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MUSEU NACIONAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERINSTITUCIONAL EM ANTROPOLOGIA SOCIAL - MINTER EDUCAÇÃO TIKUNA: MODALIDADE DIFERENCIADA DE ENSINO EM UMA ESCOLA TIKUNA DO ALTO SOLIMOES - AMAZONAS Mario Felix Irineu Viçosa – MG, 2020 2 EDUCAÇÃO TIKUNA: MODALIDADE DIFERENCIADA DE ENSINO EM UMA ESCOLA TIKUNA DO ALTO SOLIMOES - AMAZONAS Mario Felix Irineu Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação Interinstitucional em Antropologia Social – Minter, da Universidade Federal de Viçosa – DCS/UFV e Universidade Federal Rio de Janeiro – MN/UFRJ, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia Social. Orientadora: Prof. Dra. Marília Lopes da Costa Facó Soares Viçosa – MG, Agosto, 2020 3 IRINEU, Mario Felix. EDUCAÇÃO TIKUNA: Modalidade diferenciada de ensino em uma escola Tikuna do Alto Solimões / Mario Felix Irineu – Rio de Janeiro/Viçosa: Minter UFV- DCS/UFRJ- MN-PPGAS, 2020. 96f.:il. Orientadora: Marília Lopes da Costa Facó Soares Soares Corientadora: Ana Luisa Borba Gediel Dissertação – Minter UFV-DCS/UFRJ/Museu Nacional /Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social, 2020. Referências bibliográficas f. 93-96. 4 Folha de aprovação Educação Tikuna: modalidade diferenciada de ensino em uma escola Tikuna do Alto Solimões - Amazonas Banca examinadora: Marília Lopes da Costa Facó Soares (Orientadora) Ana Luisa Borba Gediel (Coorientadora) João Pacheco de Oliveira Filho (membro) Priscila Faulhaber Barbosa (membro) Victor Luiz Alves Mourão (membro) 5 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho ao meu povo Tikuna da aldeia de Filadélfia, do município de Benjamin Constant, que muito me ensinou os saberes. Dedico ainda a todos(as) professores (as) do Polo Educacional da Escola Municipal Indígena Ebenezer e lideranças. Em especial, dedico à minha família e à minha esposa, mulher guerreira, maravilhosa, ativa, com perseverança de nobre caráter, que modificou, com a sua simplicidade e aguda inteligência, para melhor, o rumo da minha caminhada, já que sempre esteve e está ao meu lado nos momentos mais difíceis e que, com o seu belo sorriso persuasivo, arranca forças do meu interior para que passemos juntos, unidos, pelo longo caminhada da vida. 6 AGRADECIMENTO Agradeço primeiramente ao deus Yo’i, que iluminou a minha caminhada e me deu forças para continuar meu estudo. O caminho do conhecimento não é tão fácil de percorrer, dependendo de muita luta nas trilhas infinitas, de companhia e muita força de vontade em redes, para alcançar o caminho do resgate. Assim, a realização desta dissertação só foi possível graças à colaboração de vários e ao carinho de muitas pessoas. Inicialmente, quero registrar a minha imensa satisfação e agradecimento por ter sido apoiado pelo Minter-DCS/UFV com auxilio, por meio de recursos próprios da UFRJ, para iniciar o meu estudo e concluir esta dissertação. Desejo igualmente agradecer a todos os meus colegas e a todas as minhas colegas, ao lado de professores (as) do curso de Mestrado Interinstitucional em Antropologia Social- Minter (DCS/UFV - MN/UFRJ), pelo apoio, paciência e compartilhamentos nas trocas de conhecimentos, em especial ao professor Guillermo Vega Sanabria (coordenador do Minter – DCS/UFV), que fez grande esforço no acolhimento de aluno indígena, na parte logística, no primeiro semestre de 2017, para garantia de minha permanência no curso realizado no âmbito do Minter. À professora Ana Luisa Borba Gediel, que tem me dado sua contribuição brilhante para poder remar nas margens dos conhecimentos; e à pessoa de Lenice Fontes (secretaria do Minter), uma mulher de coração tão humilde, que me acolheu na recepção e conduzia a parte burocrática do programa Minter. Ao meu pai, Irineu Manduca (in memorian), homem de palavra, fé e com seus conselhos tão maná, e nesse alimento me inspiro, e à minha mãe Rosa Pereira, pela sua incondicional dedicação e presença. 7 Aos meus amores eternos, minhas filhas Elciclene, Elcicleide, Elcilany, Mirilaine e meu filho Ngoreecü Fernandes Irineu, minha neta Kiara Maya, por compreenderem minha ausência necessária momentaneamente. À minha companheira, Eliete Marcolino Fernandes, ombro amiga em todos os momentos, por sua compreensão e conforto. À minha querida orientadora, Profa. Dra. Marília Lopes da Costa Facó Soares, pelos incentivos e caminhos que me fez trilhar. E minha admiração pelo exemplo de amor à pesquisa, ao trabalho e ao povo Tikuna. A todos os Tikuna, especialmente aos protagonistas da luta que já se foram, professor Constantino Ramos, Reinaldo Otaviano Do Carmo, Nino Fernandes, grande doutor em saberes milenares, Pedro Inácio (in memorian) e outros, protagonistas que deixaram marca de luta, sobretudo, pela demarcação de terras, educação, saúde indígena, direito social e inclusão nas políticas públicas, possibilitando assim, para a futura geração, a continuidade e a realização deste trabalho. 8 LOCALIZAÇÃO DAS TERRAS INDIGENAS TIKUNA DO ALTO RIO SOLIMÕES Mapa 1 Fonte: A Lágrima Ticuna é uma só: rü au i Ticunagü arü wü'i (MAGÜTA-CDPAS,1988:7) 9 LOCALIZAÇÃO DA ÁREA DEMARCADA DE SANTO ANTONIO Mapa 2 Fonte: Atlas das Terras Ticunas (OLIVEIRA, 1998) 10 RESUMO Educação Tikuna: modalidade diferenciada de ensino em uma escola Tikuna do Alto Solimões - Amazonas Mario Felix Irineu Orientadora: Marília Lopes da Costa Facó Soares Coorientadora: Ana Luisa Borba Gediel Esta dissertação é resultado descritivo e analítico de pesquisa desenvolvida na comunidade Tikuna Filadélfia, envolvendo especificamente a escola indígena Ebenezer Pucürana rü We’tchi’ina, localizada na comunidade Filadélfia, na região do Alto Solimões, na terra demarcada de Santo Antônio, no município de Benjamin Constant-Amazonas. Seu foco central de estudo é a educação Tikuna, na modalidade diferenciada de ensino em uma escola indígena Tikuna, tomada como meu campo de pesquisa participativa e vivência com o próprio povo, somada a pesquisas bibliográficas. Tem como seu principal objetivo analisar a modalidade diferenciada de ensino em uma escola Tikuna, buscando saber em que medida os procedimentos de conteúdos e metodologias de ensino são elaborados para o fortalecimento dos saberes tradicionais na escola. Na comunidade Filadélfia, onde vivem 1.845 indivíduos Tikuna e há 02 (duas) instituições escolares indígenas, uma da rede municipal e outra de rede estadual-polo, funciona a Escola Municipal Indígena Ebenezer, que oferta os níveis de ensino da educação maternal (crianças de 3 anos), educação Infantil (pré – I e II, de 4 a 6 anos) e ensino fundamental de 1º ao 9º ano, possuindo aproximadamente 632 alunos matriculados, das etnias Tikuna, Kokama, além de não indígenas. Os professores lotados nesta escola são eles próprios Tikuna e Kokama. Na escola, os professores mantêm forte interação com os alunos em língua portuguesa, os materiais didáticos utilizados são contextualizados na realidade local, enquanto a língua materna e saberes do povo não são aplicados nas disciplinas. Consagrados e afirmados pela legislação vigente, os direitos dos indígenas, inclusive os seus direitos linguísticos, sustentam a modalidade diferenciada de ensino-aprendizagem pensada pelo povo Tikuna, com inclusão do processo próprio da educação tradicional, o que tornariauma escola indígena autônoma. As possibilidades apresentadas nesta dissertação são, principalmente, as da inclusão dos saberes tradicionais no currículo da escola Ebenezer, em todos os níveis, etapas e modalidades de ensino. Confluindo para essas possibilidades, estão os resultados da análise, que percorre o aspecto histórico da educação escolar do povo Tikuna de Filadélfia, as relações familiares e as fronteiras linguísticas na comunidade estudada e a diferenciação entre a educação na casa e a educação em espaço escolar formal. Palavras - chave: Educação Tikuna. Saberes indígenas. Formação de professores indígenas. Línguas Indígenas. Antropologia linguística. 11 ABSTRACT Tikuna Education: differentiated teaching at a Tikuna school in Alto Solimões - Amazonas Mario Felix Irineu Orientadora: Marília Lopes da Costa Facó Soares Coorientadora: Ana Luisa Borba Gediel This dissertation is the descriptive and analytical result of research conducted in the Filadélfia Tikuna community. In particular, it involves the indigenous school Ebenezer Pucürana rü We’tchi’ina, , in Alto Solimões, in the demarcated indigenous land named Santo Antônio, in the county of Benjamin Constant, state of Amazonas. The focus is Tikuna education, the differentiated teaching in a Tikuna indigenous school, where the participatory research took place, alongside research when relating to the community , besides bibliographic research. It’s main goal is to analyze the differentiated teaching at a Tikuna school, and examine to what extent the content procedures and teaching methodologies are designed to strengthen the traditional knowledge at school. At the Filadélfia community there are 1.845 inhabitants and two public schools; one is part of the City public system, and the other part of the State public system. The Escola Municipal Indígena Ebenezer, the City school, offers pre-school education ( three-year-olds) early childhood education ( four to six-year- olds), and elementary and junior high school ( first to ninth grades). Approximately 632 students of the Tikuna and Kokama ethnics, besides non- indigenous pupils, are currently enrolled. The teachers at this school are themselves part of the Tikuna and Kokama indigenous people. At school, teachers strongly interact with students in the Portuguese language, the teaching materials used are contextualized in the local reality, while the native language and knowledge of the Tikuna people are not considered. Asserted and attested by current legislation, indigenous rights, including linguistic rights, support the differentiated teaching-learning approach thought by the Tikuna people, with the inclusion of its own process of traditional education, which would turn it into an autonomous indigenous school. The proposal presented in this dissertation is, mainly, the inclusion of traditional Tikuna knowledge in the Ebenezer school curriculum, at all levels, stages, and teaching environments. Converging towards this is the result of the analysis, which goes through the historical aspect of school education of the Tikuna in Filadelfia, family relations and the linguistic boundaries in the community, and the difference between education at home and education in the school environment. Keywords: Tikuna Education. Indigenous knowledge. Training of indigenous teachers. Indigenous languages. Linguistic Anthropology. 12 Lista de Ilustrações Mapas Mapa 1 Localização das terras indigenas Tikuna do Alto Rio Solimões 8 Mapa 2 Localização da área demarcada de Santo Antonio 9 Fotos Foto 1 Aniversário da Escola Indígena Ebenezer 30 Foto 2 Alunos indígenas e não indígena, 3º ano – A, da escola indígena Ebenezer, 2018, participando da exposição de leitura e artes Visuais 31 Foto 3 Mulher Tikuna trançando as palhas de jarina, para cobertura de casa 37 Foto 4 Crianças Tikuna transformando o universo de casa, com o da Escolarização 41 Foto 5 As crianças Tikuna aprendem nos diversos espaços em que se socializam com outros 57 Foto 6 Fora da sala de aula – práticas corporais e espaço de interação para as crianças no ambiente escolar 62 Foto 7 Turma da educação maternal – professora monolíngue em Português 65 Fotos 8 e 9 Atividades extraclasse e interação entre alunos indígenas e não indígenas 66 Foto 10 O menino Ngure’ecü Morfeneo, de 4 anos de idade, acompanha seu pai na roça e começa a imitar o pai no trabalho 84 Foto 11 Jovens ajudando seu pai a torrar farinha 85 Foto 12 Membros da Igreja Batista Independente 86 13 Foto 13 Grupos de mães, após o culto, comendo e trocando conversas 87 Desenhos Desenho 1 Saberes ancestrais sobre as técnicas de fazer armadilha (yütagü / tai’nü ‘ armadilha de modo geral’) 38 Desenho 2 A técnica de assar peixe na brasa, que hoje a maioria não utiliza - fogão ecológico trocado pelo fogão industrial 40 Desenho 3 A interpretação dos Tikuna sobre o conhecimento dos ciclos da natureza e do ecossistema 44 Desenho 4 Conhecimento sobre o período em preservação (peixes, caça, reprodução, animais, plantas, etc) 51 Desenho 5 Casa da farinha (go’epata#) – uso de linguagem no local de trabalho 53 Desenho 6 Usos linguísticos (em Tikuna) na pescaria 54 Quadros Quadro 1 Educação Infantil 46 Quadro 2 Ensino Fundamental I 46 Quadro 3 Ensino Fundamental II 47 Quadro 4 Alunos matriculados e etnias 48 14 SUMÁRIO Primeiras palavras: meu percurso, minhas motivações 15 Introdução 21 Capítulo I Aspecto histórico da educação escolar do povo Tikuna de Filadélfia 30 1.1 O que é escola no olhar dos Tikuna 36 1.2 Como ocorre o processo de ensino, pensando na valorização cultural e linguística 40 1.3 Organização do currículo da escola em relação à educação desejada pela secretaria da educação 45 Capitulo II Relações familiares e fronteiras linguísticas 51 2.1 Relações de interação da família monolíngue em Tikuna 56 2.2 Relações de interação da família monolíngue em Português 63 2.3 Relações de interação da família bilíngue em Tikuna e em Português 66 Capitulo III - A diferenciação entre a educação na casa e a educação em espaço escolar formal 74 3.1 O processo próprio de ensino. Quanto a escola está se afastando ou aproximando do modo de vida dos Tikuna? 76 3.2 As relações com as crianças na construção da oralidade a partir da casa e do contexto da escola 82 3.3 Universo da pesquisa em três tipos de família e os espaços sociais compartilhados: na roça, na igreja e na escola 83 Considerações finais 90 Referências bibliográficas 93 15 PRIMEIRAS PALAVRAS: MEU PERCURSO,MINHAS MOTIVAÇÕES Sou Mário Félix Irineu, pertencente ao grupo indígena Tikuna. Meu nome, na minha língua materna, é Tchaiareecü (O som do chocalho entoado/Aquele que tem som de chocalho entoado – Arucüã ‘ clã Avaí’). De origem humilde, filho de liderança do movimento indígena, cacique Irineu Felix Manduca, Ngureecü (Aquele [que é] chocalho guardado no teto da casa da moça nova) (in memorian) e de dona Rosa José Pereira, Te'tchiaüna (Aquela que constrói seu ninho sobre as árvores – Ngunücüã ‘ clã Mutum’) , nasci em 08 de outubro de 1979, na cidade de Tabatinga. Cresci na comunidade indígena Tikuna Nova Canaã, localidade na aérea demarcada de Feijoal, região do Alto Solimões, município de Benjamin Constant, Amazonas. Comecei a estudar na escola municipal Osório Duque Estrada, aos 11 (doze) anos de idade, na 1ª série. Aos 16 (dezesseis) anos de idade, em 1996, tive que deixar a aldeia onde cresci, e fui morar na aldeia indígena de Filadélfia, pela busca de uma escola que oferecesse o ensino de 5º ao 9º ano do ensino fundamental II. Concluí o meu ensino fundamental no ano de 2000 (dois mil), aos 21 anos de idade, na Escola Municipal Indígena Ebenezer, localizada na terra demarcada de Santo Antônio. Para eu ingressar no Ensino Médio foi outro obstáculo. Tive que sair da aldeia, ir a estudar na cidade de Benjamim Constant. Fui estudar no Colégio Imaculada Conceição, no ano de 2001. No mesmo ano, fiz o curso de magistério indígena, específico para formação de professores indígenas do Alto Solimões, oferecido pela Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngues – OGPTB em parcerias com diversas universidades, instituições e entidades internacionais. Além dessa participação, também acompanhei a formação continuada dos professores da rede municipais e estaduais realizada pela secretaria educação municipal. Em fevereiro de 2002, recebi um convite, do cacique da comunidade de Nova Canaã, para trabalhar nessa comunidade, de acordo com o aumento do número de alunos na aldeia, por uma necessidade da comunidade na contratação de professor. Aceitei o convite do cacique e fui trabalhar na área de educação, como meu primeiro emprego e carreira profissional. Em 2004 veio outro programa do MEC pela via de secretaria de educação do município: a oferta de curso de magistério em nível médio, o PROFORMAÇÃO (Programa de Formação de Professores em Exercício), com o objetivo de acabar com a figura do professor leigo (sem qualificação pedagógica). Nos cursos que fiz, ganhei experiências profissionais e pessoal. Ambos os cursos de que participei foram concluídos em 2006, no município de Benjamin Constant, Amazonas. 16 Em janeiro de 2006, saiu edital do vestibular específico para professores indígenas, que foi resultado de uma longa luta das lideranças e professores através da OGPTB. Participei, então, do processo seletivo recém-iniciado pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA. Foi assim que ingressei no nível superior, tendo optado por me dedicar à área de Ciências Humanas com habilitação em Antropologia, Sociologia e Filosofia. O que me motivou a escolher essa área de conhecimentos foi a gravidez na adolescência nas aldeias Tikuna (cultura e economia da família), focalizando o efeito econômico e social do comportamento sexual de risco das Tikuna adolescentes gestantes. Observei que o tema é de suma importância, e desenvolvi o projeto de intervenção na comunidade escolar, que fez parte de minha descrição em artigo no curso de licenciatura – OGPTB/UEA/PROLIND. Durante o curso de nível superior indígena, em agosto de 2008, recebi o primeiro convite das lideranças protagonistas João Vasques e Nino Fernandes, para participar de encontros sobre o controle social (onde foram discutidos tanto os grandes índices de suicídio, mortalidade infantil, desnutrição, quanto o consumo de bebida alcoólica e outras práticas de entorpecentes) nas comunidades indígenas do Alto Solimões, realizados pelas Nações Unidas – ONU, Fundo das Nações Unidas para Infâncias - UNICEF em parceria com o Conselho Geral da Tribo Tikuna - (CGTT), Federação das Organizações dos Caciques e Comunidades Indígenas da Tribo Ticuna - FOCCITT, Saúde Indígena/FUNASA, Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues – OGPTB, Universidade Federal do Amazonas - UFAM, Secretaria de Estado para os Povos Indígenas - SEIND, Secretaria de Educação Municipal de Benjamin Constant - SEMED/BC e outros. Nessa reunião, fui escolhido pelos representantes das organizações e cacique da comunidade, para acompanhar o projeto que vem sendo realizado na aldeia Filadélfia e que inclui oficinas, palestras e elaboração de cartilha na língua materna, junto aos adolescentes e jovens das comunidades, com apoio da saúde indígena/CGTT/FUNASA e UNICEF, e que é referente ao tema “Fortalecimento da Família Indígena Brasileira”. Como tenho efetivamente participado das diversas reuniões e encontros do movimento indígena - “organizações”- na região, entre lideranças das organizações, nas discussões dos direitos da sociedade, principalmente no que diz respeito a “Educação e política de inclusão dos povos indígenas”, fui convidado pela UEA para compor, pela primeira vez, a comissão de organizadores e a mesa-redonda na I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena – I CONEEI, do Alto Solimões e do Vale do Javari, no ano de 2009. 