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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ELISA COSTALONGA E GANDOUR ESCOLHA TECNOLÓGICA NO SETOR DE SANEAMENTO: Um estudo sobre a priorização de critérios RIO DE JANEIRO 2011 2 “Diga-me, esquecerei Mostre-me, talvez lembrarei Faça-me participar e compreenderei.” Provérbio chinês 3 Elisa Costalonga e Gandour ESCOLHA TECNOLÓGICA NO SETOR DE SANEAMENTO: Um estudo sobre a priorização de critérios Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Administração, do Instituto COPPEAD de Administração, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Administração. Orientador: Prof. Cesar Gonçalves Neto, Ph.D. RIO DE JANEIRO 2011 4 G196 Gandour, Elisa Costalonga e. Escolha Tecnológica no Setor de Saneamento: Um estudo sobre a priorização de critérios / Elisa Costalonga e Gandour – 2011 158 f.: il. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Coppead de Administração, Rio de Janeiro, 2011. Orientador: César Gonçalves Neto 1. Análise de decisão. 2. Tecnologia-Saneamento. 3. Administração – Teses. I. Gonçalves Neto, César (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pós-Graduação em Administração. III. Escolha Tecnológica no Setor de Saneamento: Um estudo sobre a priorização de critérios. CDD 658.4035 5 Agradecimentos Gostaria de agradecer... Aos meus pais, Stela e Fábio, por me mostrarem o valor da educação e acompanharem minhas conquistas acadêmicas ao longo dos anos. À Clarissa, por ser uma aluna e irmã exemplar. Ao Renato, pelas contribuições, sábias e sinceras. Ao Miguel, pelo carinho, compreensão e apoio. Ao Vinicius, pelas ideias construtivas e paciência sem fim. Aos colegas da Turma 2009, sem os quais essa experiência não seria tão rica. Aos professores do COPPEAD, pela dedicação ao ensino e pelo exemplo. Ao Prof. César, pela orientação. Ao Prof. Otávio, pelos conselhos. À equipe COPPEAD, pela atenção, prestatividade e, acima de tudo, pela oportunidade. Ao CNPq, pelo investimento em educação e pesquisa. Aos profissionais e acadêmicos que participaram desta pesquisa e que, espero, sejam os maiores beneficiados pelos resultados. Muito Obrigada! 6 Resumo GANDOUR, Elisa Costalonga e. Escolha Tecnológica no Setor de Saneamento: Um estudo sobre a priorização de critérios. Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Até a metade do século passado, os poucos estudos sobre escolha tecnológica eram voltados para o setor industrial, focando em aspectos econômicos. Mais recentemente, no entanto, a sustentabilidade dos processos tornou-se central para profissionais e acadêmicos. O objetivo deste estudo é traçar perfis de decisão, baseado na inclusão de critérios de decisão e em características pessoais dos entrevistados. Escolheu-se o setor de saneamento por lidar com a qualidade da água fornecida enquanto procura minimizar os impactos ambientais do processo de tratamento. Os dados foram obtidos através de survey e analisados descritivamente, assim como por aglomeração estatística. Os resultados mostram que alguns critérios utilizados no setor industrial também o são na área de saneamento. Percebe-se que o setor público prioriza critérios relacionados ao impacto ambiental, ainda que demande mais informações para suas decisões, enquanto no setor privado prevalecem critérios referentes à eficácia do processo. No entanto, há desalinhamento intra-setor sobre objetivos de uma estação de tratamento: o setor público defende o objetivo de alcançar a eficácia no tratamento da água, enquanto o setor privado aponta para um processo que deve, acima de tudo, prezar pelo ambiente. Identificam-se critérios referentes aos aspectos sociais do processo, que devem ser priorizados. No geral, os resultados mostram que decisores e não- decisores estão alinhados em suas preferências e que existe necessidade de prover informações de qualidade para a escolha tecnológica. 7 Abstract GANDOUR, Elisa Costalonga e. Escolha Tecnológica no Setor de Saneamento: Um estudo sobre a priorização de critérios. Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Until the middle of the last century, the few studies made on technological choice were intended for the industrial sector, focusing on economic aspects. More recently, however, the sustainability of processes has gained importance for professionals and academics. The objective of this study is to identify decision profiles, based on the inclusion of decision criteria and personal characteristics of respondents. The sanitation sector was chosen because it deals with the quality of water supplied while seeking to minimize the environmental impacts of the treatment process. Data were obtained through survey and analyzed descriptively, as well as with statistical clustering. The results show that some criteria used in the industrial sector are also used in the sanitation area. It was noticed that the public sector prioritizes environmental impact criteria, even though it requires more information for making decisions, while in the private sector, criteria regarding the effectiveness of the process prevail. However, there is an intra-industry misalignment concerning a treatment plant’s objectives: the public sector supports the goal of achieving efficiency in water treatment, while the private sector indicates a process that should, above all, care for the environment. Criteria concerning social aspects of the process are identified and should be prioritized. Overall, the results show that non-decision makers and decision makers are aligned in their preferences and that there is need to provide quality information for technological choice. 