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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO DIOGO PEREIRA DA SILVA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO ORÇAMENTO PÚBLICO ATRAVÉS DO IMPOSTO DE RENDA: uma análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos Rio de Janeiro 2016 DIOGO PEREIRA DA SILVA Participação social no orçamento público através do imposto de renda: uma análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto COPPEAD de Administração, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Administração Orientadora: Ariane Cristine Roder Figueira Rio de Janeiro 2016 CIP - Catalogação na Publicação Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). P586p Pereira, Diogo Participação social no orçamento público através do imposto de renda: uma análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos / Diogo Pereira. -- Rio de Janeiro, 2016. 94 f. Orientador: Ariane Cristine Roder Figueira. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto COPPEAD de Administração, Programa de Pós-Graduação em Administração, 2016. 1. Participação social. 2. Imposto de Renda. 3. Gestão pública. 4. Incentivos �scais. 5. Administração - Teses. I. Cristine Roder Figueira, Ariane , orient. II. Título. DIOGO PEREIRA DA SILVA Participação social no orçamento público através do imposto de renda: uma análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto COPPEAD de Administração, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Administração Aprovada por: Prof.ª Dr.ª Ariane Cristine Roder Figueira (Orientadora) - COPPEAD/UFRJ Prof.ª Dr.ª Elaine Maria Tavares Rodrigues - COPPEAD/UFRJ Prof.ª Dr.ª Monica de Maria Santos Fornitani Pinhanez – EBAPE/FGV Rio de Janeiro 2016 AGRADECIMENTOS É chegada a hora. Enfim! Mas toda essa conquista não seria possível sem a ajuda de pessoas e instituições que me apoiaram ao longo desses dois anos e meio de mestrado no COPPEAD. Fica registrado aqui, para o público, a importância de cada um de vocês. Em primeiro lugar, devo dedicar essa conquista à minha família, em especial, aos meus pais. Afinal, foram eles que, desde criança, fizeram de tudo para que eu tivesse a melhor educação possível. Sem esse apoio e privilégio, nada disso seria possível ou imaginável. Agradeço muito também à CNEN por me conceder essa oportunidade. Três pessoas dessa instituição foram de essenciais para a consecução desse trabalho. Obrigado, Teo, por todo o apoio, ajuda e, acima de tudo, por ser meu exemplo. Fiquei muito feliz de te conhecer e poder entender o que é ser realmente um servidor público. Obrigado também à Fabi que apoiou todo esse processo e, inclusive, me mandava dicas de como aguentar a pressão, especialmente, nessa etapa final. E agradeço à Beth que sempre me ajudou em tudo o que podia e demonstrou que acredita no meu potencial. Agradeço ao Deco, que me aturou muito, ouviu muita reclamação, em especial nesses últimos meses. Muito obrigado mesmo! Isso sem falar na generosidade de me receber na sua casa, abrir seu espaço, para que eu pudesse ter um teto. Sem todo esse apoio, nem a dissertação, nem nada teria fluido como fluiu. Ariane – ou Arilove, para alguns de seus orientandos – muito obrigado por aceitar me orientar e apoiar a doideira que foi fazer este trabalho. Ninguém esperava que saísse o que saiu, e eu achei muito bacana. Seu papel foi fundamental! Muito obrigado! Agradeço também às iniciativas oficiais e extraoficiais de democratização do acesso à informação. Sem elas, seria impossível fazer esse trabalho. Espero que muitas pessoas possam usufruir de mais ferramentas a cada dia. Acesso aberto na veia! E, por fim, não poderia deixar de agradecer à sociedade brasileira como um todo. Desde a graduação estudo gratuitamente em uma das melhores universidades do Brasil e sei da importância e do valor disso para o meu futuro. Não é só mérito meu. É nosso! Por isso, prometo que sempre guiarei minha vida tendo isso em mente, buscando retribuir tudo o que recebi do Estado brasileiro, seja como servidor público, seja como cidadão brasileiro. No taxation without representation participation1 Adaptado de Jonathan Mayhew 1 A frase “no taxation without representation” é considerada o principal slogan do sentimento da população das Treze Colónias em relação à imposição de tributos pelo governo inglês sem a devida representação da colônia no parlamento, que deu origem à guerra de independência. Desde a década de 1990, podem sem encontradas referências à versão com a palavra participation em artigos de periódicos, jornais ou blogs, dentro de um contexto de busca por mais participação direta da população nas decisões de governo, portanto, em linha com o objeto desta dissertação. RESUMO PEREIRA, Diogo. Participação social no orçamento público através do imposto de renda: uma análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos. 2016. 95f. Dissertação (Mestrado em Administração) - Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Este trabalho busca estudar os incentivos fiscais a doações através do IRPF como mecanismos de participação na gestão pública. Para tal, procura-se descrever os casos do Brasil e dos EUA, em perspectiva histórica, a fim de obter dados que permitam analisar comparativamente os países a partir de modelo desenvolvido com base na escada de participação de Arnstein (1969) e nas reflexões acerca de democracia de Dahl (2005). Concluiu-se que, nos dois países, os incentivos fiscais podem ser considerados mecanismos de democracia participativa por concederem poder de deliberação ao cidadão. Contudo, não são intrinsecamente democráticos tendo em vista que apenas uma pequena parcela das populações tem acesso a esse mecanismo e o tamanho da participação varia conforme a renda dos cidadãos. Além disso, contatou-se que a legislação dos EUA permite um maior grau de participação (potencial) comparada à legislação brasileira, entretanto, em ambos os casos, a efetiva utilização dos mecanismos pelos cidadãos é muito baixa. ABSTRACT PEREIRA, Diogo. Participação social no orçamento público através do imposto de renda: uma análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos. 2016. 95pp. Thesis (Master) – COPPEAD Graduate School of Business. Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. This study aims to investigate if tax incentives to donations under income tax laws can be considered participatory mechanisms in the public administration. Brazilian and American cases were described in a historical perspective in order to obtain data that would enable a comparative analysis of both countries using a framework developed by the author based on Arnstein’s ladder of participation (1969) and on Dahl’s reflections on Democracy (2005). It was found that tax incentives can be considered participatory mechanisms since they provide deliberation power to citizens. However, they are not intrinsically democratic because only a small portion of the population has access to this mechanisms and the size of participation varies according to the income of citizens. Furthermore, it was observed that US laws grant more (potential)participation than Brazilian’s, yet in both cases the actual use of these mechanisms by citizens are very low. Sumário 1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 1 1.1. Objetivos do estudo ....................................................................................... 2 1.2. Delimitação do estudo ................................................................................... 3 1.3. Relevância do estudo ..................................................................................... 4 1.4. Organização do estudo ................................................................................... 5 2. REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................ 7 2.1. Origens do Estado .......................................................................................... 7 2.2. Estado frente à globalização .......................................................................... 9 2.3. Democracia e tomada de decisão: consentimento e participação ................ 12 2.4. Design institucional e administração pública .............................................. 18 2.5. Frameworks de participação na tomada de decisão .................................... 21 3. METODOLOGIA ............................................................................................... 25 3.1. Questões de pesquisa ................................................................................... 25 3.2. Método de pesquisa ..................................................................................... 25 3.3. Coleta dos dados .......................................................................................... 27 3.4. Análise dos dados ........................................................................................ 29 4. DESCRIÇÃO DOS CASOS ............................................................................... 36 4.1. Imposto de Renda e incentivos fiscais ......................................................... 36 4.2. Incentivos fiscais através do IRPF no Brasil ............................................... 37 4.2.1 Regulação e evolução do IRPF .................................................................... 37 4.2.2 Evolução da capilaridade das instituições beneficiadas e da participação orçamentária dos projetos incentivados ................................................................ 39 4.3. Incentivos fiscais através do IRPF nos EUA ............................................... 