17 Nos anos a seguir, ainda como cursista do curso de licenciatura para professores indígenas do alto Solimões, e pela experiência, competência na participação na política da educação indigena, fui convidado pela equipe de correção em língua Tikuna, através do Professor Constantino Ramos Lopes , Füpeatücü (Aquele que tem asa virada - Ngunücüã - ‘clã Mutum’),) e Reinaldo Otaviano do Carmo, Mepawecü (Aquele que tem bico bonito - ‘clã Mutum’ , a integrar a equipe como Auxiliar na revisão do livro "Histórias Antigas - coleção Eware" (projeto: Mitologia Ticuna-OGPTB/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD/MEC-2010), publicado em 2010. Em 2011, houve outra oportunidade, entre os professores Tikuna do munício de Benjamin Constant, e fui escolhido pela OIT, via Instituto Federal do Amazonas – IFAM, em parceria com a OGPTB, para acompanhar o projeto como tradutor na língua Tikuna da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tribais - OIT. Em 2012 e 2013, continuei como consultor indígena do projeto oficina de comunicação para jovens indígenas, e criamos núcleos da rede de jovens comunicadores – REJICARS - nos três municípios do alto Solimões, objetivando a produção e a divulgação de atividades comunitárias e de projetos sociais desenvolvidos nas comunidades indígenas, como na aldeia de Filadélfia (Benjamin Constant - AM), Umariaçú I e II (Tabatinga, AM) e Colônia e Monte Santo Kokama (São Paulo de Olivença, AM). Essa iniciativa foi apoiada pelo UNICEF como parte do Programa Conjunto de Segurança Alimentar e Nutricional para mulheres e crianças indígenas do Brasil – PCSANs/ Secretaria Especial de Saúde Indígena- SESAI, em parceria com prefeitura, secretaria da educação, escolas, comunidades, Fundação Nacional do Índio - FUNAI, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD e Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (Food and Agriculture Organization of the United Nations) – FAO, entre outros. No mesmo ano, atuei como mobilizador da política do movimento de adolescentes e jovens indígenas Tikuna e Kokama, com o tema “os jovens indígenas têm direito à participação nas políticas públicas”. Prestei serviço temporário na escola estadual indígena. Entre os anos de 2013 e 2016, assumi a função de professor na Escola Estadual Indígena Professor Gildo Sampaio– Megatanücü1 (Conjuntos dos sons bonitos (vozes bonitas) / Conjuntos dos [que são] sons bonitos / vozes bonitas), escola situada na aldeia Filadélfia e voltada para o ensino médio 1 Nome vinculado ao Arucüã ‘ clã Avaí’. 18 indígena regular. E, em 2015, comecei a atuar como membro de pesquisadores e escritores Tikuna – ÜMATÜTAE/OGPTB, que tem por objetivo a elaboração de material didático para fortalecimento da educação indígena diferenciada, nas escolas Tikuna. Como minha família aceitou o evangelho desde o ano de 1972, aderindo ao cristianismo protestante Batista Regular, eu já vim crescendo no evangelho: meu pai era líder/pastor da igreja na aldeia. Então, acompanhei esse processo de atuação das missões de evangelismo em meio ao povo Tikuna. Em 2014 e 2016, tive oportunidade de ver mais de perto o trabalho da missão. Fui convidado pelo pastor Eli Tikuna para acompanhar o projeto da missão Wycllife Associates, pela via da mobilização de assistência de apoio à tradução – MAST (um programa de tradução da bíblia na língua nativa), junto à Organização da Missão Indígena da Tribo Tikuna do Alto Solimões (OMITTAS). Nesse mesmo ano, fui convidado como antropólogo indígena Tikuna para participar do Congresso Nacional de Conselho Nacional dos pastores e líderes indígenas – CONPLEI, Aldeia Córrego do Meio – Sidrolândia, MS, com o objetivo de discutir o andamento e a implantação das igrejas genuinamente indígenas e autônomas. Em julho de 2016, participei do concurso de seleção ao Mestrado Interinstitucional (Minter) em Antropologia Social, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ) e o Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de Viçosa (DCS/UFV), tendo sido classificado para a vaga da Política de Acesso Afirmativo ao MINTER destinada a candidato indígena, como integrante da única turma desse curso de Minter, iniciada no primeiro período letivo de 2017. Viajei para cidade de Viçosa, estado de Minas Gerais, no mês de fevereiro de 2017 para cursar o mestrado em antropologia social. Interessei-me a seguir, durante o curso de mestrado, por um ramo de pesquisa na Antropologia Social: Antropologia dos povos indígenas e das populações tradicionais. Esse interesse me levou a estudar a evolução da educação Tikuna com foco central na modalidade diferenciada de ensino em uma escola Tikuna, buscando saber em que medida os procedimentos de conteúdos e metodologias de ensino são elaborados para o fortalecimento dos saberes tradicionais na escola. Ao retornar de Viçosa – MG para a cidade de Manaus – AM, no mês janeiro de 2019, a Gerência de Educação Escola Indígena - GEEI/SEDUC me enviou convite para participar de um treinamento de formadores do projeto Pirayawara, no âmbito do Programa de Formação de Professores do Magistério Indígena no Estado do Amazonas em parceria com a Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Nesse contexto, fui indicado como formador, com experiências 19 na área de conhecimentos nas disciplinas de introdução à antropologia, história/historiografia, geografia/contextos locais e sociologia/estudos específicos, no curso de professores (as) da etnia Kulina, do município de Juruá, no rio Juruá. Após esse, fui para o Médio Solimões, para trabalhar com o povo Kokama e Kanamari, município de Fonte Boa, Amazonas. A minha participação, com reciprocidade, trocas de experiência, junto a múltiplos grupos, no acompanhamento da política do movimento indígena, nas reuniões das organizações, associações, igrejas, escolas, saúde e dos jovens, ao lado das lideranças Tikuna, que discutem o fundamento e o avanço da política de luta do povo Tikuna, foi um ganho de experiência de luta e uma marca deixada pelos protagonistas antecessores. São metas a busca de vida digna, de igualdade de direitos para a futura geração e de direitos à terra, à expressão, de viver livre. E analiso que as lutas das lideranças Tikuna eram verdadeiras unidades, têm o mesmo pulso do povo daquela época, que criou uma organização própria, o conselho geral da tribo Tikuna - CGTT (1982), uma organização dos caciques, e por meio desta lutaram juntos com uma única voz de luta pela demarcação de terras. De certa forma, a luta do povo Tikuna vem acontecendo, acirrada, há muito tempo. O engajamento na evolução e revolução dos Tikuna, introduzidas pela modernidade, deu novo horizonte na luta, junto à política indigenista, amadurecendo suas experiências na política que simbolizam a incorporação em mecanismos que possibilitam os diálogos com o mundo institucional da sociedade não indígena. Com isso, esse mesmo engajamento levou à criação de outra organização especifica, a Organização de Monitores de Saúde dos Povos Tikuna – OMSPT (1984), e, para professores que buscam a melhoria e qualidade da educação do povo Tikuna, a Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngues - OGPTB (1986), idealizada pelos próprios caciques, professores e as comunidades, com apoio de equipe da assessoria indigenista. Na luta do povo, as igrejas também se fazem presentes na construção dessas políticas do povo indígena. Após 52 anos de luta, houve novo avanço revolucionário entre os povos Tikuna: surgiram outras novas organizações (OMITTAS, AMIT, AMTIA2, FOCCITT, LIERB3, PIASOL4, REJICARS). Todas estas foram surgindo na comunidade de Filadélfia, 2 Associação de Mototaxistas Indígenas do Alto Solimões- AMTIA. 3 Liga Indigena Esportiva Rural Benjaminense - LIERB. 4 Polícia Indígena do Alto Solimões – PIASOL. 20 como implementação ou divisão da força tarefa da política do movimento indígena do povo Tikuna. E hoje, no século XXI, o povo Tikuna percebe que a luta das organizações e associações ficou em ruptura, por desentendimento na defesa da causa coletiva, que se torna fragmentada, ou seja, a luta política do movimento Tikuna está mais adentrada na individualização, e isso faz recuar a força da unidade. Mas as lideranças locais sempre colocam em pauta, nas suas discussões comunitárias, a conscientização do povo, para trazer de volta a força da política coletiva. Este meu percurso começou muito tempo atrás, com vários obstáculos vencidos, para que eu pudesse alcançar a pós-graduação, e continuo na luta compreendendo o avanço e as mudanças da política de luta do povo. 21 INTRODUÇÃO Esta dissertação trata da educação escolar indígena, objetivando analisar a modalidade diferenciada de ensino, os procedimentos de conteúdos e as metodologias de ensino elaboradas e especificamente desenvolvidas para o fortalecimento dos saberes tradicionais em uma escola indígena - a escola Tikuna Ebenezer Pucürana rü We’tchi’ina, situada na aldeia Filadélfia, localizada na proximidade da cidade de Benjamin Constant, na região do Alto Solimões, Amazonas. Para alcançar meu objetivo, realizei um estudo descritivo e analítico participativo no contexto de vivência, e de pesquisas bibliográficas, relacionado ao processo educativo na escola, na família, apreendidos no espaço da comunidade Filadélfia, onde vivem 1.845 indivíduos Tikuna e estão 02 (duas) escolas indígenas, uma da rede municipal e outra de rede estadual – polo. A escola municipal indígena Ebenezer oferta os níveis de ensino da educação maternal (crianças de 3 anos), educação Infantil (Pré – I e II, de 4 a 6 anos) e ensino fundamental de 1º ao 9º ano, possuindo aproximadamente 632 alunos matriculados, das etnias Tikuna, Kokama, além de não indígenas. Os professores lotados nesta escola são eles próprios Tikuna e Kokama. Observo que existem 10% de famílias construídas heterogeneamente, ou seja, moradoras desta aldeia, essas famílias foram constituídas com não indígenas ou membros de outras etnias,enquanto a comunidade escolar está se afastando ou se aproximando do modo de vida dos Tikuna. Com o grande avanço de incorporação à sociedade não indígena, tem ocorrido a ruptura da tradição de casamento com família propriamente do grupo e, em relação à comunidade escolar, os alunos e os professores, em sua interação no ambiente escolar, têm como mais útil a língua portuguesa, ou seja, os falantes de língua portuguesa convencem os que dominam a língua nativa Tikuna, nas conversações diárias, na escola e na vida comunitária. Como isso, destaco a família constituída de marido/mulher não indígena, focalizando também o grupo de colegas: neste último, caso haja um colega não indígena, esse acaba como superior na conversação em língua portuguesa, enquanto a língua nativa fica em intervalo na interação. Os saberes tradicionais não são contextualizados, nos conteúdos escolares e, dentro de família, também não são contados, ensinados os saberes do povo – o que torna a consciência dos jovens mais vulnerável na relação língua e cultura de origem. Desenvolvo esta dissertação em três capítulos. No primeiro capítulo, abordo o aspecto histórico da educação escolar do povo Tikuna de Filadélfia, o modo como é estruturada a escola 22 no olhar dos Tikuna e o currículo inserido no ensino escolarizado, incluindo a formação dos docentes que desenvolvem as atividades pedagógicas. O segundo capítulo apresenta as relações familiares e fronteiras linguísticas, tratando da convivência e da vivência dentro de uma família constituída de cônjuge Tikuna bilíngue/não Tikuna, Tikuna monolíngue/Tikuna e não indígena/não indígena. O terceiro e último capítulo mostra os espaços formais e informais: ensino na escola e na comunidade, as concepções de educação entre dois mundos diferentes um do outro, ambos com complexidade no processo de ensino - aprendizagem, que as crianças ou adolescentes incorporam para se tornarem um sujeito completo e preparado a ingressar como parte do grupo. A propósito, cito o que diz Maher sobre a Educação Indígena, ao diferenciá-la da chamada Educação Escolar Indígena (MAHER, 2006); Quando fazemos menção à “Educação Indígena”, estamos nos referindo aos processos educativos tradicionais de cada povo indígena. Aos processos nativos de socialização de suas crianças. Quando observamos mesmo as atividades mais corriqueiras realizadas no interior de uma aldeia Yanomami, por exemplo, podemos perceber que aí ocorre um intenso e complexo processo de ensino/aprendizagem, no qual crianças e jovens são preparados para exercerem sua “florestania”, para se tornarem sujeitos plenos e produtivos de seu grupo étnico. Esse empreendimento, é preciso entender, não implica, não “passa” por conhecimento escolar algum. Antigamente, essa era a única forma de educação existente entre os povos indígenas: o conhecimento assim transmitido era mais do que suficiente para dar conta das demandas do mundo do qual faziam parte. A partir do contato com o branco, no entanto, esse conhecimento passou a ser insuficiente para garantir a sobrevivência, o bem-estar dessas sociedades. É preciso agora também conhecer os códigos e os símbolos dos “não-índios”, já que estes e suas ações passaram a povoar o entorno indígena. E é assim que, historicamente, surgiu a “Educação Escolar Indígena”. É a partir de seu contato 23 conosco que a escrita, a matemática formal e vários outros de nossos saberes entraram no mundo Yanomami, no mundo Tikuna, no mundo Yawalapiti, etc. (MAHER, 2006, p.16 e 17). A modalidade diferenciada de ensino entre os Tikuna inclui os conhecimentos, saberes sobre as práticas de cultivo de espécies nativas como macaxeira, cará, banana, buriti, açaí, cana- de-açúcar e outros alimentos vegetais; e outras a incluir são as práticas de caça, pesca baseada na alimentação de subsistência familiar e outra, ainda, é aquela destinada à comercialização como geração de renda familiar no contexto atual. Na produção, os moradores também produzem instrumentos da caça, da pesca e outros objetos que marcaram as manifestações culturais desse povo. Essa tecnologia é aprendida com os pais e com os mais velhos e, assim, esses conhecimentos e técnicas são repassados para as crianças e jovens durante a socialização no ambiente familiar. Na realização de atividades agrícolas, a família Tikuna trabalha, em conjunto: o pai, sua esposa e os filhos mais velhos que ainda não são casados: atuam juntos. Aos filhos maiores e solteiros, os pais orientam ter uma roça própria, de modo que, quando vierem a se casar, cada um já terá seu próprio roçado como suporte da nova família construída por ele. Essa é a primeira educação repassada oralmente na sociedade Tikuna, de modo geral. A nossa riqueza está na terra. Na terra podemos formar nossas aldeias. Podemos cultivar nossas roças. Nos rios, igarapés e lagos podemos pescar. Na floresta que cobre a terra tem caça, remédios, frutas. Tem madeira para construir a casa. E madeira para construir a canoa. Tem materiais para fabricar os objetos da casa, os brinquedos e os enfeites, as tintas para pintar. Tem materiais para fazer a festa, as máscaras e os instrumentos musicais, para fazer música. Da floresta vêm as histórias para contar e os espíritos que ajudam a curar. Nossa vida anda junto com a floresta [...] (“O livro das árvores”, 1997, p.70). No caso da educação diferenciada para os Tikuna, não se trata apenas do ensino de língua materna na escola, mas se trata dos saberes tradicionais e conhecimentos, técnicas. A partir de 24 um tema transversal, definido de acordo com o contexto especifico da comunidade e inserido em todas as disciplinas que compõem o currículo da escola indígena (RCNEI/MEC-SEF, 2002), se cria fronteira, relacionada à fronteira geopolítica, que também se define pela existência de um velho par de línguas e cultura com um contato histórico e genealógico muito estreito, que é o do português-indígena. O povo Tikuna vive na tríplice fronteira da Amazônia, na divisa entre Peru, Colômbia e Brasil. Com a exploração da América do Sul iniciada, teve seu primeiro contato com a sociedade não indígena no século XVII, como um sinal das trocas linguísticas e culturais, na região do alto Solimões – Amazonas, compartilhadas pela história de outras línguas com as quais convive e entra em conflito, de acordo com suas concepções diferentes umas das outras. Hoje tem aproximadamente 63.640 habitantes, distribuídos em 243 comunidades (segundo dados da SESAI, 2018), dos municípios do Alto, Médio e Baixo rio Solimões no Estado do Amazonas. Após o contato com a sociedade envolvente nacional, passou a ser imposta a escola chamada civilizadora. Ali os Tikuna passaram por diversas situações dolorosas em relação ao processo de escolarização, tendo sido a principal a proibição do uso de sua língua materna, acompanhada da obrigação de aprender a escrever, a falar e a cantar na língua do outro ou mesmo adotando novos hábitos trazido de fora. Conforme a descrição de Rodrigues (2014) sobre os Tikuna, O povo Tikuna habita a Amazônia ocidental do Brasil muito antes da conquista do território brasileiro. Ao longo dessa história, os Tikuna aprenderam a se organizar no âmbito social, político e econômico desenvolvendo maneiras particulares de sobrevivência na selva. Antes da chegada dos europeus, “os ticunas habitavam as terras firmes do norte do Amazonas, desde o século XVI, sendo expulsos do lugar no século XVII, pela tribo inimiga dos Omáguas (conhecidos no Brasil como Cambebas), numeroso grupo indígena que habitava a zona de várzea”1. O território habitado pelos Tikuna “desde o baixo Napo até a região de São Paulo de Olivença entre os rios Javari e o Içá foi ocupada no século XVI pelos Aparia ou Aricana. A Aparia Grande ou Aparia, o 25 Grande, seu povoado principal,se situava próximo à boca do Javarí”2. Hoje a maioria do povo Tikuna habita a região do Alto Solimões, na fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia. Eles estão localizados em seis municípios desta região, a saber: Tabatinga, Benjamin Constant, Amaturá, São Paulo de Olivença, Santo Antônio do Içá e Tonantins, sendo distribuídos em mais de 20 terras indígenas (RODRIGUES, 2014 p.18). Em 1986, houve várias reuniões e encontros das lideranças e professores Tikuna, tratando da educação escolar indígena diferenciada, especifica e bilíngue. Com isso, surgiu a Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues – a OGPTB, objetivando discutir as políticas educacionais nas comunidades Tikuna da região do Alto Solimões e tendo como referência a mobilização dos Tikuna por uma educação escolar adequada a seus interesses e realidades. A partir disso, o povo Tikuna lutou pelo reconhecimento de seus direitos constitucionais e cumprimento da legislação de educação escolar indígena na região do Alto Solimões, para concretização de uma educação escolar diferenciada e específica na comunidade, construindo maior autonomia dos professores indígenas e comunidades na condução do processo educacional em suas escolas e no entendimento da escola como espaço de produção de saberes, de reflexão e ação política, de proteção do território e defesa dos direitos sociais, de promoção da saúde, de valorização da língua materna e do patrimônio cultural. O curso ofertado no centro de formação de professores Tikuna – Torü Nguepata# (‘Nossa Casa de Estudo’) era em nível fundamental, ensino médio magistério. Mais recentemente, realizou-se curso de graduação, nível superior, para professores indígenas do Alto Solimões, por meio do programa (PROLIND) em parceria com a Universidade do Estado do Amazonas – UEA, nos anos de 2006-2011, com foco na substituição dos docentes não indígenas que lecionavam nas escolas indígenas, por professores Tikuna da própria comunidade, para concretização de uma educação verdadeira bilíngue na escola indígena, na comunicação entre professor/aluno. Nas etapas do curso de formação em magistério indígena, os professores produziram materiais didáticos em língua materna que garantem a valorização dos saberes tradicionais e memória dos ancestrais do povo Tikuna, tendo sido alguns traduzidos 26 para o português. Esses materiais didáticos produzidos são utilizados pelos próprios professores, nas escolas de suas comunidades. Realizada alguns anos após o término do curso de graduação para professores indígenas do Alto Solimões, curso descontinuado em 2011, a pesquisa que resultou nesta dissertação teve como seu objetivo geral analisar a modalidade diferenciada de ensino em uma escola Tikuna, buscando saber em que medida os procedimentos de conteúdos e metodologias de ensino são elaborados para o fortalecimento dos saberes tradicionais na escola. Com relação aos objetivos específicos desta pesquisa, esses foram estabelecidos de modo a carrear, levar para o objetivo geral determinados aspectos, determinadas discussões, análises, formas de contribuição que pudessem fortalecer o próprio objetivo geral em termos do resultado alcançado. Os objetivos específicos da pesquisa foram: analisar aspectos da educação escolar e do cotidiano familiar vivenciado pelo Tikuna do passado e da mudança ocorrida nos dias atuais; discutir as formas de influência que a língua e a cultura Tikuna sofrem a partir do contato direto ou indireto mantidos nos espaços informais e formais. Analisar em diferentes enfoques o domínio em que a metodologia de ensino é aplicada pelos professores de forma produtiva no campo das práticas de saberes indígenas, ensino regular e uso da língua na escola, como foco da educação bilíngue; contribuir, de uma maneira geral, para maior conhecimento dos saberes indígenas na escola e sua aplicação por meio dos resultados da pesquisa. Para alcançar nossos objetivos, lidamos basicamente com 5 (cinco) pontos, alguns dos quais questões que nortearam a pesquisa: 1. Quais são as relações com as crianças na construção da oralidade a partir do contexto da casa e do contexto escolar? 