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ii DORIGON, CLOVIS Mercados de Produtos Coloniais da Região Oeste de Santa Catarina: em Construção [Rio de Janeiro] 2008 XVII, 437 p. 21 x 29,7 cm (COPPE/UFRJ, D.Sc., Engenharia de Produção, 2008) Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, COPPE 1. Mercados de produtos coloniais I. COPPE/UFRJ II. Título (série) iii DEDICATÓRIA À minha mãe Adelinda M. Bearzi Dorigon e ao meu pai Honorino Dorigon. Pelos seus exemplos de luta e coragem e pelos valores a mim passados os quais me orientam, inspiram e iluminam os caminhos que escolhi trilhar. iv AGRADECIMENTOS A elaboração de uma tese, embora tenha muito de trabalho solitário, só se torna realizável devido à ajuda de inúmeras pessoas e instituições, dentre as quais quero agradecer: Ao meu orientador, professor Michel Thiollent, pela confiança em mim depositada ao aceitar me orientar, pela sua dedicação, disponibilidade, críticas e sugestões, por oportunizar os seminários de orientação e, sobretudo, pela autonomia e liberdade para pesquisar e criar. Ao professor John Wilkinson pela contribuição inestimável à minha formação, desde meu mestrado realizado no CPDA entre os anos de 1994-1997 sob sua orientação e, posteriormente, em diversos eventos e projetos e, especialmente, durante meu doutorado, nas disciplinas e orientações. Pela sua generosidade, rigor teórico e analítico, pela oportunidade de aprendizado e convívio e por ter aceitado compartilhar a orientação de minha pesquisa com o prof. Thiollent. À Dra. Marie-France Garcia-Parpet, por ter me aceito como orientando no doutorado sanduíche desenvolvido na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e no Institut National de la Recherche Agronomique (INRA), de forma tão generosa e gentil, pela ajuda e apoio na resolução de problemas típicos de estrangeiro recém-chegado em Paris e, sobretudo, pela sua imensa contribuição acadêmica ao meu trabalho. Por tudo isso, minha eterna gratidão. Obrigado também pela pronta disposição e empenho em aceitar o convite para compor a banca examinadora de minha tese. Ao professor Afrânio Garcia, por ter me recebido como aluno de doutorado sanduíche na EHESS e pela oportunidade de poder olhar para os problemas do Brasil a partir do exterior. As muitas atividades acadêmicas - aulas, seminários, reuniões de orientação, conversas individuais e as atividades promovidas pelo Centre de Recherches Sur le Brésil Contemporain (CRBC), sob sua coordenação, muito contribuíram para a minha formação de pesquisador. Aos demais professores e funcionários do CRBC e à EHESS pela acolhida. Ao INRA, pelo valioso apoio, imprescindível para a realização de meu trabalho. Agradeço especialmente ao Dr. Pierre-Benoît Joly, diretor da Unité de Recherche v Transformations Sociales et Politiques Liées au Vivant (TSV) e aos demais pesquisadores e funcionários daquela unidade de pesquisa pelo convívio e pela oportunidade de aprendizado. Aos colegas e amigos do grupo de orientação do professor Thiollent: Jacqueline, Felipe, Susana, Cristina, Cíntia, Celso, Hugo e Vicente, pelas discussões e sugestões ao meu trabalho; À Coppe pela oportunidade de realizar o doutorado e aos seus funcionários e professores que, direta ou indiretamente, contribuíram com a realização do meu curso; Ao CPDA, no qual cursei várias disciplinas e participei de diversos eventos, acadêmicos e festivos. A contribuição que este Centro deu à minha formação é inestimável. À Bibi e ao Johnny, pela hospitalidade, amizade, apoio e pelos almoços e jantares feitos a muitas mãos, junto a amigos tão queridos. Ao Núcleo de Estudos de Ciência & Tecnologia e Sociedade (NECSO) pela oportunidade de participar dos inesquecíveis “Ato-Redes”. Pela troca de idéias e convívio fraternal e prazeroso. Ao professor Ivan da Costa Marques, pelas sugestões na ocasião de qualificação do projeto e por ter prontamente aceito o convite para compor a banca defesa da tese. Aos professores Roberto dos Santos Bartholo Junior, Fábio Luiz Zamberlan e José Manoel Carvalho de Mello por terem aceitado fazer parte da banca examinadora de minha tese. Ao CNPq por ter me concedido bolsa de pesquisa para a realização do doutorado. À Epagri, por ter me liberado das responsabilidades profissionais para que eu pudesse me dedicar em tempo integral aos meus estudos, bem como ao apoio dispensado ao longo da execução da pesquisa. Aos colegas de Empresa, pelas informações e apoio. À Apaco por atender sempre de forma tão solícita e generosa as minhas demandas por informações e entrevistas. Agradeço em especial ao colega Gelso Marchioro e ao Gilson Giombelli, pela confiança, apoio e amizade. Agradeço especialmente a todos os agricultores que deixaram seus afazeres para me receber de forma sempre tão hospitaleira e gentil. Seu trabalho e luta por uma vida digna serviu de inspiração para a minha tese. À Dunia, pelas conversas durante as caminhadas e jantares, durante os quais dividimos nossas angústias e alegrias proporcionadas pelas nossas teses. vi Ao meu querido amigo Raul, com quem muito venho aprendendo desde que o conheci e que tem me incentivado e apoiado ainda antes de ingressar para o doutorado, inclusive com suas preciosas aulas de francês. Agradeço em especial sua inestimável ajuda na correção gramatical e suas sugestões ao meu texto. Gracie par tuto, amico mio! Aos meus irmãos Cosme, Claci e Claudete, pelo incentivo e apoio. À Irme, minha companheira, presença sempre tão forte e doce, fonte de energia e inspiração, pela leitura, pelas sugestões e pelo incentivo ao meu trabalho; Ao meu filho Caio, por seu carinho e apoio, por ter compartilhado conosco esta caminhada e pela forma corajosa com que enfrentou os desafios pelos quais passamos juntos nas idas ao Rio e a Paris. vii Resumo da Tese apresentada à COPPE/UFRJ como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Doutor em Ciências (D.Sc) MERCADOS DE PRODUTOS COLONIAIS DA REGIÃO OESTE DE SANTA CATARINA: EM CONSTRUÇÃO Clovis Dorigon Julho/2008 Orientadores: Michel Jean-Marie Thiollent John Wilkinson Programa: Engenharia de Produção Esta tese se propôs o objetivo de analisar os mercados de produtos coloniais da Região Oeste do Estado de Santa Catarina, os quais se encontram na fase inicial de construção. Por “produtos coloniais”, entende-se um conjunto de produtos tradicionalmente processados no estabelecimento agrícola pelos agricultores - os “colonos” - para o auto-consumo familiar, tais como salames, queijos, doces e geléias, conservas de hortaliças, massas, biscoitos e açúcar mascavo, dentre outros. A partir do final da década de 1990, perante uma situação de crise nas atividades tradicionais, sobretudo frente à exclusão na suinocultura, agricultores organizados em grupos, ou mesmo individualmente, passaram a construir suas “agroindústrias familiares rurais” para produzir e vender estes produtos no mercado formal. Entretanto, em face da imagem positiva do colonial, médias e até grandes indústrias agroalimentares e, sobretudo, aquelas de profissionais do setor agroalimentar, oriundos das agroindústrias tradicionais, de cooperativas e do próprio Estado, passaram a se apropriar também dessa imagem e de sua fatia de mercado. Analisa- se o processo de mobilização em torno desta problemática à luz das noções teóricas dos Sítios Simbólicos de Pertencimento, da Teoria das Convenções, da Teoria do Ator-Rede, da Construção Social de Mercados e da Economia de Singularidades. viii Abstract of Thesis presented to COPPE/UFRJ as a partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor of Science (D. Sc) MARKETS OF TRADITIONAL PRODUCTS FROM THE WESTERN REGION OF SANTA CATARINA,BRASIL: UNDER CONSTRUCTION Clovis Dorigon July, 2008 Advisors: Michel Jean-Marie Thiollent John Wilkinson Department: Production Engineering This thesis intends to analyze the markets of traditional products, which are in their initial phase, from the western region of Santa Catarina. Traditional products are usually called “colonial products”, meaning a range of traditionally processed products made by farmers in their lands for family consumption, such as sausages, cheese, jam and jelly, vegetable tinning, pastas, biscuits and raw sugar, among others. Since the end of the 1990’s decade, facing a situation of crisis of traditional activities, because of their exclusion of the process of pork production, individual and organized groups of farmers started to create their own “rural familiar agro-industries” to produce and sell their products in the formal market. Meanwhile, medium and even big agro-food industries and mainly those belonging to the professionals of the agro-food sector, coming from the traditional agro-industries, from cooperatives and from the State, also started to appropriate that image and market niche, due to the positive image of traditional products. Therefore, by choosing the “colonial products” as an artifact of research, the process of mobilization around this issue was analyzed, based on the theoretical notions of Symbolic Sites of Belonging, Theory of Conventions, Theory of Actor-Network, Social Construction of Markets and Economy of Singularities. ix LISTA DE SIGLAS ACARESC - Associação de Crédito e Assistência Rural de Santa Catarina AFNOR - Association Française de Normalisation AMAUC - Associação dos Municípios do Alto Uruguai AOC - Appellation d’Origine Contrôlée APACO - Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense APAM - A Associação dos Produtores de Açúcar Mascavo AS-PTA - Assessoria a Projetos em Agricultura Alternativa BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CAPINA - Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa CEBs - Comunidades Eclesiais de Base CECAF: Central das Cooperativas da Agricultura Familiar CEPAGRI - Centro de Promoção ao Pequeno Agricultor CEPAGRO - Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo CIDASC - Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPSA - Centro Nacional de Pesquisa de Suínos e Aves CONAB - Companhia Nacional de Abastecimento COOPERHAF - Cooperativa de Habitação dos Agricultores Familiares dos Três Estados do Sul COPERDIA - Cooperativa de Produção e Consumo de Concórdia CPPP - Centro de Pesquisas Para Pequenas Propriedades CPT - Comissão Pastoral da Terra DESER - Departamento Sindical de Estudos Rurais DGER - Direction Générale de l’Enseignement et de la Recherche EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EPAGRI - Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado de Santa Catarina FAO - Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação FATMA - Fundação de Amparo a Tecnologia e Meio Ambiente FETRAF- SUL - Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Sul do Brasil FUNCITEC - Fundação de Ciência e Tecnologia de Santa Catarina x IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INRA - Institut National de la Recherche Agronomique IRPPs - Indústrias Rurais de Pequeno Porte MAB - Movimento dos Atingidos pelas Barragens MAPA - O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário MMA - Movimento das Mulheres Agricultoras MMC - Movimento das Mulheres Camponesas MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores MST – Movimento dos Sem Terra OGM - Organismos Geneticamente Modificados OMC - Organização Mundial do Comércio ORPCs - Organizações Regionais de Padronização e Comercialização PLANAF - Plano Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar SDR – Secretaria de Desenvolvimento Regional SDT – Secretaria do Desenvolvimento Territorial SEBRAE - Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SENAC - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SENAR - Serviço Nacional de Aprendizagem Rural SIE - Serviço de Inspeção Estadual SIF - Serviço de Inspeção Federal SIM - Serviço de Inspeção Municipal SISBI - Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal SUASA - Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária UCAG - Unidade Central de Apoio Gerencial UEPs - Unidades Espaciais de Planejamento UPRs - Unidades de Planejamento Regional VIANEI - Centro Vianei de Educação Popular xi LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Representação parcial da América do Sul, com destaque para a região Oeste de Santa Catarina..........................................................................................................6 Figura 2. Imagem da paisagem típica do meio rural do Oeste Catarinense, representando o mosaico formado pelas pequenas propriedades rurais. ................................7 Quadro 1. Música Mérica, Mérica ......................................................................................54 Figura 3. Stand de um feirante próximo ao dos M. ...........................................................126 Quadro 2. Comparação entre as diferentes propriedades sociais dos componentes dos M.........................................................................................................................................140 Figura 4. Fôrma tradicional de produção de queijo colonial feito na cozinha pelas agricultoras. ........................................................................................................................148 Figura 5. Fôrmas do queijo prato e mussarela em uma pequena queijaria da região........148 Figura 6. Prensa de queijo “prato colonial” e mussarela de uma pequena queijaria da região. .................................................................................................................................149 Figura 7. Estratificação do mercado das agroindústrias familiares rurais.........................184 Figura 8. Mapa de Santa Catarina, destacando as Centrais de Apoio de Chapecó e de Concórdia e os respectivos municípios participantes. ........................................................185 Figura 9. Estrutura Organizacional do Sistema Agroindustrial - UCAG / CHAPECÓ ....187 Quadro 3. Funções da Central de Apoio. ..........................................................................188 Figura 10. Estrutura Organizacional do Sistema Agroindustrial - UCAG / Concórdia ....192 Figura 11. Ilustração do bambu e seu crescimento rizomático. ........................................207 Figura 12. Rótulo de embalagem de produto de agroindústria associada à UCAF...........211 Figura 13. Foto da casa de AD, financiada pelo PSH. ......................................................220 Figura 14. Foto da placa próxima à casa de AD, mostrando os vários órgãos envolvidos no financiamento..............................................................................................221 Figura 15. Abatedouro de aves da família G.....................................................................225 Figura 16. Frango colonial da família G. em gôndola de supermercado de Concórdia. ...227 Figura 17. Prêmios de 1° Lugar de Queijo Tipo Colonial e Parmesão. ............................236 Figura 18. Queijo colonial com selo de premiação do 2° Sabor de Sabores/2° Suileite. ...............................................................................................................................237 Figura 19. Janta Colonial, Linha São Paulo, Seara, 03/03/07. ..........................................239xii Figura 20. Alguns pratos servidos na Janta Colonial. .......................................................239 Figura 21. Mapa de Santa Catarina com destaque à AMAUC..........................................244 Figura 22. Esquema de uma cooperativa municipal (Ipira). .............................................251 Figura 23. Rede de cooperativas do Território da AMAUC. ............................................252 Figura 24. Casa Colonial de Ipira......................................................................................261 Figura 25. Casa Colonial de Piratuba. ...............................................................................263 Figura 26. Foto de produção de doce de casca de laranja. ................................................273 Figura 27. Unidade de beneficiamento de cana de açúcar da APAM. ..............................277 Figura 28. Casal de agricultores junto à fôrma do queijo colonial....................................310 Figura 29. Queijo colonial na geladeira para a cura..........................................................311 Figura 30. “Queijo colonial” da indústria Tirol.................................................................322 Figura 31. “Queijo colonial” da indústria Cedrense..........................................................322 Figura 32. Frango caipira e frango colonial em gôndola de supermercado de Concórdia ...........................................................................................................................323 Figura 32. Vista geral da agroindústria dos ex-diretores da Sadia. ...................................330 Box 1. Confraternizando com produtos coloniais em São Paulo. ......................................347 Figura 33. Vista geral dos stands de Santa Catarina na IV Feira da Agricultura Familiar...............................................................................................................................358 Figura 34. Consumidores experimentando produtos coloniais no stand da Cooper Familiar (Chapecó -SC)......................................................................................................359 Box 2. A casa de um colono de origem italiana .................................................................382 xiii LISTA DE TABELAS Tabela 1. Evolução da população do Oeste de Santa Catarina em comparação a do Estado - Número de habitantes...............................................................................................8 Tabela 2. Estrutura fundiária da Região Oeste catarinense ................................................ 11 Tabela 3. Alcance social da produção e das vendas das principais atividades agropecuárias no Oeste Catarinense. ................................................................................... 13 Tabela 4. Produtos transformados ou beneficiados nos estabelecimentos agropecuários de Santa Catarina (1995).............................................................................. 15 Tabela 5. Evolução do processamento de leite (queijo, requeijão), carne suína (salames e lingüiças) e cana-de-açúcar (melado) nos estabelecimentos rurais de Santa Catarina................................................................................................................................ 17 Tabela 6 - Forma de organização dos empreendimentos: número de unidades por tipo de regime jurídico, por UEP e total em SC. ........................................................................ 19 Tabela 7. Relação das matérias primas transformadas e número de unidades em que elas aparecem, por UEP e total de SC. ................................................................................ 20 Tabela 8. Produtos industrializados no meio rural: percentagem de consumidores por hábito de compra em cidades de Santa Catarina ................................................................. 22 Tabela 9. Produtos da pequena agroindústria mais consumidos, por município (% sobre o total de entrevistados). ............................................................................................ 