48 4.3.1 Regulação e evolução do IRPF .................................................................... 49 4.3.2 Evolução sobre a capilaridade das instituições beneficiadas ....................... 53 4.3.3 Evolução da participação orçamentária das instituições incentivadas ........ 55 5. DISCUSSÃO DOS CASOS ................................................................................ 57 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 68 6.1. Implicações gerenciais ................................................................................. 69 6.2. Limitações do estudo ................................................................................... 70 6.3. Trabalhos futuros ......................................................................................... 71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 73 REFERÊNCIAS LEGAIS ........................................................................................... 81 Lista de ilustrações Figura 1. Dimensões teóricas de democratização ............................................ 15 Figura 2. Escada de participação dos cidadãos de Arnstein (1969) ................. 23 Figura 3. Framework de participação de Wilcox (2004) ................................. 24 Figura 4. Framework de participação na gestão pública orçamentária ............ 32 Figura 5. Quantidade de declarações originais de IRPF recebidas, no Brasil, nos exercícios de 1924 a 2013 .............................................................................................. 38 Figura 6. Quantidade de declarações originais de IRPF recebidas, nos EUA, nos exercícios de 1913 a 2010 .............................................................................................. 51 Figura 7. Comparação entre participação efetiva nos incentivos fiscais do IRPF no Brasil e nos EUA. ...................................................................................................... 60 Figura 8. Comparação entre participação potencial e efetiva nos incentivos fiscais do IRPF no Brasil e nos EUA ............................................................................. 63 Lista de tabelas Tabela 1. Comparação entre dedução da renda bruta e do imposto devido ..... 41 Tabela 2. Recursos aplicados por pessoas físicas através de incentivos fiscais em 2013 ................................................................................................................................ 45 Tabela 3. Principais modificações na legislação de dedução por doação através do IRPF no Brasil ........................................................................................................... 45 Tabela 4. Principais modificações na legislação de dedução por doação através do IRPF nos EUA ........................................................................................................... 54 Tabela 5. Recursos aplicados por pessoas físicas através de incentivos fiscais em 2013 ................................................................................................................................ 55 Tabela 6. Quantidade de controle potencial no IRPF no Brasil em 2013 ........ 59 Tabela 7. Quantidade de controle potencial no IRPF nos EUA em 2013 ........ 59 Tabela 8. Diversidade de opções no Brasil em 2013 ....................................... 59 Tabela 9. Diversidade de opções nos EUA em 2013 ....................................... 59 Tabela 10. Quantidade de controle efetivo no IRPF no Brasil em 2013 .......... 62 Tabela 11. Quantidade de controle efetivo no IRPF nos EUA em 2013 .......... 62 Tabela 12. Declarações do IRPF no Brasil e nos EUA (2013) ........................ 66 1 1. INTRODUÇÃO A globalização e a consolidação do ideal democrático, evidenciados desde o final do século XX, provocaram diversas implicações sobre a sociedade, levando a reconfigurações de estruturas sociais e a instauração de novos paradigmas em diversos âmbitos da contemporaneidade. Dentre esses aspectos, o Estado foi uma das instituições que vem sofrendo grandes impactos desse movimento, com seu papel e estruturas sendo postas em cheque devido a características desse cenário, como a porosidade das fronteiras físicas, combinada à emergência e consolidação do espaço virtual; e a grande disseminação de informação em escala global e em tempo real; juntas, incorrendo em novas dinâmicas na relação entre cidadãos e instituições, e exigindo novas formas de resposta às suas demandas. Contudo, o Estado ainda está fundamentalmente arraigado à ideia de representação como princípio norteador do seu processo decisório. Isso ocorre mesmo diante de um contexto de percepção de descolamento entre as demandas sociais e a agenda de governo, e de busca por mais formas de participação dos cidadãos, para além do processo eleitoral, conforme mostram os estudos de Bobbio (1997), Held (2006), Mainwaring (2006) e Tormey (2014). Além disso, os principais modelos de gestão presentesna administração pública também têm contribuído para a perpetuação da sensação de falta de responsividade do Estado, na medida em que tanto a burocracia quanto o gerencialismo buscam relativamente pouco suporte dos cidadãos no desenvolvimento dos serviços públicos, conforme apontado por Bresser-Pereira (2001), Secchi (2009), Homburg (2004) e Moote, Mcclaran e Chickering (1997). Percebe-se que, apesar alguns mecanismos de participação existirem e estarem previstos inclusive nas constituições dos países, muitas vezes, eles não são utilizados ou conferem pouco poder discricionário ao cidadão, conforme pode ser observado em diversas iniciativas no Brasil, como a plataforma Participa.br e as experiências com o Orçamento Participativo, ou em outros países como a elaboração participativa da Constituição da Islândia e o planejamento urbano coletivo nos EUA (BANI, 2012; COELHO et al., 2015; MOOTE; MCCLARAN; CHICKERING, 1997). Um desses mecanismos que parece conferir poder de decisão sobre a gestão pública para o cidadão é o incentivo fiscal. Afinal, o Estado poderia decidir sozinho, de maneira centralizada, o destino dos recursos orçamentários, contudo, prefere incentivar a 2 presença de outros atores na consecução das políticas públicas. Apesar disso, estudos que busquem estudar a relação entre participação na gestão pública e incentivos fiscais são escassos na literatura, motivando a elaboração desta dissertação. 1.1. Objetivos do estudo Sob esse pano de fundo, este trabalho busca adentrar na esfera da participação dos cidadãos nas decisões de governo. Em geral, quando se trilha por este caminho, recorre-se à análise de mecanismos que assegurem a responsividade do governo às demandas dos seus cidadãos – ou seja, o nível de correspondência entre preferências da sociedade e as prioridades da agenda de governo – representada, para Dahl (2005), por dois pilares fundamentais: participação e competição política. Portanto, meios que estimulem a permeabilidade das instituições e a liberdade de contestação são essenciais para o pleno desenvolvimento desses dois pilares. Nesse sentido, através do estudo comparativo dos casos do Brasil e dos EUA, esta dissertação terá como objetivo principal, avaliar: Os incentivos fiscais para doações através do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) como mecanismos de democracia participativa aplicados à gestão pública. Assim, para subsidiar a análise da problemática central, buscar-se-á responder às seguintes perguntas adjacentes: O incentivo fiscal da dedução do IRPF por doação foi utilizado, ao longo da história do Brasil e dos EUA, como mecanismo institucional de estímulo à participação na distribuição desses recursos? Os cidadãos têm algum tipo de poder de decisão sobre o destino dos recursos de renúncia fiscal, com base no modelo de participação na gestão pública proposto? Se sim, em que medida as pessoas efetivamente participam? O estímulo dos incentivos fiscais para pessoas físicas é um modelo democrático de participação, ou seja, se são mecanismos inclusivos e igualitários de participação? 3 1.2. Delimitação do estudo Benefícios fiscais2 podem ser classificados como compensatórios, quando o Estado considera que não atende a população adequadamente em relação a determinados serviços de sua responsabilidade, ou como incentivadores, quando se tem o intuito de estimular determinado comportamento, como desenvolver algum setor ou região (MANTEGA et al., 2014). Partindo dessa caracterização, este trabalho analisará somente os benefícios fiscais de caráter incentivador – incentivos fiscais – pois são os únicos que visam encorajar comportamentos particulares. Além disso, o escopo do trabalho volta-se exclusivamente àqueles incentivos que podem ser utilizados por pessoas físicas, já que se pretende transitar pela esfera da participação dos cidadãos nas decisões de governo. Nesse sentido, a nível federal, os gastos tributários incentivadores relacionados a pessoas físicas estão restritos ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), já que este é atualmente o único imposto direto da União. Portanto, esta dissertação versará sobre os incentivos fiscais presentes no IRPF, que se resumem às deduções de imposto por doações, de acordo com as leis de incentivo vigentes. Além disso, em termos de montante financeiro, esses gastos são o principal instrumento de incentivo fiscal para a pessoa física tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos. A escolha dos EUA como objeto de análise comparativa e não de países mais próximos histórica e culturalmente ao Brasil deu-se, em primeiro lugar, porque o Estado americano é considerado referência em termos de democracia (poliarquia) e, portanto, de participação política dos seus cidadãos, de acordo com o modelo de Dahl (2005), que subsidiou o presente estudo. Apesar dos EUA serem a maior potência do mundo e o Brasil ter a si reservado o espaço de potência média, e as sociedades americana e brasileira apresentarem trajetórias históricas e culturas políticas distintas, essas diferenças, embora evidentes e impactantes diretamente na conformação das instituições, não devem impedir nem limitar estudos comparados de base institucional que busquem identificar paralelos entre essas duas realidades. Trabalhos como o de Limongi e Figueiredo (1998) que compara os sistemas políticos brasileiro e americano, de Mainwaring (1999) que compara instituições democráticas de ambos os países, além de Gilman (2016) que analisa a introdução do modelo de orçamento participativo brasileiro no contexto americano são alguns exemplos de estudos que optaram por trajetórias semelhantes. 