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Universidade Federal do Rio de Janeiro 
Centro de Filosofia e Ciências Humanas 
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais 
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Cultura e Memória na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vinícius Ferreira Natal 
 
Rio de Janeiro/2014 
 
 
 
 
 
 
 
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Cultura e Memória na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro 
 
 
Vinícius Ferreira Natal 
 
 
 
 
 
 
Dissertação de mestrado apresentada ao 
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e 
Antropologia do Instituto de Filosofia e 
Ciências Sociais da Universidade Federal do 
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos 
necessários à obtenção do título de Mestre em 
Sociologia (com concentração em 
Antropologia). 
 
 
 
 
 
 
Orientadora: Profª Drª Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2014 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 3 
 
Cultura e Memória na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro 
 
Vinícius Ferreira Natal 
 
 
 
 
 
Orientadora: Profª. Drª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti 
 
 
 
 
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e 
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio 
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em 
Sociologia (com concentração em Antropologia). 
 
 
Aprovada por: 
 
 
_________________________________________________ 
Profª. Drª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti 
 
 
_________________________________________________ 
 Profª. Drª. Renata de Sá Gonçalves 
 
 
_________________________________________________ 
Profº. Dr. Luiz Felipe Ferreira 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Rio de Janeiro 
Junho/2014 
 
 4 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Eu sou mais de cantar 
Eu sou mais de aplaudir 
Eu sou de acreditar que a vida é melhor 
Quando a gente sorri” 
 
Toninho Geraes e Serginho BH 
 
 
 5 
Agradecimentos 
 
Recentemente, ganhou força em mim a ideia de que os agradecidos o sabem, sem 
que seja preciso dar-lhes maiores explicações. Aqueles mais próximos, mais distantes, mas 
que de alguma forma torceram para que essa reflexão findasse e eu voltasse a ter algum tipo 
de vida social, certamente, saberão que não estão presentes somente nesta página destinada 
aos agradecimentos, e sim em cada linha, vírgula ou crase mal empregada desse texto. 
Perdoem-me, mas não tenho fôlego de enumerar a todos! Ainda mais em um fim 
de período de escrita da dissertação, tenso por natureza e pelo curto prazo que nos é dado. 
Portanto, agradeço à minha família que me deu o suporte necessário para chegar 
até aqui; aos amigos, que aturaram e revisaram o trabalho muitas vezes e me ajudaram com 
seu bom senso; ao CNPQ, pela bolsa de estudos; à Maria Laura Cavalcanti, que me ensinou 
a enxergar a antropologia; ao samba, por ter me revelado a face mais bela do que é viver 
bem. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 6 
SUMÁRIO 
Introdução ............................................................................................................................... 8 
CAPÍTULO 1 – Somos o Mundo Social Urbano! ................................................................ 17 
1.1. Subjetividade e Familiaridade no Urbano ................................................................. 17 
1.2. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro no Ambiente Urbano ................................. 19 
1.3. Trabalhando em Campo na Antropologia Urbana e na Escola de Samba ................. 23 
1.4. Uma Ideia de Cultura nas Escolas de Samba ............................................................ 27 
1.5. Uma Ideia de Memória nas Escolas de Samba .......................................................... 30 
CAPÍTULO 2 - Nós Somos a Cultura! ................................................................................. 38 
2.1. Compreendendo o Departamento Cultural ................................................................ 39 
2.1.1. Narrativa(s) de Fundação.................................................................................... 39 
2.2. O Drama Social do Enredo "Caras” .......................................................................... 47 
2.2.1. A Crise ................................................................................................................ 52 
2.2.2. A Expansão da Crise........................................................................................... 54 
2.2.3.Desfecho: Esforços de Reconciliação? ................................................................ 60 
2.3. A Memória Como Outra Face de Ação do Departamento Cultural .......................... 65 
2.3.1. Breve Histórico de Ações ................................................................................... 65 
2.3.2. Vasculhando a Memória-Acervo do Departamento Cultural ............................. 68 
2.3.3. Re-organizando a Memória Como Estratégia de Pesquisa ................................. 75 
CAPÍTULO 3 – Eu Sou o Samba!........................................................................................ 78 
3.1. Os Sabiás do Salgueiro .............................................................................................. 78 
3.2. Diário de Campo – Tentativas, Frustrações e Repensando pelo Difícil .................... 80 
3.2.1. Rio de Janeiro, 26 de Novembro de 2012 - O Primeiro Contato ....................... 80 
3.2.2. Rio de Janeiro, 29 de Outubro de 2013 – Novo Contato, Novos Objetivos ....... 91 
3.2.3. Rio de Janeiro, 1 de Novembro de 2013 - Uma Amigável Conversa ................ 92 
3.2.4. Rio de Janeiro, 26 de Novembro de 2013 – Imprevisto do Campo ................ 103 
3.2.5. Rio de Janeiro, 17 de Dezembro de 2013 - Estratégia de Pesquisa ................. 109 
3.3. Reflexões sobre o Ator Djalma Sabiá ..................................................................... 111 
3.3.1. Uma Construção de Si ...................................................................................... 111 
3.3.2. Breve Panorama da Titulação do Samba Carioca ............................................ 113 
3.4.O Que Deseja Djalma Expor de Si? O Depoimento do CCC ................................... 118 
3.5. Uma Outra Construção de Si: O Caso da Revista "O Globo" ................................. 126 
3.6. Sabiá: Um Velha Guarda? ....................................................................................... 128 
3.7. Sabiá: o Compositor Entre a tensão Samba no Pé (Tradição) x Visual (Modernidade)
 ........................................................................................................................................ 130 
3.8. Sabiá: Um Narrador? ............................................................................................... 136 
3.9. Memória, Narrativa e Representação do Eu em Djalma Sabiá ............................... 140 
Algumas Considerações ..................................................................................................... 143 
ANEXOS ............................................................................................................................ 149 
Anexo 1 – Carta de Demissão de André Albuquerque ................................................... 149 
Anexo 2 – Manifesto “Nossa Avenida Vai Além do Carnaval” .................................... 155 
Anexo 3 – Manifesto a Favor da Plena Liberdade de Expressão ................................... 161 
Anexo 4 – As Duas Versões de Sinopse......................................................................... 163 
Anexo 5 – Sambas de Enredo Vencidos por Djalma Sabiá ............................................168 
Anexo 6- Inventário das Paredes de Djalma Sabiá......................................................... 175 
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 183 
 7 
RESUMO 
 
O presente trabalho busca compreender as narrativas acerca da memória e da 
cultura empreendidas a partir de duas posições distintas situadas no contexto do 
meio social do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, 
uma das mais notáveis escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro. São elas: 
o Departamento Cultural, composto por Eduardo Pinto e Gustavo Melo; e o 
compositor Djalma Sabiá, que é nos dias de hoje o único fundador vivo da 
agremiação. Investigo como esses atores sociais utilizam as ideias de cultura e 
memória em suas narrativas, em seus planos e ações cotidianas, em seus conflitos 
e falas. Busco também entender de que forma, por meio de suas ações e de seus 
posicionamentos dentro da agremiação, eles constroem e negociam, no meio 
social do carnaval como um todo, suas próprias identidades sociais e imagens de 
si mesmos através desses conceitos. 
 
ABSTRACT 
 
The present study focuses the narratives on memory and culture held by different 
social actors of Salgueiro Samba School, one of the main samba schools of Rio de 
Janeiro’s Carnival. In this samba school’s wider ambience, I have chosen to 
analyse the perspectives on memory and culture forged by Salgueiro’s Cultural 
Department, composed by Eduardo Pinto and Gustavo Melo, and by the composer 
Djalma Sabiá, who is nowadays the only living founder of Salgueiro. I investigate 
how these social actors understand the ideas of culture and memory analysing 
their actions, their plans, quarrels, conversations and speeches throughout the 
making of each annual carnival. I argue that while acting in favour of Salgueiro’s 
memory and culture, they also create and negotiate their social identities and 
images of their own selves in the social environment of Rio de Janeiro’s Carnival. 
 
 
 
 
 
 8 
Introdução 
 
Era um sábado do mês de Abril de 2012 e a feijoada corria bastante animada. 
Estava eu em meio à uma grande comemoração regada - para variar - à samba e cerveja. 
Um simples toque de celular me fez perder toda a graça do resto de sábado que se 
anunciava. Gilberto Velho tinha morrido. 
Eu não era seu amigo, mas fui seu aluno em seu último curso de Antropologia 
Urbana, ministrado no Museu Nacional no primeiro semestre de 2012. Sua morte foi por 
mim sentida não em um nível pessoal de proximidade, mas em um nível que eu mesmo, 
naquele momento, não sabia explicar. 
Lembro que ouvia falar muito em seu nome. Gilberto Velho. Era bastante 
respeitado, mas eu, iniciante nos estudos de Antropologia, não fazia ideia de sua 
importância para a compreensão da vida social, e principalmente, para a antropologia do 
urbano. Por que introduzo o trabalho com esse tema? Não é mera petulância em querer 
demonstrar conhecimento de causa. 
Em sua última aula ministrada, apresentamos eu, Carolina Nogueira e Daniele 
Ferreira, um seminário sobre o livro "Sociedade de Esquina", de William Foote-Whyte 
(2005). Fui conhecer ali, em sua aula, aquela obra. Sempre tinha ouvido falar muito bem 
desse livro, mas não tinha noção do que tratava. Sabia, somente, que era um livro sobre 
gangues. Isso era sensacional e bastava. 
Ao entender a dinâmica da pesquisa de Foote-Whyte, sua gafe ao quase ser preso 
ao fraudar eleições locais, me identifiquei e me diverti com o pesquisador. Mas além disso 
tudo, tinha ali meu primeiro contato com um texto de análise social onde pude apreender o 
que seria uma pesquisa antropológica: surpreendente, por vezes perigosa e emocionada, 
mas acima de tudo, verdadeira enquanto se relaciona com a existência de pessoas reais. Os 
atores da pesquisa de Foote-Whyte eram humanos, como eu, com os mesmos 
questionamentos. Não eram os "outros", e sim "nós". 
No decorrer do curso, percebi quem era Gilberto Velho. Em uma das aulas em que 
cheguei atrasado, implicou comigo pois, ao entrar preocupado, deixei a porta aberta. 
Gilberto parou a aula dizendo que se eu não fechasse a porta, ela não iria fechar sozinha. 
Internamente, ri bastante, pois sua ironia era de um senso de humor que me cativava. 
 9 
No dia do seminário, Velho elogiou bastante o grupo. Em meio à discussões sobre 
a criatividade de Foote-Whyte em seu trabalho, um grande questionamento - muito meu, 
mesmo - vinha à tona: Para que escrevemos e fazemos mestrado, doutorado? Para que 
serve, afinal de contas, o conhecimento que produzimos? E por último - e mais complexo 
ainda - Por que, afinal, a academia escrevia só para a academia? 
Postas as questões na mesa, Velho me pareceu sorrir. Eu, um mestrando que nem 
sabia direito quem era a tal da Antropologia, estava perguntando coisas, no mínimo, 
pertinentes. 
O professor disse: 
 
"Se você fizer um trabalho que sirva, ao menos, para alguém que não seja você 
ler, fique satisfeito". 
 
