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14 4 NOÇÕES DE LIBRAS A aquisição da língua brasileira de sinais pelas crianças surdas é algo que ainda nos inquieta, nos retira da zona de conforto. É algo que mostra, muitas vezes, diversas lacunas nos processos de aprendizado e ensino-aprendizagem; mostra as fragilidades de um processo de inclusão social falho, despreparado para uma sociedade diversa e diferente. A escola, assim como as demais instituições sociais, não está preparada para atender às especificidades linguísticas, culturais e identitárias dessa minoria que ora se apresenta. Neste capítulo, você aprenderá sobre as questões relacionadas à aquisição da língua brasileira de sinais pela criança surda, bem como os estágios que a compõe, os processos pelos quais ela passa e sobre a importância da Libras no cotidiano escolar. 4.1 Competências Linguísticas, Discursivas e Sociolinguísticas da Libras Cerca de 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes, e essa condição acarreta uma série de questões que podem determinar sua trajetória escolar e, consequentemente, sua formação (SKLIAR, 1997). Prover o acesso à língua desde a mais tenra idade é essencial para garantir um desenvolvimento pleno e integral do sujeito, além de proporcionar sua percepção e interação com o mundo que o cerca. Quadros e Cruz (2011) apontam que somente 5% das crianças surdas são filhas de pais surdos e, por isso, possuem o input linguístico adequado no período de aquisição da linguagem. Neste ponto, trazemos para a reflexão o conceito de cultura surda, apresentado por Strobel no livro A Imagem do Outro Sobre a Cultura Surda, publicado em 2009. A autora define cultura surda como a forma de “[...] o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas [...]” (STROBEL, 2009, p. 27). Qual a relação da cultura surda com o uso da língua brasileira de sinais? Quando pensamos que a aquisição da língua pelas crianças surdas é análoga à das crianças ouvintes, nos causa estranheza quando recebemos um discente surdo em nossa sala de aula que não domina a língua brasileira de sinais (Libras). 15 As crianças ouvintes, logo ao nascerem, entram em contato com a língua majoritária — no nosso caso, a língua portuguesa —, na modalidade oral, por meio dos mais diversos canais. No entanto, a maioria das crianças surdas não possui esse contato linguístico desde o nascimento. A língua brasileira de sinais é um dos artefatos culturais apresentados por Strobel (2009) cuja importância é fundamental. Por isso, há a necessidade de uso da Libras desde o nascimento, para que essa criança cresça imersa em sua cultura e crie sua identidade. Infelizmente, essa é a realidade de apenas 5% das crianças surdas. Ao crescerem e se desenvolverem, tomando consciência de sua condição, alguns surdos passam a frequentar as associações e a se relacionar com seus pares e desenvolvem/adquirem os demais artefatos culturais, além da língua e da identidade. Pensando em contextos de aquisição de língua pelas crianças surdas, Quadros e Cruz (2011) nos apresentam três espaços onde há possibilidade de acontecer esse processo, são eles: o lar, a escola e a clínica, cada um deles com a sua importância, dependendo da história de vida da criança surda. No lar, primeiro local de contato com a língua, os bebês terão contatos com os pais, surdos ou não, mas que sinalizam. Algum outro familiar (tio, tia, avó ou avô, etc.) é fundamental nesse espaço. A escola pode oferecer um espaço que atenda às especificidades linguísticas desses indivíduos, por meio da presença de adultos surdos ou ouvintes, mas fluentes em Libras, e/ou da presença de outras crianças surdas para que a língua “aconteça” nas relações. Por último e não menos importante, a clínica é o local onde, por meio, preferencialmente, de uma abordagem oralista, a criança tem contato com a linguagem antes de ingressar à escola comum (QUADROS; CRUZ, 2011). Outro fator, além dos apresentados anteriormente, que influencia na aquisição da língua é o período em que a surdez foi detectada. Alguns diagnósticos costumam ser concluídos quando as crianças estão no 3º ou 4º ano de vida. Isso, comparado às 16 crianças ouvintes, faz as crianças surdas apresentarem atrasos no desenvolvimento da linguagem, comprometendo seu desenvolvimento integral e suas relações, pois, segundo Quadros e Cruz (2011), essa privação de linguagem nos primeiros anos de vida deixa sequelas sérias no desenvolvimento da linguagem. O sucesso ou fracasso desse processo depende, em grande parte, do acesso às informações que os pais/responsáveis têm sobre a língua de sinais e sobre a surdez. Essas informações despertam nos pais/responsáveis a consciência sobre a necessidade de a criança surda adquirir uma língua de modalidade viso-gestual, além de estabelecer comunicação com os filhos, viabilizando, assim, um ambiente linguístico adequado (QUADROS; CRUZ, 2011). Quadros e Cruz (2011) apresentam quatro estágios de aquisição de linguagem das crianças surdas, são eles: estágio pré-linguístico, estágio de um sinal, estágio das primeiras combinações e estágio de combinações múltiplas. O primeiro estágio ocorre quando as crianças surdas começam a balbuciar. É