2 Ao longo deste trabalho, as expressões benefício fiscal, gasto tributário e renúncia fiscal serão utilizadas com o mesmo sentido. 4 Naturalmente, poder-se-ia também buscar relações com países europeus, tendo em vista que esta região tem mais tradição de participação política do que os Estados Unidos. Todavia, o presente trabalho tem como objetivo central comparar modelos institucionais, ou seja, analisar um movimento parte do Estado para a sociedade, portanto, não tratando de elementos relacionados à cultura política que vão em direção contrária, da sociedade para o Estado. Por fim, vale ressaltar também que a própria constituição do Estado brasileiro – republicano, federalista e presidencialista – foi fortemente inspirada no modelo estadunidense (MAIDA, 2003; CUNHA, 2007), o que se configura como mais um fundamento da importância de se comparar as realidades institucionais brasileira e americana. 1.3. Relevância do estudo Ao longo do tempo, os estudos e as experiências práticas relacionados à participação dos cidadãos no governo têm-se focado prioritariamente nos mecanismos tradicionais de democracia direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular – os três mecanismos presentes na Constituição Brasileira de 1988 –, ou em formas manifestação de pressão pública, como audiências públicas, fóruns de debate e participação em movimentos sociais, conforme pode ser visto em Benevides (1994), Gomes (2005), Bobbio (2007), Barber (2007), Bevir (2010), Reilly (2010), Bani (2012) e Roberts (2015). Recentemente, algumas experiências inovadoras de participação têm sido realizadas no mundo, como a elaboração colaborativa do Marco Civil da Internet brasileiro, entre 2009 e 2011, e da proposta de Constituição da Islândia entre 2010 e 2011, ambos considerados modelos mais participativos e democráticos que as tradicionais formas de criação de legislação. Contudo, esses movimentos de participação direta dos cidadãos nas escolhas políticas são ainda excepcionais dentro da administração pública, além de atuarem exclusivamente na esfera consultiva, não permitindo aos cidadãos um efetivo poder de deliberaçãosobre as matérias (BANI, 2012; SAMPAIO; BRAGATTO; NICOLÁS, 2013, 2015). Já quando se adentra no orçamento público, o Brasil inovou no quesito participação no final da década de 1980 com a implementação do Orçamento Participativo na prefeitura de Porto Alegre, iniciativa que foi aplicada em diversos outros 5 municípios e, mais recentemente, também a nível federal. Contudo, hoje, apesar desta e de outras iniciativas de participação estarem espalhadas pelo Brasil, em nenhuma há poder decisório direto do cidadão que confira à população a palavra final sobre a política pública (COELHO et al., 2015). Ao mesmo tempo, o poder público dispõe da faculdade de conceder benefícios fiscais a pessoas físicas e jurídicas, medida que é contabilizada pelo governo dentro do orçamento público como gasto tributário, já que reduz a arrecadação potencial e aumenta a disponibilidade econômica do contribuinte (MANTEGA et al., 2014). Ou seja, em certos casos, o Estado julga ser importante contar com a participação de cidadãos ou organizações na consecução de políticas públicas através do direcionamento, por parte desses atores, de capital para determinadas áreas, recursos esses que iriam originalmente aos cofres públicos. Diversos estudos podem ser encontrados relativos aos gastos tributários do orçamento público, entretanto, a ênfase costuma ser na avaliação da eficiência desse instrumento na promoção de políticas públicas (BEGHIN; CHAVES; RIBEIRO, 2010; TODER; BANEMAN, 2012; MARTINS, 2013; MOUTINHO, 2015). Outras pesquisas focam-se em avaliar a percepção pública dos benefícios sociais oriundos dos gastos tributários (FARICY; ELLIS, 2013) ou na análise dos contextos institucionais, culturais e históricos por trás de sua criação (ALT, 1983; STEINMO, 1989). Não foram encontrados estudos, porém, que busquem analisar os gastos tributários do orçamento como um mecanismo que permite a participação direta de atores alheios ao governo nas decisões de alocação de recursos públicos. 1.4. Organização do estudo Assim, com vistas a conduzir a discussão do tema proposto, este trabalho foi organizado em mais cinco capítulos. O segundo buscará inicialmente transitar pela literatura que aborda conceitos clássicos de Estado, a partir dos pensamentos de autores como Weber (1967), Rousseau (s.d), Hobbes (1974) e Locke (1764), com objetivo de compreendê-los melhor para, em seguida, analisá-los à luz do contexto contemporâneo das novas tecnologias e da globalização, com base nos estudos de Castells (2001, 2005, 2009, 2015), Held e McGrew (1999, 2004), Giddens (2000) e Sassen (2000). Diante do panorama trazido por esta discussão, o capítulo tem sequência com a análise de como evoluíram os entendimentos 6 de democracia e participação e quais as implicações geradas para esse novo cenário, com ênfase nas perspectivas de Dahl (1994, 2005), Held (2006) e Bobbio (1997, 2007). Posteriormente, procura-se vislumbrar de que maneira os preceitos da gestão pública evoluíram temporalmente diante desses dois fatores –democracia e globalização –, e buscaram se apropriar de inovações políticas, sociais e tecnológicas com intuito de permitir novas formas de relação entre governo e sociedade. Esta seção fundamenta-se principalmente nos estudos de Dunleavy (1994), Bresser-Pereira (1998, 2002a, 2002b), Homburg (2004) e Margetts e Dunleavy (2013). Por fim, serão apresentados modelos de avaliação de participação que fornecerão subsídios para a análise dos casos propostos. O terceiro capítulo tem como objetivo descrever a metodologia utilizada para a construção deste trabalho. Serão apresentadas as principais questões que norteiam este estudo, assim como as razões que levaram à escolha do estudo de caso como método de pesquisa e instrumento para análise comparada dos dados coletados através de pesquisa documental e bibliográfica. O quarto capítulo procurará entender, em perspectiva comparada, de que maneira o imposto de renda da pessoa física foi utilizado como um mecanismo de incentivo à participação dos cidadãos na alocação de recursos em determinadas áreas consideradas como prioritárias pelos governos ao longo da história do Brasil e dos EUA. Esta seção busca relatar a experiência brasileira e americana a partir de três eixos: a evolução das políticas regulatórias, compreendendo apenas os principais marcos históricos; o montante de participação orçamentária, a distribuição desses recursos e o engajamento dos contribuintes; e a capilaridade dos projetos e instituições beneficiados. O quinto capítulo buscará analisar comparativamente os estudos dos casos brasileiro e americano à luz da literatura discutida no referencial teórico com vistas a debater se os incentivos fiscais a doações através do IRPF são mecanismos institucionais de democracia participativa. Esta seção será, então, seguida pelo sexto capítulo, que conterá as considerações finais relativas à pesquisa, as implicações gerenciais deste estudo, bem como as recomendações de trabalhos futuros. 7 2. REFERENCIAL TEÓRICO Este capítulo busca inicialmente transitar pela literatura científica que estuda o Estado com objetivo entender suas concepções para, em seguida, analisar seus desdobramentos à luz do contexto contemporâneo das novas tecnologias e da globalização. Diante do panorama trazido por esta discussão, o capítulo tem sequência com a análise de como evoluíram os entendimentos da participação democrática nas decisões de governo ao longo do tempo e quais as implicações geradas para esse novo cenário. Por fim, procura-se vislumbrar de que maneira os preceitos da gestão pública evoluíram temporalmente e buscaram se apropriar das inovações tecnológicas e sociais com intuito de democratizar as instituições. 