23 Tabela 10. Local de compra de produtos da pequena agroindústria, por município. ......... 24 Tabela 11. Como deveriam ser chamados os produtos das pequenas agroindústrias (% sobre o total de entrevistados)........................................................................................ 26 Tabela 12. Agroindústrias por produtos processados em 31 municípios do Oeste de Santa Catarina...................................................................................................................... 31 xiv SUMÁRIO CAPÍTULO 1 ....................................................................................................................... 1 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1 1.1 A PROBLEMÁTICA DA PESQUISA ........................................................................... 1 1.2 BREVE CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DE ESTUDO......................................... 5 1.3 AS OPÇÕES DE INSERÇÃO DOS AGRICULTORES FAMILIARES AO MERCADO ......................................................................................................................... 12 1.4 PRODUTOS COLONIAIS: ALGUNS NÚMEROS..................................................... 14 1.5 ALGUNS NÚMEROS SOBRE “AGROINDÚSTRIAS”............................................. 18 1.6 O MERCADO DOS PRODUTOS DAS IRPPS ........................................................... 22 1.7 A DINÂMICA DE CRESCIMENTO DAS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES RURAIS .............................................................................................................................. 29 1.8 O REFERENCIAL TEÓRICO...................................................................................... 31 1.9 ESTRATÉGIAS E TÉCNICAS DE PESQUISA.......................................................... 33 1.10 O TRABALHO DE CAMPO...................................................................................... 36 1.11 A ESTRUTURA DA TESE ........................................................................................ 39 CAPÍTULO 2 ..................................................................................................................... 44 2 REFERENCIAL TEÓRICO E ANALÍTICO ............................................................. 44 2.1 OS SÍTIOS SIMBÓLICOS DE PERTENCIMENTO................................................... 45 2.1.1 A Teoria dos Sítios .................................................................................................... 45 2.1.2 Mérica, a terra da Cucagna...................................................................................... 48 2.2 A TEORIA DO ATOR-REDE (TAR) .......................................................................... 55 2.3 A TEORIA DAS CONVENÇÕES................................................................................ 67 2.3.1 Os principais conceitos da Teoria das Convenções ............................................... 67 2.3.2 A Teoria das Convenções e a economia da qualidade aplicada aos estudos do sistema agroalimentar ....................................................................................................... 78 2.4 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS ........................................................... 92 CAPÍTULO 3 ................................................................................................................... 112 3 ENTRE O COLONIAL E O INDUSTRIAL: A TRAJETÓRIA DE UM GRUPO DE AGRICULTORES DO MUNICÍPIO DE CHAPECÓ ................................................ 112 3.1 A FORMAÇÃO DO GRUPO ..................................................................................... 112 xv 3.2 VÁRIOS SÓCIOS,DIVERSOS MUNDOS ............................................................... 124 3.2.1 OM e o colonial ....................................................................................................... 124 3.2.2 AM, o gerente de produção.................................................................................... 128 3.2.3 LM e o mundo mercantil ....................................................................................... 136 3.3 O INGRESSO NO MUNDO INDUSTRIAL: “O MERCADO EMPURROU A GENTE” ............................................................................................................................ 141 3.4 A CONSTRUÇÃO DE PARCERIAS COM NOVOS ATORES ............................... 150 3.5 MANTENDO A IMAGEM DO COLONIAL ............................................................ 153 CAPÍTULO 4 ................................................................................................................... 165 4 PROJETO PILOTO PRONAF AGROINDÚSTRIA: A CONSTRUCÃO DE UMA REDE SOCIOTÉCNICA EM TORNO DO COLONIAL ........................................... 165 4.1 O ENFOQUE TEÓRICO DAS POLICY NETWORKS ............................................... 165 4.2 MOBILIZAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE AGENDAS EM TORNO DA “CRISE REGIONAL”..................................................................................................................... 168 4.3 O “PRONAF AGROINDÚSTRIA” ............................................................................ 176 4.3.1 A concepção do Pronaf Agroindústria.................................................................. 176 4.3.2 As Centrais de Apoio como Centrais de Cálculo ................................................. 179 4.3.3 A construção do Projeto Piloto PRONAF Agroindústria no Oeste Catarinense ........................................................................................................................................... 183 4.3.3.1 As Centrais de Apoio............................................................................................. 184 4.3.3.1.1 A Central de Apoio de Chapecó ......................................................................... 186 4.3.3.1.2 A Central de Apoio de Concórdia ...................................................................... 190 4.3.3.2 Alguns conflitos..................................................................................................... 193 4.3.3.3 A rede sob risco ..................................................................................................... 194 CAPÍTULO 5 .................................................................................................................... 199 5 A CONSTRUÇÃO DE REDES EM TORNO DO COLONIAL .............................. 199 5.1 A REDE DA APACO ................................................................................................. 199 5.1.1 Constituição, evolução e composição social da Apaco ........................................ 200 5.1.2 Apaco e suas articulações....................................................................................... 203 5.1.3 Evolução recente e situação atual da Apaco ........................................................ 205 5.1.4 A Unidade Central das Agroindústrias Familiares do Oeste Catarinense - UCAF ........................................................................................................................................... 208 5.1.5 A marca “Sabor Colonial”..................................................................................... 209 xvi 5.1.6 A Copafas: uma das nove cooperativas da rede Apaco ...................................... 211 5.1.7 Descrição de três grupos típicos filiados à COPAFAS........................................ 218 5.1.7.1 O Grupo da Linha São Paulo................................................................................. 218 5.1.7.2 O frango Colonial da família de AG ..................................................................... 222 5.1.7.3 A queijaria da família BL ...................................................................................... 230 5.1.8 A janta colonial ....................................................................................................... 237 5.2 A EPAGRI E SUAS REDES ...................................................................................... 240 5.2.1 A rede de cooperativas da região de Concórdia .................................................. 241 5.2.2 A descentralização do Estado mobilizada para fortalecer a rede de cooperativas ........................................................................................................................................... 245 5.2.3 O colonial e os Territórios ..................................................................................... 247 5.2.4 Programa de Aquisição de Alimentos ampliando o mercado dos produtos coloniais ............................................................................................................................ 252 5.2.5 O crescimento do mercado de produtos coloniais ............................................... 256 5.2.6 A Cooperativa dos Pequenos Produtores do Município de Ipira - Cepami...... 259 5.2.6.1 A criação do serviço de inspeção e processo de formalização dos produtos ........ 264 5.2.6.2 O presidente da Cepami e CECAF........................................................................ 268 5.2.6.3 O Grupo das Geléias.............................................................................................. 271 5.2.6.3.1 A formação do grupo.......................................................................................... 272 5.2.6.3.2 A unidade de beneficiamento como um espaço de socialização ........................ 