2. Como ocorre o processo de ensino, pensando na valorização cultural e linguística? 3. O quanto a escola está se afastando ou se aproximando do modo de vida dos Tikuna? 4. Como isso está relacionado com a educação desejada pela secretaria municipal de educação? 5. Na escola, o que os professores estão ensinando, em que língua, de que modo? 27 No caso das perguntas que envolvem famílias, e que estão vinculadas a casa e outros espaços sociais compartilhados, para alcançar uma resposta, trabalhamos com uma amostragem, limitando o número de famílias observadas para poder descrever e analisar o que se passa na casa e na escola, e em outros espaços sociais, como a roça e a igreja. Este foi o campo da nossa pesquisa. De acordo com os objetivos colocados, sigo, em termos da metodologia, o caminho de uma pesquisa exploratória descritiva, com a finalidade de colher maiores informações analíticas a respeito da educação Tikuna, focando no ensino diferenciado e específico em uma escola indígena, na aldeia Filadélfia - uma forma de facilitar a descrição nesta pesquisa, já que existem alguns estudos voltados para os saberes indígenas na escola encontrados na literatura. Ao mesmo tempo, isso colabora com a ideia de que este tipo de pesquisa busca “compreender as diferenças observáveis entre populações de origens diferentes”, sendo “importante considerar não suas supostas características “raciais”, e sim efeito de outras variáveis, como o meio ambiente e especialmente as condições sociais em que vivem essas populações” (BOAS, 2005, p.19) Por também se tratar de uma pesquisa qualitativa, utilizei a investigação etnográfica, na qual, segundo Geertz (2008), a etnografia não é, apenas, uma questão de método, mas sim um esforço intelectual do pesquisador. “Praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e são descrições densas e geradoras de dados que devem ser analisadas pelo pesquisador (GEERTZ, 2008, p 4). Surgem assim duas realidades diferentes, a conhecida, ou seja, própria do investigador e a que se deseja conhecer, cujas conclusões têm como base as descrições do real universo cultural do povo, o que permite obter os significados dessa realidade para os que a ela pertençam. Clifford (2002) aponta algumas experiências de escrita etnográfica a respeito do trabalho de campo de Malinowski e Radcliffe-Brown. Entre essas diferenças, destaca-se a concepção vinculada ao uso dos termos etnógrafo e antropólogo, isto é, entre aquele que descrevia e traduzia os costumes e aquele que era o construtor de teorias gerais sobre a humanidade. Eram personagens distintos, desenvolvidos com estilos de trabalho de campo e visões sobre a ciência cultural bem diferentes, para conhecer a estrutura social de uma população ou grupo social (cf. CLIFFORD, 2002, p.26.). 28 Com base nos caminhos metodológicos apontados, busco, então, analisar a valorização dos saberes indígenas na escola, na família e nos diversos espaços educativos relacionados aos costumes do povo e às mudanças provocadas pelo contato de complexos culturais (modernidade), de acordo com os objetivos da pesquisa, através de entrevista aberta e de observação participativa realizada durante a pesquisa de campo na aldeia Filadélfia, entre o povo Tikuna, procedimento este em concordância com Geertz (2009, p. 11-12). Para este autor, o que o antropólogo deve fazer, propriamente, é ir a lugares, voltar de lá com informações sobre como as pessoas vivem e tornar essas informações disponíveis à comunidade especializada, de uma forma prática, em vez de ficar vadiando por bibliotecas, refletindo sobrequestões literárias (Idem, ibidem), mas com uma ação disciplinada e orientada por princípios e estratégias. Em relação à pesquisa antropológica, se o antropólogo não fosse ao campo com ideias preconcebidas, não saberia o que observar, nem como fazê-lo. Por outro lado, o antropólogo deve seguir o que encontra na sociedade que escolheu estudar: a organização social, os valores e sentimentos do povo, e assim por diante (EVANS-PRITCHARD, 2005, p. 244). A propósito, cabe lembrar o que disse Mariza Peirano sobre a pesquisa de campo: O ideal da pesquisa além-mar, contudo, permaneceu como meta a ser alcançada, a tal ponto que, décadas depois e inserindo-se em uma tradição que sistematicamente questionou a necessidade da pesquisa de campo externa, em 1982, Satish Saberwal concluía que a pesquisa de campo na Índia era uma soft experience, já que realizada na própria língua, casta, e na região de origem do pesquisador. (PEIRANO, 1997, p. 72). Na minha pesquisa, visitei a escola, famílias foram entrevistadas, foram realizados diálogos com as lideranças comunitárias, moradores, gestor e professores da comunidade escolar focalizada. Em diferentes momentos, a partir do consentimento dos pais e das crianças, realizei entrevistas, observações e tirei fotografias, procurando sempre respeitar os limites 29 verbalizados e não verbalizados expostos pelos participantes. Para viabilizar minha descrição da educação Tikuna, com atenção especial à escolarização de crianças, vi na observação do processo educativo e na análise das transformações que ocorrem na criança e em relação a ela, desde a primeira infância até a maturidade, a melhor maneira de se estudar uma cultura (em conformidade com MEAD, 1962, p.29). Nesta dissertação, o público alvo se encontra agrupado em monolíngues em Tikuna, bilíngues em Tikuna e Português, monolíngues em Português. Também houve preocupação com as crianças Tikuna, devido ao contato com outras pessoas e culturas – um fato. Ao mesmo tempo, trabalhamos com a diferenciação entre a educação na casa e a educação em espaço escolar formal, procurando realizar também uma documentação visual. Com relação às fotos, todas são de minha autoria, assim como sou responsável pela elaboração do Quadro 4. Quanto aos desenhos, sua autoria é indicada à medida em que são apresentados. 30 CAPITULO I - ASPECTO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR DO POVO TIKUNA DE FILADÉLFIA Foto 1. Aniversário da Escola Indígena Ebenezer Os Tikuna representam a maior população indígena no Brasil, mesmo depois do grande aliciamento sofrido pelo contato com os colonizadores, desde longa data. E ainda preservam sua identidade, apresentam uma surpreendente luta pela terra e desenvolvem uma busca incessante pela sua afirmação cultural (RODRIGUES, 2014, p.17). É importante salientar o trabalho que visa ao aspecto histórico da educação escolar do povo Tikuna de Filadélfia - Ütchigüne (Lugar que cresce) - no contexto da realidade étnica e cultural específica deste povo. A escola indígena Ebenezer Pucürana rü We’%tchi’ina5 - polo, localizada na terra demarcada de Santo Antônio, na aldeia Filadélfia, fica a três quilômetros da cidade de Benjamin Constant – Amazonas. A comunidade possui, constituídas, famílias heterogêneas em línguas e 5 ‘Aquela que tem rabo branco e pena preta’ (nome atualmente proposto para a escola Ebenezer). 31 culturas, o que traz a mistura entre culturas e torna a escola sempre apta como espaço recolhedor dessa diversidade de pessoas ou etnias. Foto 2. Alunos indígenas e não indígena, 3º ano - A, da escola indígena Ebenezer, 2018, participando da exposição de leitura e artes visuais. De acordo com o relato histórico-descritivo, a educação escolar na comunidade Filadélfia surgiu na década de 60. Essa foi fundada em dia 5 de abril do ano de 1968, com a participação de seus primeiros moradores, da família Vasques e Fernandes. No dia 15 de abril do ano 1986, foi reconhecida como uma comunidade indígena, dentro da terra demarcada de Santo Antônio, pelo Governo Federal, de uso exclusivo aos povos indígenas deste polo. Na mesma década de 60, a presença da igreja da missão evangélica Batista Regular, fortemente marcada na região, objetivou converter os povos indígenas, e com esse trabalho de evangelização chegou um Tikuna convertido ao evangelho, denominado senhor Manoel Salvador, com a finalidade de converter os parentes desta comunidade através da palavra de Deus – conforme a missão Batista Regular. A partir daí, as pessoas se converteram e incorporaram o mundo da cultura bíblica, deixando de lado o fato de sua cultura milenar ser praticável e disseminando a educação dos brancos na aldeia Tikuna. 32 Como participantes do evangelho, os moradores se preocuparam com espaço apropriado para comunhão, até que um dia se reuniram para traçar a ideia de construção da igreja de madeira e sua cobertura de palha, e a mesma casa também serviu como uma sala de aula dos alunos interessados em ingressar na leitura e na escrita em língua portuguesa. O professor voluntário que dava aula para os alunos era o próprio missionário Tikuna da denominação Batista Regular. Nessa escola improvisada, não havia participação do poder público municipal, que atende às demandas da educação voltada à comunidade indígena, caso da construção da escola e do fornecimento de materiais pedagógicos. Os conteúdos e metodologias de ensino são embasados no contexto bíblico, com a visão de multiplicar os missionários evangélicos preparados, o que de fato facilita a expansão do evangelho nas comunidades indígenas Tikuna. A primeira igreja era denominada Igreja Batista “Ebenezer”, o que significa: “o senhor nos ajudou a chegar até aqui e por isso estamos felizes” (PPP da escola); atualmente, a mesma teve o seu nome mudado para a igreja “Batista Independente”, com sua estrutura modernizada. No espaço dessa igreja – escola improvisada, - a disciplina dada pelo professor foi a alfabetização de jovens e adultos, iniciando-se forte imposição de ensino em língua portuguesa, que possibilita a melhoria na expressão na língua portuguesa com as pessoas não indígenas. As crianças vivem no meio da família e do grupo, acompanham observando, interagindo com alguns de seus atos, praticando jogos, brincadeiras e atividades que contribuem com o seu desenvolvimento cognitivo e, nos dias de domingo e de turno de dia e da noite, as crianças acompanham seus pais na igreja, indo com eles participar do culto, dedicar cânticos de louvor e leitura de mensagem na língua portuguesa, sendo que alguns desses hinos e contextos bíblicos são traduzidos para a língua materna. Após 1978, houve um crescimento populacional marcante na comunidade. Com isso, o poder público, na parte da educação, priorizou a construção de uma escola (de madeira) dentro da comunidade indígena Filadélfia, que possuía apenas uma sala de aula. Nessa escola funcionava apenas o ensino fundamental inicial de 1º a 4º séries, os monitores bilíngues que trabalhavam aí eram funcionários da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Em todos os anos, havia aumentos acentuados de alunos, os quais se deram pela vinda, a partir de diversas comunidades, de membros das etnias Tikuna, Kokama6 e, ainda, de não 6 “Habitantes do Solimões, o contato dos Kokama com a sociedade não-indígena remonta às primeiras décadas da colonização. Os aldeamentos e deslocamentos forçados, impostos primeiramente pelas missões e depois pelas 33 indígenas, que se deslocaram para estudar na 4ª série do Ensino Fundamental. Estes alunos integram famílias vulneráveis socioeconomicamente, sendo difícil para eles frequentar escola e realizar seu estudo no centro dacidade de Benjamin Constant, por falta de assistência a estudante de baixa renda. Desde então, o corpo docente da escola Ebenezer tem trabalhado com alunos de diferentes línguas e culturas, o que a torna uma escola bilíngue de referência para outras comunidades deste município. Segundo Maher (2006), as diferenças populacionais constituem um aspecto ao lado de outros: Como se vê, há diferenças populacionais significativas entre os povos indígenas, mas isso não é tudo. Os Guarani, por exemplo, interagem com o que denominamos “sociedade nacional” há 500 anos, enquanto que os Waiãpi só conheceram o “homem branco” há cerca de 30 anos. *[3] Evidentemente, as diferentes experiências de contato com a sociedade envolvente fazem com que os povos indígenas no Brasil tenham, comparativamente, configurações atuais muito particulares. **[4] Mas as diferenças entre eles tampouco param aí. Vejamos: os Zo’é falam uma língua da família Tupi-Guarani; a língua falada pelos Kaxinawá, entretanto, pertence à família lingüística Pano. Isso significa que um Zo’é e um Kaxinawá observam matrizes culturais possivelmente tão distintas quanto, digamos, um latino e um oriental. E mesmo se considerarmos os grupos que falam línguas da mesma família lingüística – como é o caso dos Xavante, dos Kaingang e dos Xikrin, todos falantes de línguas Jê –, ainda assim as diferenças entre esses frentes extrativistas, acabaram criando um contexto tão adverso de reprodução física e cultural desses grupos, que lhes suscitou a negação da identidade indígena por muitas décadas. Desde os anos de 1980, porém, a identidade Kokama vem sendo cada vez mais valorizada no contexto de suas lutas políticas – que incluem outros povos indígenas do Solimões – por terras e acesso a programas diferenciados de saúde, educação e alternativas econômicas”. (Cf. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kokama). * [3] Nota presente no texto original: “A partir de uma convenção estabelecida, entre linguistas e antropólogos, em 1953, ficou estabelecido que o substantivo gentílico referente ao nome de um povo indígena seria grafado com maiúscula e nunca pluralizado: tal substantivo, além de muitas vezes já estar no plural na língua indígena de referência, é designativo de um povo, de uma sociedade, de uma coletividade única – e não apenas de um conjunto de indivíduos. Daí nos referirmos aos Palikur, e não aos Palikures; aos Guajajara, e não aos Guajajaras.” (MAHER, 2006, p. 14). ** [4] Nota igualmente presente no texto original: “É importante esclarecer que há, em território nacional, cerca de 54 povos indígenas que ainda não foram contatados.” (Idem, ibidem). 34 povos não são nada desprezíveis. Pensar o contrário seria o mesmo que pensar que um italiano, um francês e um brasileiro, porque falam línguas românicas, seriam idênticos... Ora, as implicações de tamanha diversidade no interior do Brasil indígena não podem ser desconsideradas em nossas escolas, por isso é imperioso que a noção de índio genérico seja desconstruída já na Educação Infantil, para que nossas crianças não cresçam tendo uma visão equivocada dos povos indígenas em nosso país. (MAHER, 2006, p.14 e 15). A partir da década de 90, radicalizou-se o aumento de alunos matriculados com novo degrau de escolaridade, - o que representou, para os pais, dificuldade em matricular seus filhos na escola da cidade. Isso movimentou a “engrenagem” da população, que teve suas reivindicações discutidas. O resultado foi a proposta de implantação de uma escola que oferecesse o ensino de 5º a 8º séries do Ensino Fundamental, funcionando na escola Ebenezer, mas, infelizmente, a demanda do povo foi arquivada pelo governo municipal. Em 1995, as lideranças comunitárias aceleraram a pressão sobre a engrenagem da máquina do governo municipal, para execução da implantação do ensino que atende de 5º a 8º séries do Ensino Fundamental, dentro da sua própria comunidade para terem facilidade de acesso, uma das principais prioridades do povo em relação à educação escolar na comunidade indígena. A demanda da comunidade foi concretizada com a parceria feita com a entrada da nova gestão no governo municipal no ano de 1999. Foi criada a escola Ebenezer como uma instituição de ensino reconhecida pelo decreto nº 031 de 8 de novembro de 1996, um sistema de polo educacional, sem perspectivas do reconhecimento como uma escola indígena, com currículo “normal” ou de não indígena. Mesmo assim, contribuiu no desenvolvimento da educação na comunidade, fazendo com que os jovens de diferentes comunidades indígenas e não indígenas tivessem acesso ao ensino fundamental completo, sem exceção de grupo. Entre os anos de 1996 e 1999, os professores (as) que atuavam nesta escola com a turma de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental na comunidade eram todos (as) não indígenas, falantes monolíngues fluentes em língua portuguesa, devido à insuficiência de professores propriamente Tikuna que tinham formação especifica na área. Durante esses anos, na intenção da secretaria 35 da educação municipal, o ensino da língua materna na escola não era ideal para ser incluído no currículo. As reivindicações das lideranças da comunidade não são somente no sentido de ganhar a implantação do prédio da escola do ensino fundamental de 5º a 8º séries dentro da sua própria comunidade, mas sim de um reconhecimento de sua escola como indígena com ensino de modalidade diferenciada, incluindo o ensino da língua materna no currículo da escola como uma disciplina, e não como língua de instrução. A identidade do linguista americanista como alfabetizador em língua indígena se fortaleceu quando já não existia o SPI e, em seu lugar, tinha sido criada a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Com a FUNAI, o SIL conseguiu em 69 seu primeiro convênio com o órgão indigenista, passando a controlar oficialmente a Educação Indígena através da formação de centros de treinamento de professores indígenas. O acesso da missão às atividades de Educação Indígena não se deu apenas através do convênio de 69, mas sobretudo por uma Portaria da FUNAI, de 1972, que torna obrigatória a educação bilíngue no país. Com isso, o principal instrumento de integração da população indígena passou a ser a alfabetização em língua indígena e não em português. (BARROS, 1994, p. 28) Em muitos casos, os professores Tikuna da escola Ebenezer encontram desafios quanto à língua, na conversação heterogênea na sala de aula, na sua busca para que possam ter melhor entendimento dos alunos não indígenas. Isso leva os professores a adequar a língua portuguesa, como se fossem monolíngues em português na sala de aula, um meio que facilita na intermediação da turma durante a aplicação de conteúdo. De acordo com conceito da transformação de identidade, por Figueira (1987) na sua obra “O moderno e o arcaico da família brasileira”, Tal transformação tem, ao mesmo tempo, outras implicações bem menos prazerosas: em termos estruturais, a velocidade com que nos modernizamos leva a coexistência, em planos dissociados, dos antigos e dos novos ideais e identidades. Como vem sendo assinalado, o “arcaico” apenas aparentemente desaparece dando lugar ao “moderno”: 36 o “arcaico” continua presente, de modo invisível, mais ou menos inconsciente, mas certamente eficaz na sua oposição estrutural ao “moderno”, que é o mais recente e é o núcleo daquilo que desejaríamos ser. (FIGUEIRA, 1987, p.22). Nessa altura, a comunidade Filadélfia Utchigüne, é uma das primeiras comunidades Tikuna a ter conquistado o reconhecimento de sua escola, de categoria indígena, a partir da aprovação da resolução Federal nº 03/99, fixada conforme diretrizes para o funcionamento das escolas indígenas do país. Hoje, após muita luta, esta escola desenvolveu e vem desenvolvendo váriosprojetos de iniciativa, de modo a incentivar a comunidade escolar indígena, ganhando mesmo programa de apoio do governo federal. 