2.1. Origens do Estado Pensar o Estado e sua relação com a sociedade exige revisitar algumas de suas concepções mais proeminentes, com vista a refletir sobre suas possíveis funções. Afinal, apesar do Estado ser hoje uma instituição onipresente (MORRIS, 2004) – já que em praticamente todos os locais é possível notar sua influência –, sua caracterização é controversa (MORRIS, 2010) e está sujeita à variação de acordo com os valores de determinada sociedade (WEBER, 1967) A discussão em torno das origens do Estado deriva de diferentes visões. De um lado estão os teóricos que empregam uma perspectiva historicista, em que sua constituição estaria demarcada no tempo como passagem para a Modernidade e estaria relacionada ao processo de centralização do poder. Nesta linha, o Estado é entendido como uma forma de ordenamento político que surgiu na Europa entre os séculos XIII e XIX que, posteriormente, prosperou para todo o mundo (BOECKENFOERDE apud SCHIERA, 1998). A conceituação dessa corrente perpassa principalmente pelos pensamentos de Weber (1967) que buscava analisar o Estado a partir de uma perspectiva sociológica e acreditava que, para tal, não poderia partir das suas finalidades para compreendê-lo, mas de seus meios. Nesse sentido, descreve o processo de constituição do Estado como um fenômeno de expropriação das armas (força física) por parte do poder público (BOBBIO, 2007) e centralização do poder sobre o princípio da territorialidade da obrigação política (SCHIERA, 1998), acontecimentos característicos do continente europeu naquele período. O Estado é visto, por Weber (1967), como uma instituição que deteria o monopólio da força – sendo esta um meio específico a ele – circunscrito a uma 8 determinada localidade. Seria, portanto, uma dominação de homens sobre homens, a partir da violência legítima, ou seja, da percepção pelos dominados de que devem obediência aos detentores do poder (WEBER, 1967). Depreende-se, assim, a clássica definição de Estado como uma “comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio legítimo do uso da força física dentrode um determinado território” (WEBER, 1967, p.56). Observa-se, então, que os pensamentos derivados das ideias weberianas são uma sociologia política da dominação, tendo em vista que se sustentam sobre a percepção da força e da violência como momentos essenciais do processo político e inerentes à existência e ao funcionamento das instituições políticas (BIANCHI, 2014); ou seja, o Estado visto como uma forma de organização da dominação (WEBER, 1967). Em contraste a essa abordagem, quando se recorre às concepções hipotético- dedutivas, encontra-se o Estado como uma instituição que representaria a passagem da barbárie para a civilização; um momento de transição entre o isolamento hipotético ou selvagem em direção ao estado civil (BOBBIO, 2007). Por trás desse movimento, está a ideia de que haveria um contrato, tácito ou expresso, entre os indivíduos que demarcaria a passagem do estado natural para o estado social e político (SCHIERA, 1998). De acordo com esta concepção, o Estado surge como uma entidade jurídica derivada de um ato jurídico (SCHIERA, 1998): um acordo contratual entre os indivíduos daquela sociedade que se baseia na ideia de consentimento (D'AGOSTINO; GAUS; THRASHER, 2014; LOCKE, 1764). Ou seja, quando o homem adentra na “Idade do Consentimento”, ele passaria a dispor do poder de fazer certos tipos de acordos vinculativos entre si (D'AGOSTINO; GAUS; THRASHER, 2014), renunciando ao direito à liberdade total (LOCKE, 1764; HOBBES, 1974; ROUSSEAU, s.d.) a partir do vislumbre de ganhos oriundos da interação social e da cooperação (CUDD, 2013), como sobrevivência interna (sustento) e externa (defesa) (BOBBIO, 2007). Portanto, da afirmação do contrato social, derivaria a legitimidade da autoridade do Estado (CUDD, 2013; SCHIERA, 1998). Apesar dessas abordagens partirem de concepções diferentes para responder ao questionamento da origem do Estado, pode-se também constatar algumas convergências dos pensamentos dos autores, que assinalam características comumente percebidas ao longo da história. Ambas as perspectivas destacam que a existência do Estado pressupõe a legitimação da sua autoridade, ou seja, que sua vontade é reconhecida como máxima para 9 o agir da coletividade (BOBBIO, 2007). Em outras palavras, o cumprimento da vontade estatal originaria-se de uma atitude minimamente voluntária oriunda do interesse em obedecer (WEBER, 1978). Nesse sentido, a conceituação weberiana de dominação legítima baseada no paradigma racional-legal – decorrente da crença na racionalidade do comportamento conforme as normas estabelecidas (WEBER, 1978) – dialoga com a perspectiva contratualista da legitimidade como proveniente do acordo (jurídico) consensual entre os indivíduos com vista a benefícios comuns. Além dessa abordagem do consentimento como característica inerente ao Estado, tanto Weber, com sua concepção historicista, quanto os autores contratualistas abordam a territorialidade como fator essencial à sua consolidação institucional. Se de um lado o território é explicitamente descrito como elemento necessário e constituinte do Estado (WEBER, 1967; Idem, 1978), pode também ser entendido como um limite espacial de atuação do poder estatal, dentro de onde as leis são executadas (LOCKE, 1764); e como a reunião das terras dos indivíduos entendida, em sua totalidade, como espaço público, na medida em que o contrato social permite sobrepor o direito da comunidade ao direito particular – o que reforçaria o laço social e a soberania –, ao mesmo tempo em que diferencia os residentes do território (cidadãos) dos não residentes (estrangeiros) (ROUSSEAU, s.d.). 2.2. Estado frente à globalização Todavia, apesar dessas conceituações de Estado possuírem alguns elementos convergentes – mesmo vindo de autores e épocas diversas –, sua caracterização tende a sofrer influência dos valores da sociedade, conforme já evidenciado por Weber (1967). Portanto, fenômenos que proponham novas dinâmicas sociais podem provocar modificações nesses entendimentos, influenciando os pensamentos de determinada época acerca do Estado. E a globalização parece ser uma dessas tendências capazes de provocar reestruturações profundas em vários aspectos da sociedade (GIDDENS, 2000). Apesar das concepções de globalização e sua influência na percepção do papel do Estado estar amplamente difundida nos discursos público e acadêmico, o entendimento acerca da extensão desse fenômeno não é homogêneo (HELD; MCGREW, 1999; GIDDENS, 2000). Em geral, quando se busca compreender a globalização como um movimento que influi sobre a sociedade contemporânea, recorre-se à avaliação de que o mundo tem vivenciado um processo de intensificação e aceleração da interconexão 10 global, oriundo de forças tecnológicas e econômicas em direção a um ambiente compartilhado (HELD; MCGREW, 1999; LIPSCHUTZ, 2010; CASTELLS, 2001). Entretanto, enquanto alguns estudos apontam para as particularidades da globalização em relação ao contexto contemporâneo, outras discussões caminham para análises mais céticas quanto à sua magnitude. De um lado, os hiperglobalistas buscam-se reforçar a ideia de que os Estados têm perdido força na medida que a atual dinâmica de fluxos de troca imposta pela globalização econômica permitiu ao capital corporativo intervir decisivamente na distribuição do poder econômico e da riqueza. Afinal, como a autoridade do Estado é circunscrita ao seu território, tentativas de regulação da economia nacional, poderiam ser contornadas com mais facilidade. E, em conjunção a esse fato, a consolidação das instituições multilaterais representariam, então, um vislumbre de uma civilização de mercado global (HELD; MCGREW, 2004). In this 'runaway world' nation states are becoming 'transitional modes of economic organization and regulation' since they can no longer effectively manage or regulate their own national economies […] In effect, the hyperglobalists hold, the autonomy and sovereignty of nation-states have been eclipsed by contemporary processes of economic globalization (HELD; MCGREW, 2004). Nesse ‘mundo em descontrole’, Estados-nação estão tornando-se modos transitórios de organização e regulação econômica já que eles não podem mais gerir e regular efetivamente suas próprias economias nacionais. [...] Na realidade, os hiperglobalistas sustentam que a autonomia e soberania dos Estados-nação têm sido eclipsadas pelos processos contemporâneos de globalização econômica (HELD; MCGREW, 2004, tradução minha). Em contraponto a essa visão, os céticos costumam-se argumentar que o aumento nos fluxos em escala mundial não é particular da atualidade e foi experimentado de forma semelhante no início do século XX (LIPSCHUTZ, 2010). Já a livre circulação de capital e o declínio do Estado de bem-estar social estariam sendo superestimados, tendo em vista que as nações mais fortes, na realidade, teriam consolidado sua dominância global, que as trocas restringir-se-iam ao nível regional e que ainda haveria continuidade da primazia da soberania e do poder nacional (GIDDENS, 2000; HELD; MCGREW, 2004). Em comparação à belle époque de 1890-1914, a intensidade da interdependência global contemporânea é consideravelmente exagerada. [...] Ao invés de uma nova ordem mundial, o sistema global 11 pós-Guerra Fria tem testemunhado um retorno à velha geopolítica e ao neoimperialismo, por onde os Estados e forças sociais mais fortes consolidaram sua dominância global (HELD; MCGREW, 2004, tradução minha). By comparison with the belle époque of 1890-1914, the intensity of contemporary global interdependence is considerably exaggerated. […]Rather than a new world order , the post Cold War global system has witnessed a return to old style geo-politics and neo-imperialism, through which the most powerful states and social forces have consolidated their global dominance(HELD; MCGREW, 2004). Uma terceira via busca transitar por esses dois polos explicativos, avaliando que, de fato, a globalização não é um acontecimento único do presente e tem suas origens em fluxos globais desde a pré-modernidade. No entanto, seus contornos contemporâneos fazem-na induzir uma reorganização e rearticulação espacial nos âmbitos políticos, econômicos, militares e culturais (HELD; MCGREW, 2004) que demarcariam a emergência de configurações diversas à tradicional antítese entre global e nacional (SASSEN, 2000). Nesse sentido, a ideia de território como container dos processos sociais e local de exercício exclusivo da autoridade estatal, conforme abordada pelas definições clássicas de Estado, estaria sendo redesenhada (SASSEN, 2000). A virtualização das atividades econômicas, políticas e sociais somada ao processo de desregulação da economia favorecido pela competição internacional poderia representar, de certa forma, uma diminuição da capacidade do Estado de controlar seu território. Todavia, essas mesmas atividades estão concentradas nos territórios nacionais, particularmente nas cidades (globais3) – mesmo que sua expressão ultrapasse esses limites espaciais –, dependendo assim de diversas infraestruturas e garantias estatais, como a manutenção dos contratos e dos direitos de propriedade, necessários à implementação do sistema econômico global (SASSEN, 2000). Portanto, a globalização passa a ser entendida não somente por seus aspectos econômicos, mas de forma holística, como uma transformação na escala de organização social que aumenta o alcance das relações de poder pelas principais regiões do mundo (HELD; MCGREW, 2004). 