274 5.2.6.3.3 De Ipira para São Paulo ...................................................................................... 274 5.2.6.4 O grupo dos produtores de açúcar mascavo .......................................................... 276 5.3 DO COLONIAL À REGULAÇÃO DO MERCADO DO LEITE.............................. 281 CAPÍTULO 6 .................................................................................................................... 287 6 A EXCLUSÃO DO COLONO E A APROPRIACAO DO MERCADO DOS PRODUTOS COLONIAIS PELOS NÃO COLONOS..................................................... 287 6.1 O MERCADO INFORMAL ....................................................................................... 288 6.1.2 O setor informal e a agroindústria familiar rural ............................................... 291 6.1.3 A Casa do Produtor ................................................................................................ 295 6.1.4 Os queijos coloniais dos MZ .................................................................................. 301 6.1.5 O queijo colonial de RA e JC................................................................................. 308 6.1.6 Um “presente de grego”: o caso de pasteurizador doado pelo Projeto Agroindústrias da Mesorregião Grande Fronteira do Mercosul ................................ 315 xvii 6.2 OS VALORES DO COLONIAL APROPRIADOS PELO MUNDO INDUSTRIAL 321 6.2.1 A apropriação do mercado dos produtos coloniais pela indústria..................... 321 6.2.2 A Apropriação do mercado colonial pelos técnicos............................................. 323 6.2.3 Dos colonos para os diretores da Sadia ................................................................ 325 CAPÍTULO 7 ................................................................................................................... 332 7 O COLONIAL E O MERCADO EXTRA-REGIONAL .......................................... 332 7.1 DE ANCHIETA PARA CUIABÁ .............................................................................. 332 7.1.1 Origemdo grupo..................................................................................................... 333 7.1.2 A Construção do mercado ..................................................................................... 335 7.2 OS CAMINHONEIROS E OS PRODUTOS COLONIAIS ....................................... 341 7.3 DONOS DE RESTAURANTES E CHURRASCARIAS........................................... 343 7.4 AS FEIRAS LIVRES E A DIVULGAÇÃO DOS PRODUTOS COLONIAIS NOS GRANDES CENTROS ..................................................................................................... 345 7.5 O ÊXODO DOS JOVENS ESTENDENDO A REDE DO COLONIAL ................... 348 7.6 O SLOW FOOD E O COLONIAL.............................................................................. 349 7.7 OS PRODUTOS COLONAIS E A VALORIZAÇÃO DA CULINÁRIA REGIONAL BRASILEIRA.................................................................................................................... 354 7.8 A FEIRA DA AGRICULTURA FAMILIAR............................................................. 357 7.9 OS PRODUTOS COLONIAIS E A ECONOMIA DE SINGULARIDADES ........... 360 7.9.1 A noção teórica da Economia de Singularidades................................................. 360 7.9.2 As publicações especializadas ................................................................................ 365 7.9.3 Os Chefs de cozinha ................................................................................................ 368 7.9.3.1 O chef do Hotel Sofittel: bons produtos como fonte de inspiração....................... 368 7.9.3.2 O Slow Food como rede de acesso a “bons” produtos para a produção da gastronomia singular ......................................................................................................... 369 7.9.3.3 Produtos coloniais e a culinária italiana em Belém do Pará.................................. 375 7.9.3.4 De filho de colono a chef de cozinha .................................................................... 383 7.10 A UNIFICAÇÃO DOS SERVIÇOS DE INSPEÇÃO: O SUASA ........................... 388 CONCLUSÕES................................................................................................................ 392 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 406 ANEXOS .......................................................................................................................... 418 utra sessão 1 CAPÍTULO 1 1 INTRODUÇÃO 1.1 A PROBLEMÁTICA DA PESQUISA No Oeste Catarinense, região de origem dos maiores grupos agroindustriais de carnes de aves e suínos do Brasil, a partir de meados da década de 1990 intensificou-se de maneira expressiva a comercialização de “produtos coloniais”. Por “produtos coloniais”, entende-se um conjunto de produtos tradicionalmente processados no estabelecimento agrícola pelos agricultores - os “colonos” - para o auto-consumo familiar, tais como salames, queijos, doces e geléias, conservas de hortaliças, massas e biscoitos, açúcar mascavo, dentre outros. Embora a própria noção de produto colonial ainda esteja em construção, sua imagem está relacionada aos imigrantes europeus e aos seus descendentes, sobretudo os de origem italiana e alemã, que inicialmente se instalaram na Serra Gaúcha em fins do século XIX e que, no início do século XX, migraram para a região Oeste de Santa Catarina, constituindo as “colônias”. O próprio IBGE inicialmente denominava as microrregiões homogêneas que compunham a mesorregião Oeste como “Colonial do Oeste Catarinense” e “Colonial Vale do Rio do Peixe”. Na região, “colono” é também sinônimo de agricultor. Assim, “colonial” faz “referência” a certa cultura e tradição, ligada ao saber-fazer dos imigrantes da Europa não ibérica, ao seu modo de vida, a suas formas especificas de ocupar o território e fazer agricultura, atributos valorizados pelos consumidores1. 1 Apesar da falta de dados empíricos que permitam traçar o perfil destes consumidores de produtos coloniais, as informações de que se dispõe até o momento apontam para consumidores de classe média, formada por profissionais liberais como médicos, advogados e engenheiros, assim como empresários, funcionários públicos e empregados com melhores salários. Estes consumidores adquirem seus produtos diretamente junto aos agricultores (vão até a propriedade do agricultor ou, o que é mais freqüente, este último faz a entrega em sua casa), em pequenos super-mercados, mercearias e padarias ou nas feiras livres existentes em algumas cidades da região. Geralmente, estes consumidores têm suas origens relacionadas ao meio rural (são ex-agricultores ou filhos de agricultores), ou então buscam produtos de qualidade diferenciada, qualidade esta garantida por relações de confiança. 2 Duas pesquisas de mercado (Oliveira et al., 1999 e DOGMA/EPAGRI,1998), foram importantes para captar a valorização da imagem dos produtos coloniais junto aos consumidores, ambas abrangendo os principais centros urbanos do estado de Santa Catarina. A primeira, “Avaliação do Potencial da Indústria Rural de Pequeno Porte” inquiriu consumidores e distribuidores (decisores de compra, como gerentes de supermercados, minimercados, mercearias, padarias e lojas especializadas), buscando determinar a imagem dos produtos da Indústria Rural de Pequeno Porte (IRPP)2; a segunda entrevistou responsáveis por estabelecimentos comerciais varejistas e referiu-se à avaliação do mercado de produtos coloniais. A primeira pesquisa foi realizada na Grande Florianópolis e nas cidades de Joinville, Lages, Chapecó e Criciúma, visando conhecer os hábitos de compra dos consumidores quanto ao produto das agroindústrias de pequeno porte. Foram feitas perguntas em relação aos seguintes critérios: saúde, nutrição, honestidade, tradição, natureza, higiene, carinho, lembrança, disponibilidade e qualidade. A imagem mostrou-se positiva junto aos consumidores em todos esses critérios, principalmente nos de nutrição (96,5%), lembrança (94,5%), saúde (92,3%) e honestidade (86%). Sobre as vantagens dos produtos coloniais, a mais citada, de longe foi a de serem produtos saudáveis/naturais, vindo a seguir, bem abaixo, as questões de preço e sabor. Quanto à denominação que estes produtos processados no meio rural em unidades de pequeno porte deveriam receber para a caracterização de sua identidade, 65% dos consumidores e 57% dos decisores de compra citaram “produtos coloniais” (OLIVEIRA et al., 1999). A pesquisa seguinte foi realizada nas cidades de São Miguel do Oeste, Chapecó, Concórdia, Xanxerê, Florianópolis e Joinville junto aos decisores de compra - proprietários e gerentes de supermercados, mini-mercados e padarias. A pesquisa foi relatada em Dogma/Epagri (1999), relatório não publicado, no qual constam prognósticos altamente positivos sobre o potencial de mercado dos produtos coloniais: Pelos resultados obtidos, fica patente que os produtos coloniais têm um excelente posicionamento junto aos distribuidores de alimentos. [...] A questão social relativa ao colono deve ser realçada com o intuito de se reforçar a imagem “colonial” dos produtos. [...] o potencial de crescimento real para os produtos coloniais é ilimitado, uma vez que eles podem concorrer diretamente com os produtos similares industrializados, ocupando fatias de mercado deste. [...] Há demanda positiva e expectativa de aumento de consumo de produtos coloniais. [...] Além da análise dos números projetados de mercado, cabe ainda uma 2 Note-se que os autores desta