1.1 O que é escola no olhar dos Tikuna O conceito de escola que nós aprendemos, em diversas abordagens, e que significa unir estudantes em um local separado para a aprendizagem, existe desde a antiguidade clássica. E essa interpretação trouxe alguma argumentação por parte dos mais velhos da comunidade sobre a escola no entendimento do povo Tikuna. Para os Tikuna, a palavra “escola” tem dois significados: de um lado, 1. “nguepata’#” (casa de estudo), que representa hoje a possibilidade de adquirirem novos conhecimentos necessários na relação com a sociedade envolvente, destinados à aquisição dos demais degraus sequenciais; e, por outro lado, 2. “cua’güpata’#” (casa dos saberes), espaço efetivamente integrador do universo cultural e dos conhecimentos tradicionais do povo. 37 Foto 3. Mulher Tikuna trançando as palhas de jarina, para cobertura de casa Por exemplo, trançar palhas de palmeiras (jarina, urucuri, açaí, buriti) que servem como enfeite de casa ou na ornamentação da festa de moça nova é parte de conhecimentos que, na sala de aula, não são aplicados ou ensinados. Mas, dentro do grupo ou da família, as crianças, adolescentes e jovens aprendem a fazer, realizando as técnicas acompanhados pelos mais velhos, o que melhora o entendimento. Dentro da família (casa), as crianças Tikuna não são ensinadas a falar em sua língua materna, nem a e dominar as diversas técnicas empíricas, mas sim escutam, olham com atenção e repassam orientação com acompanhamento diário, para ter uma boa socialização no grupo, de forma dialética, observando e praticando todas as atividades realizadas no grupo. Muito ao contrário, no processo de escolarização, isto é, na escola, as crianças são ensinadas pelos professores para serem mergulhadas no mundo letrado, que impõe a cultura exterior que, por sua vez, as crianças Tikuna incorporam no universo da sociedade complexa, por meio da leitura de texto literário, jornais, revistas e outros. Para Benedict (1983), na sua obra sobre padrões de culturas, O nosso vaso quebrou-se. Aquilo que tinha atribuído significado à vida do seu povo, os rituais domésticos de tomarem os alimentos, as obrigações do sistema econômico, a sucessão dos cerimoniais nas aldeias, o estado de possessos na dança do urso, os padrões do bem e 38 do mal - tudo desaparecera, e com isso a forma e o significado da sua vida. O velho conservava-se ainda vigoroso e continuava a ser quem orientava as relações dos seus com os brancos. Não queria ele dizer, com aquele modo de se exprimir, que se tratava de qualquer coisa como a extinção do seu povo. Mas no seu espírito havia como que a consciência da perda de qualquer coisa que tinha um valor igual ao da própria vida, toda a estrutura dos padrões e das crenças do seu povo. Havia ainda outros vasos da vida, talvez com a mesma água, mas a perda era irreparável. Não se tratava de juntar aqui isto, de tirar ali aquilo. A modelação do vaso fora fundamental, fosse como fosse era de uma só peça. Fora o seu vaso. (BENEDICT, 1983, p. 34) Desenho 1 – Saberes ancestrais sobre as técnicas de fazer armadilha (yütagü/ tai’nü ‘armadilha de modo geral’) (autoria: Linderson Demetrio Santos, Me’tchima#cü ‘Aquele que é enfileirado do colar de avaí bonito’ - clã de avaí, 11 anos, 4ª ano). 39 Nesse sentido, a escola para os Tikuna, de uma forma, reduz os saberes tradicionais do povo, devido ao favorecimento do contexto embutido na europeização. Enquanto o contexto cultural do povo ficou arcaico nos trabalhos escolares, focaliza-se muita mais a mudança dos costumes e hábitos das crianças Tikuna. A escola pensada pelos Tikuna é aquela escola que valoriza a memória de sua ancestralidade, os costumes, as crenças, as artes, a cultura e a cosmopolítica. João Guilherme Nunes Cruz (CRUZ, 2011), diz o seguinte sobre o insucesso da escola entre os Tikuna: No tocante aos ticunas, desde cedo se percebeu a curiosidade e o desejo em aprender a ler e escrever em língua portuguesa, como um modo de apropriação “das coisas dos brancos”, o que inclusive propiciou grandes êxitos em termos de conversão das empreitadas religiosas, tanto católicas quanto evangélicas no âmbito das comunidades indígenas (Oro, 1978; Paladino, 2006). Sílvio Coelho dos Santos, em artigo datado de 1966 também já identificava o interesse dos ticunas em se alfabetizarem e de conheceram, pelo processo de letramento, o universo além das fronteiras do contexto tribal (Santos, 1966:31-35). De acordo com este autor, o insucesso da escola do Posto Indígena Ticuna de Umariaçú, objeto específico de sua análise, se deu em função do despreparo dos professores do Posto, que não adaptavam suas práticas pedagógicas às especificidades culturais dos ticunas, bem como não se atentavam às barreiras linguísticas entre eles, preferindo caracterizar os alunos como “calados”, “complexados” e “difíceis de serem ensinados” (idem: 33-34). Em artigo mais recente da psicóloga Elvira Souza Lima, esta pesquisadora vai analisar como uma série de preconceitos com relação a suposta incapacidade cognitiva dos ticunas para aprendizagem foi sendo fomentada ao longo dos anos pelas agências que se responsabilizaram pela promoção da educação formal desses índios, acarretando na própria assimilação, por parte dos indígenas, das ideias subjacentes a tais preconceitos... (CRUZ, 2011, p.52) 40 1.2 Como ocorre o processo de ensino, pensando na valorização cultural e linguística Desenho 2- A técnica de assar peixe na brasa, que hoje a maioria não utiliza - fogão ecológico trocado pelo fogão industrial (autoria: Elcicleide Fernandes Irineu, Dere’ena ‘Aquela que tem cacho amarelado’ – clã de avaí, 19 anos, ensino médio completo). Em uma comunidade monolíngue em língua Tikuna, a escola Tikuna não pode ter simplesmente alfabetização em português realizada por um professor propriamente indígena, do mesmo modo como não se pode ser alfabetizado em língua indígena em uma comunidade falante de português. A alfabetização dos alunos Tikuna na língua materna deve ser realizada por professores Tikuna, assim como o processo de aprendizado (leitura, escrita e oralidade) do português é realizado em uma comunidade falante de português. O trabalho dos docentes na comunidade sempre tem que priorizar a contextualização nos saberes tradicionais do povo onde a escola está inserida, para haver um equilíbrio em relação ao conhecimento aprendido na sala de aula com os professores. 41 Foto 4 . Crianças Tikuna transformando o universo de casa, com o da escolarização. Esta turma de crianças, em sala com sua professora não falante da língua Tikuna, realiza atividades escolares, utilizando livro produzido professores Tikuna _ OGPTB sobre meio ambiente, inserido no contexto local. Trilharam nos ecossistemas através do texto e desenho, pontuando o respeito e a valorização do meio em que vivem. No caso dos moradores de Filadélfia, esses têm seus próprios meios de produzir e transmitir os conhecimentos necessários não só à realização do trabalho que garanta a sobrevivência da comunidade, mas necessários também à preservação das tradições culturais e da língua materna. Estes conhecimentos são produzidos com a experiência, a vivência especifica e diferenciada das outras comunidades das vizinhanças, e aprendidos oralmente, na conversação no meio de socialização comunitária. O processo de ensino na escola Tikuna pode ser muito mais encaixado no contexto indígena e específico de modalidade diferenciada de ensino, se é embasado na tradição do povo, com conexão de técnicas e formas próprias de ensino aprendizagem. Isso, ainda hoje, após um sacrifício de luta daslideranças Tikuna, para que o embasamento nos conhecimentos 42 tradicionais tivesse lugar em disciplina pertinente no currículo da escola. Isso não significa a escolarização da cultura, mas sim que o encaixe no contexto indígena permite estabelecer conexão com técnicas e formas próprias de ensino aprendizagem. Contra a escolarização da cultura, D’Angelis (2006) traz a seguinte reflexão: Tomemos um exemplo: o caso dos conhecimentos agrícolas, transcrito em um trecho acima. Se o conhecimento existe – e, com certeza, há centenas de anos – em uma comunidade indígena, e antes de haver escola esse conhecimento pode ser transmitido, reelaborado, melhorado, geração após geração, é obvio que esse tipo de conhecimento não precisa da escola para conservar, construir e transmitir esse tipo de conhecimento. Parece, pois, que nos propomos a fugir de um preconceito (o de que o conhecimento construído pelos povos indígenas não é conhecimento) alimentando outro (o de que o conhecimento indígena será conhecimento verdadeiro se for ensinado na – ou avalizado pela - escola). A comunidade indígena tem suas formas próprias de ensinar e não está provado (nem faria sentido que alguém tentasse provar) que a escola (ou o ensino escolar) é a forma mais adequada, mais eficiente, mais segura para garantir-se a continuidade e aprofundamento de toda e qualquer forma de conhecimento. (D’ANGELIS ,2006, p.157). O fato de o conhecimento ser adquirido de forma espontânea não significa dizer que as crianças não sejam orientadas em casa, em diversos momentos, por seus pais e mães, com os demais mais velhos da família, aprendendo tudo àquilo que está à sua volta e precisam saber quando forem adultas, para ocuparem seus lugares, desempenhando bem seu papel na organização social. Os Tikuna, desde crianças, possuem vasto conhecimento dos espaços etnogeográficos do local onde vivem os entes naturais, conhecendo os ciclos da natureza, a fauna e a flora, as montanhas, os rios, os peixes. Têm conhecimentos históricos que explicam a origem do mundo, dos clãs e da sociedade, através da mitologia - conhecimentos passados de geração para geração -, e das transformações recentes e das modificações nos costumes e nos hábitos, mas sem deixar 43 sua língua nativa. Clarice Cohn ressalta, no seu artigo “Culturas em transformação: os índios e nós, que: O conceito de cultura tem uma longa história e sua origem é anterior ao esforço da antropologia de estudar e compreender povos com costumes e modos de vida diferentes. Como mostra Elias (1990), cultura e civilização são conceitos que surgem na Europa e que, já de início, ganham significados diversos entre as várias populações nacionais nascentes. Grosso modo, porém, esses termos parecem conotar a unidade ocidental e as diferenças internas a ela: se civilização é um resultado final de um processo que culmina no Ocidente, cultura designa as particularidades das populações ocidentais – os modos franceses, ingleses, alemães. Na antropologia evolucionista de fins do século XIX, uma história comum a todos os povos culminaria na civilização ocidental, ápice da evolução, e as diferenças culturais ficavam subordinadas a uma concepção de estágios, ou estados, que deveriam ser ultrapassados. Funda-se então a missão civilizatória ocidental. Com a crítica aos evolucionistas e a admissão da relatividade cultural, a antropologia norte-americana, de um lado, e a inglesa, de outro, recusam o que foi chamado de pseudo-história ou história conjectural e buscam entender a diferença cultural. Está em jogo, aqui, uma oposição entre diferença e desigualdade. Na antropologia americana, cultura passa a ser definida como um conjunto de traços que podem ser perdidos ou tomados de empréstimo de populações vizinhas, enquanto a antropologia britânica a pensa como um sistema de partes articuladas entre si, cuja lógica própria deve ser entendida. Porém, essa visão de “traços culturais” que podem ser perdidos acaba por levar à noção de aculturação, ou seja, de um processo regressivo de perda cultural, a que os povos nativos (não-ocidentais, “primitivos”) de todo o mundo estariam especialmente sujeitos. Passa-se, então, a se preocupar com o desaparecimento da diversidade cultural. As discussões a respeito da etnicidade reviram essa definição reificadora da cultura, como traços ou elementos que podem ser perdidos, e focaram as fronteiras que delimitam uma cultura (Barth, 1969). Nessa 44 acepção, o que define uma cultura não são seus traços constitutivos, mas sim o estabelecimento da fronteira entre um e outro, o que é feito pela atribuição da diferença, pelos traços diacríticos (Carneiro da Cunha, 1986). Assim, o que importa não é a manutenção dos traços em si, mas da diferença que origina a identidade e que é estabelecida contextualmente por meio de traços maleáveis e flexíveis. A cultura não deve se manter em uma suposta integridade; o que deve ser preservada é sua diferenciação em relação às outras, são as fronteiras, e essas são traçadas por elementos que têm origem cultural, mas são escolhidos em contexto. (COHN, 2001, p.36, 37). Desenho 3 – A interpretação dos Tikuna sobre o conhecimento dos ciclos da natureza e do ecossistema (autoria: Mila Mikaele dos Santos Beneditos, Puremüna ‘ Aquela que tem peito branco’ – clã de mutum, 10 anos, 4º ano ) Os Tikuna têm conhecimentos de agricultura sabendo a época de plantio e de colheita, o manejo das sementes e os cuidados que se deve ter com a terra. Tais conhecimentos milenares do povo sofrem interferência, em alguns casos são esquecidos e substituídos devido às alterações ocorridas no meio ambiente, devido ao contato com a sociedade extensa. A educação escolar indígena foi articuladora, para tomar a posição da modalidade de ensino diferenciado, específico, bilíngue e intercultural, onde o diálogo entre as diferentes 45 culturas possam contribuir para o desenvolvimento autossustentável das comunidades Tikuna. Entendemos a modalidade diferenciada de ensino como modo de rearticular com o universo cultural e as formas de transmissão dos conhecimentos tradicionais do povo Tikuna, integrando o processo educacional à comunidade. 1.3 Organização do currículo da escola em relação à educação desejada pela secretaria da educação A escola a que os alunos Tikuna se dirigem todos os dias, vista de fora e com casas de moradores à sua volta, aparenta ser uma típica escola municipal. Um prédio de alvenaria, pintado de branco, azul e vermelho, terreno livre, sem muro. Atrás, tem uma quadra esportiva, na frente, tem um pé de jambeiro, e fica bem no centro da aldeia e bem na beira da estrada que liga ao município de Benjamin Constant. Esta escola também se assemelha muito a uma escola não indígena. Ela funciona regularmente de segunda a sexta-feira nos dois turnos. Há certa flexibilidade em relação aos horários conforme o funcionamento da comunidade. Antes mesmo do início da aula, esse espaço escolar começa a ser tomado com a chegada dos alunos. Ela recebe todos os dias em torno de 643 alunos e alunas indígenas e não indígenas da educação maternal ao 9 ano do ensino fundamental. O currículo da escola possui ensino fundamental completo, de educação maternal ao 9º ano, ligado às concepções e práticas que definem o papel sociocultural da comunidade escolar, respeitando o modo de organização dos tempos e espaços e suas atividades pedagógicas em relação social vinculada ao cotidiano escolar. As 12 turmas dos anos iniciais possuem professores Tikuna e Kokama. No caso, os Tikuna são bilíngues, e os Kokama são monolíngues em português. A condição do currículo que se torna especifica na escolarização de uma perspectiva intercultural é construída nos valores e interesses do etnopolítico das comunidades de abrangências, isto é, das comunidades abarcadaspelo ensino oferecido na Escola Ebenezer. Nesse sentido, o currículo tem como sua condição estar relacionado à garantia dos conhecimentos científicos, conhecimentos tradicionais e práticas culturais próprias e, além disso, ao acesso aos códigos da leitura e da escrita, ligados aos conhecimentos da ciência humanas, da natureza, matemática, linguagens, conforme definidos no seu projeto político pedagógico. 46 O componente curricular está estruturado em eixos temáticos, projetos sociais, eixos geradores, em que os conteúdos das diversas disciplinas serão trabalhados nas perspectivas interdisciplinar, sempre ancorados em materiais didáticos específicos, escrita na língua Tikuna, língua portuguesa, com função para bilíngues, conforme mostra o quadro abaixo. Quadro 1. Educação Infantil Componente curricular Área de conhecimento Níveis de ensino/Educação Infantil Eu, o outro e o nós Linguagens e conhecimentos tradicionais Corpo, gestos e movimentos Traços, sons, cores e formas Escuta, fala, pensamento e imaginação Ciências e saberes tradicionais Espaço, tempos, quantidades, relações e transformações Ciências Humanas Matemática e conhecimentos tradicionais Quadro 2. Ensino Fundamental I Componente curricular Área de conhecimento Níveis de ensino/Fundamental Matemática e conhecimentos tradicionais Matemática 1º ao 5º ano, Fundamental I Língua Tikuna Linguagens 6º ao 9º ano, Fundamental I Língua portuguesa e conhecimentos tradicionais Arte, cultura e mitologia. Práticas corporais e esportivas Formas Próprias de Educar 47 História e Historiografia Indígena Humanas 1º ao 5º ano, Fundamental I Geografia e Contextos Locais Ciências e Saberes Indígenas Natureza 1º ao 5º ano, Fundamental I Quadro 3. Ensino fundamental II Componente curricular Área de conhecimento Níveis de ensino/Fundamental Matemática e conhecimentos tradicionais Matemática 6º ao 9º ano, Fundamental II Língua Tikuna Linguagens 6º ao 9º ano, Fundamental II Língua portuguesa e conhecimentos tradicionais Língua estrangeira Arte, cultura e mitologia. Literatura indígena Educação física Praticas corporais e esportivas Formais Própria de Educar Humanas 6º ao 9º ano, Fundamental II História e Historiografia Indígena Geografia e Contexto Locais Ensino religioso Ciências e Saberes Indígenas Natureza 6º ao 9º ano, Fundamental II Além disso, o currículo desta escola possui uma parte diversificada, que pode ser vista abaixo: 48 Projeto escolar Noções básicas de informática Meio ambiente, Ética, Saúde. Pluralidade cultural Sobre esta parte, é importante assinalar que noções básicas de informática, ao lado de Meio ambiente, Ética, Saúde, Pluralidade cultural, estão presentes em todas as séries de ensino. Com relação ao conjunto de alunos matriculados e suas etnias, esse pode ser visualizado no quadro a seguir, que também aponta para as línguas utilizadas e para as possibilidades de domínio linguístico: Quadro 4. Alunos matriculados e etnias 1. Alunos Tikuna bilíngues: pai e mãe falantes fluentes na língua materna; 2. Alunos mestiços: pai e mãe Tikuna/Kokama/não indígena, fala em alternância (fala, escuta ou ouve e não fala); 3. Alunos não indígenas: pai e mãe não indígena (falantes fluentes em português = monolíngue em português). 49 A escola indígena Ebenezer atende, em sua grande maioria, alunos desta mesma comunidade e outra parte de residentes nas comunidades vizinhas (Bom Caminho, Porto Cordeirinho, Bom Jardim I, Santo Antônio - Kokama e não indígena) que vivem a uma distância que se faz a pé em poucos minutos. As ausências em função de atividades relacionadas ao modo de ser Tikuna, em que muitas crianças acompanham os pais, nas atividades agrícolas e outras na venda de produtos na cidade, não são computadas como falta. Assim como há flexibilidade em relação aos horários, há tolerância quanto às faltas justificadas. Estas características da escola estão ligadas à garantia de um calendário específico e diferenciado que se adeque às necessidades da comunidade. Em certos aspectos, como nos acima mencionados, a escola possui um calendário próprio, mas, em geral, ela está pensada conforme padrões da escola não indígena. Professores e funcionários indígenas também compõem o cenário. Dos 36 professores da escola, sete são miscigenados de etnias, caso patrilinear/matrilinear Kokama-Tikuna-Kokama. Quanto aos funcionários, esses são em número de 12, a maioria deles moradores desta mesma comunidade. A maioria dos docentes possui formação em nível superior, com formação específica em cursos para professor indígena; somente quatro professores não têm formação especifica. O restante dos professores é de indígenas, mas pertencente a uma outra etnia (Kokama). Os cargos de gestão da escola são todos exercidos pelos próprios indígenas: direção, coordenação pedagógica, apoio pedagógico, supervisão pedagógica e secretaria. Conforme a resolução nº 4, de 13 de julho de 2010 (MEC/CNE 2010), destacam-se alguns princípios: Art. 11 . A escola de educação básica é o espaço em que se ressignifica e se recria a cultura herdada, reconstruindo-se as identidades culturais, em que se aprende a valorizar as raízes próprias das diferentes regiões do país. Art.13 e no § 1º o currículo deve difundir os valores fundamentais do interesse social, dos direitos e deveres dos cidadãos. Do respeito ao bem comum e à ordem democrática, considerando as condições de escolaridade dos estudantes em cada estabelecimento, a orientação para o trabalho, a promoção de práticas educativas formais e não formais. 