3 Para Sassen (2000), as cidades globais são os locais onde os processos da globalização assumem formas concretas, funcionando como infraestruturas condutoras das trocas internacionais. Isso acontece devido ao contexto de enfraquecimento da autoridade formal exclusiva dos Estados sobre o território nacional que favoreceria a ascensão de atores e espaços sub e transnacionais nos processos políticos. 12 Os transformacionistas argumentam que a globalização está criando novas circunstâncias econômicas, políticas e sociais, que, entretanto, estão servindo para transformar os poderes do Estado e o contexto em que ele opera de forma desigual. [...] A política não é e não pode mais ser simplesmente baseada em Estados-nação (HELD; MCGREW, 1999, tradução minha). The transformationalists argue that globalization is creating new economic, political and social circumstances which, however unevenly, are serving to transform state powers and the context in which states operate. […] politics is no longer, and can no longer simply be, based on nation-states (HELD; MCGREW, 1999). Ou seja, na medida em que os avanços nas tecnologias de informação e comunicação diminuem virtualmente as fronteiras, cria-se um ambiente propício para a contestação de imperativos políticos, sociais e econômicos, já que acontecimentos, instituições ou pessoas de uma determinada localidade podem mais facilmente influenciar o destino de regiões geograficamente distantes (GIDDENS, 2000; HELD; MCGREW, 2004). Assim, essas características contribuiriam para uma maior politização da vida social (HELD; MCGREW, 2004), bem como levariam a uma modificação no papel do Estado e do contexto em que ele opera, não mais podendo restringir-se única ou primeiramente ao ambiente nacional (CASTELLS, 2005; HELD; MCGREW, 1999). Dessa maneira, fica evidente que as novas dinâmicas propostas pela globalização e pelo novo paradigma tecnológico permitiram maior integração das redes de capital, bens, serviços, comunicação, informação, ciência e tecnologia, favorecendo o desenvolvimento de novas visões acerca das instituições, em linha com esse novo cenário (CASTELLS, 2005). 2.3. Democracia e tomada de decisão: consentimento e participação Portanto, cabe analisar também como essas novas visões estão sendo apropriadas pelo Estado em relação à sua forma de governar. Ou seja, de que maneira o questionamento de imperativos originários do fenômeno da globalização e as possibilidades trazidas pelo avanço tecnológico podem incentivar modificações na relação governo-cidadão e nos processos decisórios de gestão pública. Historicamente, nas primeiras experiências democráticas da Grécia, a principal instituição responsável pelas deliberações de governo era a Assembleia, onde todos os 13 cidadãos4 daquela cidade-estado poderiam participar (DAHL, 1994). Essas comunidades eram demarcadas social e geograficamente e possuíam poucos milhares de pessoas vivendo ao redor do centro urbano ou no campo, fatores que facilitavam e aceleravam a comunicação e o impacto de arranjos sociais e econômicos. A política era entendida como uma forma de expressão e realização da natureza humana, com todos os cidadãos debatendo, decidindo e aprovando as leis, sem a perspectiva moderna de distinção entre Estado e sociedade (HELD, 2006). Dessa maneira, o princípio da governança grega era a participação direta nos assuntos de Estado, com todos os cidadãos tendo amplo e facilitado acesso às funções públicas e aos gabinetes, e com as deliberações públicas baseadas no consenso, ao invés dos costumes ou do uso da força (RAAFLAUB, 1998; HELD, 2006). Origina-se desse modelo, a demokratia, ou seja, a forma de governo fundada na ideia de que o povo detém o poder nas decisões políticas (RAAFLAUB, 1998). Na modernidade, o entendimento de democracia começa a consolidar algumas modificações em decorrências de alguns acontecimentos históricos. Entre essas duas épocas, a confluência do cristianismo com a política deslocou o centro de autoridade dos cidadãos para os representantes da vontade de Deus, reformulando os processos de decisão política. Posteriormente, a influência dos pensamentos de Maquiavel e Hobbes ajuda a construir a noção de separação entre Estado e sociedade, consequentemente, entre o governo e as pessoas (HELD, 2006). Além disso, a emergência dos Estados Nacionais a partir da ação unificadora e centralizadora do príncipe suplanta e absorve as cidades- estados, transformando-as em unidades subordinadas (DAHL, 1994; BOBBIO, 2007). Ao longo desse processo, as decisões de governo afastam-se da influência direta dos cidadãos e, gradativamente, configura-se um novo conjunto de práticas e instituições políticas com objetivo de abarcar esses novos contextos: a representação passa a ser uma das essências das democracias modernas (DAHL, 1994) Afinal, parte-se do pressuposto de que seria impossível reunir frequentemente o povo para tomar as decisões de interesse público devido à grande população e extensão dos territórios (ROUSSEAU, s.d.; BOBBIO, 2007). Assim, uma das principais inovações da democracia representativa, em comparação à democracia direta dos antigos, refere-se ao controle das decisões 4 Eram considerados cidadãos somente homens adultos, o que resultava na exclusão de 80 a 90% da população – mulheres, crianças, escravos e estrangeiros – do processo político (RAAFLAUB, 1998, p.34; HELD, 2006, p.13). 14 governamentais, que passa a ser realizado por representantes escolhidos pela população através do voto, os quais agem como fiduciários dos eleitores (DAHL, 1994; HELD, 2006). Logo, para que o cidadão possa participar diretamente das deliberações, é necessário concorrer ao cargo público eletivo e ganhar as eleições (DAHL, 1994). Para Dahl (2005), umas das características centrais da democracia como sistema de governo é sua contínua responsividade às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais. Assim, para que essa situação se mantenha ao longo do tempo, todos os cidadãos plenos têm de ter garantidos os direitos de: formularsuas preferências; expressar suas preferências através de ação individual e coletiva; e tê-las igualmente consideradas na conduta do governo. Para o autor, essas três condições necessárias à democracia configuram-se como oportunidades de exercer oposição (competição política), logo, uma escala que refletisse a variação dessas garantias aos cidadãos entre países permitiria uma análise comparativa quanto ao processo de democratização. Entretanto, esses direitos poderiam ser restritos a um pequeno ou grande grupo de pessoas, portanto, variando a proporção da população que pode participar do sistema político (participação) (DAHL, 2005). A partir dessas duas dimensões – participação e competição política), segundo Dahl (2005), seria possível classificar regimes de acordo com sua posição em relação aos eixos (Figura 1). Dessa maneira, um regime localizado no canto inferior esquerdo seria uma hegemonia fechada. Ao se deslocar pelo trajeto I, o regime estaria vivenciando um movimento de liberalização, mas com pouca participação, tornando-se uma oligarquia competitiva. Já o trajeto II indicaria um movimento de inclusividade do regime, logo, tornando-se uma hegemonia inclusiva. O trajeto III representaria um movimento de democratização, contudo, o autor reforça a opção por utilizar a expressão poliarquia tendo em vista que nenhum sistema no mundo seria plenamente democratizado, mas, ainda assim, regimes fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública (DAHL, 2005). 