Foi sua última aula. O que naquele momento me pareceu uma resposta genérica, 
agora, neste momento de conclusão da escrita, após dois anos de estudos, ganhou todo 
sentido para mim. Pesquisando narrativas da memória e da cultura no G.R.E.S. Salgueiro 
percebi, ao menos para o meu entendimento, para que servia o mestrado, doutorado e 
outros "ados": Produzir conhecimento novo. Aprender a conhecer. E era, assumidamente, 
uma forma de produção dentre tantas outras que coexistem. Se eu tiver conseguido produzir 
um trabalho que sirva para alguém, além de eu mesmo, ler; ou mesmo para alguém que 
apenas replique, de alguma forma, o que foi produzido aqui, já me sentirei recompensado 
pelo esforço em pensar e compreender os assuntos sobre os quais discorro. 
Mas para esse "replicar" ocorrer, é preciso ação. Cabe ao antropólogo sair de sua 
comodidade e buscar que sua pesquisa atinja algo/alguém. Faça mover. 
As aulas de Velho, com seu ácido senso de humor, o livro de Foote-Whyte. Tudo 
ficaria tatuado em minha memória como uma lembrança e, mais ainda, como um incentivo 
para a produção de conhecimento social. 
 
 
*** 
 
 10 
Minha ligação com o tema “escolas de samba” se iniciou desde muito cedo, 
quando ganhei o apelido de “sombrinha” nas rodas de samba da ala de compositores do 
G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel. Sombrinha, pois acompanhava minha avó, Ivanísia, 
compositora, advogada – a quem tinha, e tenho, como figura referência na minha vida de 
sambista – em todos os lugares em que ia, tal qual uma sombra. Os compositores da ala – 
Helinho, Irani olho verde, Mariazinha, Jarbas, Fernando Partideiro – trataram logo de me 
apelidar, mas graças aos deuses, o apelido não pegou. 
Já mais velho, comecei a frequentar os ensaios assiduamente, mas curiosamente 
não pude desfilar antes de 2002. Explica-se: Era tomado por um medo imenso dos fogos 
que pipocavam antes dos desfiles. Por esse motivo, só a maturidade foi suficiente para 
superar tal pavor, e em 2002 ingressei na bateria da escola tocando tamborim. 
Em 2011 me graduei em História, na Universidade Federal Fluminense, iniciando 
a pesquisa acadêmica sobre a cultura popular e o carnaval. 
Muito me incomodavam algumas situações de desigualdade no mundo do samba, 
como a presença de pessoas abnegadas por suas escolas em barracões, construindo carros e 
fantasias exaustivamente, mas que no dia dos ensaios de quadra da escola não conseguiam 
uma mesa e cadeira para curtirem seu ambiente de amor, enquanto figuras ausentes do 
cotidiano da escola lá se acomodavam. Isso me inquietava e a possibilidade de fazer algo, 
ou pelo menos dizer algo sobre esse assunto, já me deixava bastante animado. 
Com o curso de mestrado e o contato com a antropologia, comecei a questionar o 
próprio conceito de cultura dentro da escola de samba: Se os estudiosos do assunto e 
mesmo o senso comum enxergavam as escolasde samba como uma manifestação cultural, 
como poderia existir dentro dessas agremiações um Departamento que cuidasse 
especificamente “da cultura” nas escolas de samba? Não seria a escola de samba em si 
expressão máxima de cultura? Por que um Departamento para dar conta desse elemento 
constitutivo das escolas? 
Essas indagações geraram uma enorme inquietação e me fizeram perceber que 
nem sempre, na vida social concreta, tratar algo como “cultural” dá conta da dimensão 
antropológica desse mesmo objeto ou manifestação. 
Na monografia de final do curso de História (NATAL, 2011), observei que nem 
todas as escolas de samba possuíam os tais Departamentos Culturais. Algumas o possuíam, 
 11 
mas eles ocupavam lugar inexpressivo no tocante às ações empreendidas pela agremiação. 
Por vezes, entretanto, esses Departamentos exerciam papel ativo na preparação do carnaval 
e na guarda do que era considerado a “memória da escola”, em suas variadas matizes. Esse 
é o caso do Departamento Cultural do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro aqui abordado. 
Na monografia, comparei o surgimento desses Departamentos com a situação 
atual. Na década de 1960, enfoquei a Imperatriz Leopoldinense; na década de 70, o Império 
Serrano. Nesses dois casos, a iniciativa de criação desses Departamentos possuía o sentido 
político de resistência à ditadura militar e indicavam a ligação partidária de seus 
arregimentadores, respectivamente Hiram Araújo e Rachel Valença, com o Partido 
Comunista Brasileiro. O terceiro caso analisado, que serviu de contraponto entre o passado 
e o presente, foi o do Salgueiro. Nessa ocasião me aproximei de Eduardo Pinto e Gustavo 
Melo, Diretores Culturais da escola, que por sua vez são dois dos interlocutores principais 
deste trabalho. 
Quando exerciam alguma função de fato dentro da agremiação, os Departamentos 
observados pareciam possuir características bem definidas. No Império Serrano e no 
Salgueiro, por exemplo, havia em seu ideário a valorização do colecionamento de materiais 
antigos relacionados à história de suas agremiações. Na prática, esse ato de colecionar, que 
constituía parte importante de suas iniciativas, implicava a reunião de materiais encontrados 
com diferentes componentes das escolas, ou recolhidos por eles mesmos, e em seu 
armazenamento na residência dos seus articuladores. Esse material formava assim 
verdadeiras coleções pessoais de documentos de diversos tipos que sempre correspondiam 
ao desejo de obtenção de registros do passado da escola e da experiência de figuras 
consideradas importantes na história da escola de samba. Já na Imperatriz Leopoldinense, 
mesmo que Amauri Jório, pioneiro organizador do Departamento, possuísse uma coleção 
pessoal de materiais sobre a escola, o Departamento Cultural assumia um papel ativo na 
confecção do carnaval, atuante na construção dos enredos anuais. Nos anos 2000, encontrei 
a mesma valorização da participação do Departamento Cultural na confecção dos enredos 
no Salgueiro, que também atuava no processo de criação do enredo e defesa dos desfiles 
 12 
enviados para a entidade organizadora dos desfiles do grupo especial do carnaval carioca, a 
Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA)
1
. 
Quando o tema da pesquisa de campo faz parte do cotidiano de vida do 
pesquisador, a observação participante é um exercício diário de estranhamento. Essa 
familiaridade foi motivo de grande inquietação quando decidi estudar assuntos que 
permeavam o meu próprio convívio social como sambista e, mais ainda, tratar da minha 
maior amargura pessoal que era o descaso com a memória das escolas de samba que 
envolvia o mundo do samba. 
Determinados materiais relacionados às escolas de samba - fotografias, jornais e 
outros objetos - poderiam adquirir, para uns, valor simbólico de um documento digno de 
constituir um acervo, e na mesma medida, para outros, o valor simbólico de "velharia" e 
"papel velho", digno da lata do lixo. Isso me inquietava. 
No meu entender, a memória das escolas deveria ser perpetuada e promovida 
constantemente. Eu tinha um posicionamento bem definido a esse respeito. Porém, na 
medida em que me inseria no campo de pesquisa, comecei a perceber um panorama 
diferente. 
Através da própria prática antropológica do "estranhamento", eu logo colocaria 
minhas próprias certezas em xeque. O que eu via até então como "desleixo" com a memória 
por parte das escolas de samba talvez se relacionasse à natureza dinâmica efêmera mesma 
das escolas de samba, onde a “memória” se espraiaria no céu das escolas de samba como 
uma luz difusa, sob diversas formas, não definidas em seu alcance e direções. 
Inicialmente, achei que meu tema estaria restrito ao Departamento Cultural do 
Salgueiro, onde comecei a observar somente os fatos que envolviam diretamente esta 
instância da escola de samba, composta por Eduardo Pinto e Gustavo Melo. Porém, minha 
pesquisa ia tomando rumos que nem eu mesmo percebia. Pesquisar, seja na Antropologia 
ou em qualquer outra área, é exatamente o não saber o que irá acontecer como o próximo 
passo a ser tomado. Se fizéssemos previsões e, pior ainda, se elas se concretizassem e essas 
 