50 Art. 37. A educação escolar indígena ocorre em unidades educacionais inscritas em suas terras e culturas, as quais têm uma realidade singular, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada povo ou comunidade e formação especifica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a educação básica brasileira. Todas as disciplinas são ministradas por professores indígenas. Nesta pesquisa, proponho uma reflexão acerca do estudo da modalidade diferenciada de ensino desta escola indígena Ebenezer, principalmente a partir de suas respectivas disciplinas, com o objetivo de pensar sua contribuição para que a escola se efetive enquanto específica e diferenciada. Os componentes curriculares serão desenvolvidos dentro do conceito de interdisciplinaridade, e o professor irá buscar metodologias que possam guiar o processo de ensino-aprendizagem contextualizado na gestão democrática para a prática da cidadania. 51 CAPITULO II RELAÇÕES FAMILIARES E FRONTEIRAS LINGUÍSTICAS Com respeito à educação formal e informal, apresento abordagem na ótica do povo Tikuna. Desde o nascimento de uma criança no grupo, a “educação familiar” desempenha um papel importante na formação do indivíduo. Mas não em um espaço para aprendizagem de conteúdos didáticos sistêmicos, e sim um espaço em que desenvolvem a aprendizagem das práticas de etnociência aprendidas na vida cotidiana, associada à interação diretamente com o meio que os cerca e seus fenômenos naturais. Esse saber possui um significado epistemológico, sendo todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados e suscetíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Além disso, a construção do saber também não procede apenas da escola, onde é denominada de educação formal. Desenho 4 – Conhecimento sobre o período em preservação (peixes,caça, reprodução, animais, plantas, etc (autoria: Mila Mikaele dos Santos Beneditos, Puremüna ‘ Aquela que tem peito branco’ – clã de mutum, 10 anos, 4º ano ). A educação informal, que, ao longo do percurso de vivência, vem adequada às peculiaridades culturais do grupo, está relacionada a conhecimentos como o período de realização da festa ritual, o plantio, o período em que os peixes desovam, as frutas amadurecem, o período das chuvas - 52 conhecimentos cujos valores são incomensuráveis. Os mesmos se transmitem de geração a geração e, assim, as crianças adquirem e acumulam estas experiências, dependendo da socialização com o meio. Para Aparecida de Lara Lopes Dias (DIAS, 2015), os saberes tradicionais são construídos na convivência e vivência em comunidade. Assim, o saber tradicional é aquele que se constrói naturalmente, contextualizado, dando-se, principalmente, através da oralidade. É acumulativo, mas nem por isso é apenas reproduzido. Assim como a cultura, o saber é dinâmico, tendo relação direta com o tempo e o espaço. Para Cunha (2009, p. 303), “opera com as chamadas qualidades segundas, coisas como cheiro, cores, sabores – portanto, a ciência tradicional usa percepções”. Nessa compreensão, a educação indígena desenvolve-se através dos saberes tradicionais. Nesse aspecto, cada sociedade indígena utiliza-se de sua forma de educação para que cada membro, do seu modo próprio e particular, busque garantir a sobrevivência e a reprodução. O aprendizado, nesse entendimento, acontece com a interação do outro envolvendo valores e formas de relacionamento social. A convivência em comunidade traz reflexos do que é ensinado, seja nos trabalhos coletivos, em festas, etc. Cada forma de produzir, armazenar, proteger, expressar e transmitir é uma construção que parte do coletivo para o individual. Esse processo possibilita que se defina o tipo de homem e de mulher, assim como os valores e comportamentos desejados para cada sociedade. Essa educação, por ser ágrafa, se dá, necessariamente, pela oralidade e pela imitação, resultando nos valores, concepções, práticas e conhecimentos científicos e filosóficos próprios e únicos. É uma educação em que as aprendizagens acontecem em espaços não formais, definindo-se, assim, como específica (CAVALCANTI; MAHER, 2005). Várias são as definições para educação indígena. Dentre estas, optou-se pela de Baniwa (2006), por este ser índio e ter estudos relacionados a essa temática. Para esse autor, a educação indígena envolve processos próprios de transmissão e produção dos conhecimentos. É uma educação livre, ensina-se por exemplos e pelo prazer de repetir aquilo que os antepassados valorizaram. (DIAS, 2015, p.19 e 20) 53 Já a “escola” é entendida como um espaço formal para os processos ensino-aprendizagem complementares ou inserção de componentes curriculares, aí se desenvolvendo os conteúdos sistemáticos que influenciam a pluralidade cultural de forma significativa na formação do sujeito. Daí começou o ponto de partida do ensino dualista que envolve as fronteiras linguísticas entre saberes aprendidos dentro da família (tanatü arü cua’gü) e o ensino aprendido na escola (nguepata#wa na’ca’ i ngu’#). Por outro lado, as fronteiras linguísticas relativizam o espaço geográfico, por exemplo o uso da língua materna utilizada nas atividades de pesca artesanal é muito diferente das falas usadas no ajuri (trabalho realizado de forma coletiva); e a mesma coisa se dá com as conversas feitas em diferentes espaços, como nas festas rituais, na casa de pajelança. Qualquer ser humano ou sociedade cria um código de comunicação dentro de espaços de uso de sua língua. Desenho 5 - Casa da farinha (go’epata#) – uso de linguagem no local de trabalho Nü’# nago’ogü i ui – (mexer a farinha), nada*tae – (peneirar a massa); Nang*ta ya üü – (colocar mais lenha no fogo), nama*gümütae (espremer a massa no tipiti) 54 Tchamu’weta (fazer paneiro de farinha), pa mi’ ca’ nuã nange cue’tchinü (filha, por favor, traz a peneira). Desenho 6. Usos linguísticos (em Tikuna) na pescaria. Tchiãtchonie’ 7– vou pescar. Tchangee* 8- peguei nada. Tchiamaraderatae – vou pescar peixe com malhadeira; tchiapowae – eu pesco peixe com caniço. (autoria dos desenhos 5 e 6: Elcicleide Fernandes Irineu, Dere’ena ‘Aquela que tem cacho amarelado’ – clã de avaí, 19 anos, ensino médio completo). Em relação de família em que se tem Tikuna casado(a) com pessoa não indígena, nas conversas diárias sempre há duas línguas em funções de alternância. A mulher Tikuna usa a língua Tikuna com os filhos, e existe compreensão coerente na interação entre filhos e mãe, enquanto o marido passa por uma dificuldade no entendimento da língua materna da mulher, forma de barreira encontrada entre casais na oralidade. 7 O til colocado sobre a letra <a> nessa forma complexa (constituída de formas menores, os morfemas) reflete, na escrita, variação linguística existente na realização de forma menor, em que a vogal correspondente pode ser pronunciada ou não com nasalidade. 8 A escrita em Ticuna também vem acolhendo a representação da variação linguística em relação à realização da última vogal dessa forma complexa. Assim, ora se escreve Tchangee* , ora Tchangee# . 55 Fronteira linguística na relação de família. Tikuna – (homem/mulher) casado com não indígena = filhos bilíngues, no caso de a família aceitar o domínio de duas línguas – Português e Tikuna Tikuna – (mulher/homem) casada/o com próprio Tikuna9 = filhos tornam-se monolíngues/bilíngues Tikuna – (homem/mulher/) casado/a com membro de outra etnia = filhos bilíngues (no caso de família que aceita de ter domínio de duas línguas - Tikuna /Português/língua materna de outra etnia. Foi observado, nesta comunidade de Filadélfia, que existem famílias Tikuna que, em casa, não falam com seus filhos em língua Tikuna, interagindo somente em Português; com isso, seus filhos se tornam monolíngues em Português. Este é um dado importante, que poderia ser comparado, quanto ao uso do Português dentro da grande área Tikuna, a outras situações verificadas, em momentos mais distantes no tempo, relativamente a determinados aldeamentos/ aglomerados Tikuna (a esse propósito, ver OLIVEIRA, 2015, p. 102-10310). Na escola, as crianças vivem em dois mundos diferentes, ou seja, estabelecem duas formas de conversação entre amigos e professor (a)/ (es) /(as) no espaço de socialização escolar. A vida dos professores lotados nesta escola municipal indígena Ebenezer - Pucürana rü We’%tchi’ina passa por este processo de interação comunicativa bilíngue. Muitas vezes, dentro da escola, os docentes constroem uma família monolíngue em Português, possibilidades de desenvolver atividades pedagógicas, para dar atenção aos alunos não indígenas matriculados nesta escola. Por outro lado, alguns alunos Tikuna, observo, têm dificuldade de acompanhar os/as professores/as monolíngues em português, precisam ver traduzidos, para a língua Tikuna, os conceitos explorados em Língua Portuguesa. Tem outro ponto muito interessante, observado durante esta pesquisa de vivência, na escola Tikuna Ebenezer. Alguns professores de outra etnia, caso da etnia Kokama11, lecionam nesta 9 Para ser considerada propriamente Tikuna, a pessoa deve possuir inserção clânica pela via patrilinear. Para os resultados de pesquisa de campo prolongada, na área de Antropologia, com os Tikuna, ver Oliveira (2015 [1977]) e Oliveira Filho (1988). 10 Esta publicação corresponde à dissertação de mestrado defendida pelo mesmo autor, em 1977, na Universidade de Brasília. 11 “A língua Kokama foi classificada como parte da família Tupi-Guarani, tronco Tupi. É muito semelhante à línguados Omágua (Kambeba). Estudos posteriores indicaram que sua origem estaria ligada às várias migrações de grupos Tupi do Brasil para regiões peruanas em tempos pré-contato. Supõe-se que seja uma língua produto da interação de alguns grupos indígenas na região do alto Marañón, nas proximidades dos rios Huallaga, Napo e Ucayali, sendo que a língua Tupinambá teria sido a principal fonte linguística do idioma Kokama, com aproximadamente 60% do vocabulário. No Peru, cerca de 2,5% de uma população de 19 mil Kokama se expressam na língua nativa [Kokama].” (cf. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kokama). No Brasil, os Kokama são falantes nativos de português (sua L1 – primeira língua) e encontram-se em processo de retomada de sua língua originária como segunda língua (L2). 56 escola. Há professor(a) que já morou muito tempo nesta comunidade Tikuna, que entende as palavras simples, mas que, na expressão corrente em língua Tikuna, tem passado por desafios. A língua Tikuna também não mantém semelhança, com nenhuma outra língua indígena, talvez, por hipótese, com a língua Yuri, considerada extinta, e apresenta complexidade em sua fonologia e sintaxe. E por seu grande número de falantes e por seu uso intensivo, a língua Tikuna não trilha o perigo de ser ameaçada pela proximidade de cidades ou mesmo pela heterogeneidade no contato de convivência com falantes de outras línguas nas aldeias, ou seja, o uso da Língua Portuguesa e da Língua Espanhola. A língua Tikuna continua com forte influência e mantém-se muito significativa na região do Alto Solimões. No espaço informal, os agentes educadores são os pais, a família em geral, as afinidades, os amigos. Os usos linguísticos em Tikuna ocorrem de forma espontânea no dia a dia, através da conversação e de vivências com interlocutores ocasionais. A situação que acabo de descrever é compatível com o reconhecimento da importância dos estímulos e do desenvolvimento da criança Tikuna no ambiente de casa, escola, igreja e do roçado; e com o foco em manter uma educação diferenciada, específica e bilíngue que atenda às demandas do povo, ou seja, que favoreça a língua materna, os costumes, hábitos e culturas do povo. Sabemos que, aqui no Brasil, existem duas línguas oficiais, reconhecidas em território nacional e usadas atualmente: o Português e a Língua de Sinais. Sabemos também que, no Brasil, existem línguas cooficicializadas em âmbito municipal e estadual. No estado do Amazonas, estão cooficializadas, em âmbito municipal, as línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa, ao lado do português, no Alto Rio Negro, por efeito da Lei n° 145 de 11 de dezembro de 200212. Além dessas duas línguas oficinais e daquelas que foram cooficializadas, existem línguas indígenas espalhadas por todo o território brasileiro e, entre elas, a língua Tikuna, que é geralmente classificada como uma língua isolada e que também faz fronteira com outras duas línguas, a Língua Portuguesa e a Língua Espanhola. 2.1 Relações de interação da família monolíngue em Tikuna Os Tikuna-Magüta são um grupo indígena que mantém sua própria língua e que domina uma área extensa na região do alto Solimões, com mais de 95% de pessoas falantes dessa língua que tem como principal característica o uso de diferentes alturas na voz para distinguir as menores formas linguísticas com significado (morfemas) e também palavras, uma característica que a classifica entre 12 Lei que dispõe sobre a cooficialização das Línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa, à Língua Portuguesa, no município de São Gabriel da Cachoeira/Estado do Amazonas. 57 as línguas tonais. Na família monolíngue em Tikuna, essa língua é usada na comunicação na mesma comunidade de fala (ou comunidade linguística), em que os membros se reconhecem por uma série de comportamentos, práticas, normas que acompanham usos linguísticos, padrões linguísticos compartilhados. Foto 5. As crianças Tikuna aprendem nos diversos espaços em que se socializam com outros Na interação do Tikuna com outro próprio Tikuna, sua comunicação é totalmente monolíngue, usando a língua materna, nos espaços de vivências e na realização de atividades. Na roda de conversa caseira, a família troca suas experiências fluentemente na sua própria língua materna, sem obstáculos de interpretação/ compreensão e sem mudança de código por influência de outra língua. 58 As crianças acompanham o pai e a mãe, participam ativamente das atividades em observância e identificam os nomes dos objetos, alimentos, nomes de pessoas, de animais e de outros. Assim, aprendem e constroem seus espaços de aprendizagem; repetidamente aquilo foi observado e ouvido dialeticamente na sua língua e a criança acumula experiência adquirida. Para traçar essa pesquisa, concordo com a afirmação de Scharfstein (2006), do respeito à transmissão de saberes e das experiências para novas gerações, de que os idosos são uma referência nesse processo de ensino, tanto dos saberes culturais quanto da língua. Nas sociedades tradicionais, a figura do idoso é marcada por uma aura simbólica, tornando-o representante da sabedoria e da experiência vivida que se constituem em valores preciosos a serem transmitidos para as novas gerações. Este é o caso dos xamãs e dos pagés [sic] nas sociedades indígenas. Também na Grécia antiga, o chefe da polis era assistido por um conselho de anciãos. Tanto que, do ponto de vista semântico, as palavras gregas - gera e géron, designam não só a idade avançada, mas também o privilégio da idade, o direito de ancianidade. (SCHARFSTEIN, 2006, p. 45) Porém, essa etnociência aprendida foi ensinada na forma oral pelos mais velhos do grupo na sociedade a que se pertence. A interação da família também é dividida por gênero ou por idade, em momentos de atividades especificas ou, em especial, em relação à troca de comunicação. Em casa, a mãe, que é mais articulada à conversa com seu (sua) filho (a), retribui as atividades domésticas, como a limpeza e a organização de espaço da casa; os filhos homens, encarregados de atividades destinadas aos homens, são acompanhados pelo pai no trabalho e na conversa. Na introdução que escreveu à obra sobre interação e discurso numa perspectiva interacional, Pereira (2002) concebe a língua enquanto fenômeno social, considerando diferentes usos da fala no grupo social. Na sociolinguística interacional, são focalizadas interações situadas no relacionamento entre participantes de pequenos grupos de comunidades específicas ou no cruzamento cultural. O estudo da relação entre língua e sociedade passa a ser visto a partir do uso da fala em contextos sociais específicos. Podem ser considerados, para estudo, tanto gêneros espontâneos, como a conversa entre amigos, gêneros produzidos em contextos institucionais, 59 como uma consulta médica, uma entrevista, um debate acadêmico, uma aula, um sermão religioso, uma negociação empresarial, dentre outros (PEREIRA, 2002, p. 08) Os Tikuna se reúnem, ficam juntos, quando é realizada uma festa ritual da moça nova e também nos dias em que os trabalhos agrícolas são realizados em mutirão, o que na língua se denomina waiyuri. Durante esses momentos, nesses ambientes de encontros de parentesco, as pessoas interagem, brincam, contam piada, fatos ocorridos na sua aldeia e da vida real. Ambos, homens e mulheres, participam. E, enquanto as crianças menores com seus coleguinhas brincam e cantam os cânticos, outros imitam sons dos animais em sua própria língua. Os Tikuna desta comunidade Filadélfia, com relação ao uso da língua materna, são sempre muito fortes na oralidade, e a maioria das pessoas tem dificuldade na escrita e na leitura na própria língua materna. Essa mesma dificuldade é encontrada entre os Tikuna que vivemnas outras comunidades fronteiriças com o Peru e a Colômbia. Colocando à parte o problema do uso da modalidade escrita em uma sociedade de oralidade, há também a questão de compreensão da fala, do sotaque, da variação da fala relacionada ao espaço de convivência, da dialética, que são muito diferentes do que vivenciam os Tikuna que moram aqui no Brasil A escola Ebenezer recebe alunos Tikuna, mestiços e não indígenas. Nesse caso, dificilmente o corpo docente Tikuna utiliza a língua Tikuna como monolíngue, dentro da sala de aula com os alunos. Mesmo fora da sala de aula, ou fora do ambiente escolar, as crianças, entre colegas, interagem em Língua Portuguesa – o que indica que a escola se enquadra no contexto bilíngue. Nesse contexto, a Língua Portuguesa acaba se disseminando, como ocorre em outros lugares, inclusive em outros países em que essa língua, oficial, também é a língua do sistema escolar, apesar da existência de várias línguas nativas. É, por exemplo, o caso de Moçambique, abordado por Paulus Gerdes em Queixalós & Renault- Lescure (2000): O Atlas Geográfico divide o pais em 16 unidades linguísticas, nomeadamente Makua, Lomwe, Marende, Mwani, Yao, Makonde, Nyanja, Chuabo, Sena, Nyungwe, Shona, Changana, Tswa, Ronga, Chopee Bitonga... Conforme os dados obtidos pela último recenseamento geral da população moçambicana (1980), 98,8% dos moçambicanos têm uma língua africana como língua materna, e apenas 1,2% têm no Português a sua língua materna. Os mesmos dados mostram também que 75,6% dos moçambicanos fala [sic] 60 exclusivamente uma (ou mais) língua(s) africana(s), enquanto 23,2% usa o Português para além da sua língua materna. O Português é a única língua disseminada por todo país - por isso, não tem nenhuma conotação regional ou 'tribal’ – ‘étnica' -, continua a ser a língua de prestigio, do Estado, do parlamento e do sistema escolar. Há emissões provinciais da Rádio Moçambique em várias línguas africanas, sendo os programas nacionais em português. A estação de televisão privada RTK (Maputo) produz um noticiário em língua Tsonga. As populações do norte do pais estão mais organizadas em sociedades matrilineares, enquanto as do sul mais em patrilineares. Embora não haja dados oficiais - o Estado é laico conforme a Constituição -, estima-se que por volta de um terço da população moçambicana é islâmica- em particular populações nas zonas costeiras nortenhas -, um terço professa religiões cristãs, e a maioria da população é exclusivamente ou igualmente 'animista'. (GERDES, 2000, p. 89). De outra parte, a escola leva ao suicídio da língua materna Tikuna, pela atitude dos/das professores/as que não falam em Tikuna, sua própria língua, na sala de aula com as crianças iniciantes na vida escolar. Essa atitude envolve relações que alcançam a escola e sobre as quais geralmente não se fala, possivelmente pelas fragilidades e conflitos que seriam expostos e