15 Figura 1. Dimensões teóricas de democratização Fonte: DAHL, 2005. Nas últimas décadas, a democracia, sob os princípios da representação, passa a ser vista como familiar e torna-se a principal forma de governo no mundo, atingindo a marca de 122 países em 2013 (DAHL, 1994; AVRITZER, 2002, PLATTNER, 2014), e sendo inclusive considerada atualmente como um valor universal (SEN, 1999). Contudo, paralelamente a esse aumento na presença de Estados democráticos no mundo, a democracia representativa tem sido colocada em cheque pelos cidadãos: baixas taxas de participação nas eleições, redução nos números de filiados aos partidos políticos, pouca confiança nos políticos, votos em novos partidos ou outsiders e baixo interesse geral na política são alguns dos fenômenos crescentes que têm assolado diversas democracias nas últimas décadas (MAINWARING, 2006; TORMEY, 2014). Portanto, mais do que uma crise da democracia representativa, o que tem sido observado por pesquisadores de diversos espectros ideológicos é uma contestação das práticas e instituições de representação, com efeitos limitados sobre a hegemonia do ideal democrático (TORMEY, 2014). Dessa maneira, constata-se que o conceito de democracia como um sistema de governo que tenha, como uma de suas características, a qualidade de ser responsivo às 16 demandas de seus cidadãos a partir da participação e competição política (DAHL, 2005) fica fragilizado no momento em que cresce a percepção de que partidos e políticos não representam as vontades e necessidades dos eleitores e afastam-se da ideia de serviço público como a expressão dos interesses coletivos à frente de necessidades individuais (TORMEY, 2014), sentimento esse potencializado por escândalos de corrupção (MAINWARING, 2006). Afinal, na medida em que uma grande quantidade de pessoas passa a integrar democracias pelo mundo e, consequentemente, participam do processo de escolha de seus representantes, as eleições tornam-se uma das maneiras de demonstrar a insatisfação com os resultados das decisões estatais, favorecendo a percepção de crise de representação (MAINWARING, 2006). Além disso, os efeitos da globalização, conforme evidenciado anteriormente, atingem diretamente as bases do modelo de Estado sobre o qual a democracia representativa consolidou-se. As complexidades impostas ao Estado-nação e sua territorialidade evidenciam que o destino dos cidadãos é também bastante influenciado por agentes externos e transnacionais, como organismos de cooperação internacional e organizações da sociedade civil de caráter global, sob os quais a população, muitas vezes, tem pouco ou nenhum poder de escolha (TORMEY, 2014). Ao mesmo tempo, as tecnologias de informação e comunicação (TIC) favorecem modelos mais horizontais de interação e participação baseados nas redes que permitem um novo tipo de ação coletiva para além das tradicionais formas de associação política. Na verdade, estamos vendo uma revolução em termos das maneiras e estilos da mobilização política, longe de pessoas ou partidos que representam, em direção a estilos e formas de política que buscam chamar atenção e contestar injustiças. [...] Novas ferramentas, novos repertórios de ativismo, engajamento e mobilização mostram que cidadãos podem organizar-se para além ou fora do mainstream (TORMEY, 2014, p.5, tradução minha) In effect we are seeing a revolution in terms of the manner and style of political mobilisation away from people and parties that represent towards styles and forms of politics that seek to draw attention to and contest injustices. […] New tools, new repertoires of activism, engagement and mobilisation mean that citizens can organise beyond or outside the mainstream (TORMEY, 2014, p.5) Observa-se, assim, que os questionamentos de algumas características da democracia representativa derivam das novas dinâmicas de poder e política que 17 emergiram frente ao novo contexto contemporâneo (CASTELLS, 2015; TORMEY, 2014). Por trás desse quadro de crise de representação e busca por mais democracia, BOBBIO (1997) afirma que há, hoje, a exigência de que a democracia representativa seja complementada ou até mesmo substituída pela democracia direta, pois, como Rousseau (s.d.) já ponderara, tem-se entendido que a soberania não pode ser representada. Afinal, uma das características da democracia representativa é sua capacidade de se perpetuar independente da participação da totalidade da população, seja porque exige pouco do demos, seja porque o percentual de eleitores que realmente votam não invalida a sanção da maioria. (BOBBIO, 1997; TORMEY, 2014). Ao se sentir pouco representado ou marginalizado, o povo tenderia a não ver o processo democrático como justo, encontrando poucas razões para participar de decisões que afetam sua vida e as considerando, muitas vezes, autoritárias. A solução passaria pela existência, conhecimento e incentivo a mais oportunidades de efetiva participação da população na tomada de decisão, já que, dessa maneira, haveria maior propensão ao engajamento, à percepção da participação como importante e a considerar as decisões coletivas como vinculatórias (HELD, 2006). Afinal, a participação também teria uma função educativa, conforme pontua Pateman (1970), de ensinar as pessoas a participarem, ganhando experiência em habilidades e procedimentos democráticos. A democracia participativa seria, então, uma derivação da democracia direta em que a sociedade cultiva uma preocupação pelos problemas coletivos e contribui para a formação de cidadãos bem informados com interesse contínuo nos processos de governo através de: Participação direta dos cidadãos na regulação das instituições fundamentais da sociedade, incluindo local de trabalho e comunidade local; Reorganização do sistema partidário, fazendo os representantes dos partidos prestarem contas diretamente aos membros dos mesmos; Operação dos “partidos participativos” em estrutura de parlamento; Manutenção de um sistema institucional aberto visando garantir a experimentação de novas formas de fazer política (HELD, 2006). Portanto, mais do que propor um novo caminho, a democracia participativa busca conciliar o consentimento com a deliberação, na medida em que une institutos dos sistemas representativos e diretos de participação popular na tomada de decisão de 18 governo.Ou seja, a busca por mais democracia, evidenciada por Bobbio (1997), passaria mais pela penetração dos mecanismos democráticos de ambos os modelos nas diversas instituições da sociedade, do que por um rompimento com o sistema representativo. Logo, o caminho é transcender a corrente democratização do Estado em direção à democratização da sociedade, num processo de expansão do poder ascendente para a esfera das relações sociais, como a família, a escola e as organizações públicas e privadas, a partir da percepção de que as decisões políticas fazem parte da sociedade civil e, consequentemente, não há decisão política que não seja condicionada pelo que acontece dentro dela (BOBBIO, 1997). Assim sendo, ao deslocar o foco do Estado para a sociedade, percebe-se que as sociedades não são monocráticas, mas policráticas, ou seja, além do Estado, existem outras instituições de poder que, por esta razão, também devem estar sujeitas a procedimentos que garantam a prestação de contas das suas ações para toda a sociedade (BOBBIO, 1997; HELD, 2006) Outras teorias acerca da democracia foram elaboradas ao longo do tempo, em geral, bastante influenciadas pelo contexto do período. Bobbio (2007) menciona que, para autores gregos como Aristóteles e Platão, por exemplo, a democracia não tinha a conotação positiva como tem hoje. Ao povo eram atribuídos inúmeros vícios que os impediria de ter as qualidades necessárias a tomada de decisões políticas. Hoje, em geral, o debate sobre sistemas de governo considera que a democracia é parte integrante e necessária do Estado. Além disso, pontua o autor, há também a noção comportamental da democracia, que indica as regras que determinam como se deve chegar à decisão política, sem considerar seus fins. Em contraste a esse pensamento de democracia formal, haveria a democracia substancial que prioriza um certo conjunto de fins, em especial a igualdade jurídica, social e econômica, independente dos meios a serem adotados para alcançá-los (BOBBIO, 1997). Dentre essas inúmeras possibilidades de abordagem do tema democracia, priorizou-se a conceituação de Dahl (2005) tendo em vista que, assim como este trabalho, o autor busca observar características institucionais que poderiam influir no processo de democratização de uma sociedade. 2.4. Design institucional e administração pública Diante deste contexto, é natural pensar que a administração pública também é influenciada pelas dinâmicas da sociedade. Ou seja, assim como as revoluções liberais do 19 século XVIII, ainda sob o manto do autoritarismo, tiveram implicações sobre a modelo de organização do Estado dos anos seguintes; as duas grandes forças que delineiam a sociedade contemporânea – a globalização e a democracia – exigem também novas respostas às demandas oriundas desse novo cenário (BRESSER-PEREIRA, 2002, p.31). O Estado burocrático, baseado no paradigma weberiano racional-legal, que se consolidou entre o final do século XIX e o início do XX, caracterizou-se pela criação de mecanismos que trouxeram para a administração pública a separação entre público e privado, com objetivo de combater a corrupção e o nepotismo, dois aspectos da administração patrimonialista. Para tal, buscou-se organizar o aparato estatal em torno de três princípios – formalidade, impessoalidade e profissionalismo – visando consolidar um poder estatal que prezasse pela eficácia, mas relegando a segundo plano atributos como eficiência e desempenho (BRESSER-PEREIRA, 1998, p.26, BRESSER-PEREIRA, 2001, p.2; SECCHI, 2009). Contudo, estes aspectos produziram um alto grau de hierarquização e controle procedimental de tarefas, da onde derivaram disfunções como o engessamento das organizações e um descolamento dos interesses dos cidadãos (SECCHI, 2009). Assim, com a consolidação do Estado de Bem-Estar Social na segunda metade do século XX e o consequente aumento das demandas por serviços públicos, bem como a ascensão do neoliberalismo, começa-se a buscar um modelo de administração pública que concentre esforços em tornar o Estado mais eficiente (BRESSER-PEREIRA, 1998, p.27). Ao invés de se falar em uma administração pública concentrada somente na eficácia do poder do Estado, característico do modelo burocrático, propõe-se uma Gestão Pública que, além de assumir sua eficácia, busca principalmente torná-lo mais eficiente (BRESSER-PEREIRA, 2001). Para isso, o modelo gerencial fundamenta-se em três princípios: descentralização, competição e incentivos (DUNLEAVY et al., 2005). Em termos práticos, diante desse novo paradigma, os servidores públicos adquirem mais autonomia e são estimulados a trabalhar por desempenho, ao mesmo tempo em que são desenvolvidos mecanismos de controle a posteriori das atividades públicas – em detrimento do controle passo-a-passo –, visando minimizar os riscos de corrupção e clientelismo favorecidos pela maior independência. Como consequência dessa maior autonomia, os gerentes públicos tornam-se mais responsabilizáveis pelos atos da administração pública e, portanto, mais suscetíveis à exigência de prestação de contas dos seus resultados pela sociedade (BRESSER-PEREIRA, 2002; BRESSER-PEREIRA, 2001). 