pesquisa não adotaram o termo “Agroindústria Familiar Rural”, denominação que passou a predominar somente a partir da implantação do Pronaf Agroindústria, discutido no capítulo 4.3 observação sobre a conjuntura favorável para estes produtos, como a busca da “Natureza”, “do Campo”, de “Produtos Mais Saudáveis”, enfim, de Qualidade de Vida. Esta conjuntura por si só já é uma excelente oportunidade de negócios (DOGMA/EPAGRI, 1998). Entretanto, os autores alertaram sobre a possibilidade de ocorrer a descaracterização dos produtos coloniais junto aos consumidores. As pesquisas citadas subsidiaram a discussão e a elaboração do “Pronaf Agroindústria” e a criação da marca registrada “Sabor Colonial”, de uso coletivo dos agricultores organizados em cooperativas e associações ligadas à Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (Apaco), um dos principais atores que busca ocupar o mercado de produtos coloniais na Região. A partir de meados da década de 1990 tem-se observado um aumento na oferta de produtos coloniais, sobretudo nas feiras livres e em vendas diretas aos consumidores. Tem também aumentado o número de agricultores voltados ao mercado de produtos coloniais, que passaram a representar uma das melhores opções para compor a renda familiar, ameaçada pelo movimento de exclusão em atividades tradicionais, sobretudo na suinocultura. Desde então, em torno da imagem positiva do “colonial”, uma série de iniciativas tiveram início na Região, mobilizando um importante número de agentes, tais como, Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado de Santa Catarina (Epagri), associações de municípios e prefeituras, Organizações Não-Governamentais - (ONGs), sindicatos e federações de trabalhadores rurais, dentre outros, buscando apoiar as iniciativas dos agricultores familiares para a produção de produtos coloniais. Entretanto, outros agentes, tais como agroindústrias tradicionais, ex-funcionários destas e profissionais liberais, - agrônomos, veterinários, dentre outros - também passaram a utilizar a imagem positiva dos produtos coloniais para se apropriarem deste mercado. Assim, no interior do maior pólo agroindustrial de carnes de suínos e aves do País tem-se presenciado, em paralelo, o surgimento de um mercado de produtos diferenciados, o “mercado de produtos coloniais”, o qual suscita uma série de questões: Quais são os atores sociais que estão se apropriando deste mercado e quais tendem a ser excluídos? Como os diversos atores se posicionam frente à noção de produto “colonial” e como utilizam sua imagem para ocupar os mercados local e regional? Como os agricultores se organizam para produzir para o mercado produtos até então destinados ao consumo familiar? Quais as estratégias adotadas pelos agentes que buscam apoiar as iniciativas 4 destes agricultores (repasse de tecnologias, treinamentos, assessorias, promoção da organização de grupos e pequenas cooperativas) e quais são as implicações deste apoio junto à imagem dos produtos coloniais? Que transformações estes produtos coloniais têm que sofrer para poder sair da cozinha destes agricultores e chegar até o mercado formal? Até que ponto estas transformações comprometem a imagem e os valores do colonial junto aos consumidores? As questões acima compõem a problemática da pesquisa, que pode ser assim sintetizada: como se processa a construção social do mercado de produtos coloniais em curso na região Oeste de Santa Catarina? A hipótese principal da pesquisa é que em torno da imagem positiva e dos valores dos produtos coloniais está em construção um mercado de produtos com atributos de qualidade específica diferenciando-se, portanto, daqueles produzidos pelas agroindústrias tradicionais presentes na região Oeste Catarinense. Porém, ao mesmo tempo em que este mercado encontra-se em construção, está sob risco de descaracterização. Esta descaracterização pode se dar basicamente por duas vias. A primeira, pelas exigências da legislação dos serviços de inspeção sanitária, que obrigam os agricultores a incorporarem processos, técnicas, equipamentos e insumos desenvolvidos para a produção industrial, gerando transformações em seus produtos que, no limite, não seriam mais reconhecidos pelos consumidores como “coloniais”. A segunda, pela apropriação do mercado de produtos coloniais pelas empresas tradicionais e por técnicos do setor agroalimentar. Estes dois movimentos podem levar à banalização do uso da imagem dos produtos coloniais, cujo mercado estaria assim submetido a um processo de construção e de descaracterização ao mesmo tempo. A partir das noções teóricas adotadas, apresentadas no capítulo 2, concebe-se o “colonial” como um artefato híbrido, misto de ciência e cultura, que mobiliza e articula diversas redes para a construção deste mercado. Adota-se como método de pesquisa “seguir o colonial” para ver como os vários atores usam, transformam, moldam e dão diferentes interpretações e significados a este artefato para construir seu mercado. Este processo de mobilização e de diferentes traduções do artefato colonial é um movimento repleto de tensões e negociações, gerado pela mercantilização de valores tradicionais. Porém, entende-se que a mercantilização destes valores é parte constituinte de um processo maior, qual seja, a construção social deste mercado. Isto porque a construção social do mercado dos produtos coloniais implica não apenas na mobilização de atores 5 sociais, mas também, de diferentes saberes e conhecimentos e de um variado conjunto de processos de produção e de tecnologias que causam efeitos junto ao mercado. Dito de outra forma: conforme a Teoria das Convenções, a negociação dos valores dos distintos mundos -doméstico, industrial, mercantil, cívico, inspirado, de opinião e ecológico -, é parte constitutiva do mercado de produtos coloniais. A decisão de “seguir o colonial” enquanto um artefato que sofre transformações ao passar de mão em mão dos diferentes atores que o mobiliza, conduz à necessidade de mapear e descrever esta diversidade de atores, conhecimentos, tecnologias e valores mobilizados para a construção deste mercado. Portanto, a realização da pesquisa implica na descrição e análise das principais iniciativas em torno do colonial, procurando compreender os diferentes usos do colonial, bem como os efeitos daí resultantes sobre um mercado que se encontra em fase inicial de construção. Para melhor expor a problemática que compõe esta tese, a seguir apresenta-se brevemente a região onde se realizou esta pesquisa. 1.2 BREVE CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DE ESTUDO A região Oeste de Santa Catarina3, com 1,06 milhão de habitantes, dos quais meio milhão habitam no meio rural (37% da população rural do Estado de Santa Catarina), abrange 118 municípios (40% dos municípios do Estado) e ocupa um território de 25.300 km², representado 26% da área de Santa Catarina. Contribui com mais de 50% da produção agrícola do Estado e as atividades primárias ocupam mais de 51% de sua população economicamente ativa. (TESTA et al., 2003). 3 Esta regionalização é definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base em um conjunto de critérios edafo-climáticos e socioeconômicos. Assim, estas regiões possuem uma relativa homogeneidade no que se refere a estes critérios. 6 Figura 1: Representação parcial da América do Sul, com destaque para a região Oeste de Santa Catarina. Fonte: Testa et al. (1996). Colonizada4 a partir do inicio do século passado, sobretudo por imigrantes de origem italiana e alemã5, esta região tem sua economia baseada na agropecuária, da qual dependem os demais setores. Caracteriza-se pelo predomínio, segundo o termo cunhado por Testa et al. (1996), pela agricultura familiar diversificada voltada ao mercado e integrada à agroindústria. Este modelo constituiu a base histórica do crescimento 4 O termo “colonizada” aqui se refere ao processo de migração e ocupação das terraspelos “colonos”, constituindo as “colônias”, ou seja, as comunidades rurais de agricultores. “Colônia” refere-se também ao lote que cada agricultor adquiria das empresas corretoras que organizavam a comercialização das terras a serem ocupadas pelos imigrantes. Uma “colônia” corresponde a um lote de 24,2 hectares de área. 5 Estes imigrantes começaram por colonizar, no final do século XIX, a Serra Gaúcha, atualmente uma das regiões de maior dinamismo econômico e de melhor qualidade de vida e eqüidade social do Brasil. A partir do início do século XX, seus descendentes, em busca de novas terras, passaram a ocupar o Oeste de Santa Catarina e posteriormente o Sudoeste do Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, e estados da Amazônia, Sudoeste da Bahia e o cerrado brasileiro, originando uma das correntes migratórias mais características e emblemáticas do Brasil. Atualmente, estes descendentes de imigrantes estão entre os principais responsáveis pela grande produção de grãos nestas regiões. 