8 Lista de tabelas Tabela 1 Definições de termos técnicos .................................................................... 11 Tabela 2 Características observadas para o tratamento da água residual ............... 40 Tabela 3 Etapas para o tratamento da água ............................................................. 42 Tabela 4 Casos de reaproveitamento da água de esgoto ......................................... 45 Tabela 5 Resumo das tecnologias para tratamento de esgotos................................ 54 Tabela 6 Resumo de características das tecnologias citadas ................................... 55 Tabela 7 Resumo das vantagens e desvantagens das tecnologias citadas ............. 55 Tabela 8 Metodologias de avaliação da sustentabilidade ......................................... 60 Tabela 9 Indicadores de sustentabilidade ................................................................. 62 Tabela 10 Etapas do método multiobjetivo e multicritério ......................................... 65 Tabela 11 Critérios para avaliação tecnológica ......................................................... 66 Tabela 12 Respostas coletadas ................................................................................ 82 Tabela 13 Caracterização pessoal ............................................................................ 83 Tabela 14 Caracterização por região ........................................................................ 83 Tabela 15 Agrupamento por inclusãode critérios: percentual da amostra ................ 83 Tabela 16 Agrupamento por inclusão de critérios: quantidade de pessoas .............. 84 Tabela 17 Categorização dos objetivos de uma ETE ................................................ 84 Tabela 18 Categorização dos novos critérios propostos ........................................... 85 Tabela 19 Contatos realizados .................................................................................. 85 Tabela 20 Respostas inválidas .................................................................................. 86 Tabela 21 Critérios por categoria .............................................................................. 89 Tabela 22 Alocação por inclusão de critérios: setor .................................................. 89 Tabela 23 Alocação por inclusão de critérios: ramo .................................................. 89 Tabela 24 Alocação por inclusão de critérios: hierarquia .......................................... 90 Tabela 25 Categorização dos objetivos de uma ETE ................................................ 93 Tabela 26 Categorização dos objetivos por setor ..................................................... 94 Tabela 27 Categorização dos objetivos por ramo de atuação .................................. 95 Tabela 28 Critérios com maior percentual de inclusão .............................................. 97 Tabela 29 Critérios com maior percentual de não-inclusão ...................................... 97 Tabela 30 Critérios com maior percentual de indecisão ............................................ 98 Tabela 31 Grupo com alta taxa de indecisão ............................................................ 99 Tabela 32 Critérios do setor industrial: julgamentos ................................................ 100 9 Tabela 33 Critérios do setor industrial: julgamentos por decisores ......................... 100 Tabela 34 Aglomeração não-hierárquica da amostra (percentual do total) ............. 102 Tabela 35 Valor absoluto de componentes em cada aglomerado........................... 102 Tabela 36 Aglomeração: percentuais por coluna .................................................... 103 Tabela 37 Aglomeração: percentuais por linha ....................................................... 103 Tabela 38 Coordenadas dos centros de massa ...................................................... 104 Tabela 39 Prioridades em cada aglomerado: critérios adicionados a mais ............. 106 Tabela 40 Classificação dos centros de massa calculados .................................... 107 Tabela 41 Aglomeração por ramo ........................................................................... 108 Tabela 42 Aglomeração por hierarquia ................................................................... 108 Tabela 43 Aglomeração por setor ........................................................................... 108 Tabela 44 Distribuição de propostas por novos critérios ......................................... 