20 Em outras palavras, a inovação do modelo gerencial, também chamado de Nova Gestão Pública (NGP), é a tentativa de reduzir as diferenças estruturais entre os setores público e privado, buscando neste setor mecanismos que tragam maior eficiência à administração pública, portanto, estimulando que o comportamento dos servidores públicos, agora denominados gerentes públicos, seja semelhante ao dos gerentes de empresas (LYNN, 2006). Como extensão desse conceito, o modelo propõe que os cidadãos sejam vistos como consumidores de serviços públicos, na medida em que a expansão do escopo dos mercados dificultou a diferenciação entre produtos públicos e privados, sob a ótica do cidadão (HOMBURG, 2004). Portanto, da mesma forma que a empresa tem mecanismos de responsabilização visando a prestação de contas para os proprietários e instrumentos de avaliação dos produtos pelos consumidores, a administração pública seguiria o mesmo exemplo, com o objetivo de garantir a prestação de contas e o feedback dos serviços públicos para a sociedade. Dessa maneira, garante-se que a avaliação dos serviços não ocorra somente pelos superiores hierárquicos, mas também possibilita que os consumidores/cidadãos possam participar de forma mais direta através dos mesmos instrumentos utilizados pelas empresas. Ou seja, caminha-se da orientação pelo processo, característico do modelo burocrático de administração pública, para a orientação para o produto, no modelo gerencial (HOMBURG, 2004). Entretanto, o modelo de organização do Estado proposto pela NGP tem sofrido críticas de diversas correntes de pesquisadores em administração pública por ter acarretado em algumas disfunções. Primeiramente, argumenta-se que a NGP favoreceu o pensamento de prazo mais curto e foco em metas estreitas e específicas, em detrimento do planejamento de longo prazo – principalmente devido ao processo de fragmentação das atividades –, diminuindo a coerência entre as ações da própria administração pública (DUNLEAVY, 1994, p.12; CHRISTENSEN; LAEGREID, 2007, p.11). Além disso, questiona-se também a ênfase única da NGP nos princípios de gestão do setor privado, portanto, deixado de lado peculiaridades setor público, como a ênfase no interesse público, ao mesmo tempo em que vislumbra-se maiores possibilidades de corrupção e dissociação dos interesses dos cidadãos, já que, na ausência de pressões contrárias, pode ser favorecida a influência de servidores públicos em cargos elevados na condução do processo de mudança, de acordo com seus interesses pessoais (ROBINSON, 2015, p.9; DUNLEAVY, 1994, p.12). Por fim, no tocante à participação dos cidadãos, observa-se que, embora haja essa preocupação na prestaçãodos serviços públicos, ela parece ainda incipiente diante da concepção de participação proposta pela democracia participativa e 21 pelo contexto contemporâneo. Mais do que uma participação efetiva que pressuporia envolvimento, empoderamento e compartilhamento de responsabilidades no desenvolvimento e consumo dos serviços públicos, o modelo gerencial enfatiza o poder de sair, ao invés do poder da voz, levando a questionamento e críticas da população quanto à forma como são abordados os interesses públicos (HOMBURG, 2004; MOOTE; MCCLARAN; CHICKERING, 1997). Como alternativa, na última década, sugiram diversas correntes de pesquisadores de administração pública e ciência política que tem se dedicado a construir alternativas e aperfeiçoamentos para a gestão do setor público que transpassem os preceitos advogados pela NGP. Em geral, o conjunto desses pensamentos diversos costuma ser enquadrado sob a denominação de modelos pós-Nova Gestão Pública (MARGETTS; DUNLEAVY, 2013, p.2; ROBINSON, 2015, p.4). O principal elemento de convergência entre essas abordagens é identificação dos cidadãos como drivers da reforma, através da ênfase na coparticipação na formulação e produção de políticas e serviços públicos. Além disso, os modelos pós-NGP também dedicam espaço para a necessidade de se retomar e aprofundar a coerência no âmbito da administração pública através de uma visão holística – em contraposição à fragmentação resultante da NGP –, e para o papel central da tecnologia como instrumento de aumento da responsividade aos cidadãos na administração pública, e não somente como um ambiente (virtual) de replicação das estruturas formais existentes desde a burocracia clássica (ROBINSON, 2015, p.11; LODGE; GILL, 2011, p.143; HOMBURG, 2004). 2.5. Frameworks de participação na tomada de decisão A partir dessas considerações, fica evidente que a participação dos cidadãos nas instituições pode ser considerada, de certa forma, expressão de poder. Conforme pontua Arnstein (1969), a participação é uma maneira de redistribuição de poder que permite àqueles que estão excluídos dos processos políticos e econômicos correntes de assegurarem que serão incluídos no futuro e compartilharão os benefícios da sociedade afluente. É a estratégia pela qual os excluídos participam da determinação de como a informação será compartilhada, metas e políticas serão definidas, recursos de impostos serão alocados, programas serão operados e benefícios como contratos e patrocínios serão distribuídos. Em suma, é o meio pelo qual eles podem induzir reforma social 22 significativa que lhes permita compartilhar dos benefícios da sociedade afluente (ARNSTEIN, 1969, p.1, tradução minha). It is the strategy by which the have-nots join in determining how information is shared, goals and policies are set, tax resources are allocated, programs are operated, and benefits like contracts and patronage are parceled out. In short, it is the means by which they can induce significant social reform which enables them to share in the benefits of the affluent society (ARNSTEIN, 1969, p.1). Contudo, naturalmente, nem toda participação é igual, podendo representar intensidades diferentes de influência sobre as instituições detentoras de poder. Afinal, há uma grande diferença entre o ritual vazio da participação e o verdadeiro poder de interferir nos resultados do processo (ARNSTEIN, 1969). Nesse sentido, a autora propõe a elaboração de uma escala de participação (Figura 2) que busca analisar o real poder de influência dos cidadãos no processo de decisão. Parte-se da manipulação, como a expressão do menor grau de participação – ou, efetivamente, a não-participação – até o controle dos cidadãos, a expressão máxima da participação. Com a simbologia de uma escada, a autora argumenta que, nos primeiros degraus – manipulação e terapia – não há participação, enquanto que os três degraus seguintes são classificados como tokenismo5, o momento em que os cidadãos começam a ganhar voz, mas não tem poder de assegurar que suas demandas serão atendidas. Somente a partir do sexto degrau o cidadão começa a realmente influenciar o processo de tomada de decisão (ARNSTEIN, 1969). Dessa forma, a escada de participação representaria uma disputa de poder entre os cidadãos que, ao tentarem subir os degraus, buscariam ter mais voz e as instituições controladoras que, intencionalmente ou não, acabam por limitar sua ascensão ao topo (COLLINS; ISON, 2006). 5 De acordo com os dicionários Oxford e Merrian-Webster, tokenismo é a prática de fazer concessões simbólicas em relação a alguma coisa, com objetivo prevenir críticas e transmitir a aparência de que há um tratamento justo. 23 Figura 2. Escada de participação dos cidadãos de Arnstein (1969) Fonte: ARNSTERN, 1969, p.217. Na mesma linha, Wilcox (2003) adaptou o modelo desenvolvido por Arnstein (1969), mas incluiu também outras duas dimensões (Figura 3). Além do nível de participação, para o autor, seria importante também considerar o estágio da participação e os diferentes stakeholders envolvidos no processo. Afinal, níveis de participação diversos seriam adequados para situações diferentes (WILCOX, 2003, p.8). Dessa maneira, observa-se que, contrastando com o pressuposto de Arnstein (1969) de que a participação em si é um objetivo a ser perseguido através da subida pelos degraus da escada, Wilcox (2003) avalia que cada caso deve ser analisado individualmente, de acordo com suas circunstâncias particulares. Quanto à escala de nível de participação, o autor elimina os degraus que representariam a não-participação e reconfigura a participação em cinco estágios (informação, consulta, decidindo juntos, agindo juntos e apoiando), conforme o grau de controle dos indivíduos envolvidos, sendo os três últimos considerados aqueles em que há efetivamente uma participação substancial. 