1
 LIESA foi criada em 1984 pela cúpula do jogo do bicho, substituindo a Associação das Escolas de Samba 
do Rio de Janeiro. Os enredos, atualmente, devem ser defendidos e encaminahdos à instituição. Essa defesa 
constará no Manual do Julgador que servirá para embasar o julgamento dos diversos quesitos no dia do 
desfile. 
 13 
fossem a base das pesquisas, a espontaneidade dos dados que emergem sem nossa vontade 
inexistiria. Logo, a antropologia inexistiria, não? 
O fazer antropológico tem como uma de suas bases a relação direta entre 
antropólogo e os atores sociais presente em sua pesquisa de campo. Se o pesquisador não 
criar uma empatia com seus interlocutores, não haverá trabalho antropológico possível. Um 
simples gesto, ato, palavra, um não ou sim, podem definir rumos inusitados de pesquisa, 
ocasionar recuos ou avanços. Pesquisar é também lidar com a incerteza do não saber o que 
irá acontecer; é o esforço feito pelo pesquisador para entender o campo em sua própria 
dinâmica e atores característicos. Essa abertura com o campo, conquistada de uma forma 
não-clara, porém eficaz a esse trabalho, foi essencial para criar as alianças necessárias para 
a realização desta pesquisa. 
 Na medida em que o trabalho de pesquisa transcorria com suas muitas 
dificuldades, fui compreendendo um pouco do ofício antropológico e a relação entre as 
peças do jogo de tabuleiro que é a vida social. Nela, o campo e seus sujeitos estão imersos e 
entendê-los em diferentes dimensões se torna importante para compreendermos quem 
somos nós, o que fazemos, sentimos e vivemos. Como revela Luciana Carvalho, “(...) o 
campo sempre nos brinda com situações, boas ou ruins, das quais nem sequer suspeitamos 
e que se revelam, queríamos ou não, essenciais para nosso trabalho”. (Carvalho, 2005, 
p.54). 
Foi no contexto desse aprendizado que percebi o compositor Djalma Sabiá como 
possível interlocutor a ser incluído nesta pesquisa. Essa mudança ocorreu quando eu ainda 
atuava como pesquisador no Centro Cultural Cartola (CCC), onde permaneci entre Junho 
de 2011 e agosto de 2013. A instituição é até hoje coordenada por Nilcemar Nogueira, neta 
do compositor Angenor de Oliveira, o Cartola (11/10/1908-30/11/1980) e de sua segunda 
esposa Euzébia Silva do Nacimento, Dona Zica (06/02/1913-22/01/2003)
2
. 
 
2
 Cartola criou o Bloco dos Arengueiros, que deu origem à escola de samba Estação Primeira de Mangueira. 
Compôs em parceria diversos sambas, tendo como um de seus mais constantes parceiros Carlos Cachaça. Fez 
sucesso com diversas canções na década de 30 e teve composições gravadas por Carmen Miranda e Francisco 
Alves, entre outros. Se tornou figuraidentitária importante na Mangueira, levando o nome do morro em suas 
canções e Lp´s. Dona Zica, sua esposa, ficou conhecida na região da Mangueira por se tornar uma liderança 
feminina dentro da escola de samba Mangueira. 
 14 
O CCC liderou o pedido de registro do samba do Rio de Janeiro como Patrimônio 
Cultural Imaterial (PCI) e coordenou a elaboração do dossiê que informou o processo, 
dando origem à titulação do samba carioca nas modalidades de samba de terreiro, samba de 
partido alto e samba de enredo como Patrimônio Imaterial Brasileiro pelo Instituto de 
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/ Ministério da Cultura. A titulação foi 
obtida em 2007, com a inscrição dessas modalidades de samba no Livro de Registro das 
Formas de Expressão. 
Como desdobramento do registro, um dos objetivos de salvaguarda do samba 
como um novo bem cultural imaterial seria, então, o de “realizar a manutenção da 
memória e fomentar a sua difusão no meio social em que o bem se encontra inserido” 
(DOSSIÊ, 2007,p.117). Dessa forma, ir até a casa de alguns “detentores” - termo utilizado 
pelo IPHAN para designar os praticantes do bem imaterial titulado - e lá, obter os acervos 
pessoais para o CCC, seriam ações alinhadas aos anseios de preservação da memória das 
modalidades do samba patrimonializadas. Estabeleceu-se que o primeiro personagem a ser 
visitado seria Djalma Sabiá, e eu era o responsável por sua entrevista e captação de acervo. 
Já tinha alguma noção de quem era Djalma Sabiá e o que ele representava para o 
mundo do samba e do carnaval, além de sua relevância para a escola de samba Salgueiro 
como único fundador vivo e colecionador ferrenho de material sobre a agremiação. Porém, 
não havia me dado conta de que estava diante de parte relevante de minha pesquisa, de uma 
porta de entrada interessante para observar narrativas de memória e cultura no G.R.E.S. 
Acadêmicos do Salgueiro. Segui com o objetivo estabelecido pelo CCC de conhecer o que 
se denominava como “seu acervo”, mas também com a curiosidade pessoal aguçada para 
conhecer Djalma Sabiá e entender um pouco mais quem ele era. 
Ao travar esse contato com Djalma, percebi – o que ficará claro de maneira mais 
explícita e detalhada à frente - que o compositor colecionava, assim como o Departamento 
Cultural, grande quantidade de material sobre a escola. Além disso, me chamou atenção a 
forma com que tanto Djalma quanto Eduardo e Gustavo se moviam internamente na 
agremiação. Seus posicionamentos políticos eram defendidos em uma busca, por vezes não 
consciente, do que parecia ser uma luta por espaço de atuação e, consequentemente, por 
 15 
reconhecimento, onde todos almejavam mais participação e presença nas decisões da 
escolas relativas a seu cotidiano administrativo e ao carnaval anual. 
Face ao exposto, trabalhei em meio a esses dois lugares diferenciados do G.R.E.S. 
Acadêmicos do Salgueiro em que as ideias de cultura e memória saltam aos olhos: Djalma 
Sabiá e Departamento Cultural. Walter Benjamin, apesar da visão pessimista que vê o 
declínio da narrativa como decorrente do acesso de massa à informação (1994, p.200), 
descreve o narrador como uma figura fantástica, capaz de dar vida aos fatos durante o 
processo de contar e rememorar. Porém, antes de se personificar em um indivíduo, a 
narrativa é sempre uma versão, uma forma de contar um caso. 
Em nosso caso, percebi que os dois lugares centrais de análise do presente trabalho 
narravam - ou seja, contavam uma história e defendiam suas ideias, principalmente aquelas 
que remetem às idéias de cultura e memória - como uma estratégia que visa ser eficaz ao 
convencimento, deles mesmos e dos outros, de que suas narrativas deveriam ser alçadas ao 
patamar de verdade sobre o Salgueiro. 
O que se segue, portanto, são análises das narrativas desses atores - Departamento 
Cultural e Djalma Sabiá - que demonstram, dentre outros aspectos, narrativas banhadas em 
significados próprios do que é compreendido como a cultura e a memória no Salgueiro: O 
que é a memória e cultura do Salgueiro? O que é, afinal, o Salgueiro? 
No primeiro capítulo "Somos o mundo social urbano", busco localizar o lugar das 
escolas de samba do Rio de Janeiro nos estudos de Antropologia Urbana, as vicissitudes do 
trabalho de campo nesse meio complexo, compreendendo a relação das ideias de cultura e 
memória para as escolas de samba do Rio de Janeiro. 
O segundo capítulo, "Somos a Cultura!", fala sobre o Departamento Cultural do 
Salgueiro, mostrando de que forma o grupo, baseado em duas atuações principais na escola 
– a participação da elaboração do enredo anual e o desenvolvimento do papel de "guardião 
da memória" da agremiação - constrói uma narrativa perpassada por, dentre outros 
aspectos, dramas sociais vividos na busca pelo reconhecimento. Para tanto, busco 
compreender como a noção de cultura é entendida por seus agentes centrais. O que Eduardo 
Pinto e Gustavo Melo consideram como cultural dentro do Salgueiro e do mundo social das 
 16 
escolas de samba, e o que eles alijam como não-cultural? De que forma utilizam a memória 
como uma instância de afirmação de uma posição política dentro da escola de samba? Para 
entender essas questões, problematizo as atividades por eles empreendidas. 
O terceiro capítulo, "Eu sou o Samba!", propõe uma etnografia de Djalma Sabiá. 
Em uma série de visitas a sua residência, pude observar como Sabiá, ao expor as fotografias 
e outros materiais do Salgueiro em suas paredes, constrói e oferece uma imagem de si aos 
frequentes visitantes e pesquisadores que ali aportam. Através de uma cena construída, 
Djalma assume o papel de um personagem que, com posicionamentos embasados em seu 
passado de único fundador vivo da agremiação, encena sua narrativa biográfica aliada à 
uma ideia de tradição e memória, gerando uma visão particular das escolas de samba do 
Rio de Janeiro. Todo esse jogo serve como uma justificativa de uma noção de cultura, que, 
mesmo que não-explícita, pode ser constatada. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 17 
CAPÍTULO 1 – Somos o Mundo Social Urbano! 
 