que convém esquecer. Nesse sentido, o “esquecimento de si” , aplicável ao suicídio entre os Tikuna, também se aplicaria à língua, o que nos permite falar em suicídio da língua Tikuna, e não simplesmente em “apagamento” dessa língua por seus próprios falantes. Aline Moreira Magalhães também escreve sobre o suicídio entre os Tikuna: “...ouvi... um homem associar as tentativas de suicídio a brigas: “Às vezes é a família que maltrata, bate, quando as mães não recebem direito os filhos, o filho começa a bater nos pais, nos irmãos, quando casa novo, a esposa não trata bem.” (MAGALHÂES, 2014, p. 89)”. Brigas públicas, assim como doenças, geram julgamentos, expõem fragilidades resultantes de relações conflituosas que devem ser esquecidas. O suicídio é, assim, uma forma de esquecer pessoas e relações, assim como ser esquecido. Nas palavras da mesma autora: Quem debilitava corpos humanos eram principalmente outros corpos humanos. Coisas e acasos tão somente mediavam um e outro. A doença era percebida, neste sentido, como um sinal das relações que as pessoas tecem entre si, do teor de seus encontros cotidianos, marcados também por, além de apegos, divergências, invejas, disparidades e “palavras ruins” ditas uns aos outros sobre 61 outros. Por este motivo doenças e fragilidades possuem algum ou alguns autores, no sentido que são também ações de pessoas das quais se ouviu e viu palavras e atos ofensivos, contendo em si mesmos a potencialidade dos feitiços. Porque ofensas significavam o desgosto de alguém por outrem, sugerindo o risco de desejar/fazer o mal. (Idem, p. 171-172) Pedir explicações sobre as doenças implicava, desse modo, evocar as relações que as criaram, a sequência de eventos conflituosos que culminou no desenvolvimento de uma enfermidade. Segundo sua explicação, mencionar o fato de alguém estar doente despertava simultaneamente o interesse nas relações conflituosas que constituem a doença, por conseguinte, atualizando- as. (Idem, p. 173) ...quaisquer tipos de brigas ocorridas nas casas, como as tensões entre adultos e crianças, ou de pessoas investida de mais autoridade com outras investidas de menos autoridade. As brigas públicas de pais para seus filhos, ou de outros com autoridade semelhante, como irmãs e irmãos mais velhos, tornavam-se ofensas graves em virtude do mesmo conjunto de importâncias... Quando um pai e uma mãe lembravam a um filho(a) que ele estava fazendo tudo errado, ou quando homens demonstravam a mulheres, e mulheres demonstravam a homens que desejavam vê-los longe... estas situações mostravam eloquentemente aos olhos dos outros, que a parte preterida perdia pessoas, era rechaçada, e sua presença não era mais desejada. (Idem, p. 176) Testemunhar a perda de pessoas e o conhecimento sobre as próprias perdas exacerbava o “peso da vergonha”,.. Provocar a própria morte é um ato de esquecimento, uma forma de esquecer pessoas e relações, assim como ser esquecido. Esquecer é o ato de sumir de um lugar, desaparecer, apagar seu corpo e a memória acumulada sobre os atos desse corpo de um determinado lugar, não ser mais visto por pessoas que demonstram desinteresse, desprezo ou aversão à sua presença. Esquecer de si, além de ser esquecido, significa igualmente a ação de esquecer, “esquecer os momentos ruins”, ao se perceber imerso em uma “vida mentirosa”, vivendo “enganado(a)” por laços mais vazios de cumplicidade do que se esperava ou se acreditava. As “palavras ruins” espalhadas pelas ruas e casas forjam a dimensão fantasmagórica da vergonha (como “conhecimento envenenado”) impregnando os sentidos (saber, ver e ouvir) sobre fatos que fragilizavam reputações e rompiam formas de estar-com 62 outros (p. 176-177). Retomando aqui a minha afirmação de que a escola leva ao suicídio da língua materna Tikuna, o que vejo no ensino da escola Ebenezer é que muitos alunos que estudam nesta escola, dentro de sua família, diariamente, se comportam como falantes bilíngues. Isso é um foco que envolve a escola e precisa ser analisado. n Foto 6. Fora da sala de aula – práticas corporais e espaço de interação para as crianças no ambiente escolar 63 Aqui, na foto 6, estão os alunos da turma Infantil, de 4 a 6 anos de idade, no horário de intervalo. Eles aproveitam para se entrosar com as colegas da outra turma, ocupam seu espaço de interação, trocam suas conversas em língua Tikuna, e cantam música na Língua Portuguesa, com alternâncias. A comunidade escolar precisa atender às necessidades educativas das crianças indígenas com as quais se vincula, pois o conhecimento não é uma entidade isolada e estática, mas está permanentemente em relação com a própria realidade social e física que o engendra. Significa que os professores precisam contextualizar os conteúdos trabalhados nas vivências dessas crianças, buscando novo procedimento de ensino, como equilíbrio no uso da própria língua materna. Quanto à língua portuguesa,essa segue como segunda língua de comunicação com a sociedade mais extensa. 2.2 Relações de interação da família monolíngue em Português Existem pessoas que falam em uma única língua de origem. Mas existem pessoas que dominam mais de uma língua dentro de uma comunidade de fala. Para descrever uma situação, preciso conectar o estudo desta pesquisa com uma observação perdida, feita com a familiaridade de falante em Português. A fala utilizada da família monolíngue em Português que observei sempre será em Língua Portuguesa. As crianças nascem de uma família falante de Língua Portuguesa e em uma comunidade de fala de cultura heterogênea. É difícil não notar a família da professora Maria Neide Pinto, constituída de descendente mestiça de Tikuna e Kokama, casada com um não indígena descendente de peruanos. Os filhos (as), sem nenhuma dúvida, dessa família serão considerados monolíngues em português. Durante visita participativa ou de conversa pertinente com familiares, destaco que suas interações com as pessoas estão sempre enraizadas na Língua Portuguesa. E nos trabalhos escolares, dela, principalmente na sala de aula, na oportunidade observados, a dialética, as canções cantadas pela professora com sua turma da educação maternal, que considero iniciante da vida escolar, foram todas de interação monolíngue em Português. 64 Em um dos diálogos mantidos com a professora, na escola em que ela trabalha, a respeito do porquê ter dificuldade de aprender a falar na língua materna Tikuna, constatamos que é filha de mãe biológica Tikuna mestiça e de pai descendente de Kokama mestiço. O não domínio de língua Tikuna, na sua infância, está no fato de que a sua própria mãe insistiu em uma proibição dura na família, fazendo com que seus filhos falassem na língua do pai, que é a língua portuguesa. Como a mãe dela, apesar de ser falante fluente da língua Tikuna, nunca tinha deixado seus filhos falar na língua Tikuna dentro de casa , isso tornou a professora monolíngue em português. Um ponto muito delicado, na visão antropológica, é a relação social das crianças Tikuna, que são retiradas dos laços da família bem cedo e são encaminhadas para a escola e acolhidas nas mãos dos professores (as), para serem disciplinadas e ensinadas e, assim, no espaço escolar irão aprender novos costumes, hábitos de escrita, de leitura; línguas, linguagens e culturas que são diferentes daqueles da família. No espaço escolar, estas crianças que saem muito cedo da base da família, onde nasceram, vêm se adaptando a novo espaço de socialização que pode desenvolver novas realidades de família. A Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, nas suas atribuições legais, com fundamento no art. 9º, 1º, alínea “c” da lei nº 4.024 de 20 de dezembro de 1961, com a redação dada pela lei nº 9.131 de 25 de novembro de 1995, CNE/CEB nº 20/2009, trata de pontos importantes para a Educação Infantil: Art. 8º - inciso 2º - Garantida a autonomia dos povos indígenas na escolha dos modos de educação de suas crianças de 0 a 5 anos de idade, as propostas pedagógicas para os povos que optarem pela educação infantil devem; I – proporcionar uma relação viva com os conhecimentos, crenças, valores, concepções de mundo e as memórias de seu povo; II – reafirmar a identidade étnica e a língua materna como elementos de constituição das crianças; III – dar continuidade à educação tradicional oferecida na família e articular-se às práticas socioculturais de educação e cuidados coletivos da comunidade. 65 Foto 7. Turma da educação maternal – professora monolíngue em Português As crianças aprendem a falar em língua portuguesa, 20% por dia, mergulhando no mundo da sociedade envolvente. Com isso, é possível ver que estas crianças Tikuna constroem seus valores, crenças, memórias e conhecimentos da família, de acordo com o tempo e os espaços em que elas vivem. Para isso, os professores que atuam nessa turma têm que ser pessoas com domínio bilíngue na oralidade, ou seja, na mediação da turma, e que de fato visem ao fortalecimento dos saberes tradicionais na escola; assim, esses saberes e o desenvolvimento da aprendizagem desses alunos Tikuna caminham juntos. 66 2.3 Relações de interação da família bilíngue em Tikuna e em Português Fotos 8 e 9. Atividades extraclasse e interação entre alunos indígenas e não indígenas Falando do Brasil, a Língua Portuguesa não é uma língua originária do território que veio a ser brasileiro, mas sim uma língua trazida do continente europeu, pelo exploradores portugueses a este território a partir do século XVI, ou seja, no período colonial. Do ponto de 67 vista indígena, não seria uma língua legítima deste território. E, ao ser nele introduzida, não se expandiu de imediato, devido ao enfrentamento de grandes dificuldades comunicativas com os diversos povos indígenas que aqui foram encontrados naquele período. A essa aglomeração de povos ou grupos sociais com línguas diferentes umas das outras, se junta uma língua membro da família linguística Tupi-Guarani, tomada como língua geral (língua franca), para se ter melhor interação, na oralidade, com povos indígenas. No momento da chegada dos exploradores portugueses, o Tupinambá era a língua mais falada na costa do Brasil, no século XVI13. Os colonizadores utilizaram os Tupinambá14 e sua língua como parte da sua política colonial, dessa língua se originando a língua geral que chegou ao espaço amazônico: o Nheengatu15, que deixou suas marcas em línguas que não são Tupi e que foi, em certos casos, adotado como língua materna por determinados grupos indígenas que perderam sua própria língua16. Mesmo sem falar da presença do Nheengatú no espaço da Amazônia brasileira, é grande a presença de línguas Tupi nesse espaço, com predominância da família linguística Tupi-Guarani sobre as outras famílias do mesmo tronco Tupi. Segundo Aryon Rodrigues, no artigo “Panorama das línguas indígenas da Amazônia” (RODRIGUES, 2000), 13 As principais fontes sobre o Tupinambá são as gramáticas de Anchieta (1990 [1595]) e Figueira (1880 [1621] (ANCHIETA, José de (1990 [1595]). Artes de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil. São Paulo: Loyolla, 1990[1595] ; FIGUEIRA, Luís. Arte de gramatica da lingua brasilica. Rio de Janeiro: Lombaerts e C., 1880 [1621]; apud CRUZ (2011, p.3). 14 Todos os povos Tupi, aí incluídos aqueles que falam línguas da Família Tupi-Guarani, têm, por hipótese, origem amazônica, sendo o seu possível lugar de origem um lugar no estado que hoje é Rondônia. Houve povos Tupi que iniciaram migrações em período anterior à chegada dos colonizadores portugueses. Entre esses estão os Tupinambá, que os portugueses encontraram na costa do Brasil, ao chegarem. 15 No intervalo decorrido entre o tempo em que o Tupinambá era a língua utilizada, na costa do Brasil, pelo povo indígena de mesmo nome e o aparecimento do Nheengatú, a suposição é a de que teria havido uma situação linguística intermediária, nomeada língua geral brasílica, falada na província de Maranhão e Grão-Pará, de 1616 até o final do século XVIII. Quanto ao Nheengatú [‘Língua Boa’], esse passa a denominar o conjunto de variedades de línguas gerais faladas na região amazônica no século XIX até o momento atual. Com relação ao contexto histórico de formação do Nheengatú, sabe-se que, diante da diversidade linguística encontrada, a administração das colônias da América Espanhola e da América Portuguesa escolheu algumas das línguas autóctones “como veículo suprarregional de contato entre as diversas populações coloniais”, para fins comunicativos (ALTMAN, 2003, 58; CRUZ, 2011, p. 3-4). Com a fundação da cidade de Belém, no que é hoje o estado do Pará, os portugueses levaram com eles indígenas falantes do Tupinambá da costa.O Tupinambá, já referido, então, como “língua geral brasílica” passou a exercer, em razão da política colonial portuguesa, a função de língua de comunicação. Expandiu-se por núcleos populacionais amazônicos (primeiro de forma assistemática, depois de modo mais regular, por meio das “aldeias de descimento”, quando expedições eram organizadas para que indígenas de diferentes etnias fossem capturados e levados para aldeamentos organizado por missionários, onde esses indígenas serviriam como reserva de mão de obra utilizável não só pelas missões, mas também por colonos (cf. BESSA- FREIRE, 2004, p. 57, 114)). Para outros detalhes da formação do Nheengatu, ver também a tese de doutorado de Aline da Cruz (CRUZ, 2011, p.4-13). Vale ressaltar que o Nheengatu saiu da condição de ‘língua geral’ (língua franca), passando a representar atualmente uma identidade cultural indígena, ao ser adotado por grupos indígenas que perderam sua língua original. 16 Esse foi o caso, por exemplo, dos Baré e Werekena / Warekena. 68 publicado no livro organizado por Francisco Oueixalós e Odile Renault-Lescure sobre as línguas amazônicas hoje (OUEIXALÓS; RENAULT-LESCURE, 2000), O panorama 1ingüístico da Amazônia se caracteriza, hoje, pelo predominio de três famílias lingüísticas amplamente distribuídas no espaço geográfico: a Aruák, a Karíb e a Tupí-Guaraní. (RODRIGUES, 2000, p.17) O único grande complexo genético de famílias linguísticas amazônicas claramente estabelecido é o tronco Tupí (v. Rodrigues 1995), que compreende a família Tupí-Guaraní mais nove outras famílias. Em contraste com a amplíssima distribuição da família Tupi-guarani, as outras nove ocupam áreas bastante limitadas. (Idem, 2000, p.19) De um lado, deram certo, para os europeus e seus descendentes, as estratégias de comunicação, dominação e opressão linguística empregadas por eles na sua “conversação” com os povos indígenas, tendo aí as línguas gerais exercido o seu papel. De outro lado, o fato de os colonizadores portugueses terem trazido, à força, para fins de escravização, nativos do continente africano também colocou, entre outras coisas, dificuldades de interação por uso desses últimos de sua própria língua nativa, especifica de cada grupo – o que estaria ligado às indicações de existência de língua geral africana por um certo período de tempo 17. No século XVIII, a partir da disputa do território amazônico entre espanhóis e portugueses, o governo português instituiu oficialmente uma política linguística no Brasil (Carta Régia de 1727) seguida, três décadas depois, pelo Diretório dos Índios (1757), um conjunto de medidas normativas que, entre outras coisas, tornou obrigatório o ensino da língua portuguesa aos índios. Assim, considerando a língua geral uma invenção verídica, proibiu às 17 SOARES (2011, p. 176, nota 4) chama a atenção para indícios da existência de pelo menos uma língua franca africana no Brasil: “Outro autor, José Honório Rodrigues afirma, em trabalho de 1983, ter havido pelo menos duas línguas gerais africanas no Brasil: o nagô ou iorubá na Bahia (de base sudanesa); e o quimbundo ou língua congoesa no norte e no sul (de base bantu)...” [RODRIGUES, José Honório (1983): “A vitória da língua portuguesa no Brasil”. Humanidades, v.1, n.4, 22-41.] 69 crianças, mesmo os filhos de portugueses, e principalmente aos indígenas, que aprendessem outro idioma que não o português. Sabedor desse conjunto de condições, circunstâncias históricas, abordo aqui um conjunto de interações linguísticas, dentro da comunidade de Filadélfia, de modo situado e atento a pontos referenciais na antropologia linguística. Susan Gal (GAL, 2006), com respeito à importância da antropologia linguística, examina o papel da interação social de uma comunidade de fala. Linguistic anthropology is the study of language in culture and society. The field analyzes linguistic practices as culturally significant actions that constitute social life. The situated use of language is exemplary of the meaning-making process that shapes a social worlds saturated with contrasting values and contested interests, with opposed political positions and identities, with variable access to institutions, resources and power. Linguistic anthropology examines the role of social interaction – and the semiotic processes onwhich it relies – in making, mediating and authorizing those contrasts and differences (GAL, Susan, 2006, p.171). [Antropologia lingüística é o estudo da linguagem na cultura e na sociedade. O campo analisa práticas linguísticas como ações culturalmente significativas que constituem a vida social. O uso situado da linguagem é exemplar do processo de construção de significado que molda um mundo social saturado de valores contrastantes e interesses contestados, com posições e identidades políticas opostas, com acesso variável a instituições, recursos e poder. A antropologia linguística examina o papel da interação social - e os processos semióticos nos quais ela se baseia - em fazer, mediar e autorizar esses contrastes e diferenças (GAL, Susan, 2006, p.171).] 70 Assim, atento a esses pontos referenciais, trago a interatividade da família bilíngue Tikuna que vive nesta comunidade indígena de Filadélfia, construída com os seguintes tipos de famílias: a) Família constituída entre Tikunas (Tikuna com Tikuna); b) Família constituída de Tikuna com não indígena; c) Família constituída de Tikuna mestiço com não indígena. É importante assinalar que famílias com integrantes de outra etnia (Kokama, Marubo, Mayuruna18) são consideradas mestiças/ com laços mestiços dentro desta aldeia. Assim. Em uma família constituída de Tikuna com outra etnia (um tipo d), d) Família constituída de Tikuna com integrante de outra etnia se o pai, dentro dessa família, for um Tikuna propriamente Tikuna, isto é, com inserção dentro de um clã e, portanto, com a possibilidade de transmissão de clã aos seus filhos, os filhos continuarão a ter o clã patrilinear Tikuna19, mas a família será vista como possuindo laços mestiços, porque a sua constituição se deu com integrante de outra etnia. Quando se trata da interação dessas famílias, também precisamos observar o desenvolvimento cognitivo das crianças destas famílias, a relação dos saberes tradicionais no processo de socialização e no processo de ensino-aprendizagem transmitido pela oralidade, leitura e escrita, na língua que a criança fala, ou seja, na língua de domínio dessa comunidade. De acordo com a pesquisa participativa e as entrevistas feitas por mim, nesta comunidade, com duas famílias bilíngues, encontrei as seguintes situações: Família 1 – Luciana Fernandes (Tikuna), pertence à nação (ou clã) de japó (pássaro) e seu nome em Tikuna é Tu’tchiaüna; é casada com o professor Melquisedeque Cavalcante (Kokama), totalmente monolíngue em português. Luciana é mãe de uma filha de 7 anos de idade. Na conversa com sua família de casal, ela fala em língua portuguesa dentro de casa e, fora, às vezes se expressa na língua materna com a sua filha. Mas, com aqueles com os quais ela tem parentesco e afinidade, ela fala em língua Tikuna; em alguns casos, na fala dela aparece 18 Os Marubo e os Mayoruna (Matsés) são falantes de línguas de mesmo nome e pertencentes à família linguística Pano. 19 Ver nota 5. 