112 Tabela 45 Percentual de inclusão para todos os critérios ....................................... 134 Tabela 46 Relação de palavras e expressões-chave para categorização dos objetivos .................................................................................................................. 136 10 Lista de figuras Figura 1 Isoquanta .................................................................................................... 24 Figura 2 Distribuição mundial dos recursos hídricos ................................................. 35 Figura 3 Tripé para a sustentabilidade ...................................................................... 59 Figura 4 Exemplo do gráfico em R3 .......................................................................... 74 Figura 5 Distribuição de contatos por região ............................................................. 86 Figura 6 Distribuição de mercado .............................................................................. 88 Figura 7 Distribuição de mercado ajustado para proporção de respostas ................ 88 Figura 8 Distribuição de setor.................................................................................... 88 Figura 9 Distribuição de hierarquia ............................................................................ 88 Figura 10 Distribuição dos pontos em R3 ................................................................. 91 Figura 11 Dendrograma: Método de Ward ................................................................ 91 Figura 12 Aglomeração com 3 centroides ................................................................. 92 Figura 13 Localização dos centros de massa no espaço ........................................ 106 Figura 14 Disposição tridimensional: ângulo Eficácia vs. Impacto Ambiental ......... 107 11 Termos técnicos Os termos definidos na Tabela 1 serão úteis para a melhor compreensão do texto. As definições foram obtidas principalmente do Dicionário Eletrônico Houaiss. Tabela 1 Definições de termos técnicos (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS, 2002) Termo técnico Definição Aeróbio Que ou o que é capaz de utilizar o oxigênio em seu metabolismo (diz-se de organismo) Anaeróbio 1. Diz-se de ou organismo capaz de anaerobiose; 2. Diz-se de ou metabolismo que ocorre em ausência de oxigênio; 3. Diz-se de ou composição atmosférica incapaz de sustentar vida em aerobiose Anaerobiose Tipo de vida que ocorre na ausência de ar ou de oxigênio; anoxibiose Biodigestor Relativo a ou equipamento instalado para a produção de biogás Biogás Gás combustível (metano) gerado pela fermentação anaeróbica de matéria orgânica de origem vegetal ou animal (p.ex., biomassa, esterco, lixo orgânico) Biomassa 1. Massa de matéria viva; 2. Massa de matéria orgânica de um organismo; 3. Massa de matéria orgânica presente em um nível trófico ou em outra delimitação dos ecossistemas Decantador Que ou o que sedimenta (mesmo que sedimentador) Detenção hidráulica Tempo de permanência da massa líquida dentro do tanque ou lagoa de tratamento1 Efluente Referente à corrente de fluido que sai de um motor, equipamento etc. Gás sulfídrico Diz-se de ou ácido (H2S) usado como intermediário químico, em metalurgia, como reagente analítico etc. É um gás incolor, mais pesado que o ar e altamente tóxico; possui cheiro de ovo podre em baixas concentrações e inibe o olfato em concentrações elevadas Nitrificação Transformação de nitrogênio amoniacal em nitratos Patogênico Que provoca ou pode provocar, direta ou indiretamente, uma doença Reator Tanque; unidade de processamento de substâncias onde se produzem reações de transformação molecular (p.ex., reator de polimerização etc.) Séptico 1. Que causa putrefação; putrefativo; 2. Que causa infecção; 3. Que contém germes patogênicos 1 Definição livre, considerando o contexto da pesquisa. 12 Lista de abreviações ANA – Agência Nacional das Águas ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente DBO – Demanda bioquímica de oxigênio DQO – Demanda química de oxigênio ETE – Estação de Tratamento de Esgotos OMS – Organização Mundial da Saúde ONU – Organização das Nações Unidas P&D – Pesquisa e Desenvolvimento SS – Sólidos em suspensão UNDPCSD – The United Nations Department of Policy Coordination and Sustainable Development UNEP – United Nations Environment Programme VMP – Valores máximos permitidos 13 Sumário 1 Introdução .......................................................................................................... 16 1.1 Relevância .................................................................................................. 18 1.2 Delimitações ...............................................................................................19 2 Revisão de literatura .......................................................................................... 21 2.1 Tecnologia .................................................................................................. 