1.1. Subjetividade e Familiaridade no Urbano 
 
 
Quando tentado a trabalhar com a perspectiva antropológica, um dos meus 
maiores questionamentos era como pesquisar um tema tão próximo ao meu cotidiano e 
vivência sem pôr em xeque a objetividade científica exigida pelos padrões acadêmicos e 
sentida mais fortemente por mim no curso de graduação em História. 
A ideia de subjetividade que eu havia adquirido era impeditiva. Mesmo na 
metodologia da história oral, por exemplo, que valoriza as subjetividades narrativas, a 
exigência de fontes objetivas, fidedignas, estava sempre por perto. 
Como já dito na introdução, desde minha infância frequentava as reuniões da ala 
de compositores da Vila Isabel. Com o passar dos anos, dei-me conta de que ouvia mais 
samba do que qualquer outro gênero musical. Eu tocava na bateria de diversas escolas de 
samba e quase todos os meus amigos eram sambistas. Logo, estava do lado de dentro, 
observando os problemas, confrontos, alianças e outras características com o apuro de 
quem vivencia uma situação cotidiana. Como lidar com isso? 
Estranhar o familiar. Nunca essa afirmativa faria tanto sentido para mim que via o 
mundo do samba com uma visão cotidiana e corriqueira. Lendo os trabalhos de Gilberto 
Velho, observei o quão normal poderia ser estudar um caso próximo à minha realidade. Eu 
deveria aprender o “estranhamento do familiar”, pois uma situação, a principio familiar, 
nem sempre é conhecida. 
Nesse sentido, Velho defende: 
"o estudo do familiar oferece vantagens em termos de possibilidades de rever e 
enriquecer os resultados das pesquisas. Acredito que seja possível transcender, 
em determinados momentos, as limitações de origem do antropólogo e chegar a 
ver o familiar não necessariamente como exótico, mas como uma realidade bemmais complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos 
nacionais e de classe através dos quais fomos socializados" (VELHO, 1978, 
p.131). 
 18 
Ricardo Barbieri em “A Acadêmicos do Dendê Quer Brilhar na Sapucaí” também 
explora esse tema. Antropólogo inserido no meio do “mundo do carnaval”, relata sua 
dificuldade em estudar um universo familiar, onde “Foi necessário me concentrar no 
esforço de estranhar o familiar, por conviver com o cotidiano das escolas de samba, e 
desempenhar funções neste meio (as de intérprete e compositor)” ( BARBIERI,2013,p. 32). 
Quando falamos em pesquisa social é necessário transformar o exótico em 
familiar e o familiar em exótico. Via de mão dupla, pois pertencer a uma cultura não 
necessariamente significa que a conheçamos e, quando não, precisamos torná-la familiar 
para podermos operar dentro dela e com isso compreendê-la (DA MATTA, 1978, p. 4). Na 
experiência antropológica, a subjetividade, então, seria inerente à pesquisa, que tem 
também por “vocação” científica a busca de objetividade em dados e resultados. 
Maria Laura Cavalcanti, por sua vez, também observa a necessidade do 
estranhamento na pesquisa antropológica, afirmando que, no campo, o conhecimento 
antropológico não se daria pelo que se passa, de fato, entre os nativos, e sim através de uma 
visão organizada e percebida pelos antropólogos do que ocorre nessas experiências. Logo, 
há uma percepção aproximativa, mediatizada, permeada pela subjetividade, entre os atores 
pesquisados e pesquisador. Esse contato, portanto, pode mesmo ocasionar mudanças em 
ambos os lados: 
"Consideremos então a nós mesmos como um bando de nativos, um grupo social 
cuja vida profissional ganha forma entre o campo, a etnografia e a academia. Se 
a etnografia é, como quer Claude Lévi-Strauss, uma certa experiência de 
objetivação da subjetividade, creio que quem a exercita desenvolve também 
gradualmente uma noção de pessoa peculiar. Um eu ambivalente e diverso que, 
com o ir-e-vir refletido e sistemático entre múltiplas realidades e sistemas 
classificatórios, cruza zonas de perigo que o ameaçam por vezes de dissolução. O 
exercício profissional de um certo tipo de mediação, a mediação entre sistemas 
cognitivos e morais, visando à produção de conhecimento novo, deixa o 
sujeito/antropólogo potencialmente muito perto da metamorfose (...). 
(CAVALCANTI,2003,p.134). 
 19 
Seria necessário desfazer-me das certezas pessoais do meu círculo de amizades. 
Desnudar-me de qualquer posição ou tendência foi atordoante. Afinal, atuo como sambista 
e me posiciono acerca dos assuntos que observo e pesquiso. Encontrar a alteridade do 
grupo estudado – e minha própria alteridade - foi um exercício árduo e constante de auto-
reflexão. 
Como cientista social, pretendi observar os dados criticamente, em uma espécie de 
equilíbrio analítico. Considerando minhas opiniões e posicionamentos, introjetadas em meu 
próprio ethos, busquei o exercício do fazer antropológico, analisando as relações e os 
desdobramentos dos fatos, mesmo quando isso colocava em xeque meu próprio bem-estar. 
Subjetiva e familiar é, portanto, a complexidade do ambiente urbano com a qual 
me defrontei. Adentrar nesse emaranhado de vidas requer cuidado e atenção especial. Vale 
explicitar a concepção do ambiente urbano que orienta esta investigação sobre diferentes 
aspectos da vida das escolas de samba do Rio de Janeiro. 
 
1.2. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro no Ambiente Urbano 
 
Relações sociais são tecidas a cada instante. O fato de interagirmos com 
indivíduos distintos em nossa sociedade já embasa o surgimento - ou rompimento - de laços 
entre sujeitos. Esse modelo interativo permite considerar as relações sociais no ambiente 
urbano como uma porta de entrada interessante para entender o mundo das escolas de 
samba cariocas. 
Inspirada nos estudos promovidos pela chamada Escola de Chicago, que 
acompanharam a vertiginosa urbanização daquela cidade nas primeiras décadas do século 
XX, a Antropologia Urbana enxerga a cidade como um palco onde atores diferenciados 
encenam interações diversas: dramas são vividos, alianças são feitas, desfeitas, refeitas. 
Nesse ambiente social heterogêneo composto por diferentes camadas, segmentos e grupos 
sociais, múltiplas visões de mundo operam como diversos prismas sob os quais podemos 
enxergar um fato. 
Simmel, ao escrever "As Grandes Cidades e a Vida do Espírito", contribuía já no 
início do século XX para os estudos de antropologia urbana que se consolidariam como 
uma grande alternativa para o entendimento das sociedades contemporâneas (SIMMEL, 
 20 
2005). Para o autor, a vida urbana torna possível encontrar pessoas de origens e identidades 
sociais diferentes, articuladas e inseridas em um mesmo meio (Op. Cit.). Nesse espaço 
compartilhado, o conflito e o dinamismo assumem papel central no fluxo de interações 
entre diferentes camadas e grupos sociais. 
Ao trabalhar com a dicotomia cidade x campo, abordando o ritmo (acelerado x 
lento), as mudanças e o lugar da individualidade como temas discutidos pelas disciplinas 
sociais de sua época, o autor dá pistas importantes sobre o lugar da cidade em um mundo de 
transformações. A impessoalidade, a estranheza e o personagem blasé – portador de 
indiferença diante de situações cotidianas citadinas (Op. Cit, p.581) - dariam o tom de uma 
nova concepção de cidade que então emergia. 
A partir daí, com o decorrer dos estudos urbanos, a cidade passa a ser entendida 
como um lugar possível de estudos antropológicos. Gilberto Velho (1973) aborda o 
assunto: 
" (...) A Antropologia, tradicionalmente, tem estudado os "outros" e eu me propus 
estudar "nós". É evidente que outros autores já o fizeram, mas a Antropologia 
Urbana ainda engatinha e enfrenta sérios problemas de metodologia. (...). Na 
Antropologia Urbana ainda se está muito na fase das intuições, das primeiras 
tentativas. Há uma razoável polêmica e, relativamente, poucos 
resultados"(VELHO, 1973, p.11). 
Ao mesmo tempo, Roberto Da Matta iniciava na década de 1970 o entendimento 
do carnaval como um processo sócio-ritual, onde a observação da festa através de um 
"close up", ou seja, a evidência de um episódio pontual, descortinaria processos vividos 
pela sociedade de um modo mais abrangente (DA MATTA, 1980). 
Mesmo vendo um carnaval diminuto em conflitos, o autor contribui 
decisivamente para a visão do festejo como um ritual, característica preservada por grande 
parte dos estudos antropológicos sobre o tema na atualidade (CAVALCANTI, 1995; 
SANTOS, 2009; GONÇALVES 2007; ERICEIRA,2009; BARBIERI 2010). 
Neste trabalho, entrelaço as noções da Antropologia Urbana com a abordagem dos 
rituais, buscando destacar, porém, a dimensão do conflito e dissenso que permeia as 
relações sociais no ambiente das escolas de samba, vistas como parte constitutiva do 
ambiente urbano. Esta forma carnavalesca de brincar o carnaval, constantemente 
 21 
transformada e ressignificada na cidade do Rio de Janeiro é plural, e na 
contemporaneidade, acolhe aos mais diferentes grupos dentro do espaço de convivência 
devotado à produção de seu desfile anual. 
Tanto do ponto de vista artístico como do administrativo, são diversos os setores 
que compõem uma escola de samba que emerge como um mosaico, onde cada qual detém 
função específica e interligada a todas as demais: a ala da bateria é responsável por dar o 
ritmo ao samba de enredo, que por sua vez é composto por um grupo pertencente à ala de 
compositores da escola; a figura do carnavalesco concebe o enredo e desenha croquis de 
fantasias, alegorias e adereços; a velha-guarda é composta por sambistas idosos, entre 
outros. Apesar de poderem possuir visões distintas e encararem o processo ritual de desfile 
a partir de diferentes perspectivas (CAVALCANTI, 1995), todos os componentes de uma 
escola de samba desembocam na Avenida Marquês de Sapucaí, a chamadaPassarela do 
Samba, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, com um objetivo em comum: 
defender a sua agremiação no desfile anual. 
Esse processo reverbera então na cidade, agitando diversas dimensões sociais, 
como um fato social total (MAUSS, 1978). Movimenta a economia com valores de 
patrocínios e venda de ingressos que ultrapassam a cifra dos milhões, a política com a 
querela da presença de banqueiros do jogo do bicho no controle das agremiações - onde, 
obviamente, o sentido de política das escolas de samba, o entendimento de cultura da 
cidade do Rio de Janeiro e o sentido de pertencimento a uma manifestação festiva vai muito 
além dos presentes apontamentos. São, portanto, parte constitutiva da malha urbana, 
absorvendo e expressando os conflitos da cidade (CAVALCANTI, 1995). 
Comento brevemente alguns trabalhos que focalizaram nos últimos anos as 
escolas de samba em conexão com a experiência urbana. 
Simone Toji comentou sobre a situação de ter provocado o seu próprio campo de 
pesquisa, do qual participou ativamente: um curso de passistas da Mangueira, em 2006. 
Toji enxerga o "samba no pé" dos passistas como forma de expressão simbólica de um 
grupo social. Esse grupo, consequentemente, localiza-se inserido no meio social urbano em 
meio a tantas outras visões do que seria a escola de samba. 
Felipe Ferreira (2004) também deu ênfase nas disputas aos espaços simbólicos em 
torno do lugar do carnaval na cidade do Rio de Janeiro. Esses conflitos, segundo o autor, 
 22 
fazem parte da constituição do carnaval enquanto evento festivo onde, no caso das escolas 
de samba do Rio de Janeiro, pode-se pensá-las também no contexto da disputas por lugares 
espaciais da cidade. 
Mayra Poubel (2012), por sua vez, analisou a relação da escola de samba G.R.E.S. 
Unidos de Vila Isabel com o bairro de Vila Isabel. Ao perceber as interações entre os 
indivíduos tecidas na interseção entre o bairro e a cidade como um todo, Poubel ilumina a 
ligação entre o bairro de Vila Isabel e a escola de samba G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel. 
Uma identidade social e uma ideia de tradição emergem, assim, como conceitos-chave para 
o entendimento da localidade através de relações sociais costuradas na malha urbana 
carioca. 
Renata Sá Gonçalves (2007) também estudou os Ranchos carnavalescos, 
organizações que tiveram seu auge de popularização no Rio de Janeiro da primeira metade 
do século XX. A autora enfocou as relações entre os Ranchos e a cidade, em plena 
transformação ocasionada pela crescente urbanização e reordenação espacial. Em sua 
análise, a cidade se torna palco, se mobiliza e revela através dessa manifestação cultural. 
Tal qual a cidade do Rio de Janeiro em dias de carnaval contemporâneo, o espaço da cidade 
na primeira metade do século XX se transformava com os desfiles festivos de então. 
Nesses estudos, as expressões carnavalescas possuem importante papel na 
constituição do espaço urbano e cultural. Distribuídas pelo território, interagem com os 
meandros da cidade e seus habitantes. Servem como ponto de encontro para moradores de 
uma mesma vizinhança e bairros por vezes distantes, assumindo o papel de núcleo de 
sociabilidade e entretenimento. Baianas, velha-guarda, compositores e tanto outros 
segmentos são atores da cena urbana e, por esse motivo, enxergar as escolas de samba 
como tal fenômeno é compensador no sentido de desvendar distintas facetas que a cidade 
encarna com a atuação dos sujeitos embasando a escola de samba enquanto espaço vivo e 
vivido, dinâmico. 
O G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro possui representação significativa de 
torcedores que, ano a ano, lotam as arquibancadas e agitam bandeirolas para ver a escola 
desfilar; ou ainda, lotam as quadras nos ensaios de fim-de-semana – geralmente nos dias de 
Sábado – e ensaios técnicos de rua, quando já próxima a data do desfile principal. Todos 
esses fatores considerados constroem a visão proposta do Salgueiro como um espaço de 
 23 
convivência entre muitos grupos sociais, por onde transitam pessoas que absorvem e 
expressam as tensões e os dilemas das sociedades complexas. 
 