71 a língua portuguesa, nos nomes de objetos, continuando pertinente o nome do objeto em português. Exemplo: colher/cuyera – bolsa/bolsa – copo/copo – violão/violão. Para o professor Melquisedeque, às vezes aparece dificuldade no entendimento, em relação a algumas palavras pronunciadas em língua Tikuna, pela esposa e mesmo fora de casa, nas conversas em reuniões, caso as palavras sejam difíceis,enquanto a esposa compreende tudo o que foi falado por ele em português. Família 2– professor Sansão Ricardo Flores e sua esposa dona Elizete Pinto, pertencente ao grupo Tikuna mestiço. Para ele, não existe dificuldade ou barreiras na oralidade, quer na língua materna Tikuna, quer em português. Mas, na interação diária, ele fala em português, tanto em casa, quanto na escola, na roça, no grupo de amigos; e nas reuniões às vezes se expressa em língua Tikuna. E todos os filhos também falam fluentemente na língua portuguesa, e entendem a língua Tikuna, e na expressão têm pouca dificuldade em língua materna. O ensino da criança Tikuna, ao ser na própria língua materna (tae-mãe), é como uma forma de conversação de língua e identidade; e o português como segunda língua (norü tare e naga i nawa i deacü20) leva a uma unidade de domínio. Essa unidade de domínio de duas línguas é que torna uma comunidade de fala bilíngue, valorizando a língua de origem (materna) e a outra língua, não sendo deixado o uso cotidiano, um meio que facilita a comunicação dentro do próprio grupo e, ao mesmo tempo, com a sociedade envolvente. As línguas indígenas eram vistas como o grande obstáculo para que isso pudesse acontecer. Daí que a função da escola era ensinar os alunos indígenas a falar e a ler e escrever em português. Somente há pouco tempo começou-se, em algumas escolas, a utilizar as línguas indígenas na alfabetização, ao se perceber as dificuldades de alfabetizar alunos em uma língua que eles não dominavam, o português. Mesmo nesses casos, no entanto, assim que os alunos aprendiam a ler e a escrever, a língua indígena era retirada da sala de aula, já que a aquisição da língua portuguesa continuava a ser grande meta. É claro, tendo sido essa situação, a escola contribuiu muito para o enfraquecimento, para o desprestígio e, consequentemente, para o desaparecimento de línguas indígenas. (RCNEI, 2002, p.119) 20 Traduções tentativas, sujeitas à revisão, das expressões em Português ‘língua materna’ e ‘segunda língua’ para a língua Tikuna. 72 Na conversação entre os Tikuna de Filadélfia, sempre houve uma alternância comunicativa, em língua materna e português. Enquanto um não indígena está presente no grupo de conversa, a interação dos Tikuna fica dominada, ou seja, ocorrem as alternâncias de código para a língua portuguesa. Isso também pode ser percebido nas conversas interacionais das crianças, adolescentes, jovens e adultos, na aldeia de Filadélfia. De acordo com Duranti (1997), This system allows for a fluidity of code shifting and adaptation to variation that is puzzling to anyone brought up in a monolingual community, but has a ring of familiarity to most multilingual speakers. Linguistic variation is in fact not as rare as monolingual speakers or some theorists would like to believe. Even within monolingual communities – as demonstrated by several decades of sociolinguistic empirical research – differentiation and shifting of codes may be more pervasive than usually believed. What in some communities might result in a shift from one language to another (e.g. from English to Spanish, from a local vernacular to a pidgin), in some other communities might result in a shift from one style or register to another (e.g. from authoritarian to egalitarian, from distant to familiar, from ritual to casual). (DURANTI, 1997, p.82) Esse sistema permite uma fluidez de mudança de código e adaptação à variação que é intrigante para qualquer pessoa criada em uma comunidade monolíngue, mas tem um toque de familiaridade com a maioria dos falantes multilíngues. De fato, a variação linguística não é tão rara quanto os falantes monolíngues ou alguns teóricos gostariam de acreditar. Mesmo dentro de comunidades monolíngues - como demonstrado por várias décadas de pesquisa empírica sociolinguística - a diferenciação e a mudança de códigos podem ser mais difundidas do que se costuma pensar. O que em algumas comunidades pode resultar na mudança de um idioma para outro (por exemplo, do inglês para o espanhol, de um vernáculo local para um pidgin), em algumas outras comunidades pode resultar na mudança de um estilo ou de registro para 73 outro (por exemplo, de autoritário ao igualitário, do distante ao familiar, do ritual ao casual).] (DURANTI, 1997, p.82) De uma parte, consideremos aquelas famílias Tikuna construídas com o não indígena (relação de casamento dos Tikuna com a pessoa não indígena), nas aldeias. Quando mulheres Tikuna se casam com um não indígena, falam mais em português em casa, comunicando-se com os parentes em duas línguas (situação de bilinguismo). É o inverso quando o homem Tikuna se casa com uma mulher não indígena: seus filhos dominam mais o português; às vezes, há comunicação na língua nativa, no momento em que familiares do homem, falante de Tikuna, sua língua materna, interagem com essa família. De outra parte, vale ressaltar que a língua é um direito, produz poder dentro de uma comunidade de fala / entre comunidades de fala. Compreendemos que hoje o mundo em que vivemos está incorporado de culturas complexas. Fica colorido de línguas e de culturas, e com esse processo dinâmico, os Tikuna precisam ter essa conexão de trocas linguísticas na comunicação. Porém, o papel da escola indígena nas comunidades Tikuna é o de tornar-se um espaço referencial na difusão de ensino, o ensino da língua indígena materna, através da leitura, da oralidade, da escrita, da contação de história, dos cânticos ancestrais, das literaturas enraizadas no contexto do povo. 74 CAPITULO III - A DIFERENCIAÇÃO ENTRE A EDUCAÇÃO NA CASA E A EDUCAÇÃO EM ESPAÇO ESCOLAR FORMAL. Em torno das comunidades existentes, historicamente, bastante variados, cristalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida - de paz, inocência, e virtudes simples. A cidade associou-se à ideia de centro de realizações – de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. O contraste entre campo e cidade, enquanto formas de vida fundamentais, remonta à antiguidade clássica. (WILLIAMS,1973, p. 11). Quando Williams, no trecho citado acima, diz “o campo passou a ser associado a uma forma natural de vida”, o meu entendimento é o de que, nas comunidades, as experiências são mais socializadas com as diversidades de ecossistemas, estando seus membros sempre atentos aos desenvolvimentos de suas atividades diárias com sua família, e aos aprendizados dos saberes milenares do grupo. E esses conhecimentos, para as crianças Tikuna, estão vinculados às experiências construídas no círculo da família na aldeia. O mundo real das crianças é interpretado a partir das mensagens recebidas em torno do espaço de convívio e da socialização. Na casa, os pais repassam orientações para seus filhos maiores de como fazem o trabalho na roça, na pesca, na caça e nos outros espaços. Além disso, os pais e as mães também falam para os filhos sobre o conhecimento do cuidado com a higiene - pessoal, dos alimentos consumidos; o conhecimento do espaço ocupado por eles; das plantas medicinais; da parte dos animais que servem de remédio; do tratamento pessoal e da regra social do grupo. Na educação de casa, não se preocupam com a divisão de conteúdo por disciplinas, nem com sua estruturação por categoria ou de classe. Ali, a educação também não é burocratizada e nem se organiza hierarquicamente. A preocupação dos pais se destaca mais com a vida das crianças, com sua preparação para ser bom guerreiro, pescador, construtor, caçador, trabalhador, artesãos, pajelança, ter conhecimento das medicinas naturais, ter a mente carregadadesses conhecimentos e saberes, que designo de “educação circular” (tawatama ne’ ># i cua’gü), 75 aquilo que é aprendido no meio de convivência, vivência socializada com a família e grupo de uma forma círcular. O ensino da educação circular é desenvolvido pelo movimento contínuo de habilidades, com integração; e constitui-se o indivíduo mesmo no coletivo, com base no processo de observar, imitar, ouvir e agir, durante as atividades do dia a dia ou momentos especiais (ritual, festa, tempo e outros). Nesse processo de ensino, não existem séries, método sistemático fechado, leis fixas que determinam para os indivíduos o apreenderem certas atividades. Tudo isso é percebido no acompanhamento da família e habilidades das pessoas, desde o nascimento dos indivíduos no grupo e durante a toda a sua vida, construindo essa socialização, pela conversação, ouvindo e praticando atividades, como as produtivas e participativas na sociedade. Já na educação em espaço formal, essa foi entendida como uma instituição social engajada no ensino sistemático tradicional; produz espaço que gere a educação escolarizada ou cursos com níveis, graus, programas, currículos e séries, ou aquela perspectiva educacional cuja atenção é horizontalmente dirigida ao século atual. Sem dúvida, está superada a ideia de que a educação escolar seja um processo que ocorre somente ao redor da escola, voltada mais para letramento, escrita e preparando, de um lado, as crianças para a integração na sociedade mais complexa e por outro, para o mercado de trabalho e para como viver num mundo universalista. Portanto, entendemos que o indígena Tikuna tem sua educação na família ou no grupo; funcionando como escola, mas sem formar com os níveis e graus de escolarização, a família tem papel como instituição social não formal. A vivência no cotidiano escolar significa uma experiência de vida, localizada em um espaço, cuja materialização é muito objetiva. O conteúdo da experiência escolar varia de sociedade, de cultura, de escola, de sujeitos e, reordenados os espaços, varia em função dos tempos e do trabalho dos profissionais, permitindo que diferentes práticas pedagógicas se tornem realidade, acontecendo um processo real, e fazendo com que essa experiência possa ser definida também como uma atividade sistemática de interação entre seres sociais, tanto no nível intrapessoal como no nível da influência do meio. Todo esse processo de ensino e de aprendizagem é apreendido no espaço de escolarização, ou seja, ensinado na escola pelos professores através de um procedimento metodológico sistemático, interligado no ato pedagógico de três componentes abrangentes: um agente (grupo social), uma mensagem transmitida (conteúdos, métodos, habilidades) e um 76 educando (um aluno), que por vez denomino de “educação secular” (tomagü arü cua’gü), o ensino em que as crianças aprendem por sequência (idade e séries). 3.1 O processo próprio de ensino. Quanto a escola está se afastando ou se aproximando do modo de vida dos Tikuna? Pensar a escola, hoje, seja no âmbito de sua função (para que serve?), seja no âmbito da construção curricular, impõe considerar a globalização, manifesta num cotidiano de múltiplos valores, em que todos os povos, todas as culturas, enfim, todos os seres humanos se vêem na iminência de se adaptar ao novo curso dos tempos, combinando elementos tradicionais com as novas e constantes manifestações da modernidade. Em meio a essa realidade, e entendendo a globalização enquanto estratégia de homogeneização cultural, que encontra na escola espaço profícuo para ações legitimadoras desse ideal homogeneizante, pode-se afirmar que a diversidade conseguiu, bravamente, sobreviver, apesar das tentativas das culturas dominantes em prol da uniformização de identidades, de comportamentos, de percepções, crenças e sensibilidades [...] (CURY, 2009, p.59). Por que se denomina de escola indígena, essa escola construída no meio uma comunidade indígena? É possível denominar uma escola, de escola indígena, onde todos, professores, gestores, equipe pedagógica, funcionários, professores de apoio, são falantes monolíngues de português e os conteúdos ocidentalizados? As crianças, os adolescentes e jovens Tikuna de hoje têm se distanciado da valorização de sua própria cultura de origem, por terem incorporado as culturas que vêm de fora para dentro das comunidades indígenas. Cohn (2001), no seu artigo “Culturas em transformação: os índios e a civilização”, diz que: A percepção das dinâmicas sociais e culturais exige que se atente não apenas às tradições, como também à inovação; não se nega, assim, a reprodução social, mas amplia-se a noção de reprodução social, de 77 modo que inclua a possibilidade de mudança. Desse modo, vai-se além da proposição de que estas sociedades têm, em todos os seus aspectos, como objetivo único a perpetuação estanque. Vários antropólogos têm se dedicado à reflexão de como essas modificações se efetuam e efetivam. Como demonstração e ilustração dessa mudança permanente das tradições culturais, citam-se dois exemplos retirados de análises antropológicas de realidades bastante diversas: a região das Guianas e a Nova Guiné. No primeiro caso, discute-se o uso social da história para a criação e reprodução da identidade entre os Saramaka do Suriname, sociedade constituída por escravos fugidos. Richard Price aborda o aprendizado sobre o “passado significante”, o First Time, que se refere aos antepassados à época de origem da sociedade, fonte da identidade coletiva. Se há nos Saramaka o que Price chama de uma “clara opção cultural” pela ênfase nas situações específicas, formais, de transmissão como fonte do conhecimento, existe, no entanto, uma ênfase em outro sentido, o da fragmentação deliberada dessa transmissão, baseada na expectativa de que cada homem adulto forme seu próprio conhecimento sobre o First Time ao longo da vida. Assim, a transmissão deste conhecimento não se limita a uma fonte única, mas é concebida como um processo que se inicia, para cada indivíduo, com o relato fragmentário... por um parente mais velho, tendo continuidade ao longo de sua vida, agora desvinculada de um parente e de uma situação formal. Tratando-se de um conhecimento essencial para fornecer sentido ao presente, o autor demonstra que a fragmentação na transmissão pode ser uma estratégia para reprodução e permanência desse saber, gerando conhecimentos muito individualizados. (COHN, 2001, p. 37 e 38). 78 Na comunidade, a escola é como porta de entrada para a difusão de cultura ocidental, inserida no conhecimento dos alunos, muitas vezes por falta de formação especifica dos docentes indígenas voltada para os valores dos saberes tradicionais. Para Cury, o convívio dessa criança na escola ocidental pode trazer implicações para a afirmação da identidade, na medida em que o grupo com o qual interaja não demonstre o respeito, por razões diversas, com o qual ela conta em seu meio familiar e social (CURY, 2009, p.38). A possiblidade para torná-la uma escola indígena de qualidade, especifica e diferenciada no contexto indígena precisa ser contextualizada, criando-se mecanismos próprios que sejam inseridos no componente curricular especifico e diferenciado, contribuindo para a sobrevivência dos saberes e conhecimentos da ancestralidade (cua’gü ngema torü o’igü’# ngema#). Segundo Oliveira (2012), O ideal de educação é aquele que valoriza os princípios culturais, o legado deixado por seus antepassados, e é preciso que esses conhecimentos também estejam em sintonia com o mundo atual, o mundo globalizado. Tal sintonia garante maior longevidade cultural e prepara o Ticuna para lidar com a diversidade cultural encontrada na mesorregião do alto Solimões. [...] o mundo hoje é outro, as culturas são dinâmicase o contato com outros povos cada vez ocorre de forma intensa, portanto é necessário que o educador tenha um olhar apurado e perceba a dificuldade do momento e através da escola ajude a minimizar as dificuldades que são inúmeras. As práticas pedagógicas de valorização da cultura indígena e também não índia são de extrema importância para a sobrevivência do povo Ticuna. (OLIVEIRA, 2012, p.88- 89) Cabe aqui uma reflexão. O mundo dos Tikuna, passa por um processo de construção continua e percorre múltiplos caminhos da cultura, desde a ação da catequese relacionada ao período colonial ao contato intenso e plural que leva à miscigenação com outras etnias. Na concepção de Tylor, cultura é aquele “todo complexo que inclui os conhecimentos, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes, e qualquer outro hábito e capacidade adquirida do homem na condição de membro da sociedade” (TYLOR, 1871, cap.1, p. 1). Para além do evolucionismo cultural, a que Tylor está historicamente vinculado e que não reduz a sua 79 contribuição específica (cf. CASTRO, 2005, Apresentação ), visões de cultura elaboradas em época mais recente, no campo da antropologia, têm resultado de esforços no sentido da reconstrução do próprio conceito de cultura (que havia sido afetado por numerosas fragmentações ao longo do tempo). Assim é que, nessa reconstrução conceitual, se tem: a cultura considerada como um sistema adaptativo; a cultura vista no quadro de teorias idealistas, o que inclui a cultura concebida como sistema cognitivo, como sistemas estruturais, como sistemas simbólicos (cf. LARAIA, 2001, primeira parte I). Sem entrar nos detalhes teóricos desses esforços de conceituação21 (que continuam fluindo), é possível dizer que esses abriram caminho para o reconhecimento dos múltiplos caminhos da cultura, aqui plenamente exemplificado no caso Tikuna. O importante para os Tikuna na contemporaneidade é o respeito à diferença, como elemento da interação social, recorrente em todos os cenários considerados (OLIVEIRA, 2000, v.15, p. 19), mas acompanhada da compreensão de manter parte da sua cultura original. Observo que a aquisição da linguagem e de conhecimentos sobre o mundo que rodeia as crianças Tikuna é feita naturalmente, por interação com os outros grupos sociais ou pessoas. Nessa interação comunicativa inicialmente com os pais e família e, progressivamente, com o mundo exterior, encontramos o que Berger menciona relativamente à situação face a face: o outro é apreendido por mim num presente vivido e partilhado por nós dois. Sei que no mesmo presente vivido sou apreendido por ele (BERGER, 2002, p.47). A esse respeito, vale chamar a atenção para uma diferença única entre a cultura do povo Tikuna e a cultura contemporânea : o canto cantado na festa da moça nova (família específica) não é cantado na própria escola Tikuna, nem pelos outros grupos, enquanto o hino nacional é cantado e conhecido por todo o território. A escolarização não fui ensinada na cultura Tikuna, mas a educação e as técnicas foram ensinadas oralmente, pela observação, imitação, pelo “fazer fazendo” e, assim, a cada geração eram apreendidas na família. Já a escolarização sistemática de conteúdo é o processo relacionado a conhecimentos adquiridos na escola, nos diferente espaços, pelo professor ou na família pelos pais, mães, e irmãos, hoje no mundo contemporâneo. Para Laraia, cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos (LARAIA, 2001, p. 101). Esta dinâmica cultural constrói e reconstrói transformações pertinentes em que se associam tempo e 21 Para acompanhamento de detalhes teóricos a esse respeito, ver, entre outros, Keesing (1990), Moore (2009). 80 espaço, moldando a interação dos indivíduos com outra sociedade de convivência – caso do povo Tikuna a partir das relações sociais. Sob a ótica da dinâmica cultural e da convivência a partir das relações sociais, o processo próprio de ensino na escola Tikuna não se refere somente ao ensino de língua indígena na sala de aula, mas trata dos saberes tradicionais ancestrais, da ciência da natureza do povo, formas transversais, em todas as disciplinas, conforme consagrado na Constituição Federal brasileira (CF), nas diretrizes e nos parâmetros legais sobre a educação escolar indígena, a saber: CF, art. 231 – são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que ocupam [...]; LDB lei nº 9.394/96, trata dos níveis e das modalidades de educação e ensino, nos seus Art. 26, 32 e inciso 3º, 78, 79 e seu incisos - Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. [...] assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, e para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos; I – proporcionar aos índios [...] a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas [...]; II – garantir aos índios, [...] o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não indígenas. Resolução nº 4, de 13 julho de 2010, que, ao definir diretrizes curriculares nacionais gerais para a Educação Básica, explicita , no art. 37, que a educação escolar indígena ocorre em unidades educacionais inscritas em suas terras e culturas, as quais têm uma realidade singular, requerendo pedagogia própria em respeito a esfericidade étnico-cultural de cada povo ou comunidade e formação especifica de seu quadro docente, observando os princípios constitucionais, [...]