24 Figura 3. Framework de participação de Wilcox (2004) Fonte: Wilcox, 2004, p.12 Diversos autores têm revisitado os frameworks de Arnstein e Wilcox em estudos sobre a participação dos cidadãos: em governos locais (BERNER; AMOS; MORSE, 2011); na análise do planejamento comunitário de cidades (STOUT, 2010); em países em desenvolvimento (CHOGUILL, 1996); nas decisões de políticas públicas em geral (BISHOP; DAVIS, 2002); e de desenvolvimento de mecanismos de participação (STEWART, 2007); e inclusive fora da administração pública como nas decisões de empresas quanto ao impacto ambiental de seus projetos (GREEN; HUNTON-CLARKE, 2003). Assim como esses trabalhos, esta dissertação também buscará subsídios nesses frameworks de participação para o desenvolvimento de seu objetivo. O framework de participação dos cidadãos de Arnstein (1969) será explorado para analisar os objetos de estudo, ao lado da fundamentação de poliarquia de Dahl (2005). Além disso, a bibliografia revisitada acerca de democracia e dos modelos de gestão pública complementarão análise dos casos assistindo na construção de hipóteses explicativas para as reflexões advindas deste exercício. 25 3. METODOLOGIA 3.1. Questões de pesquisa Sob esse pano de fundo, esta dissertação busca adentrar na esfera da participação dos cidadãos nas decisões de governo. Nesse sentido, através do estudo comparativo dos casos do Brasil e dos EUA, este trabalho terá como questão de pesquisa central, avaliar: Se incentivos fiscais para doações através do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) são mecanismos de democracia participativa aplicados à gestão pública. Assim, para subsidiar a discussão da problemática central, buscar-se-á responder às seguintes perguntas adjacentes: O incentivo fiscal da dedução do IRPF por doação foi utilizado, ao longo da história do Brasil e dos EUA, como mecanismo institucionalde estímulo à participação na distribuição desses recursos? Os cidadãos têm algum tipo de poder de decisão sobre o destino dos recursos de renúncia fiscal, com base no modelo de participação na gestão pública proposto? Se sim, em que medida as pessoas efetivamente participam? O estímulo dos incentivos fiscais para pessoas físicas é um modelo democrático de participação? 3.2. Método de pesquisa Com vista a responder a essas questões, optou-se pela utilização do método do estudo de caso. De acordo com Yin (2008), cada método de pesquisa tem suas vantagens e desvantagens e a escolha deve considerar o tipo de pergunta de pesquisa, o controle do investigador sobre o evento e a temporalidade do fenômeno. O estudo de caso seria adequado para responder perguntas do tipo “como” e “por quê”, quando o investigador tem pouco controle sobre os eventos e há foco em um fenômeno contemporâneo. A principal vantagem do método do estudo do caso seria sua capacidade de manter uma visão holística no estudo de fenômenos complexos. Em linha, Goldenberg (1999) afirma que o estudo de caso não é uma técnica específica, mas um processo de análise que se propõe a debruçar sobre a unidade social estudada em sua totalidade, seja um indivíduo, uma instituição ou uma comunidade, 26 visando compreendê-los em seus próprios termos. Para a autora, esse método busca reunir grande quantidade de informação detalhada, através de mergulho profundo sobre um fenômeno delimitado, com intuito de descrever a complexidade de um caso (GOLDENBERG, 1999). Já Merriam (1998) complementa ao afirmar que o estudo de caso pode também ser histórico em sua natureza. A autora afirma que uma das características do estudo de caso histórico (historical case study) é o emprego de técnicas comuns à historiografia, em especial o uso de material de fontes primárias (MERRIAM, 1998). Em consonância com o pensamento de Goldenberg (1999) e Yin (2008), Merriam (2009) reforça que este método de pesquisa ainda se baseia na descrição e análise holística do fenômeno, porém apresentadas sob uma perspectiva histórica. Para Amenta (2009), esse viés histórico no estudo de caso pode trazer riqueza explicativa por considerar a possibilidade da existência de causalidades e dependências históricas e conjunturais. Além disso, com esse método, permite-se ainda analisar, em detalhes, as circunstâncias que envolvem transformações estruturais e ocorrências extraordinárias. Contudo, conforme pontua o autor, o principal questionamento ao estudo de caso histórico advém da possibilidade de mal-entendidos ou da ausência de alguma informação básica sobre o caso comprometer todo o estudo (AMENTA, 2009). Além disso, este estudo também utilizará o método comparativo para nortear a análise dos casos. De acordo com Schneider e Schmitt (1998), a comparação busca descobrir regularidades e transformações, assim como construir modelos e tipologias através da identificação de continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, e explicitando as determinações gerais que orientam os fenômenos sociais. Para os autores, uma das principais vantagens desse método é trazer objetividade para pesquisa social na medida em que se foge da singularidade de um só caso, auxiliando na formulação e comprovação de determinadas hipóteses (SCHNEIDER; SCHMITT, 1998). Já Ragin (2014) aponta que o estudo comparativo demanda que cada caso seja observado em sua complexidade e integridade. Pondera, contudo, que as diferentes partes dos casos devem ser analisadas em relação aos outros casos e em termos do todo que eles formam e não de forma dissociada, portanto não objetivando generalizações estatísticas. Sendo assim, este trabalho terá natureza comparativa e multimétodo, utilizando- se de ferramentas quantitativas para propor indicadores que comporão um framework que permita mensurar a participação política dos cidadãos e de instrumentos qualitativos como a análise histórico-normativa em formato longitudinal para avaliar continuidades 27 de descontinuidades nos mecanismos de participação do IRPF. De acordo com Oliveira (2015), uma das vantagens do uso de diferentes métodos na mesma pesquisa é permitir a compreensão do fenômeno social a partir de diferentes pontos de vista (métodos), possibilitando a verificação, validação ou confirmação entre eles. Dessa maneira, conforme pontuam Yoshikawa et al. (2008), ao utilizar palavras (método qualitativo) e números (método quantitativo) conjuntamente, chega-se mais próximo a complexidade do fenômeno pelo fornecimento de dados divergentes ou convergentes entre os métodos. 3.3. Coleta dos dados Esta dissertação foi construída, fundamentalmente, a partir de dados coletados através de pesquisa bibliográfica em estudos sobre a história do IRPF, e pesquisa documental, com a busca das legislações brasileira e americana acerca desse imposto. A pesquisa bibliográfica é um tipo de coleta de dados que se debruça sobre materiais já elaborados, constituídos principalmente por livros e artigos científicos (GIL, 2002). De acordo com Gil (2002), uma das principais vantagens desse tipo de pesquisa é permitir que o investigador tenha acesso a uma ampla gama de fenômenos que poderia não ser acessível a uma pesquisa direta. Além disso, o autor também reforça que pesquisa bibliográfica é essencial ao estudo histórico, tendo em vista que alguns fatos passados não poderiam ser conhecidos senão por dados bibliográficos. Contudo, essa característica também deve ser vista com atenção, pois, a coleta em fontes secundárias pode apresentar informações equivocadas ou imprecisas, comprometendo o estudo em questão (GIL, 2002). No presente estudo, foram utilizados os principais trabalhos que abordam o imposto de renda da pessoa física no Brasil e nos Estados Unidos de maneira ampla como Nobrega (2014) e Lindsey (2003). Já a pesquisa documental refere-se à coleta de dados a partir de materiais que não receberam tratamento analítico ou podem ser reestruturados para novos objetivos de pesquisa (GIL, 2002). De acordo com Gil (2002), estes documentos podem ser classificados como “de primeira mão”, quando se encontram conservados em arquivos de instituições públicas e privadas e não receberam tratamento analítico. Ou “de segunda mão”, quando já foram, de alguma forma, objeto de análise. A principal vantagem deste tipo de pesquisa é que os documentos representam uma fonte rica e estável de dados, sendo, portanto, fundamentais para o desenvolvimento de trabalhos de natureza histórica (GIL, 2002). Gil (2002, p.4) reforça ainda que pesquisas elaboradas com base em fontes 28 documentais são importantes porque “proporcionam melhor visão desse problema ou, então, hipóteses que conduzem a sua verificação por outros meios”. Nesta dissertação, a pesquisa documental buscou abarcar as legislações que regeram o IRPF entre os anos de 1913 e 2013 nos Estados Unidos e entre 1922 e 2013 no Brasil, ou seja, desde a sua criação até o último ano em que há demonstração consolidada deste imposto em ambos os países. Além disso, dedicou-se ao ano de 2013 para a construção da fotografia de participação dos países em perspectiva comparada. Toda a legislação pesquisada, tanto do Brasil quanto dos EUA, estava disponível online em páginas dedicadas ao histórico legislativo nos sites da Câmara dos Deputados, do Senado e da Presidência da República brasileiros, e no site da universidade de Cornell nos EUA. Quanto aos dados utilizados para a construção da fotografia de participação, além dos documentos disponíveis nos sites da Receita Federal do Brasil e do Internal Revenue Service, dados complementares foram obtidos através da Lei de Acesso à Informação (LAI) brasileira. Tanto na pesquisa bibliográfica quanto na documental, ateve-se exclusivamente aos dados relacionados ao imposto de renda da pessoa física em detrimento
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