1.3. Trabalhando em Campo na Antropologia Urbana e na Escola de Samba 
 
Gilberto Velho (1978) chamou atenção para as dificuldades de pesquisar o 
próximo, o "nós" mesmos, onde lidar com as complexidades e relativizar as certezas ao 
enfrentar nossas próprias vivências seria o grande "desafio" posto pela modernidade no 
fazer antropológico. 
Seu texto “Observando o Familiar” (Op. cit.) demonstra que durante uma pesquisa 
etnográfica é possível elaborar um contato mais aproximado com seu campo. O que deve 
ser feito, de fato, é estranhar o familiar, problematizá-lo, a ponto de se formular uma visão 
critica a respeito do seu próprio cotidiano, de suas próprias ações. 
No caso estudado, a pesquisa de campo se iniciou em 2011, antes mesmo do 
ingresso no mestrado do PPGSA. Como dito na introdução, o contato com alguns 
Departamentos Culturais integrou-se a meu círculo de amizades - ou teria sido o caminho 
inverso? Havia então uma observação descompromissada, gerando primeiras impressões 
não sistematizadas. 
Quando decidi o tema de minha pesquisa, me indaguei sobre como poderia 
acompanhar os trabalhos do Departamento Cultural do Salgueiro: não havia uma 
periodicidade de encontros, um espaço físico onde ocorriam as reuniões, muito menos uma 
possibilidade de participação das atividades do Departamento, pois essas, observava, eram 
de cunho restrito aos integrantes. 
Mesmo já tendo traçado relações de amizade com os membros do Departamento 
Cultural, creio ter sido primordial a definição de estratégias junto ao campo de pesquisa. 
Como bem descreve Wright Mills (1965), as estratégias de campo devem ser adaptadas de 
acordo com a situação em que se vive, além de enfatizar que se pode utilizar a experiência 
de vida no trabalho, mesmo que de forma dosada e crítica. 
Problematizar a dificuldade encontrada no contato do pesquisador com o 
pesquisado se fazia interessante. Becker (1999) também fala sobre os problemas na 
inserção do pesquisador no campo estudado, onde diversas gafes podem ocorrer. O autor 
 24 
insiste que devemos elaborar métodos apropriados a cada caso de pesquisa, que possuam 
capacidade de penetração, assim como balancear erros e acertos para que possamos chegar 
a uma estratégia coerente e que possibilite o estudo. 
Nessa linha de raciocínio, pesquisar em uma escola de samba requer criatividade. 
Há o componente humano, ou seja, o indivíduo não somente como peça de análise, mas 
também como ser emotivo, afeito a ideais e que se move independentemente da pesquisa. O 
antropólogo vira quase um detetive à procura de pistas que possam ajudar a desvendar o 
mistério de sua pesquisa. 
Soma-se a isso o fato que um ator social não é, em momento nenhum, obrigado a 
servir de informante. A relação pesquisador e pesquisado, logo, se dá bastante diferente da 
que se dá entre historiadores e documentos, por exemplo: um papel não pode dar a 
negativa, torcer o nariz ou bater a porta diante de um pesquisador. Está exposto, indefeso 
então. A realidade social, entretanto, funciona como um organismo vivo que deve ser 
entendido nos seus próprios termos. É preciso negociar todo o tempo. Não há uma receita 
de bolo para dizer que tal situação se configura em um campo de pesquisa apto ou não. Um 
campo, na realidade, pode ser enxergado como um recorte feito pelo pesquisador passível 
de análise e observação. A partir daí, o pesquisador lança sobre o campo e os dados 
colhidos olhares e interpretações acerca do observado. 
Em um momento inicial, pensei que pudesse acompanhar as reuniões para escolha 
de enredo e o processo de escrita da sinopse para o carnaval de 2012, durante o qual o 
Departamento Cultural atuava diretamente junto aos carnavalescos Renato Lage e Márcia 
Lage. Porém, essa tática se mostrou frágil logo nos primeiroscontatos com Eduardo Pinto e 
Gustavo Melo. Nunca cheguei a fazer essa proposta aos dois, pois estava claro que não era 
permitido participar dessas reuniões. O simples fato de me contarem algo ocorrido nesses 
contextos ganhava um tom dramático. Palavras eram medidas pois durante aquele ano, o 
clima de tensão havia se instaurado na escola. Um episódio pode ser bastante ilustrativo 
para registrar o que era de fato esse temor. 
Em 2011, logo que anunciei a intenção de pesquisar o Departamento Cultural do 
Salgueiro, Gustavo me levou na sala da presidência, localizada na parte superior da quadra 
onde ficam os camarotes, na rua Silva Teles, no bairro da Tijuca. Lá também se localiza 
uma galeria de fotos com os ex-presidentes da escola desde sua fundação, construída pelo 
 25 
Departamento Cultural quando assumiram o posto, além de diversas salas administrativas e 
uma de reunião. 
Era semi-final da disputa de samba para escolher o samba de 2012 e o clima na 
quadra não era dos mais amistosos. Gustavo me recebeu às pressas – era nosso primeiro 
contato como pesquisador e pesquisado. Entrando na sala da presidência, vi uma grande 
mesa de vidro. Fotos, um sofá de zebra e carpete vermelho decoravam a sala. Não me 
atendo ao local em que me localizava e esquecendo da minha posição de pesquisador mas, 
principalmente, deixando o lado sambista em evidência explícita, imediatamente emiti 
minha opinião sobre a disputa de samba-enredo. Lembro-me: 
- Nossa Gustavo. Se o samba do Marcelo não ganhar será um absurdo. 
O diretor empalideceu. Logo, me cutucou e alertou: 
- As paredes tem ouvidos. Vamos falar de samba em outro lugar. 
Essa foi uma situação emblemática e definidora de minha inexperiência como 
pesquisador e da grande tensão que vigora em tantos momentos da vida de uma escola de 
samba. As informações, em geral sigilosas, são ditas ao pé do ouvido, nos corredores, nas 
entrelinhas, e a regra básica é não falar abertamente sobre certos assuntos. As informações 
que envolvem a presidência, por exemplo, relativas à confecção do carnaval, tramitam em 
regime extremamente vigiado, só sendo liberadas quando permitido. Pude constatar depois 
que, no Salgueiro, as paredes tem ouvidos, e ouvem, de fato! 
Nesse contexto, a pesquisa utilizou como estratégia não só as reuniões e encontros 
mais formais, mas também muitas conversas informais. Realizei também entrevistas mais 
estruturadas, além do mapeamento das notícias virtuais que versam sobre a escola de samba 
Salgueiro disponíveis em sites especializados de carnaval, como o Carnavalesco, O Dia na 
Folia, SRZD e Galeria do Samba. A opinião de sambistas em sites e listas de discussão do 
ambiente virtual também foram levadas em conta. Recorro também às anotações do 
caderno de campo e informações previamente adquiridas para contextualização da 
pesquisa. 
Geertz (1989, p.15). conceitua a descrição densa como o objetivo mesmo da 
pesquisa antropológica. Para o autor, a descrição etnográfica deveria empreender a 
 26 
interpretação e tradução dos dados, mas deveria principalmente ser "microcósmica" - ou 
seja, a forma como o antropólogo deveria ver seus estudos e se comportar no campo seria a 
de descrever o objeto com todas as suas particularidades, levando em conta a vida social na 
qual o tema investigado está inserido e observando atentamente os significados que o 
cercam. 
O autor exemplifica tal idéia com uma simples ação de piscadela que pode adquirir 
diversos sentidos de acordo com o contexto social a qual é feita e interpretada. Assim 
também, defende, são os atos sociais, que podem ter variados significados de acordo com o 
contexto social no qual estão inseridos (Op. Cit, p.9). Nesse sentido, o autor defende que 
não devemos generalizar ou interpretar “pela superfície”, e sim buscar os significados 
dentro da própria cultura, nos próprios termos nativos. Quanto mais densa e detalhada é a 
descrição, mais o antropólogo embasa seus estudos e pode legitimar suas teorias em uma 
interpretação acerca da cultura estudada. 
Ainda para o autor, a cultura é vista como um sistema entrelaçado de signos 
interpretativos, um contexto que permite a descrição densa. O papel do etnógrafo seria o de 
fixar um discurso e torná-lo pesquisável, anotar o fluxo vivido da ação social. Quando faz 
isso, transforma o acontecimento em discurso, fixa o acontecimento nos escritos e é nesse 
sentido que podemos entender a cultura como um texto. 
Sendo assim, os estudos antropológicos são interpretações a partir dos próprios 
nativos acerca do objeto que estudamos. O antropólogo busca o significado que as ações 
sociais possuem para seus atores (Op. Cit, p.19) e é a partir desse entendimento, 
estranhando e considerando os discursos e as ações dos atores, que esta pesquisa foi 
realizada. 
Nessa linha de pensamento, duas foram as categorias que saltaram aos olhos nas 
falas e ações dos atores sociais que conduziram esta pesquisa: Cultura e Memória. Em 
torno dessas categorias, articulam-se a experiência relatada pelos organizadores do 
Departamento Cultural do Salgueiro e por Djalma Sabiá. Vale conceituar minimamente 
esses dois termos para melhor entendimento do rumo do presente trabalho. 
 