7 econômico regional, propiciando a construção do maior parque agroindustrial de suínos e aves da América Latina6 em apenas cinco décadas. Embora existam outras indústrias - metal-mecânica, moveleira e outras -, a economia regional depende principalmente das indústrias agroalimentares e de atividades comerciais e de serviços direta ou indiretamente ligadas à agropecuária, que constitui o núcleo dinâmico da economia. Figura 2. Imagem da paisagem típica do meio rural do Oeste Catarinense, representando o mosaico formado pelas pequenas propriedades rurais. Fonte: Foto do autor 6 Segundo o jornal Diário Catarinense de 09/10/2005, 11 empresas de Santa Catarina faturaram juntas, naquele ano, R$ 44 bilhões, empregando 140 mil pessoas e integrando o “Clube do Bilhão” - conjunto de empresas com faturamento igual ou superior a um bilhão de reais por ano -, liderado, no Estado pelas agroindústrias. A Sadia e a Perdigão, os dois maiores grupos agroindustriais de suínos e aves do País, ambos fundados na Região Oeste Catarinense, atualmente, são empresas multinacionais, que juntas empregam 70 mil pessoas. O faturamento da Sadia em 2004 foi de R$ 7,3 bilhões, com um crescimento de 25%. Os investimentos da empresa em 2005 chegaram a R$ 500 milhões. A Perdigão emprega 31,4 mil funcionários, mantém parceria com cerca de 5.700 produtores integrados e exporta seus produtos para mais de 100 países. Sua receita líquida em 2004 foi de R$ 4,9 bilhões. A Coopercentral Aurora (cooperativa de segundo grau), com receita na ordem de R$ 1,5 bilhão em 2004, cresceu 18,14% em relação ao ano anterior. Além destas, estão sediadas na região a Seara e outras de menor porte. 8 Embora a agricultura apresente alto grau de diversificação, em grande parte direcionada para as necessidades alimentares da família, são poucos os produtos que representam oportunidades de mercado para os agricultores. Dentre eles, destacam-se o trinômio milho/suínos/aves, o feijão, a soja e, mais recentemente, o leite, os quais respondem por mais de 90% do Valor da Produção Primária. Para Testa et al., (1996), a Região estaria passando por uma crise, tendo como um de seus principais componentes o êxodo rural para as cidades da própria região, especialmente as de maior porte e o êxodo regional, sobretudo para as cidades do litoral catarinense e para capitais de outros estados, como Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. No período 1991-2000 a população total da região cresceu a apenas 0,59% ao ano e a rural decresceu a -2,49% ao ano. Nesse mesmo período, o Estado de Santa Catarina apresentou uma taxa de crescimento demográfico de 1,83% ao ano, conforme se pode observar na Tabela 1. Tabela 1. Evolução da população do Oeste de Santa Catarina em comparação a do Estado - Número de habitantes Domicílio 1970 1980 1991 2000 Taxa de Crescimento (% a.a) Oeste Catarinense: 1970/80 1980/91 1991/00 Urbano 167.465 327.137 506.977 663.663 6,93 4,04 3,04 Rural 543.993 576.051 501.658 399.866 0,57 -1,25 -2,49 Total 711.458 903.188 1.008.635 1.063.529 2,41 1,01 0,59 Santa Catarina (Total) 2.901.734 3.627.933 4.541.994 5.349.580 2,26 2,06 1,83 Fonte: Ferrari (2003), a partir dos Censos Demográficos 1970, 1980, 1991 e 2000. IBGE Além do esvaziamento demográfico e o conseqüente enfraquecimento econômico e político regional, a população que está migrando para outras regiões é majoritariamente composta por jovens e, dentre estes, os que possuem um nível de escolaridade maior, conforme constatado em pesquisa realizada por Silvestro et al. (2001). Este fenômeno migratório acelera ainda mais o empobrecimento e limita a construção de opções de desenvolvimento regional, devido à perda de sua mão-de-obra mais qualificada. Quanto às causas da crise, Testa et al. (1996)7 destacam: 7 No capítulo 4 desenvolvem-se estas análises buscando problematizar o estabelecimento de consenso regional em torno do diagnóstico apresentado por Testa et al. (1996). Outras percepções da crise poderiam ser apresentadas, como, por exemplo, a do ponto de vista dos colonos e dos movimentos sociais, conforme analisado por Renk (2000): “Não obstante o mesmo significado, há diferentes conotações significativas para a crise. Estas são retraduções das evidências empíricas que, por sua vez, não permitem leituras 9 a) A concentração e conseqüente exclusão na suinocultura: esta atividade representava importante fonte de renda para 67 mil estabelecimentos rurais em 1980. Já em 1995/96 este número caiu para 32 mil e destes, apenas 8,5 mil concentravam 83% da produção (IBGE, 1998). Este processo de concentração da produção tem gerado problemas sociais, pela exclusão massiva de agricultores, e problemas ambientais, pela excessiva concentração dos dejetos, dificultando seu tratamento e sua distribuição como fertilizante; b) A diminuição do volume de recursos de crédito agrícola8 e o aumento das taxas de juros no final dos anos 1980, requerendo mais capital próprio e implicando em maiores custos aos agricultores; c) O esgotamento crescente dos solos, explorados acima de sua capacidade, impondo maiores custos com fertilizantes e práticas conservacionistas; d) A redução da rentabilidade dos principais produtos tradicionais, especialmente milho, suínos, leite e feijão, causada pela queda dos preços em proporções maiores do que o aumento da produtividade e não compensada pela relação de troca produtos/insumos; e) A escassez de terras aptas para culturas anuais, que somam apenas um terço da área total da região e que se encontram em proporções ainda menores nos estabelecimentos de menor área. Essas áreas compostas por solos declivosos e pedregosos limitam o tipo de atividades e de tecnologias a serem utilizadas e, conseqüentemente, a renda gerada com estas atividades, além de aumentar a penosidade das atividades agrícolas; f) O esgotamento da fronteira agrícola regional, verificado ainda na década de 1970; g) A estrutura fundiária concentrada e, ao mesmo tempo, com um grande número de minifúndios, conforme se observa na tabela 29. Embora, quando comparado ao restante do Brasil, o Oeste Catarinense seja considerado uma das regiões de estrutura fundiária menos concentrada, observa-se que 70% dos estabelecimentos possuem menos de 20 hectares, mas ocupam apenas 28,48 % do total da área. Estabelecimentos com menos de 20 reducionistas. Não há possibilidade de apresentar uma oposião binária entre a expressão de cunho mais acadêmico, elaborado pelos técnicos do Estado, e as formulações do mundo rural. No primeiro caso, há uma preocupação técnica que parte da economia rural, da administraçãorural e da agronomia. No segundo conjunto, aqueles elementos retraduzem-se em linguajar menos elaborado, um entreglosar num universo de despossessão lingüística. No entanto, são falas coloridas com os sentimentos da ‘dificuldade de existir’. E estas, sem dúvida, não obstante calcadas nas condições de existência, têm matizes diversos”. (RENK, 2000, p. 66). 8 O livro foi escrito antes da existência do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). 9 Até a conclusão desta pesquisa os dados do IBGE relativos ao Censo Agropecuário realizado em 2006 ainda não estavam disponíveis para consulta. 10 hectares não possuem área suficiente para a sua viabilização apenas com as culturas anuais tradicionais, necessitando de atividades de maior valor agregado. Ressalte-se que nestes pequenos estabelecimentos estão concentradas as terras mais declivosas e pedregosas; h) A grande distância dos principais mercados consumidores - 1.000 km de São Paulo e 1.500 km do Rio de Janeiro. Ressalta-se que não há ferrovias e o transporte de mercadorias é feito todo por caminhões; i) O risco de exclusão em massa da produção de leite, motivada principalmente pelas exigências impostas pela nova legislação sanitária (Portaria 56, atual Instrução Normativa 51), pela prática de bonificação no preço em função do volume comercializado e pelo acesso seletivo ao crédito e à assistência técnica10. A ação conjunta desses fatores gerou um quadro de descapitalização, refletindo-se na dificuldade de criar oportunidades de trabalho e renda. Silvestro et al. (2001), consideraram como “capitalizados” apenas 13% dos estabelecimentos agrícolas do Oeste Catarinense. Entre os demais, 29% foram classificados como “em transição”, 42% como “descapitalizados”, 1,5% como “patronais” e 14,5% como “não dependentes da agricultura”. O critério para definir o grau de capitalização foi o Valor Agregado (VA)11 em salários mínimos por unidade de Mão-de-Obra ocupada (SM/MO): com 3 SM/MO ou mais, foram considerados estabelecimentos capitalizados; entre 1 e 3 SM/MO, em transição e com menos de 1 SM/MO, descapitalizados. 10 Para uma discussão mais detalhada a respeito desta problemática, ver Testa et al. (2003). 11 O valor agregado (VA) de cada propriedade rural foi definido como a diferença entre o valor bruto da produção (VBP) e os custos variáveis da produção (despesas). Assim, o valor agregado representa a margem bruta mais o consumo interno da propriedade, o que significa que o valor agregado por pessoa ocupada é um saldo disponível para remunerar a mão-de-obra familiar (SILVESTRO et al., 2001). 