21 2.1.1 Escolha de tecnologia .......................................................................... 23 2.1.2 “Tecnologia apropriada” ....................................................................... 27 2.1.2.1 Tecnologia social .............................................................................. 28 2.1.3 Modelo multiobjetivo e multicritério ...................................................... 28 2.1.3.1 Histórico ........................................................................................... 29 2.1.3.2 Etapas do método multiobjetivo e multicritério ................................. 30 2.1.3.3 Elementos da formulação do problema multiobjetivo e multicritério . 31 2.1.4 Análise tecnológica para tratamento de esgotos ................................. 32 2.2 A água ......................................................................................................... 34 2.2.1 Sobre a água ....................................................................................... 34 2.2.2 Considerações sobre a água para uso humano .................................. 36 2.2.3 O conceito de reuso e reciclagem ........................................................ 38 2.2.4 Tratamento da água ............................................................................. 39 2.2.4.1 Etapas do processo de tratamento da água ..................................... 41 2.2.4.2 Padrões para definição da qualidade da água tratada ..................... 43 2.2.4.3 Tratamento de esgotos .................................................................... 44 2.2.4.4 Tecnologias disponíveis para o tratamento de esgotos ................... 46 2.2.5 Resumo das tecnologias ...................................................................... 54 2.3 Sustentabilidade ......................................................................................... 56 2.3.1 Algumas definições .............................................................................. 56 2.3.1.1 Sustentabilidade ............................................................................... 56 2.3.1.2 Sustentabilidade ambiental .............................................................. 58 2.3.1.3 Desenvolvimento sustentável ........................................................... 58 2.3.2 Sustentabilidade do tratamento de água ............................................. 59 2.3.2.1 Metodologias para determinação da sustentabilidade ..................... 60 2.3.2.2 Indicadores de sustentabilidade ....................................................... 61 2.4 Resumo da revisão de literatura ................................................................. 64 14 2.4.1 Elementos-chave ................................................................................. 64 2.4.2 Critérios de decisão ............................................................................. 65 3 Metodologia ........................................................................................................ 68 3.1 Coleta de dados .......................................................................................... 68 3.1.1 A metodologia survey .......................................................................... 68 3.1.1.1 Amostragem ..................................................................................... 69 3.1.2 A pesquisa atual .................................................................................. 71 3.1.3 Conteúdo do questionário usado na e-survey ..................................... 72 3.2 Análise de dados......................................................................................... 72 3.2.1 Percentual de inclusão ......................................................................... 73 3.2.2 Análise de aglomerados ...................................................................... 73 3.2.2.1 Método hierárquico de aglomeração ................................................ 75 3.2.2.2 Método de Ward ............................................................................... 75 3.2.2.3 Método não hierárquico de aglomeração ......................................... 76 3.2.2.4 K-means: algoritmo de aglomeração ................................................ 77 3.2.3 Outras análises: objetivos e critérios ................................................... 78 3.2.3.1 Análise dos objetivos ........................................................................ 79 3.2.3.2 Outros critérios propostos ................................................................ 80 3.2.3.3 Critérios mais frequentes ................................................................. 80 4 Resultados ......................................................................................................... 82 4.1 Análise descritiva ........................................................................................ 82 4.2 Apresentação da amostra ........................................................................... 85 4.3 Apresentação dos dados coletados ............................................................ 