 27 
1.4. Uma Ideia de Cultura nas Escolas de Samba 
 
Falar em cultura dentro do universo das escolas de samba do carnaval carioca 
provoca diversas sensações. A escola de samba pode ser cultural para uns por conta dos 
enredos que apresentam; cultural para outros, por conta da interação que proporciona aos 
sambistas, funcionando como uma rede de relações intrincada, que vai da amizade ao 
conflito aberto. Pode ser cultura também pelo simples fato de existir, e ser ela, a escola de 
samba, o valor maior de existência de um indivíduo ou grupo social. 
Nesse ambiente perpassado pelas discussões que orientam a área 
institucionalizada das políticas públicas contemporâneas de cultura e os valores da 
modernidade de modo geral, noções como memória, identidade e tradição são cada vez 
mais evocadas no ambiente das escolas de samba a fim de justificar a vivência de grupos 
sociais em determinado espaço circunscrito ou em contexto mais amplo. Nesse contexto, 
vale refletir, ainda que brevemente, sobre o entendimento antropológico da cultura, ou seja, 
sobre a cultura como um conceito antropológico. 
Inicialmente, a antropologia classificava os homens em uma escala evolutiva 
básica e hierarquizada, dando firmes moldes ao pensamento denominado evolucionista. O 
"fardo do homem branco" de levar cultura aos "menos evoluídos" ditava o ritmo, e seria 
necessário que os “não-civilizados” atingissem gradualmente o status de civilizados. A 
cultura, então, ligava-se diretamente à idéia de civilização. “Cultos” eram os que olhavam o 
horizonte do topo da montanha, da cadeia hierárquica ( VELHO e CASTRO, 1977, p.5), e o 
modelo almejado de cultura era o modo de vida ocidental, moderno do europeu branco, 
onde as demais culturas eram consideradas inferiores. 
Porém, no decorrer do século XX, a alteridade ganhou espaço de ação decisivo 
para o entendimento do “outro”, e por conseguinte do “nós”, além de influenciar 
radicalmente a constituição da disciplina no cenário das ciências humanas e sociais. A 
noção de pluralidade ganha um espaço decisivo, onde enxergar uma cultura “diferente”, o 
outro, não significaria negá-la, e sim compreendê-la como forma distinta de pensamento. 
 28 
Como bem observou Da Matta (1986, p.3), no senso comum ao estabelecer “o que 
é ou não cultura”, um grupo social acaba por classificar e hierarquizar os elementos que 
compõem a sociedade que o cerca. Portanto, mesmo que essa classificação seja flexível e as 
regras culturais tenham características mutáveis, entender algo como cultural é delimitar 
objetos e símbolos dentro de uma esfera bem circunscrita e por vezes perigosa, pois corre-
se o risco de negar o outro em uma busca de autenticidade. Na acepçãoantropológica, 
cultura designa a diversidade de modos de vida possíveis existentes entre os homens das 
mais diversas épocas e sociedades. 
Busca-se então compreender o outro, o “nativo”, aquele que experimenta e 
vivencia diretamente sua própria cultura, através de seus próprios termos e categorias de 
pensamento. Sob esse ângulo, não faz sentido perguntar se uma cultura é válida, verdadeira. 
O ponto crucial é compreendê-la tal como foi construída pelo ponto de vista do pesquisado, 
pois as culturas seriam formuladas quando as práticas nativas passam a ganhar coerência e 
inteligibilidade pelo prisma do observador antropólogo (GONÇALVES,1996, p.172). 
Da Matta (1986) também aponta que há a visão da cultura como um acúmulo de 
leituras, títulos acadêmicos, sinônimo de inteligência. Logo, a cultura serviria para 
classificar as pessoas, discriminar, separar. Reina a ideia de que fulano é culto, tem cultura, 
logo possui maior nível intelectual que outro sujeito que “não tem cultura”, sendo essa uma 
visão comumente adotada pela sociedade da ideia de cultura. 
Porém, para a antropologia, a cultura pode se tornar uma porta produtiva para se 
entender e interpretar a vida social, considerando a maneira de viver de um grupo, seus 
códigos e símbolos partilhados, suas práticas e significados. (Op. cit, p.1). O autor afirma 
que nenhuma cultura seria superior a outra, ratificando que uma forma diferente de pensar e 
agir de uma dada sociedade ou de um grupo social é sempre uma forma cultural plena. 
Também destaca que a antropologia não é “dona” da noção de cultura, mas de todo modo 
não existe antropologia sem tal conceito. 
Como um conceito antropológico fundamental, a noção de cultura designa 
portanto uma realidade social vivida e experimentada por diferentes grupos humanos e 
estudada pela antropologia. Para Velho e Viveiros de Castro (1977), a antropologia seria a 
disciplina tradutora universal das diferenças para o discurso científico da multiplicidade de 
 29 
esquemas, favorecendo a compreensão das diferenças e colaborando para a coexistência de 
múltiplas visões. Enxergar a cultura como sistema, para os autores, desemboca na idéia de 
aceitá-la como “um todo coerente, onde cada regra ou símbolo faz parte de um conjunto 
que dá sentido às partes”(Op. Cit,p.9). 
Esse mesmo caminho é apontado por Durham (1984), que vê a vida social 
ordenada por símbolos e organizada em sistemas, onde a existência da cultura organizaria o 
pensamento e a ação humana. A autora acrescenta que, por mais que haja um espaço de 
ação do individuo na construção do simbolismo em que ele próprio atua, os sistemas não 
precisam estar verbalizados e presentes na consciência humana para funcionarem na vida 
real. A cultura, então, seria como uma linguagem que poderia ser explicada através de uma 
estrutura, mesmo que ela não estivesse totalmente visível aos homens. 
Escrevendo nos anos 1980, a autora também chamou atenção para o problema da 
exclusiva associação entre os conceitos de cultura e de ideologia. Afirma que há uma 
tendência em se afirmar toda simbolização como ideologia, onde isso acabaria gerando um 
excesso de politização do universo simbólico em que “tudo se explica pela dominação”. 
A partir de então, defende que o conceito de ideologia possui uma implicação 
necessariamente política, se focando em sistemas cristalizados de representações e 
sugerindo uma oposição entre falso e verdadeiro, representando majoritariamente uma ideia 
de dominação. O conceito de cultura, de modo diverso, deveria ser preservado para analisar 
a dimensão simbólica como elemento que constitui a prática humana, importante na 
produção material e nas ideias. Por outro lado, o conceito de ideologia deveria ser 
preservado em seu conteúdo político, não o ampliando desenfreadamente para incluir todas 
as práticas culturais em seus símbolos e significações. 
Já nos anos 1990, em outro contexto de época, Gonçalves (1996) enfocou uma 
“mania” da sociedade contemporânea em falar e debater sobre cultura. Afirma que a noção 
de cultura se expandiu e se modificou através dos tempos, assumindo diferentes 
significados de acordo com os diferentes momentos do pensamento social e dos contextos 
acadêmicos em que dialogava. Isso significa que, ao falarmos de cultura, precisamos definir 
nosso entendimento desse termo e contextualizar o seu uso, tanto no terreno acadêmico 
quanto fora dele. 
 30 
Para o autor, a cultura deve ser entendida como uma invenção e interpretação das 
nossas experiências e de outros pois, ao se estudar uma sociedade ou grupo, “inventa-se” 
uma cultura por onde as práticas dos nativos passam a ganhar coerência e inteligibilidade 
através da ótica antropológica. Esse ato de inventar uma cultura seria o de interpretar as 
ações nativas a partir não só dos seus próprios termos, mas também considerando o próprio 
papel do pesquisador e seus valores introjetados. 
Para fins desse trabalho, compreendo a “cultura” nas escolas de samba do Rio de 
Janeiro em duas acepções: a cultura como um conceito antropológico, significando um 
sistema de símbolos vividos e manuseados pelos sujeitos sociais e a cultura como um valor 
ideológico de determinados grupos ou sujeitos, usada com uma intenção política definida 
de atuação no meio social das escolas de samba. 
No curso de minha pesquisa, pude perceber que as ações e falas dos sujeitos 
pesquisados organizavam-se de modo central em torno das categorias de cultura e de 
memória. Essas duas noções emergiam como símbolos e códigos valorizados em cada caso 
e em torno dela articulam-se verdadeiras narrativas vivenciadas pelos atores. Será 
necessário assim considerar, inicialmente, quais são os símbolos e códigos dessas distintas 
narrativas e observar as apropriações e usos diversos que os diferentes atores fazem do 
termo cultura: para o Departamento Cultural, o termo não necessariamente possui o mesmo 
sentido e valor simbólico do que para Djalma Sabiá. Por mais que os termos possam 
repetir-se no meio das escolas de samba, o seu conteúdo de sentido e as interpretações 
acerca dos mesmos podem se dar de formas absolutamente distintas. 
O que está em jogo, portanto, são as diferentes narrativas de cultura que 
emergiram durante o trabalho, não só como um conceito em disputa por significados e 
interpretações acerca de seus símbolos e códigos, mas também como experiências vividas 
na escola de samba G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro. 
 