interessante que o balbucio ocorre tanto com as crianças ouvintes quanto com as surdas. Quadros e Cruz (2011) nos relata que o balbucio apresenta: [...] partes do sistema fonológico das línguas de sinais. O segundo estágio inicia por volta dos 12 meses e se estende até os 24 meses. Nesta fase, a criança se refere aos objetos apontando, segurando, olhando e tocando-os. [...] as primeiras produções incluem formas chamadas congeladas da produção adulta, ou seja, a criança usa uma palavra com um significado mais amplo (QUADROS; CRUZ, 2011). Após o período de 2 anos, as crianças surdas começam a produzir as primeiras combinações de sinais, com o intuito de descrever ações e acontecimentos do seu cotidiano. Quadros e Cruz (2011) apontam que, nesse estágio, as crianças surdas usam, de forma inconsistente, o sistema pronominal e a ordem verbo-objeto em sua sinalização. Esse estágio dura aproximadamente até o 30º mês de vida. O quarto estágio é o das múltiplas combinações. Nesse período, há uma “explosão de vocabulário”, e as crianças iniciam o processo de produção de frases curtas e sentenças. É importante que a criança surda esteja em um ambiente linguístico adequado para que possa ter condições naturais de aquisição de linguagem e desenvolvimento integral. 17 4.2 Recepção e Produção da Libras As práticas de produção e recepção da Libras estão relacionadas ao contato com seus pares linguísticos, de preferência surdos adultos e sinalizantes. As crianças surdas precisam desse referencial para se reconhecerem enquanto surdas e linguisticamente diferentes, a fim de interagir e modificar o mundo que as cerca. Esses adultos servirão como um modelo a ser seguido linguística e culturalmente (MARTINS, 2019). Tendo explicitado anteriormente que cerca de 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes, a língua de sinais, em grande parte dos lares, não circulará com a devida frequência e importância, ou seja, as crianças surdas terão acesso tardiamente à Libras, por isso a importância da presença de um adulto surdo. É importante que os pais ouvintes aprendam a Libras para se comunicarem com seus filhos, minimizando, assim, as barreiras comunicativas e informacionais. Ao atingirem a idade escolar, muitas crianças surdas chegam à escola sem uma língua adquirida, pronta e internalizada. O paradigma atual é o de uma escola inclusiva, uma escola para todos, uma escola que viva e promova a diversidade; uma escola onde essa diferença é valorizada, é estimulada, é trabalhada nos currículos e nas relações existentesnesse templo do saber. Contudo, é uma escola cuja língua majoritária é a língua portuguesa, uma escola cujo currículo é pensado por e para ouvintes, uma escola cujas práticas, métodos e avaliações também são pensados por e para ouvintes. E os discentes surdos, onde estariam nesse espaço do saber? Por meio de qual língua adquirirá os conhecimentos curriculares e manterá as relações estabelecidas? Como estão sendo pensadas as especificidades dos discentes surdos na escola para todos? 4.3 A Libras nas escolas No ano de 1996, foi publicada a Lei nº 9.394, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). No corpo dessa legislação, é facultado ao discente estudar na escola mais próximo da sua residência, além de adaptações curriculares e atendimento educacional especializado, quando necessário. Uma reflexão: sabendo que a criança surda precisa estar em contato com seus pares 18 linguísticos, quem garante que na escola próximo da sua residência haverá outras crianças surdas regularmente matriculadas? No ano de 2002, a língua brasileira de sinais (Libras) é reconhecida como meio de comunicação e expressão da comunidade de surdos do Brasil por meio da publicação da Lei nº 10.436, também conhecida como Lei de Libras (BRASIL, 2002). Na constituição dessa legislação, a Libras passa a ser disciplina obrigatória nos cursos de formação de professores (licenciaturas e magistério) e fonoaudiólogos, além de optativa nos demais cursos de graduação. É provável que a Libras ainda não seja uma disciplina obrigatória nas escolas de educação básica de nosso país por ser considerada um meio de comunicação de um determinado grupo social. O Decreto nº 5.626, de 2005, que regulamenta a Lei de Libras, apresenta a possibilidade de o ensino para as crianças surdas ser ministrado em Libras do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, além das formações para professores, intérpretes, instrutores e outros atores da educação de surdos (BRASIL, 2005). Chamo a atenção para o inciso I do art. 22º do referido Decreto: [...] escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental”. No parágrafo, primeiro define escolas ou classes bilíngues: “São denominadas escolas ou classes bilíngues aquela em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo [...] (BRASIL, 2005, documento on-line). Escola inclusiva ou bilíngue? Instrução em Libras ou em língua portuguesa? Como pensar esse quebra-cabeça da educação de surdos? Uma escola bilíngue para surdos não seria uma escola especial? Estaríamos regredindo, uma vez que a escola especial data do período do paradigma da integração, ou seja, anteriormente à década de 1990? A escola comum (inclusiva), em que atualmente os discentes surdos estão matriculados, é uma escola cuja língua de instrução é a língua portuguesa, nesse caso, não estariam eles (surdos) sendo excluídos de todo o processo educativo? Línguas diferentes e com status diferentes se tensionando dentro do mesmo espaço. 