88 4.4 Outros dados coletados .............................................................................. 93 4.4.1 Objetivos da ETE ................................................................................. 93 4.4.2 Outros critérios ..................................................................................... 95 4.4.3 Critérios mais frequentes ..................................................................... 96 4.4.4 Critérios do Setor Industrial ................................................................. 99 5 Análise e sugestões ......................................................................................... 101 5.1 Análise dos dados ..................................................................................... 101 5.2 Outras análises propostas ........................................................................ 109 5.2.1 Análise dos objetivos categorizados .................................................. 109 5.2.2 Novos critérios: Análise ..................................................................... 111 15 5.2.3 Análise de critérios mais frequentes .................................................. 113 5.2.4 Análise de critérios do setor industrial ............................................... 114 6 Considerações finais ........................................................................................ 116 6.1 Sugestões para estudo futuro ................................................................... 120 6.1.1 Aglomeração ...................................................................................... 120 6.1.2 Outras análises .................................................................................. 123 Referências ............................................................................................................. 125 Apêndice A – Estrutura da Survey .......................................................................... 132 Apêndice B – Percentuais de inclusão .................................................................... 134 Apêndice C – Classificação de objetivos ................................................................. 136 16 1 Introdução Nos últimos anos, tem-se testemunhado a crescente conscientização sobre questões ambientais e de recursos naturais, tanto por parte de pessoas físicas quanto de instituições e empresas, que dependem do meio ambiente para produzir e sobreviver. Com isso, cresceu também a preocupação coletiva com o risco deescassez desses recursos em um futuro próximo. De fato, segundo De Koning, et al. (2008), além do crescimento da conscientização ambiental, a população vem apresentando uma tendência a defender a sustentabilidade. Esse conceito abrange várias perspectivas, uma das quais é o impacto ambiental, e pode ser entendido do ponto de vista da perpetuidade dos recursos naturais, consumidos pela população global e renovados com o passar do tempo. A água, um dos recursos naturais mais abundantes, é também parte essencial do ciclo de vida do ser humano, considerando-se tanto o consumo como nutriente, para manutenção do metabolismo e funções vitais, quanto o consumo como parte essencial de outras funções diárias, como higiene e lazer. Sendo assim, e tendo em vista a distribuição naturalmente desigual desse recurso entre os povos, torna-se importante praticar o uso consciente, a fim de evitar o desperdício. Além disso, deve- se praticar a reciclagem e o reuso, que adiam seu esgotamento. No final da década de 90, um estudo publicado pela UNEP (1997) mostrou que, infelizmente, os governos e a iniciativa privada de diversos países da América Latina não reconheciam a necessidade de estações de tratamento de água, nem a importância da qualidade da água para melhorar a qualidade de vida das gerações futuras. Esse cenário, porém, mudou e, recentemente, é crescente a importância dada à preservação de recursos hídricos (DE KONING, BIXIO, et al., 2008). Devido ao intenso uso da água em funções de limpeza, como um meio para transportar impurezas, o efluente do sistema de esgoto é rico em água. Apesar de essa água ser suja e imprópria para consumo, ou até mesmo para manuseio, esse material oferece enorme potencial como fonte de água para tratamento e, portanto, reciclagem e reuso. Dependendo do método de descarte e do reuso que se pretende dar ao efluente, aplicam-se diferentes níveis de exigência com a qualidade da água tratada, isto é, sua pureza. Por exemplo, água de esgoto nunca se tornará potável, por mais que seja tratada, mas pode ser usada para lavagem de calçadas ou resfriamento de máquinas. 