1.5. Uma Ideia de Memória nas Escolas de Samba 
 
Os espaços urbanos são áreas recheadas de movimentos, símbolos e 
representações, funcionando como palco de relações sociais. Nele, os atores se movem, 
negociam, dramatizam, vivem a realidade de formas distintas. Em um de seus aspectos 
 31 
possíveis, esses espaços interagem com diversos níveis de memória, que, por sua vez, 
podem apresentá-lo como constituidor de identidades e interações. 
Visto desse modo, o espaço urbano pode ser abordado a partir do conceito de 
memória coletiva, pois na cidade o sujeito se vê dentro de um cenário abrangente de muitas 
individualidades e coletividades. Para Halbawcs (1990), a memória individual estaria 
sempre necessariamente ligada à memória coletiva, mesmo que no caso de um grupo 
circunscrito. As idéias individuais, em sua visão, seriam sempre pontos de vista de uma 
memória coletiva. Nesse sentido, o argumento durkheimiano da primazia da memória 
coletiva sobre a individual feito por Halbawcs pode tender a anular o espaço de ação e de 
escolha dos indivíduos dentro do escopo social, mesmo que seja inegável a influência social 
sobre os indivíduos. Ressalto, portanto, o aspecto dialógico que atua sobre essas duas 
instâncias, coletiva e individual, constituindo como fruto o espaço social da memória. 
Adrian Forty e Susan Kuechler (1999) indicam como, dentro de uma dada 
sociedade, os indivíduos são obrigados a esquecer muitas coisas para suas própriassaúdes 
mentais e psicológicas, pois não seria possível lembrar-se sempre de tudo o que aconteceu à 
sua volta. Por esse motivo, a memória seria sempre seletiva e, assim como o indivíduo, os 
grupos sociais seriam convidados a aderir o processo de esquecimento. Esquecer, então, 
seria um processo constitutivo da memória, que pode, entretanto, ganhar formas diferentes 
e até mesmo culminar em um processo de silenciamento (Pollack, 1989), onde, em função 
de tramas históricas particulares, um indivíduo ou grupo pode ter aspectos de suas 
memórias silenciados de diversas formas em detrimento de outros. 
 Esses aspectos valorizados e explicitados se desdobrariam na construção de um 
sentimento de pertencimento ligado a um tempo passado. Essa ligação do presente ao 
passado, segundo Pollack (1992), poderia manter a coesão de um grupo, dando o ponto de 
referência para uma unidade comum e servindo para a construção da identidade social de 
um grupo ou indivíduo. 
Como já observei, participando do mundo urbano das escolas de samba do Rio de 
Janeiro havia me chamado atenção o que eu enxergava como descuido com a memória do 
carnaval. Por que isso ocorreria? Esse sentimento se aguçou fortemente quando fui 
trabalhar no Centro Cultural Cartola em 2011. Juntamente com Rachel Valença, uma 
possível solução emergiu com a proposta de criação de um grupo de trabalho chamado 
 32 
“Chá do Samba”. Essa proposta alinhava-se às diretrizes dos planos de salvaguarda e 
preservação da memória, elaborados no Plano Nacional de Patrimônio Imaterial, do 
IPHAN. 
A ideia do Chá do Samba – nome dado por Rachel, que aludia ao Chá das Cinco 
na Inglaterra, pois as reuniões aconteciam às 17:00 - partia dessa preocupação com uma 
“memória má cuidada”. O CCC, de acordo com o PCI, deveria modificar esse cenário. O 
que na época me passou inteiramente despercebido foi o fato de que a iniciativa de criação 
de um grupo de discussão sobre a memória já havia emergido em um seminário promovido 
pelo próprio Centro Cultural Cartola em 2010, antes que pudesse mesmo conhecer ou 
trabalhar na instituição. 
O seminário se chamou “I Seminário Escolas de Samba e Memória – Práticas, 
Desafios e Cooperação”, e os palestrantes do seminário e seus respectivos temas foram: 
 
Dia 5 de Fevereiro: 
Abertura – Rachel Valença e Aloy Jupiara 
Mesa 1: 14h – “ A Salvaguarda da Memória das Escolas de Samba, Institições e 
Repositórios” 
Ementa: Relato de experiêncas de três instituições voltadas para a preservação das escolas 
de samba e do carnaval: o desafio, os problemas as vitórias. 
Participantes: 
Nilcemar Nogueira – Centro Cultural Cartola 
Felipe Ferreira – Centro de Referência do Carnaval da Universidade do Estado do Rio de 
Janeiro (UERJ) 
Hiram Araújo – Centro de memória da LIESA 
 
Mesa 2: 16hs – “ O Papel da Internet na Preservação e Difusão da Memória do Samba” 
Ementa: Como a tecnologia se tornou poderosa aliada da preservação e da difusão da 
memória do samba. As primeiras experiências, o compromisso com o rigor documental, a 
adesão dos apreciadores. 
Participantes: 
Marcelo O´Reilly – Site Academia do Samba 
 33 
André Albuqueque – Site Galeria do Samba 
Fábio Pavão – Site Portela WEB 
Gustavo Mello – Diretor Cultural do Salgueiro 
Alexandre Medeiros – Documentalista do Centro Cultural Cartola 
 
Dia 12 de Fevereiro – “Apresentação de Experiências de Preservação de Memória nas 
Escolas de Samba” 
Ementa: Experiências Oficiais e Experiências Individuais. Conscientização da Importância 
da Preservação. Paixão, rigor, perseverança. obstáculos, práticas, sucessos. 
Mesa Redonda 1: 13hs 
Participantes: 
Gustavo Mello – Acadêmicos do Salgueiro 
Guerra Peixe – Estação Primeira de Mangueira 
Carlos Monte – Portela 
Anderson Baltar – União da Ilha do Governador 
Rachel Valença – Império Serrano 
Vicente Dattoli – Caprichosos de Pilares 
Mesa Redonda 2: 16hs 
Participantes: 
Selmynha SorrisoZ – Porta Bandeira da Beija-Flor 
Fábio Fabato – Mocidade Independente de Padre Miguel 
Júlio César Farias – Unidos da Tijuca 
Roberto de Almeida Gomes – São Clemente 
Analimar Ventapane – Produtora Cultural (Vila Isabel) 
Alexandre Medeiros de Sousa – Imperatriz Leopoldinense 
 
