáculos, práticas, sucessos. Mesa Redonda 1: 13hs Participantes: Gustavo Mello – Acadêmicos do Salgueiro Guerra Peixe – Estação Primeira de Mangueira Carlos Monte – Portela Anderson Baltar – União da Ilha do Governador Rachel Valença – Império Serrano Vicente Dattoli – Caprichosos de Pilares Mesa Redonda 2: 16hs Participantes: Selmynha SorrisoZ – Porta Bandeira da Beija-Flor Fábio Fabato – Mocidade Independente de Padre Miguel Júlio César Farias – Unidos da Tijuca Roberto de Almeida Gomes – São Clemente Analimar Ventapane – Produtora Cultural (Vila Isabel) Alexandre Medeiros de Sousa – Imperatriz Leopoldinense No seminário foram debatidas algumas práticas de preservação de memória, além de emergir constantemente a necessidade de se criar um local que funcionasse como guardião de uma "cópia de segurança" dos diferentes acervos reunidos no meio. Porém, o que mais me chamou atenção foi o fato de os mesmos componentes das mesas do seminário serem os membros do grupo de discussão “Chá do Samba”. Mesmo sem saber do seminário 34 anterior – talvez tivesse ouvido falar, mas não dado devida importância e conexão sobre quem eram os participantes e o significado que aquilo possuía – convidei alguns membros para que pudessem participar dessa primeira reunião do “novo” grupo. Os membros da primeira reunião foram convidados baseados na impressão que eu tinha, enquanto folião, freqüentador assíduo dos sites especializados de carnaval e pela relação pessoal estabelecida no mundo do samba, de que esses trabalhavam com a situação de preservação de memória e eram primordiais para que esse assunto emergisse nas rodas de conversa de sambistas, ou em colunas de opinião que muitos mantinham em sites de carnaval. Ao primeiro encontro do Chá do Samba, foram convidados Fábio Fabato da Mocidade Independente Padre Miguel, Gustavo Melo e Eduardo Pinto do Acadêmicos do Salgueiro, Anderson Baltar da União da Ilha, Fábio Pavão da Portela, André Lúcio da Viradouro, Rachel Valença do Império Serrano e também atuante como coordenadora de pesquisa do CCC, Nilcemar Nogueira da Mangueira e articuladora do CCC, Leandro Silva, do Acadêmicos do Cubango, e o diretor do Departamento Cultural da Vila Isabel, José Pimentel. Todos compareceram ao evento, exceto o Departamento Cultural da Vila Isabel e Leandro Silva, da Cubango. Entretanto, pude constatar uma ligação prévia de amizade entre os que compareceram. Como haveria surgido a interação entre esses indivíduos que se preocupavam com a memória de suas escolas de samba? Com o advento da internet, principalmente na segunda metade da década de 90, as relações sociais se modificaram definitivamente no urbano. O contato pessoal ganhou uma alternativa cômoda para os indivíduos: poderiam interagir do sofá de suas casas, no conforto de seus lares, saciando, ao menos virtualmente, o afã de estar em contato com pessoas que se interessassem pelo mesmo assunto que eles. As relações entre indivíduos que não se conheciam pessoalmente se intensificou de tal forma que o contato virtual foi alçado a uma importância significativa para a criação de laços afetivos entre os sambistas virtuais. A primeira forma de interação virtual no mundo do carnaval foram as listas de discussão. Surgida em 1998, mediada e criada por Felipe Ferreira, a lista de discussão Rio- Carnaval teve um maior alcance entre os novos foliões virtuais, mostrando uma nova forma 35 de relação social que havia surgido com características bem peculiares, como a de unir pessoas de diversas partes do mundo em um mesmo ambiente, mesmo que virtual. A partir de então, o espaço virtual lança questionamentos, comentários e discussões sobre os temas que consideram polêmicos ou que geram algum tipo de inquietação dentro do carnaval carioca. É importante frisar, então, que todo esse movimento é embasado pelos laços afetivos que os usuários possuem com suas agremiações, ou em uma escala mais ampla, com o mundo do samba em geral. Simone Pereira de Sá (2005, p.116) fala sobre a formação de uma "comunidade virtual", onde esses