17 Como visto, água tratada pode ser considerada um produto, com diferentes especificações e propósitos. É de se esperar, portanto, que existam diversas maneiras de “produzi-lo”, dependendo dos requerimentos considerados. De fato, o universo de tratamento de água e esgotos oferece opções, variando os custos envolvidos, o tempo de operação e a qualidade do produto final, para citar apenas alguns exemplos. Essa variedade se deve às diversas tecnologias de tratamento disponíveis, com requisitos diferentes. Com isso, torna-se imprescindível orientar corretamente a escolha de tecnologia para implementar uma estação de tratamento de esgotos. Tal decisão impactará diretamente a saúde da empresa que se propõe a lidar com água e esgotos tratados, a fim de atender à demanda dentro das restrições impostas pela escolha tecnológica. Nesse contexto, encontrou-se motivação para investigar a dinâmica entre o setor de saneamento e o meio ambiente, interdependentes entre si. O interesse era entender como os processos do setor de saneamento são impactados pela crescente conscientização ambiental. Devido à importância da escolha de tecnologia para a construção de uma estação, escolheu-se focar nesta parte do processo para orientar o estudo. Portanto, esta dissertação se propõe a estudar o processo de escolha de tecnologia no setor de saneamento, com o intuito de compreender melhor alguns fatores que influenciam essa decisão. A escolha de tecnologia se baseia em objetivos a alcançar e critérios a atender, ambos variando de acordo com a situação e os agentes envolvidos. Neste trabalho propôs-se uma observação crítica dos critérios utilizados no setor de saneamento, categorizando-os e comparando-se a prioridade a eles atribuída. Dentre essas categorias havia: eficácia do tratamento de esgoto, referente à qualidade da água produzida pelo tratamento; impacto ambiental da construção da estação; e outros critérios a ser considerados, como custos e aceitação pública, por exemplo. Desejava-se entender se haveria preferência observável por alguma dessas categorias e, caso houvesse, se isso poderia ser explicado em termos das características pessoais de quem as priorizava, isto é, seu ramo de trabalho (academia ou mercado), nível hierárquico e setor de atuação (público ou privado). Anteriormente à coleta de dados, imaginava-se que não seria possível escolher uma tecnologia que fosse eficaz e, ao mesmo tempo, tivesse baixo impacto ambiental. Isto é, a hipótese trabalhada é que seria necessário priorizar um desses aspectos processuais ao definir qual tipo de tratamento aplicar ao esgoto. Vale lembrar que a 18 intenção não era indicar formas corretas ou incorretas de abordar a escolha tecnológica, mas sim entender a motivação por trás da mesma. A coleta de dados foi realizada através de uma e-survey, cujo questionário continha critérios de escolha tecnológica, encontrados na literatura. A amostra foi composta por profissionais e acadêmicos do setor de saneamento, de diferentes níveis hierárquicos e de ambos os setores, público e privado. Os resultados foram então analisados sob a ótica de aglomerados, que objetiva agrupar os indivíduos da amostra com base em suas respostas. A aglomeração levaria à identificação de perfis de decisão, relacionando características pessoais do entrevistado e suas preferências para escolha tecnológica. 1.1 Relevância O objetivo desta pesquisa é identificar perfis de decisão, resultantes da aglomeração estatística, acrescentando, assim, para os estudos sobre escolha tecnológica. Porém, deseja-se contribuir também para o conjunto de estudos da interação entre o Homem e o meio ambiente. Ao usar critérios para medição de impacto ambiental, deseja-se colocar em evidência a importância de tais variáveis na busca por processos ambientalmente menos daninhos, retardando sua degradação. Entende-se que esse tipo de pesquisa seja do interesse de: instituições comerciais, públicas ou privadas, que desejam demonstrar responsabilidade social; cidadãos, cujo bem-estar e qualidade de vida dependem da boa conservação do ambiente, especialmente em se tratando de áreas densamente habitadas, como grandes cidades e megalópoles; entidades do governo, cujo objetivo deveria ser prezar pela qualidade de vida dos cidadãos, contemplando ainda a perpetuidade dos recursos disponíveis para gerações futuras (e governos futuros), através da regulamentação e punição de poluidores. Na busca por soluções para o meio ambiente, entende-se que a existência de empresas de tratamento de esgoto é por si só uma importante contribuição, uma vez que o lançamento de esgotos in natura pode levar à contaminação irreversível de corpos hídricos. No entanto, em vez de observar o efeito macro, do ponto de vista institucional, deseja-se abordar nesta pesquisa a perspectiva micro, no nível 19 gerencial, considerando as opiniões individuais dos atores que lidam diretamente com estações de tratamento de esgoto (ETEs). Busca-se explorar a opção por um ou outro tipo de tratamento: como é feita, sob quais restrições e com quais objetivos. Tais resultados podem revelar diferenças na forma de pensar de pessoas e empresas que atuam no mesmo setor, mas que estão geograficamente distantes, além de identificar possíveis lacunas entre o que é idealizado e aquilo que é, de fato, praticado. Nesse sentido, a contribuição será na forma de consolidação, análise crítica e divulgação da informação coletada. 