11 Tabela 2. Estrutura fundiária da Região Oeste catarinense 1985 1995-96 Estabelecimentos Área Estabelecimentos Área Estrato de área (ha) Número % acum. ha % acum. Número % acum. ha % acum. Menos de 5 17.640 17,43 50.615 2,26 11.578 13,12 33.468 1,55 5 a menos de 10 22.460 39,63 161.764 9,48 18.051 33,56 133.080 7,70 10 a menos de 20 32.822 72,07 452.393 29,68 32.229 70,07 449.646 28,48 20 a menos de 50 23.001 94,80 672.272 59,70 20.977 93,83 612.030 56,73 50 a menos de 100 3.516 98,27 233.247 70,12 3.482 97,78 230.966 67,43 100 a menos de 1000 1.590 99,85 381.615 87,16 1.828 99,85 446.265 88,06 1000 e mais 121 99,97 287.654 100,00 120 99,98 258.426 100,00 Sem declaração 35 100 - - 14 100 - - Soma 101.185 - 2.239.560 - 88.279 - 2.163.881 - Fonte: Ferrari (2003), a partir dos dados dos Censos Agropecuários do IBGE, anos 1985 e 1995-96. Um outro problema colocado para a região é o que se pode chamar de “questão sucessória”. Silvestro et al. (2001, p. 20), constataram que 12% dos estabelecimentos familiares do Oeste de Santa Catarina eram habitados por casais com mais de 41 anos de idade e sem presença de filhos. Isto significa dizer que 9,2 mil estabelecimentos familiares rurais não possuíam sucessores. Esta mesma pesquisa apontou em outros 17% dos estabelecimentos, a presença de apenas um filho (rapaz ou moça), indicando que a proporção de estabelecimento sem sucessores certamente era superior a 12%. Tentando responder quais as aspirações profissionais dos jovens agricultores do Oeste de SC, Silvestro et al. (2001) constataram que, embora 69% dos rapazes pretendessem permanecer na agricultura, apenas 32% das moças desejavam fazê-lo, mostrando que a absoluta maioria delas não se dispunha a desempenhar o mesmo papel exercido por suas mães. Ou seja, há também um forte viés de gênero relacionado ao desempenho da profissão de agricultor, que não se explica apenas por questões econômicas. São várias as causas desse desinteresse das moças em permanecer na agricultura, tais como: as poucas possibilidades de herdar a propriedade, pois estas são transferidas aos homens; o baixo espaço para as mulheres na participação na gestão dos empreendimentos e a pouquíssima participação na vida sindical, em cooperativas ou outras atividades extra-propriedade que, regra geral, são de acesso quase que exclusivo dos homens. Ou seja, se o exercício da cidadania já é baixo para os homens, para as mulheres é ainda mais restrito. 12 Conforme aponta Silvestro et al. (2001), 16% das moças, (variando entre 14% nas propriedades “em transição” e 20% nas consideradas “em exclusão”) responderam que não costumavam participar das decisões que dizem respeito à propriedade: A sua não participação nas discussões sobre o futuro da propriedade demonstra a pouca atração, que, em geral, as moças têm pelo trabalho na agricultura. Este comportamento é resultante de, pelo menos, duas razões (sem levar em conta seu maior preparo educacional para enfrentar o mercado de trabalho urbano): a ausência de espaço de participação na propriedade e o desinteresse das moças pela agropecuária em função da penosidade do trabalho associada a esta atividade. Talvez esta última razão explique a preferência de algumas moças entrevistadas casarem com rapazes de fora do meio rural. (SILVESTRO et al., p. 74) Quanto à questão educacional dos jovens do meio rural, os dados analisados por Silvestro et al. (2001) apontam para um quadro de baixo nível de educação formal: a partir de uma amostra de 9.190 propriedades de 10 municípios representativos da Região12, 1.940 jovens entre 25 e 29 anos – e que são os potenciais sucessores de seus pais - 1.163 (60% deles) estudaram apenas os primeiros quatro anos do ensino fundamental. Nesta faixa etária está também o maior índice de analfabetos (4% do total). Estes dados indicam também que os jovens que optam em ficar na propriedade paterna são os que possuem menos anos de escolaridade quando comparado aos que decidem migrar para o meio urbano. 1.3 AS OPÇÕES DE INSERÇÃO DOS AGRICULTORES FAMILIARES AO MERCADO A agricultura familiar da região caracteriza-se historicamente por sua forte relação com o mercado. Embora a produção para o auto-consumo sempre estivesse presente, a produção para o mercado é a atividade principal destes estabelecimentos. Atualmente, esta relação com o mercado passa por três principais vertentes: a) produção de matérias primas para a indústria agroalimentar; b) produção de produtos diferenciados e c) criação de novas opções econômicas agrícolas e não-agrícolas. Quanto à permanência nas cadeias tradicionais de produção - a suinocultura, avicultura, grãos e, sobretudo o leite, estas 12 Os dados trabalhados pelos autores referem-se aos levantados por um Censo Agropecuário Municipal, concebido e realizado pela Empresa de Pesquisa e Extensão Rural do Estado de Santa Catarina (Epagri) e Instituto de Economia e Planejamento Agrícola do Estado de Santa Catarina (Icepa). 13 continuam sendo fundamentais para inserção de forma massiva destes agricultores ao mercado, como se pode observar na Tabela 3. Tabela 3. Alcance social da produção e das vendasdas principais atividades agropecuárias no Oeste Catarinense. Agricultores Leite Milho Suínos Feijão Fumo Aves Produtores 70.000 80.000 56.000 60.000 18.000 9.000 Vendedores 40.000 - 32.000 - 18.000 9.000 Fonte: Testa et al. (2003) a partir do Censo Agropecuário de 1998 (IBGE). Quanto à suinocultura, o forte processo de concentração da produção discutido anteriormente, continua se ampliando e nem tão pouco há perspectivas da expansão no número de avicultores e fumicultores13. A produção de grãos, por sua vez, não gera uma renda suficiente para atender às necessidades básicas da maioria das famílias dos agricultores, sobretudo devido à pouca área de terras disponíveis na absoluta maioria dos estabelecimentos, mesmo sendo o milho ainda a principal fonte de renda para o conjunto de pequenos agricultores. Neste limitado leque de opções, a bovinocultura leiteira surge como a mais recente opção econômica para uma ampla maioria de agricultores. Isto porque a produção de leite já fazia parte das atividades de subsistência da absoluta maioria das propriedades rurais e possui barreiras à entrada menores quando comparada à suinocultura ou a avicultura e possibilita a expansão gradual da escala da produção na propriedade rural. É também adequada ao trabalho familiar e à sua tradição histórico-cultural e possibilita o uso econômico e conservacionista dos recursos naturais. A produção leiteira é também de grande importância econômica e social devido à sua capacidade de absorver mão-de-obra e de agregar valor na propriedade, ao uso de terras não-nobres e à ocupação da mão-de-obra inclusive nos períodos nos quais ela estaria ociosa não fosse a bovinocultura de leite. Por essas razões, a atividade leiteira apresenta-se como a principal opção à substituição da suinocultura, com potencial para a viabilização da maioria das propriedades familiares, bem como para a dinamização da economia regional, sobretudo dos pequenos municípios. Segundo Testa et al., (2003), em 1999, a região produzia, por ano, 450 milhões de litros de leite, em 40 mil estabelecimentos agrícolas. 13 A fumicultura é considerada uma atividade de baixo status, desenvolvida pelos agricultores mais pobres e que foram excluídos das demais atividades. 14 Porém, está em curso no Brasil a implantação de uma nova legislação que redefine os padrões higiênicos e sanitários na produção primaria, no armazenamento e no transporte do leite, impondo aos produtores investimentos em equipamentos como ordenhadeiras, resfriadores de expansão, tanques isotérmicos e instalações. Como estes investimentos não aumentam a produção e, consequentemente, nem a renda, os produtores, em sua grande maioria, não terão condições de se adequar a esta nova legislação e estão na iminência de também serem excluídos desta atividade. Testa et al. (2003), avaliam que se os prazos para a implantação desta portaria não forem estendidos e políticas públicas não forem implantadas para que a internalização destes investimentos sejam viáveis, haverá uma exclusão em massa também desta atividade permanecendo, dos atuais 40 mil produtores que comercializam leite, não mais que 3.00014. Se, como visto acima, a permanência nas cadeias tradicionais de produção - suinocultura, avicultura, grãos e, sobretudo, leite, continua sendo fundamental para a inserção de forma massiva destes agricultores ao mercado, a obtenção de um patamar adequado de renda para muitas famílias rurais passa pela implantação de novas opções agrícolas de alta densidade econômica e por opções não agrícolas, como o turismo rural, a constituição de indústrias, a prestação de serviços no meio rural e a “agregação de valor”15 – que no caso ocorre via a produção de produtos coloniais. Na seção seguinte apresentam-se alguns dados a respeito deste mercado de produtos coloniais. 1.4 PRODUTOS COLONIAIS: ALGUNS NÚMEROS Apesar da pouca disponibilidade de informações a respeito, Mior (2005), a partir dos dados do IBGE, levantou alguns números que ilustram a importância da atividade de transformação realizada no meio rural de Santa Catarina. Segundo estes dados, os estabelecimentos com menos de 50 hectares são responsáveis por mais de 80% do valor dos produtos transformados ou beneficiados no meio rural, o que mostra a importância 14 Segundo o IBGE (1998) o Brasil possui 1.489.135 produtores de leite que produzem aproximadamente 22 bilhões de litros/ano. Estima-se que, num prazo estimado em cinco anos, a exclusão devido a esta portaria pode atingir de 900 mil a um milhão de famílias da atividade, o que na maioria dos casos, dada à importância desta atividade em seus sistemas produtivos, representará a exclusão da própria agricultura. 15 No decorrrer da tese, problematiza-se o termo “agregação de valor”, mostrando a imprecisão deste conceito no que diz respeito à produção de produtos colonais. 