sujeitos, aficcionados e apaixonados por suas escolas, teriam criado mecanismos de interação capazes de gerar comunicação apesar de uma territorialidade dispersa: "A lista de discussão em questão - a Rio-Carnaval - surgiu em julho de 1998,com o objetivo de reunir pessoas que se interessam pelo carnaval carioca e por suas Escolas de Samba. (...). Metodologicamente, a escolha cronológica - da pesquisa de Simone Sá - justifica-se por um motivo óbvio: este período, que vai de novembro a fevereiro, é marcado pela crescente efervescência do universo carnavalesco, uma vez que corresponde à reta final das Escolas em seus preparativos e os barracões fervem. As listas, assim, refletem também esta crescente animação.” Ronald Ericeira, por sua vez, também reflete sobre a relação entre internet e sambistas. Em sua pesquisa sobre o grupo "Portelaweb", utiliza a pesquisa de Fábio Pavão (op. Cit.) e empreende um desdobramento do conceito de comunidade, tratando das comunidades virtuais eletivas: "Poderia desdobrar essa análise de Fábio Pavão, acrescentando um terceiro e mais recente modo de pertencimento às escolas de sambas: as comunidades virtuais eletivas, que emergem na rede mundial de computadores. Na atualidade, é factual a presença de comunidades virtuais gravitando em torno de todas as escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro. Nelas, os internautas são agregados a partir de critérios afetivos e de identificação com suas agremiações favoritas. Assim, existem comunidades virtuais específicas criadas por 36 aficionados da Portela, da Estação Primeira de Mangueira, do Salgueiro, entre outras" (2009, p.30). Em nosso caso estudado, a comunidade virtual eletiva encontrada é a Lista Rio- Carnaval. Mas, ao passo que as relações se intensificavam no ambiente virtual, foi inevitável o trasbordamento do virtual para o real, e os usuários da lista que residiam no Rio de Janeiro começaram a se encontrar pessoalmente. Nesse primeiro momento da lista estavam figuras como Rachel Valença, Felipe Ferreira, Fábio Pavão, Paulo Renato, entre outros membros que participaram do Seminário e do “Chá do Samba”. Mas principalmente, dentro desse grupo de amigos, estava um dos principais interlocutores deste trabalho: Gustavo Melo que, amigo de Eduardo Pinto, levou-o ao grupo virtual e real, e esse pertencimento irá se refletir em diversos momentos posteriores desse trabalho, principalmente na composição de assinaturas do “Manifesto” proposto por Marcelo Freixo a ser explorado no capítulo 2. Após a aparição das listas de discussão, Eduardo explicou-me em uma conversa que um dos primeiros encontros presenciais do grupo foi uma reunião em 1999 na quadra de ensaios do Salgueiro. Essa reunião teria o objetivo de agregar diferentes Departamentos Culturais e pessoas que “pensavam” o carnaval. Um dos elementos importantes na constituição do elo existente entre esses sujeitos foi, portanto, a sua preocupação em manter viva a memória do passado de suas escolas. A ideia de memória emerge assim como central também para a interação entre esses atores e para sua atuação no meio do carnaval. Em “Estabelecidos e Outsiders”, Elias e Scotson (2000) abordam o problema da formação de grupos e da coesão interna a eles, falando de um confronto entre um grupo de estabelecidos e um grupo de novos moradores em um bairro, no caso outsiders em relação ao grupo dominante. Em minha pesquisa, não há um confronto direto entre dois grupos, mas há um grupo que se percebe como diferenciado no meio do carnaval: Sistematizam relações de amizade, possuem regras próprias de convívio e interação dentro da dinâmica das relações sociais das escolas de samba, possuindo interesses em comum pela história e pelo passado das escolas de samba. De fato, isso ocorria no nicho dos Departamentos Culturais ou sujeitos interessados pela memória nas escolas de samba, que nem sempre ocupavam o cargo de Departamento, formando uma rede de amizade que ultrapassava a preocupação com a memória. 