1.2 Delimitações A pesquisa foi realizada ao longo de um período de 20 meses, iniciando-se em janeiro de 2010. A revisão de literatura foi composta por artigos científicos, livros publicados, trabalhos acadêmicos e publicações em websites, relacionadosa tecnologia, saneamento e sustentabilidade. Buscou-se utilizar material produzido a partir do ano 2000, porém, algumas publicações de décadas anteriores também foram aproveitadas. A coleta de dados foi realizada através do portal surveymonkey.com, de junho a outubro de 2010, e visava abranger o território nacional brasileiro. Os entrevistados foram contatados principalmente por telefone e e-mail para identificação daqueles que tinham interesse em participar da pesquisa. Constatado o interesse, enviava-se um documento digital, para ser preenchido e devolvido por e-mail, ou um link, para que respondessem à pesquisa pelo portal mencionado. No geral, o acesso aos respondentes não foi trivial, sendo necessários, em média, dois a três contatos para que enviassem retorno. É importante observar alguns pontos que este estudo não abordou, principalmente, por não ser parte do escopo objetivado originalmente. 1. Não se pretendeu identificar a melhor tecnologia para ETEs, mas sim estudar elementos do processo que levaria a essa decisão; 2. Não se desejou elaborar uma lista definitiva de critérios de decisão, mas sim se trabalhou com um grupo de critérios encontrados na literatura relacionada, que pode ser enriquecido com inúmeros outros critérios; 3. Ao traçar perfis de decisão, não se desejou determinar quais critérios devem ser usados por cada grupo de entrevistados (por característica), mas sim identificar as tendências percebidas em cada grupo; 20 4. Do grupo de critérios utilizado, não se pretendeu investigar os critérios excluídos da decisão ou aqueles que geraram indecisão, mas sim aqueles que eram considerados (incluídos) na decisão. Sendo assim, a pesquisa se destina a oferecer uma análise introdutória da criação de perfis de decisão, testando a receptividade de critérios encontrados na literatura e outras pesquisas relacionadas, mas deixando amplo campo para futuras investigações. 21 2 Revisão de literatura 2.1 Tecnologia O termo “tecnologia” se refere à teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana, como, por exemplo, a indústria ou a ciência (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS, 2002). Outra definição abrangente de tecnologia aponta que é a aplicação prática da ciência ao comércio ou à indústria (MILLER, 2009). Nesse contexto, portanto, usamos o termo para identificar as ferramentas, resultantes de estudos científicos, que auxiliam em um processo. Observando alguns fatos históricos do último milênio, vê-se que a tecnologia teve papel fundamental para a economia mundial. Um dos grandes marcos dessa história foi a Revolução Industrial, durante a qual se apresentou o motor a vapor. Na época, 1776, a potência oferecida por essa nova tecnologia significou a conquista de longas distâncias, a mobilidade real, especialmente quando conjugada com a introdução das ferrovias em 1829. Cerca de cem anos mais tarde, a Revolução da Informação viria mostrar que essas distâncias poderiam ser eliminadas de vez. Com isso, diversos processos tradicionais foram facilitados e tornaram-se rotineiros em áreas que abrangiam desde a afinação de pianos ao controle de folha de pagamento, estoques, cronogramas e processos industriais (DRUCKER, 2000). Na década de 90, a globalização trouxe um novo conceito de concorrência e produção, eliminando as fronteiras no mercado. Esse fenômeno econômico do mundo moderno provavelmente não teria ocorrido sem o desenvolvimento da tecnologia da informação, que Nakano (1994) considera como a fusão das tecnologias de computação e telecomunicações. De fato, esse autor afirma: “A revolução tecnológica/organizacional e a globalização são as duas principais forças motoras que estruturam as transformações e definem as tendências marcantes do novo cenário de desenvolvimento econômico das nações na próxima década. Essas duas forças exercerão pressão, no nível microeconômico, sobre as estruturas produtivas e organizacionais, sem respeitar as fronteiras nacionais.” (NAKANO, 1994) Naquele cenário, era imprescindível que as empresas fossem competitivas globalmente, ainda que atuassem apenas em mercados locais (DRUCKER, 2000). Marconi (1994) resume os efeitos da nova dinâmica da globalização: 22 “A globalização da economia mundial é uma tendência irreversível, associada à revolução da informação e da tecnologia e, por mais paradoxal que possa parecer, à configuração de grandes blocos econômicos. As nações buscam expandir suas atividades comerciais com o restante do mundo e internacionalizar sua produção, ao mesmo tempo em que o protecionismo derivado da formação desses blocos cria preferências comerciais, garante o fluxo intrarregional de mercadorias, serviços e capital, e contribui para estimular a produtividade através do maior acesso às chamadas vantagens comparativas dos países associados.” (MARCONI, 1994) Tornava-se cada vez