. A legislação vigente permite que sejam tomadas medidas para a efetivação da oficialização da língua Tikuna e dos saberes tradicionais nas outras disciplinas dentro do currículo da escola Ebenezer, em todos os níveis, etapas e modalidades de ensino. Não é boa a vontade do governo municipal, mas foi por meio de uma luta incansável, discussão e parceria com a secretaria municipal de educação que se conseguiu a inclusão desses conhecimentos adequadamente nas disciplinas, sem exceção de outras aérea de conhecimentos, conforme 81 pensado pelos Tikuna na organização do componente curricular de sua escola o que corresponde a quadros mostrados no primeiro capítulo, na seção 1.3. Dessa maneira, o currículo da escola está estruturado atualmente para poder facilitar o desenvolvimento de saberes tradicionais e conhecimentos científicos na sala de aula, com eixos temáticos especiais e transversalidades. Todas essas disciplinas foram montadas juntamente com a participação da comunidade escolar de Filadélfia, com base em critérios que levaram em conta os saberes tradicionais Tikuna e que resultaram na construção exposta , definindo o favorecimento e a aproximação de seus aspectos socioculturais, sua organização social, para garantia de uma visibilidade da educação indígena com processo próprio de ensino na escola Tikuna. Cury define o conceito de diferença voltado para a realidade dos povos indígenas e suas conquistas em relação à escola, induzindo, assim, “a reflexões a fim de evidenciar a relevância da diferença, a compreensão acerca desse conceito, sobretudo ao ponto que [sic] essa (a diferença) eclode no espaço escolar” (CURY, 2009, p.58). Já foi dito antes que o espaço é como o ar que se respira, que sem ar morremos, mas que não vemos nem sentimos a atmosfera que nos nutrede força e vida. Para sentir o ar é preciso situar-se, meter-se numa certa perspectiva (cf. DA MATTA, Roberto, 1991, p. 33). O processo de ensino-aprendizagem também é interpretado de modo que as crianças Tikuna, na sala de aula, possam “ver e sentir no espaço”, tornando-se “necessário situar-se” na conjugação dos conteúdos contextualizados, que traz uma luz na consciência dos alunos, no sentido de que todos os conhecimentos têm sua importância. O fato é que tempo e espaço constroem e, ao mesmo tempo, são construídos pela sociedade dos homens. Sobretudo o tempo que é e simultaneamente passa, confundindo a nossa sensibilidade e, ao mesmo tempo, obrigando a sua elaboração sociológica. Por tudo isso, não há sistema social onde não exista uma noção de tempo e outra de espaço (DA MATTA, Roberto, 1991, p. 37). 82 3.2 As relações com as crianças na construção da oralidade a partir da casa e do contexto da escola. A língua Tikuna é considerada um exemplo de uma língua de sociedade minoritária, falada em três países na região Amazônica: Peru, Colômbia e Brasil. É um povo pequeno dentro de um Estado enorme e com uma língua mais forte nas comunidades, que é o português. De acordo com o que mostramos no capítulo II, a comunidade indígena de Filadélfia é uma comunidade Tikuna constituída por tipos de família que resultam em família monolíngue em Tikuna, família monolíngue em Português e família bilíngue que mantém relações de interação em Tikuna e em Português, podendo estar, nesse último caso, a família com integrante de outra etnia (Kokama, Marubo, Mayuruna). Historicamente, pode ser encontrado, em outro ponto da área Tikuna, exemplo de Tikuna, falante nativo de Tikuna, criado em meio a uma família não indígena: Naquele tempo eu já não queria saber dele, eu tinha orgulho sem motivo, eu pensava que não era mais uma pessoa e porque era assim já um não indígena eu ia ser; sem motivo era o meu pensamento naqueles dias daquele tempo. Então, depois, naquele tempo, era aquilo de novo. E naquele tempo já doze anos era a minha idade e então a Manaus comigo ele foi, aquele homem branco (Pedro Inácio Pinheiro – Ngematücü -, em Minha luta pelo meu povo, 2014 p.20) No quadro de vivência e convivência socializada no meio de diferentes grupos de conversação de famílias em Filadélfia, crianças interagem e constroem seu mundo de forma heterogênea. Como já vêm vivenciando dois mundos veiculados pelas línguas Tikuna e Português, tanto fora da escola, quanto na sala de aula com os professores bilíngues, têm uma compreensão clara de ouvir, falar e interagir, trocando de códigos no momento de conversas entre professor/aluno/colegas da turma. As trocas de conversas em casa são feitas por meio da oralidade, no momento de realizar refeições, durante as atividades domésticas, na confraternização de família. O falante nativo de Tikuna fala com seus os filhos em Tikuna (sua língua materna). Na família em que o Português já é dominante, a família continua o uso dessa língua com os filhos em casa. 83 Na escola, a situação já é muito diferente daquela da casa: os professores Tikuna usam duas línguas na comunicação oral e na escrita, ou seja, na abordagem de conceitos no espaço da escola, existem alternâncias de código. Quanto àqueles professores que são da etnia Kokama, a sua interação com a turma sempre será monolíngue em português. Nesse caso, o professor Kokama enfrenta um desafio maior na sala de aula na expressão com as crianças Tikuna do que em ouvir algumas palavras em Português (a língua materna de quem é Kokama); para esse professor, expressar-se em Tikuna é o mais difícil. Esse professor fala somente Português, enquanto há crianças Tikuna que têm dificuldade de entender o Português com clareza. Aqui é importante compreender a concepção das crianças Tikuna pelo contato direto com a língua portuguesa em casa e na escola, já que isso melhora muito sua comunicação em Português, sem perder a língua de origem. Bourdieu, no seu livro sobre a economia das trocas linguísticas, define o conceito de valor na comunicação: A facilidade com que o modelo linguístico é transportado ao terreno da etnologia e da sociologia se deve ao fato de ter se conferido à linguística o essencial, isto é, a filosofia intelectualista que faz da linguagem um objeto de eleição mais do que um instrumento de ação e de poder. Aceitar o modelo saussuriano e seus pressupostos é o mesmo que tratar o mundo social como um universo de trocas simbólicas e reduzir a ação a um ato de comunicação que, como a fala saussuriana, está destinado a ser decifrado mediante uma cifra ou um código, uma língua ou uma cultura [...] A comunicação entre as classes (ou, nas sociedades coloniais ou semicoloniais, entre etnias) representa sempre uma situação crítica para a língua utilizada, seja ela qual for (BOURDIEU,, 2008, p.23 e 27). 3.3 Universo da pesquisa em três tipos de família e os espaços sociais compartilhados: na roça, na igreja e na escola Na roça, as crianças acompanham seus pais , que dão orientação aos seus filhos masculinos maiores na língua Tikuna, para que façam as atividades agrícolas corretamente. Os pais também contam no roçado sobre o que é perigoso, sobre os riscos: - picada de cobra, 84 aranha, escorpião, corte de terçado, espinhos. Devido a isso, é preciso ser atento nas horas de fazer roça (Meã ta ni’* cü ng*cae* - na>%% ta rü meã i dauatchigü). Foto10. O menino Ngure’ecü Morfeneo, de 4 anos de idade, acompanha seu pai na roça e começa a imitar o pai no trabalho 85 Foto 11. Jovens ajudando seu pai a torrar farinha E na hora do intervalo, toda a família se reúne em círculo. Comem juntos e, ao mesmo tempo, contam história, acerca dos entes ou seres que vivem na floresta (bichos da floresta), e falam dos fatos que ocorrem nos dias atuais. Nas conversas com sua família, os pais também contam sobre a fartura da caça, das frutas silvestres, das madeiras, fazem uma comparação do tempo do passado e com os dias atuais. A mulher fala para suas filhas, que se empenham nas atividades para que assim, no futuro, tenham sustento com sua nova família, construída por elas. E à criança pequena, sua mãe deixou uma atividade: o cuidar de seu irmão recém-nascido, que ela balança na rede de feita de tucum. Quando esse irmão recém nascido fica acordado, essa criança, a irmã, deita na rede com ele, canta cântico na língua materna. Conforme a família que eu acompanhei no seu roçado e por experiência própria na vida agrícola, tem família que, 86 até hoje, fica no seu trabalho de roçado um dia inteiro, sendo que os pais mais novos exercem sua atividade por metade do dia e voltam para sua casa. Na igreja, os pastores fazem leitura bíblica em português e, na conceituação dos versos, usam duas línguas, isto é, atuam como bilíngues em Tikuna e em Português, traduzindo o que está nessa língua para a língua nativa. Os gerentes do culto são falantes de Tikuna, sua língua materna. Cantam cânticos em Tikuna, e outros em Português. Na oportunidade, fiz pesquisa participativa e de convivência de grupo em duas igrejas de diferentes denominações: Igreja Batista Independente e Igreja Indígena Evangélica de Filadélfia. Foto 12. Membros da Igreja Batista Independente Na Igreja Batista utiliza-se a bíblia tradicional, alguns dos pastores desta igreja são falantes da língua portuguesa, cantam mais os cânticos em português, letras que estão no cantor cristão22. A professora da classe de jardim (crianças), principalmente, fez sua apresentação dos versículos e hinos em Português. E a classe das mães desta igreja apresentou cânticos de louvores do cantor cristão, valendo registrar que as mães mais idosas não acompanham muito os hinos cantados em português e que, no momento em que elas cantamem sua própria língua Tikuna, todas cantam com voz penetrante os cânticos. 22 Hinário das Igrejas Batistas. 87 Na Igreja Indígena Evangélica, as leituras bíblicas são feitas, na maior parte, em Tikuna ( língua materna dos falantes nativos de Tikuna), sendo muito utilizada a bíblia traduzida em Tikuna. Nos dias de domingo, os estudos bíblicos são contextualizados na realidade local, com conceitos esclarecedores, para melhor entendimento. Na apresentação de crianças, essas cantam e leem versículos em Tikuna e em Português. Foto 13. Grupos de mães, após o culto, comendo e trocando conversas No final do culto desta igreja, existe o hábito de fazer comunhão, o que permite que os membros conversem e abram diálogos entre parentes e afins sobre seus trabalhos, vida cristã, o comer juntos, as condições de vida, na própria língua. Como diz Serra (2018), o uso linguístico pode assumir mais de uma finalidade: Uma outra finalidade é contribuir para a percepção, inclusive pelos próprios Tikuna, de que a língua é afetada pelos usos linguísticos de 88 seus falantes, o que inclui as situações de contato internas ao próprio grande grupo Tikuna, além do contato de seus membros com falantes de outras línguas. É também nosso propósito o de que a pesquisa apresentada venha a ajudar na argumentação e na defesa de que a língua Tikuna está viva e é usada para uma intensa comunicação entre os Tikuna, podendo ampliar seus espaços de uso, para além das próprias comunidades Tikuna (SERRA, 2018, p.15). Nesses dois espaços diferentes de uso de língua nativa, essa está mais desenvolvida pela via da oralidade, e não pela escrita. Em certo ponto, o pastor incentiva os membros a fazer a leitura dos textos bíblicos escritos em língua Tikuna, mas dificilmente pode-se ver as pessoas que participam do culto escrevendo na sua língua materna. Essas pessoas têm mergulhado muito na oralidade. E, no espaço da escola, as crianças vivem aprendendo a leitura, escrita, e cantos da canção escrita em língua materna (Tikuna). Por exemplo, com turma da educação maternal, as professoras que atuam nessa turma usam cânticos em língua portuguesa, e tem dias em que as professoras cantam na língua Tikuna , gesticulando. Ao lidar com a escrita, usam vogais oralmente, e de forma cantada, por exemplo: Ã’ - à - &- Ü - @- < - Õ. E cantam músicas significativas para os Tikuna, como a música do tchore ‘jaçanã’: Ngema tchore rü name23 ni’*. I tchütaãcü, Na’%naãgü rü ya’#wa nanhã . Nüma rü nama# i na’taanacüwa I mureru arü nga#necüwa ! ‘Aquele tchore é bonito. De noite, ele se ergue e voa, seguindo para longe. Vive na beirada do lago No meio do mureru ! 23 A raiz desta palavra é me , que significa ‘bom, bonito’. 89 A música Tikuna, na escola, é aplicada em toda as séries, dependendo dos trabalhos de cada professor na sala de aula. Trabalhar com a música na sala de aula estimula as crianças a aprender a ler e a escrever palavras. Os professores que trabalham na escola Ebenezer utilizam os livros produzidos na OGPTB pelos próprios professores Tikuna. Na apresentação de trabalho, os professores desta escola exigem que os alunos falem em duas línguas. 90 CONSIDERAÇÕES FINAIS Aqueles que irão estuar nele deverão acordar, deverão saber por que ele foi feito. O livro saiu porque nós estamos renascendo. Foi bom porque feito por nós mesmos. “Hoje os bisnetos, os novos, vão ver que os Ticuna têm razão de existir, porque neste livro aparece onde está a terra imemorial, o local sagrado, o local da nossa origem. Onde ticuna nasceu aí ele tem de ficar. O livro vai ser bom pra gente lembrar, pra gente lutar pra ser dono de novo da terra” (Pedro Inacio Pinheiro – Ngematücü e Adecio Custodio Manuel – Meta’nücü) O olhar analítico dessa pesquisa de dissertação veio mostrar o ensino diferenciado embasado em saberes indígenas, com o intuito de transformar disciplina inserida no currículo e calendário da escola indígena Tikuna Ebenezer Pucürana rü We’tchi’ina, pensando no fortalecimento de uma educação especifica, bilíngue e intercultural, com processo próprio de ensino na escolarização de crianças indígenas desta escola. Como vivencio e socializo no meio do povo, vi muitas famílias Tikuna construídas com as famílias não indígenas, pelo casamento. Como resultado desse contato complexo, muitas crianças, adolescentes e jovens hoje desta comunidade, têm suas vivências intensamente em dois mundos, duas culturas e línguas construindo trocas culturais, o que provocou uma formação de diálogos de cultura mais plural dentro desta comunidade Tikuna. Isso é bem visível, quando se anda pela comunidade: as crianças jogam bola, peteca, pipa, tomam banho pulando no igarapé e outras sobem nas arvores, e de lá de cima pulam - e as suas interações são todas em Português. Durante muitos poucos minutos algumas dessas crianças se expressam em sua língua materna. E os jovens andam de moto, jogam bola na quadra, usam aparelho celular, assistem TV, filmes, tocam músicas rap, gospel e outras, suas conversas misturam português e Tikuna. Na maior parte, as crianças e os jovens, que se comunicam em grupo de jovens, trocam suas conversas em português, e em casa com os pais e mães falam em Tikuna e outros em monolíngue português. Os pais mais novos, ou seja, os pais modernos, principalmente, se comunicam com seus filhos nas duas línguas, dependendo dos tipos de família. Poucas famílias, desta comunidade Tikuna de Filadélfia, levam seus filhos para o trabalho agrícola (roçado) e 91 para a pescaria; deixam boa parte desses filhos na escola local, escola da cidade, e em outra, com esses filhos ingressando na universidade. Na volta da escola para sua casa, alguns desses adolescentes e crianças, quando seus pais não estão em casa, vão atrás do seu pai na roça para ajudá-lo, enquanto outros deixam seus materiais escolares em casa para ir jogar bola na quadra ou nos espaços de lazer. Em 1978, a preocupação dos moradores Tikuna desta comunidade de Filadélfia relacionava-se à implantação de uma escola dentro da comunidade, para que as crianças se integrassem ao mundo de letramento em língua portuguesa. O uso da língua materna foi interpretado como atraso ou sinal de inferioridade na concepção de alguns propriamente Tikuna, sem ter havido preocupação com o risco da dinâmica de identidade da sociedade. De acordo com a trajetória de luta dos Tikuna pela educação diferenciada e especifica, foi na década de 80 do século XX que começaram ser pensados os primeiros registros de memória e a sua transformação em livro, escrito na língua Tikuna, traduzido em português e publicado, em 1985, com o nome do livro “Torü Du>#gü” (Nosso Povo). Nele tiveram participação várias lideranças: professores, anciãos, jovens, pajés, parteiras e crianças das diversas comunidades, além de alguns pesquisadores do Museu Nacional e MEC. O livro registra as histórias do tempo dos antigos, do tempo passado: criação do mundo Magüta, história que conta o político mítico do povo Tikuna. Que esse seja um instrumento referencial para professores indígenas, no sentido de trazer esses conhecimentos para repensar essa educação do passado e suas inovações. Após a criação da Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues (OGPTB), em 1986, os professores Tikuna, no curso de formação, prosseguiram produzindo os materiais didáticos para a escola Tikuna, como: o livro dos peixes, dos sapos, dos pássaros, dicionário Tikuna/Português, livro de educação ambiental, livro de saúde bucal, livro de Mitos (Coleção Eware) volume – 1 a 5, livro dos insetos, arte na escola Tikuna, e cartazes escritos na língua Tikuna, tendo sido alguns desses materiaistraduzidos em português. A construção destes materiais didáticos para as escolas Tikuna foi feita pelos próprios Tikuna, que têm se preocupado com a geração futura e com os novos professores que irão lecionar na escola Tikuna, para que esses tenham acesso às informações referentes aos valores e à importância da língua Tikuna, da história de seus antepassados, dos fatos e dos mitos, trazendo, assim, de volta os saberes ancestrais e repassando essa memória para os filhos e na sala de aula com os alunos. 92 No caso da Escola Ebenezer, após esses 40 anos de funcionamento da educação indígena Tikuna dentro da comunidade, os professores e lideranças locais dialogaram sobre experiências e discutiram sobre a valorização da própria identidade na escola e na família. Com os resultados da pesquisa e da análise que realizei e que resultaram nesta dissertação, a Escola Ebenezer poderá ver amadurecida a modalidade diferenciada de ensino, visibilizada se todos os corpos humanos desta escola estiverem empenhados nos procedimentos pedagógicos traçados de modo contextualizado. Nas reuniões comunitárias e nos encontros pedagógicos da escola, que acompanhei, foram debatidos e discutidos temas vinculados à posição de que a escola indígena se tornará um espaço de ensino diferenciado, especifico, intercultural e bilíngue, quando suas práticas pedagógicas estiverem voltadas para os saberes de um povo. Além disso, os corpos docentes precisarão de uma formação especifica ou cursos voltados para as realidades do povo. Hoje, nos dias atuais, muitos acadêmicos indígenas que têm sua formação nas universidades dos não indígenas têm as suas experiências mais embutidas nos conhecimentos ocidentalizados e, quando retornam para suas aldeias, impõem os conhecimentos adquiridos na sua formação acadêmica, os quais, muitas vezes, interferem nas realidades dos discentes da escola. 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTMAN, Cristina. “As línguas gerais sul-americanas e a empresa missionária: linguagem e representação nos séculos XVI e XVII.” In: FREIRE, José Ribamar Bessa Freire; ROSA, Maria Carlota. Línguas Gerais: Política Lingüística e Catequese na América do Sul no Período Colonial . Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 57-83. BARROS, Maria Cândida Drumond Mendes. Educação bilíngüe, lingüística e missionários. Em Aberto, Brasília, ano 14, n.63, jul./set. 1994. BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Tradução de Alberto Candeias. Lisboa: Edições “Livros do Brasil”, 1983. BERGER, Peter L; LUCKMANN, Thomas. 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