37 Ao trabalhar com a categoria memória no âmbito das escolas de samba do Rio de Janeiro, proponho refletir sobre os sentidos e o papel que tal noção adquire no fluxo vivo do carnaval contemporâneo, levando em conta o ritmo acelerado de produção do carnaval urbano. Ao se instalar em diversos suprotes, orais ou físicos, a memória nas escolas de samba do Rio de Janeiro assume diversas características e considerá-las em suas diferenças é fundamental para compreender, primeiramente, de que tipo de memória estamos falando e quais são seus usos realizados. Considero também o fato de as escolas de samba, assim como diversos outros processos culturais populares, terem sido envolvidas desde os anos 2000 pelo processo de proteção proposto pelas políticas públicas de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, que têm a memória dos grupos sociais também como um valor a orientar suas ações de fomento. Portanto, a ideia de memória empreendida no presente trabalho passa, primeiramente, como sendo a investigação do sentido que ela adquire para o Departamento Cultural e para Djalma Sabiá - a priori, traduzida em suas coleções de materiais armazenadas em suas residências, como veremos adiante - e também pela problematização do seu uso como ferramenta de afirmação de seus lugares de destaque no Salgueiro. É importante considerar também o grupo de amizade que se formou ao redor desse conceito, como ilustrado acima, pois nos faz enxergar as relações que o Departamento Cultural tece com seus pares, além de fazer perceber como o conceito de memória ganha pluralidade e é utilizado de formas distintas no espaço urbano. O Departamento Cultural do Salgueiro – com Gustavo Melo e Eduardo Pinto - e Djalma Sabiá, portanto, aparecem como estudos de caso de como esses sujeitos, situados em diferentes lugares da organização social da escola de samba, se apropriam das categorias de cultura e de memória em suas variadas formas de ação como constituidoras de suas próprias identidades, além de mantenedoras de um status político de posicionamento dos atores dentro do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro, questionamentos pertinentes em um estudo de Antropologia Urbana como esse apresentado. 38 CAPÍTULO 2 - Nós Somos a Cultura! Em 2012, com o enredo “Cordel Branco e Encarnado” que falava sobre a cultura nordestina do cordel, o Salgueiro foi vice-campeão na disputa dos desfiles das grandes escolas de samba do carnaval carioca. O Departamento Cultural e o casal de carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage, que ingressou na escola com essa função em 2003, foram os responsáveis pela elaboração da sinopse e defesa do enredo para os jurados. O Departamento Cultural começara a ter essa função já em 2002, quando Mauro Quintaes era o carnavalesco da escola. Na apuração das notas, o quesito enredo ganhou nota 10 dos 4 julgadores. A princípio, a boa colocação da escola juntamente com essa nota máxima no cômputo dos quesitos deveria, para um olhar externo, repercutir no prestígio do Departamento Cultural dentro da escola. Geralmente a escola valoriza muito a nota máxima em quesitos importantes e de responsabilidade mais individual, dando mesmo, por vezes, algum tipo de prêmio para os responsáveis. 3 Com as quatro notas 10, nenhuma crítica, vinda de alguma voz dissonante ou insatisfeita, poderia advir ao enredo. Na rede social facebook 4 , Gustavo Melo e Eduardo Pinto, de fato, receberam muitas mensagens de amigos e sambistas de diversas escolas parabenizando-os pelos 40 pontos conquistados no quesito enredo. Porém, como veremos adiante, a situação era bem mais complexa do que aparentava ser. A partir das conversas com Eduardo e Gustavo e das visitas à casa de Eduardo e de sua mãe, Iracema, creio poder dividir as ações do Departamento Cultural, predominantemente, em duas esferas: a atuação em prol dos enredos carnavalescos anuais, que será abordada através do conceito de drama social (TURNER, 1987) na análise das controvérsias decorrentes do enredo "Fama” do carnaval de 2013, e a atuação em prol da guarda de uma pretensa história da escola de samba.