15 desta atividade para a agricultura familiar. No caso do processamento de leite, dos 59 mil produtores de queijo e requeijão, havia, em 1995, mais de 21 mil que comercializavam estes derivados, representando 8.918 toneladas e um valor de produção de aproximadamente 33 milhões de reais. Neste mesmo ano de 1995, a produção de queijo e requeijão nas propriedades rurais do estado alcançou 13 mil toneladas, o que, segundo Wilkinson e Mior (1999) equivalem ao total de queijo produzido pela agroindústria convencional. Embora os dados do IBGE não sejam disponibilizados de forma desagregada por região, o que impede uma análise em separado das informações da Região Oeste, pode-se afirmar, segundo Mior (2005), que a participação da transformação destes produtos feitos pelos agricultores familiares desta região é bastante expressiva. Tabela 4. Produtos transformados ou beneficiados nos estabelecimentos agropecuários de Santa Catarina (1995). Produto transformado ou beneficiado Número de Produtores Quantidades produzidas (t) Número de Produtores que vendem Quantidade vendida (t) Valor da produção (mil R$) Participação no VBP (%) Carne verde de bovinos 80.802 21.743 2.579 4.412 32.037 27,5 Carne de suínos 108.451 22.233 1.815 3.204 26.175 22,5 Embutidos (Salames/lingüiças) 20.398 2.002 483 659 5.996 5,1 Banha 94.760 9.119 2176 578 6.144 5,3 Queijo/requeijão 59.741 13.837 21.376 8.918 33.021 28,4 Manteiga 15.864 557 2.049 201 1.040 0,9 Farinha de mandioca 3.918 11.115 786 8.978 3.660 3,1 Melado 12.172 4.074 891 2.714 2.745 2,4 Arroz em grão 32.946 9.046 170 1.334 3.095 2,7 Fumo (em rolo ou em corda) 821 718 585 588 1.507 1,3 Fubá de milho 17.058 3.183 81 228 1.034 0,9 Vinho de uva 2.672 2.591 220 1.291 1.535 1,3 Total - 100.220 33.211 33.105 116.454 100,0 Fonte: Mior (2005), a partir dos dados do Censo Agropecuário do IBGE 1995/96. Por meio dos dados dos censos agropecuários é possível também analisar a evolução da produção artesanal - sinônimo de colonial -, agora por região e compará-la ao restante do Estado, tomando-se três importantes produtos: queijo/requeijão, embutidos de carne suína e melado, conforme se pode verificar na tabela 5. Uma primeira constatação feita por Mior são as distintas dinâmicas na evolução por produto entre derivados de leite (queijo e requeijão), embutidos de suínos (salame e lingüiça) e de cana-de-açúcar 16 (melado). Nos três casos, o número de produtores cresceu entre os censos de 1975 e de 1985 e decresceu entre 1985 e 1995. Porém embora haja semelhança na evolução do número de produtores, o processamento do leite diferencia-se pela grande importância da produção de queijo e requeijão nas propriedades agrícolas. Em relação ao total do Estado de Santa Catarina, a região Oeste possuía, em 1995, mais de 56% dos produtores de queijo e requeijão, mais de 84% dos produtores de embutidos e,no melado, mais de 93%. Já o processamento de carne suína (produção de embutidos) nas propriedades era muito pequeno em relação à produção industrial. Para Mior (2005), a evolução da produção de derivados de suínos reflete o impacto crescente da industrialização convencional sobre a região: em 1975 havia 35 mil agricultores que produziam embutidos, em 1985 eram 41 mil e em 1995 este número caiu para 17 mil. No caso do leite, a redução do número de produtores de queijo e requeijão da década de 80 para a de 90 foi pequena – de 41 mil para 33 mil e o volume da produção diminuiu pouco - de sete mil para seis mil toneladas. Ainda segundo dados do Censo Agropecuário, em 95/96 (IBGE, 1998), a transformação do leite em queijo colonial envolveu 33,73 mil produtores rurais no Oeste Catarinense. Ao analisar o processamento de cana-de-açúcar, Mior (2005) chamou a atenção para a concentração espacial, com mais de 90% dos produtores de melado localizados na Região Oeste, especialmente nas microrregiões de Chapecó e São Miguel do Oeste. De 12.172 produtores deste produto no Estado, 11.431 concentravam-se no Oeste, sendo que 13 municípios habitados predominantemente por pessoas de origem alemã reuniam 7.738 produtores, ou seja, dois terços dos produtores da região. Somente em Itapiranga e Palmitos existiam em 1995, 900 produtores de melado. Este dado evidencia, segundo Mior (2005), além das condições edafoclimáticas favoráveis para a cultura da cana-de-açúcar, uma identidade cultural e étnica associada à produção do melado, produto muito apreciado pelos imigrantes de origem germânica, especialmente o melado batido16. 16 Embora não se disponha de números para se fazer uma comparação mais precisa, observou-se, durante a pesquisa de campo, certa preferência para a produção de alguns produtos, de acordo com cada etnia. Assim, conforme visto acima, enquanto agricultores de origem germânica têm preferência pela produção de produtos coloniais derivados da cana-de-açucar e de doces (melado, açúcar mascavo, doces de frutas e geléias), os de origem italiana concentram-se nas atividades relacionadas à transformação do leite e derivados da carne suína. Mesmo não constituindo isso uma regra, há certos produtos que são especialidades de uma ou outra etnia, como, por exemplo, o melado batido, produzido quase que exclusivamente pelos agricultores de origem alemã. Já o açúcar mascavo, os doces de frutas e as geléias, são produzidos por ambas as etnias, mas com um certo predomínio da de origem alemã. Quanto aos embutidos de suínos, os agricultores de origem germânica, além dos produtos tradicionais, como salme colonial, elaboram também produtos específicos direcionados aos consumidores desta origem (por 17 Tabela 5. Evolução do processamento de leite (queijo, requeijão), carne suína (salames e lingüiças) e cana- de-açúcar (melado) nos estabelecimentos rurais de Santa Catarina. 1975 1985 1995/96 Região Oeste SC Região Oeste SC Região Oeste SC Anos Produto Produt. N. Qtde. (t) Produt. N. Qtde. (t) Produt. N. Qtde. (t) Produt. N. Qtde. (t) Produt. N. Qtde. (t) Produt. N. Qtde. (t) Queijo/ requeijão 26.439 4.171 36.615 5.804 41.404 7.381 63.428 11.674 33.730 6.149 59.741 13.837 Embutidos (Salame, lingüiça) 35.012 2.472 46.624 3.023 41.339 2.439 53.816 2.985 17.298 1.433 20.398 2.002 Melado 9.414 1.544 10.332 5.714 18.727 5.101 20.004 8.632 11.431 1.719 12.172 4.076 Fonte: Mior (2005), a partir dos dados dos censos agropecuários do IBGE. Ainda de acordo com Mior: “São estas experiências de transformação de produtos, envolvendo milhares de agricultores familiares, que se constituem na raiz das chamadas agroindústrias rurais da região e no estado, a partir dos anos 90”. (MIOR, 2005, p. 196). Há também uma forte vinculação entre as matérias-primas processadas e as atividades agropecuárias desenvolvidas pelas famílias pluriativas da região, conforme ressaltado por Ferrari (2003). Embora haja aquelas de importância fundamental para a sustentação econômica dos empreendimentos, sobretudo a bovinocultura de leite, a suinocultura e a produção de grãos, como já visto anteriormente, há a cana-de-açúcar, trigo, frutas, hortaliças, arroz, mel, dentre outras que, embora participem marginalmente para a formação da renda destas unidades familiares de produção, contribuem para otimizar o uso da terra e do trabalho ao longo do ano e, sobretudo, servem de matéria prima para o processamento de produtos coloniais. Entretanto, é importante salientar que os dados discutidos acima se referem aos do Censo Agropecuário de 1995/96, época em que o movimento para a construção de agroindústrias familiares rurais estava apenas no seu início. Para captar o impacto destes empreendimentos seria necessário comparar com os dados do Censo Agropecuário de 2006, os quais ainda não haviam sido disponibilizados pelo IBGE até a conclusão desta pesquisa. exemplo, alguns tipos de embutidos que devem ser cozidos em água antes de serem servidos) diferindo dos agricultores de origem italiana. Isto demonstra que a tradição está ainda fortemente relacionada às origens étnicas. 18 Quando os produtos coloniais começaram a ser processados em escala maior para o mercado, os agricultores, para se adequarem às normas dos serviços de inspeção sanitária, iniciaram a construção de suas agroindústrias familiares rurais, quer individualmente ou organizados em grupos. Na seção seguinte, busca-se quantificar este processo de construção de “agroindústrias” familiares rurais17, bem como a sua evolução nos últimos anos. 1.5 ALGUNS NÚMEROS SOBRE “AGROINDÚSTRIAS” O primeiro trabalho que buscou obter informações básicas sobre as Indústrias Rurais de Pequeno Porte (IRPPs)18 em Santa Catarina, como eram então denominadas estas unidades de transformação, foi o realizado por Oliveira et al. (1999). Além do censo das IRPPs existentes no Estado, nesta mesma pesquisa os autores realizaram também uma avaliação do potencial de mercado dos produtos processados por estas unidades. O referido censo identificou 1.116 IRPPs19 em todo o Estado, das quais 345 localizadas na Região Oeste, levantando desde iniciativas muito pequenas, “caseiras” e informais, até aquelas já consolidadas e inseridas no mercado formal de produtos alimentares. Uma primeira constatação relevante mostra que a grande maioria destes empreendimentos (79%) estava organizada informalmente, por pessoa física. Na tabela 6 constam as distintas formas de organização então existentes, nas diferentes regiões do Estado. 17 Embora se considere o uso do termo “agroindústria” no contexto artesanal uma impropriedade semântica, o mesmo é de uso corrente na Região e mesmo no Brasil, razão pela qual será adotado nesta pesquisa. 18 Por ocasião da realização da referida pesquisa, ainda não havia uma predominância de um termo para denominar estas unidades de processamento de produtos alimentares realizado por agricultores familiares e localizadas no meio rural. A partir da implantação do Projeto Piloto Pronaf Agroindústria é que o termo “agroindústria familiar rural” passou a predominar, como se discute no capítulo 4. 19 Oliveira et al. ressaltam que este número é maior que o levantado, já que em algumas regiões o retorno dos questionários, aplicados pelos técnicos dos escritórios municipais da Epagri, ficou aquém do esperado. Mesmo assim, os atores julgaram que os dados obtidos foram suficientes, em quantidade e qualidade, para traçar um perfil bastante preciso destas unidades. Apesar de se definir a regão Oeste como área de pesquisa para a tese, mesmo assim optou-se por apresentar
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