No seminário foram debatidas algumas práticas de preservação de memória, além 
de emergir constantemente a necessidade de se criar um local que funcionasse como 
guardião de uma "cópia de segurança" dos diferentes acervos reunidos no meio. Porém, o 
que mais me chamou atenção foi o fato de os mesmos componentes das mesas do seminário 
serem os membros do grupo de discussão “Chá do Samba”. Mesmo sem saber do seminário 
 34 
anterior – talvez tivesse ouvido falar, mas não dado devida importância e conexão sobre 
quem eram os participantes e o significado que aquilo possuía – convidei alguns membros 
para que pudessem participar dessa primeira reunião do “novo” grupo. 
Os membros da primeira reunião foram convidados baseados na impressão que eu 
tinha, enquanto folião, freqüentador assíduo dos sites especializados de carnaval e pela 
relação pessoal estabelecida no mundo do samba, de que esses trabalhavam com a situação 
de preservação de memória e eram primordiais para que esse assunto emergisse nas rodas 
de conversa de sambistas, ou em colunas de opinião que muitos mantinham em sites de 
carnaval. 
Ao primeiro encontro do Chá do Samba, foram convidados Fábio Fabato da 
Mocidade Independente Padre Miguel, Gustavo Melo e Eduardo Pinto do Acadêmicos do 
Salgueiro, Anderson Baltar da União da Ilha, Fábio Pavão da Portela, André Lúcio da 
Viradouro, Rachel Valença do Império Serrano e também atuante como coordenadora de 
pesquisa do CCC, Nilcemar Nogueira da Mangueira e articuladora do CCC, Leandro Silva, 
do Acadêmicos do Cubango, e o diretor do Departamento Cultural da Vila Isabel, José 
Pimentel. 
Todos compareceram ao evento, exceto o Departamento Cultural da Vila Isabel e 
Leandro Silva, da Cubango. Entretanto, pude constatar uma ligação prévia de amizade entre 
os que compareceram. Como haveria surgido a interação entre esses indivíduos que se 
preocupavam com a memória de suas escolas de samba? 
Com o advento da internet, principalmente na segunda metade da década de 90, as 
relações sociais se modificaram definitivamente no urbano. O contato pessoal ganhou uma 
alternativa cômoda para os indivíduos: poderiam interagir do sofá de suas casas, no 
conforto de seus lares, saciando, ao menos virtualmente, o afã de estar em contato com 
pessoas que se interessassem pelo mesmo assunto que eles. 
As relações entre indivíduos que não se conheciam pessoalmente se intensificou 
de tal forma que o contato virtual foi alçado a uma importância significativa para a criação 
de laços afetivos entre os sambistas virtuais. A primeira forma de interação virtual no 
mundo do carnaval foram as listas de discussão. 
Surgida em 1998, mediada e criada por Felipe Ferreira, a lista de discussão Rio-
Carnaval teve um maior alcance entre os novos foliões virtuais, mostrando uma nova forma 
 35 
de relação social que havia surgido com características bem peculiares, como a de unir 
pessoas de diversas partes do mundo em um mesmo ambiente, mesmo que virtual. 
A partir de então, o espaço virtual lança questionamentos, comentários e 
discussões sobre os temas que consideram polêmicos ou que geram algum tipo de 
inquietação dentro do carnaval carioca. É importante frisar, então, que todo esse 
movimento é embasado pelos laços afetivos que os usuários possuem com suas 
agremiações, ou em uma escala mais ampla, com o mundo do samba em geral. 
Simone Pereira de Sá (2005, p.116) fala sobre a formação de uma "comunidade 
virtual", onde esses sujeitos, aficcionados e apaixonados por suas escolas, teriam criado 
mecanismos de interação capazes de gerar comunicação apesar de uma territorialidade 
dispersa: 
"A lista de discussão em questão - a Rio-Carnaval - surgiu em julho de 1998,com 
o objetivo de reunir pessoas que se interessam pelo carnaval carioca e por suas 
Escolas de Samba. (...). Metodologicamente, a escolha cronológica - da pesquisa 
de Simone Sá - justifica-se por um motivo óbvio: este período, que vai de 
novembro a fevereiro, é marcado pela crescente efervescência do universo 
carnavalesco, uma vez que corresponde à reta final das Escolas em seus 
preparativos e os barracões fervem. As listas, assim, refletem também esta 
crescente animação.” 
Ronald Ericeira, por sua vez, também reflete sobre a relação entre internet e 
sambistas. Em sua pesquisa sobre o grupo "Portelaweb", utiliza a pesquisa de Fábio Pavão 
(op. Cit.) e empreende um desdobramento do conceito de comunidade, tratando das 
comunidades virtuais eletivas: 
"Poderia desdobrar essa análise de Fábio Pavão, acrescentando um terceiro e 
mais recente modo de pertencimento às escolas de sambas: as comunidades 
virtuais eletivas, que emergem na rede mundial de computadores. Na atualidade, 
é factual a presença de comunidades virtuais gravitando em torno de todas as 
escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro. Nelas, os internautas são 
agregados a partir de critérios afetivos e de identificação com suas agremiações 
favoritas. Assim, existem comunidades virtuais específicas criadas por 
 36 
aficionados da Portela, da Estação Primeira de Mangueira, do Salgueiro, entre 
outras" (2009, p.30). 
Em nosso caso estudado, a comunidade virtual eletiva encontrada é a Lista Rio-
Carnaval. Mas, ao passo que as relações se intensificavam no ambiente virtual, foi 
inevitável o trasbordamento do virtual para o real, e os usuários da lista que residiam no 
Rio de Janeiro começaram a se encontrar pessoalmente. Nesse primeiro momento da lista 
estavam figuras como Rachel Valença, Felipe Ferreira, Fábio Pavão, Paulo Renato, entre 
outros membros que participaram do Seminário e do “Chá do Samba”. Mas principalmente, 
dentro desse grupo de amigos, estava um dos principais interlocutores deste trabalho: 
Gustavo Melo que, amigo de Eduardo Pinto, levou-o ao grupo virtual e real, e esse 
pertencimento irá se refletir em diversos momentos posteriores desse trabalho, 
principalmente na composição de assinaturas do “Manifesto” proposto por Marcelo Freixo 
a ser explorado no capítulo 2. 
Após a aparição das listas de discussão, Eduardo explicou-me em uma conversa 
que um dos primeiros encontros presenciais do grupo foi uma reunião em 1999 na quadra 
de ensaios do Salgueiro. Essa reunião teria o objetivo de agregar diferentes Departamentos 
Culturais e pessoas que “pensavam” o carnaval. Um dos elementos importantes na 
constituição do elo existente entre esses sujeitos foi, portanto, a sua preocupação em manter 
viva a memória do passado de suas escolas. A ideia de memória emerge assim como central 
também para a interação entre esses atores e para sua atuação no meio do carnaval. 
Em “Estabelecidos e Outsiders”, Elias e Scotson (2000) abordam o problema da 
formação de grupos e da coesão interna a eles, falando de um confronto entre um grupo de 
estabelecidos e um grupo de novos moradores em um bairro, no caso outsiders em relação 
ao grupo dominante. Em minha pesquisa, não há um confronto direto entre dois grupos, 
mas há um grupo que se percebe como diferenciado no meio do carnaval: Sistematizam 
relações de amizade, possuem regras próprias de convívio e interação dentro da dinâmica 
das relações sociais das escolas de samba, possuindo interesses em comum pela história e 
pelo passado das escolas de samba. De fato, isso ocorria no nicho dos Departamentos 
Culturais ou sujeitos interessados pela memória nas escolas de samba, que nem sempre 
ocupavam o cargo de Departamento, formando uma rede de amizade que ultrapassava a 
preocupação com a memória. 
 37 
Ao trabalhar com a categoria memória no âmbito das escolas de samba do Rio de 
Janeiro, proponho refletir sobre os sentidos e o papel que tal noção adquire no fluxo vivo 
do carnaval contemporâneo, levando em conta o ritmo acelerado de produção do carnaval 
urbano. Ao se instalar em diversos suprotes, orais ou físicos, a memória nas escolas de 
samba do Rio de Janeiro assume diversas características e considerá-las em suas diferenças 
é fundamental para compreender, primeiramente, de que tipo de memória estamos falando e 
quais são seus usos realizados. 
Considero também o fato de as escolas de samba, assim como diversos outros 
processos culturais populares, terem sido envolvidas desde os anos 2000 pelo processo de 
proteção proposto pelas políticas públicas de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, 
que têm a memória dos grupos sociais também como um valor a orientar suas ações de 
fomento. 
Portanto, a ideia de memória empreendida no presente trabalho passa, 
primeiramente, como sendo a investigação do sentido que ela adquire para o Departamento 
Cultural e para Djalma Sabiá - a priori, traduzida em suas coleções de materiais 
armazenadas em suas residências, como veremos adiante - e também pela problematização 
do seu uso como ferramenta de afirmação de seus lugares de destaque no Salgueiro. É 
importante considerar também o grupo de amizade que se formou ao redor desse conceito, 
como ilustrado acima, pois nos faz enxergar as relações que o Departamento Cultural tece 
com seus pares, além de fazer perceber como o conceito de memória ganha pluralidade e é 
utilizado de formas distintas no espaço urbano. 
O Departamento Cultural do Salgueiro – com Gustavo Melo e Eduardo Pinto - e 
Djalma Sabiá, portanto, aparecem como estudos de caso de como esses sujeitos, situados 
em diferentes lugares da organização social da escola de samba, se apropriam das 
categorias de cultura e de memória em suas variadas formas de ação como constituidoras de 
suas próprias identidades, além de mantenedoras de um status político de posicionamento 
dos atores dentro do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro, questionamentos pertinentes em 
um estudo de Antropologia Urbana como esse apresentado. 
 38 
CAPÍTULO 2 - Nós Somos a Cultura! 
 
Em 2012, com o enredo “Cordel Branco e Encarnado” que falava sobre a cultura 
nordestina do cordel, o Salgueiro foi vice-campeão na disputa dos desfiles das grandes 
escolas de samba do carnaval carioca. O Departamento Cultural e o casal de carnavalescos 
Renato Lage e Márcia Lage, que ingressou na escola com essa função em 2003, foram os 
responsáveis pela elaboração da sinopse e defesa do enredo para os jurados. O 
Departamento Cultural começara a ter essa função já em 2002, quando Mauro Quintaes era 
o carnavalesco da escola. 
Na apuração das notas, o quesito enredo ganhou nota 10 dos 4 julgadores. A 
princípio, a boa colocação da escola juntamente com essa nota máxima no cômputo dos 
quesitos deveria, para um olhar externo, repercutir no prestígio do Departamento Cultural 
dentro da escola. Geralmente a escola valoriza muito a nota máxima em quesitos 
importantes e de responsabilidade mais individual, dando mesmo, por vezes, algum tipo de 
prêmio para os responsáveis.
3
 Com as quatro notas 10, nenhuma crítica, vinda de alguma 
voz dissonante ou insatisfeita, poderia advir ao enredo. 
Na rede social facebook
4
, Gustavo Melo e Eduardo Pinto, de fato, receberam 
muitas mensagens de amigos e sambistas de diversas escolas parabenizando-os pelos 40 
pontos conquistados no quesito enredo. Porém, como veremos adiante, a situação era bem 
mais complexa do que aparentava ser. 
A partir das conversas com Eduardo e Gustavo e das visitas à casa de Eduardo e 
de sua mãe, Iracema, creio poder dividir as ações do Departamento Cultural, 
predominantemente, em duas esferas: a atuação em prol dos enredos carnavalescos anuais, 
que será abordada através do conceito de drama social (TURNER, 1987) na análise das 
controvérsias decorrentes do enredo "Fama” do carnaval de 2013, e a atuação em prol da 
guarda de uma pretensa história da escola de samba.

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