19 Ora esse sujeito tem o direito de estudar próximo à sua residência, ora de estar junto a seus pares, ora ter sua instrução em Libras, ora...., ora..., ora.... As legislações vigentes não dialogam entre si e fazem a educação desses indivíduos ser um complexo labirinto a ser vencido. A comunidade surda (i.e., alunos surdos, professores surdos, professores ouvintes bilíngues e intérpretes) defendem um modelo de educação bilíngue tendo a Libras como língua de instrução e a língua portuguesa na sua modalidade escrita como segunda língua, mas vale ressaltar que esse modelo é adotado em escolas de/para surdos e, no Brasil, nem todas as cidades do país possuem escolas que trabalham nessa perspectiva. No processo inclusivo, o ensino da Libras é importantíssimo, uma vez que, em grande parte das escolas comuns, o discente surdo é o único falante da língua de sinais, não havendo nenhum par linguístico. Esse ensino parte do pressuposto de que é por meio da comunicação e da interação com o outro que acontece o desenvolvimento intelectual, cognitivo e linguístico, além do aprendizado com qualidade. É necessário também que a escola incentive e pratique a pedagogia da diferença, de modo que comunidade reconheça a diferença linguística e cultural de seus alunos (MARTINS, 2019). Para que os indivíduos surdos alcancem níveis satisfatórios de aprendizado, relacionamento e desenvolvimento integral, a escola precisa criar estratégias adequadas para o processo de ensino-aprendizagem, buscando metodologias e práticas que potencializem o uso de recursos visuais, além de avaliações condizentes com as especificidades linguísticas e a criação de políticas que valorizem seus artefatos culturais, essenciais para seu crescimento. 20 4.4 (In)conclusões Pensar as questões referentes à surdez e ao ensino da Libras são desafiadoras. Procuramos, no decorrer deste capítulo texto, apresentar alguns elementos que compõem essa complexidade. Desde os lares até as escolas, há uma série de entraves que tencionam as relações entre surdos e ouvintes, por exemplo: língua, cultura, identidade(s), entre outros. As crianças surdas, desde o nascimento até o ingresso nas escolas comuns, percorrem caminhos de aquisição de linguagem completamente diferentes, levando- se em consideração os ambientes em que cresceram e se desenvolveram. Enquanto uma criança surda, filha de pais surdos, adquire linguagem dentro do tempo esperado (concluindo todos os estágios de aquisição no período estabelecido), as crianças surdas filhas de pais ouvintes, em sua maioria, têm essa aquisição tardia, uma vez que os pais podem não ter contato com a Libras, comprometendo etapas de seu desenvolvimento. Na área educacional, percebe-se que, atualmente, os surdos encontram-se em conflito com a política de inclusão, uma vez que não são atendidos pela pedagogia da diferença e não têm suas questões linguísticas e culturais atendidas nos espaços do saber. A inclusão ainda não os percebe como sujeitos que demandam práticas escolares diferenciadas, e muito menos os enxerga como indivíduos cultural e linguisticamente diferentes (MARTINS, 2019). Há uma violência simbólica no processo educacional quando, por exemplo, há a imposição de uma língua (língua portuguesa) sobre outra (língua brasileira de sinais). 21 De acordo com Martins (2019), a escola precisa repensar suas práticas, métodos, currículos e avaliações para que contemplem as especificidades dos discentes surdos, além de incentivar o uso da Libras em seus espaços e entre seus atores. Assim, um espaço que oferece possibilidades linguísticas para os surdos pode proporcionar um melhor aprendizado e gerar um sentimento de pertencimento. 5 A PRÁTICA DE LIBRAS Neste capítulo, você refletirá acerca de como as experiências visuais são fundamentais para a pessoa com surdez e como auxiliam na comunicação e na aprendizagem. Ouvintes são tão acostumados a viver no mundo barulhento que nem percebem a importância que isso tem em seu dia a dia. Por exemplo, ouvir música e ao mesmo tempo realizar outra tarefa é algo muito comum. Já para o surdo, ir ao teatro ou ao cinema e conseguir acompanhar a fala e as ações que acontecem ao mesmo tempo é muito difícil. É preciso fazer escolhas, ou olhar para o intérprete, quando tiver, ou tentar apenas acompanhar os movimentos e, assim, buscar a compreensão do que está acontecendo. Em alguns dias não estamos bem, de saúde ou porque algo aconteceu, e, ao chegar ao trabalho ou à escola, por exemplo, optamos por ficar mais quietos e esperar que ninguém perceba. Entretanto, quando tem uma pessoa com surdez por perto, isso se torna praticamente impossível,pois a primeira pergunta que surge é: o que você tem? Está tão triste hoje. Para as pessoas com surdez, nossas expressões faciais e corporais, na maioria das vezes, dizem mais do que qualquer palavra ou sinal. Por
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