mais evidente que as mudanças tecnológicas e organizacionais criavam novos padrões de comércio mundial, deslocando os determinantes da localização da produção e a direção das exportações da vantagem comparativa tradicional e dos fatores sistêmicos para características organizacionais e estratégicas das empresas multinacionais (NAKANO, 1994). Ainda segundo Nakano (1994), com a disseminação das informações, o aumento da pesquisa e o rápido desenvolvimento em diversas áreas científicas, deu-se a “revolução microeletrônica”, que, ao juntar novas tecnologias de computadores e telecomunicações com a mecânica de precisão, acarretou mudanças consideráveis na estrutura produtiva. Sucessivas gerações de mecanismos microeletrônicos, crescentemente potentes, permitiram a oferta de equipamentos de processamento de informações e de comunicações a custos significativamente menores. Isso possibilitou a rápida difusão da utilização de computadores, em uma crescente variedade de atividades de manipulação de informações com novas redes integradas nos diferentes estágios da produção, no desenho e desenvolvimento e em produtos e processos. Um dos principais impactos do novo cenário tecnológico foi a mudança na perspectiva gerencial, pois a utilização de computadores e de novos equipamentos de comunicação nas indústrias e em serviços tornou possível a introdução de inovações organizacionais e de gestão, baseadas em cooperação, autodisciplina, auto-aperfeiçoamento contínuo e coordenação horizontal, que substituíam as antigas estruturas hierárquico-funcionais. Nesse processo, os fatores críticos da vantagem competitiva das empresas foram se deslocando dos custos de produção para os custos de transação e coordenação (NAKANO, 1994). Considerando a nova realidade mundial que tomava corpo na década de 90, vemos que o desenvolvimento tecnológico contribuiu positivamente para o desenvolvimento da própria produção. De fato, as empresas tiveram que aprender a competir em um novo ambiente, o que fatalmente levou algumas à extinção. A 23 renovação dos bens tecnológicos trouxe conflitos, como a necessidade de treinamento da mão de obra e de redesenho da linha de produção, por exemplo. Mais tarde, com o crescimento da conscientização ambiental, a poluição causada por uma ou outra tecnologia e a quantidade de recursos consumidos durante sua operação também se tornaram fatores preocupantes. Paralelo a essas mudanças, existia a necessidade de investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), cuja importância para o desenvolvimento da economia e do setor foi ressaltada por Rosenberg (1990). Em 2000, Drucker ressaltou o crescimento explosivo do comércio eletrônico e da internet, vislumbrando o surgimento daquele que acreditava ser o mais importante canal de distribuição de bens, serviços e até mesmo empregos na área administrativa e gerencial. Em retrospecto, observa-seque essa previsão foi realizada e, talvez, não se aplique apenas àquele momento, pois: “É provável que outras tecnologias surjam de repente, levando à criação de novas indústrias. [...] E é quase certo que poucas – e só algumas das indústrias baseadas nelas – virão dos computadores e da informática. Como a biotecnologia e a criação de peixes, cada uma surgirá a partir de tecnologia própria e inesperada.” (DRUCKER, 2000) Considerando a evolução constante da tecnologia, cada vez mais ao alcance de todos os tipos de consumidores, é de se esperar que ocorram mudanças notáveis nos mercados. Com isso, é razoável assumir que a escolha tecnológica é cada vez mais decisiva para o desenvolvimento de um empreendimento. 2.1.1 Escolha de tecnologia Ao fazer uma escolha, uma empresa tem de lidar com restrições que podem ser impostas por seus clientes, sua concorrência ou pela natureza. Essa última determina as maneiras viáveis de produzir outputs a partir de inputs, isto é, existem apenas algumas opções tecnológicas passíveis de escolha (VARIAN, 2003). De fato, a escolha de tecnologia tem sido alvo de intensas pesquisas, focando tanto a transferência internacional entre países desenvolvidos e em desenvolvimento quanto aquela entre empresas de um mesmo país e seus processos (WEISS, 2002). De acordo com Stobaugh e Wells, Jr. (1984), a importação de tecnologia atua como fonte de conhecimento para vários países, gerando receitas a nível organizacional e federal. Portanto, se existe alguém atuando na venda, deve haver uma contrapartida que atue na compra de dita tecnologia. As empresas que 24 adquirem tecnologia fazem-no para usá-la em seus processos, que, até certo momento, acreditava-se ocorressem em um ambiente economicamente competitivo. Porém, os autores compilados na obra citada mostram que, diferentemente dessa teoria simplista, as organizações variam na maneira que competem, lidando com aspectos de mercado distintos, como leis trabalhistas e custo de capital. Sendo assim, a escolha por tecnologia seria impactada pelo mercado em si, o posicionamento da empresa e o ambiente externo. Yeoman (1968) lembra que a teoria econômica tradicional sugere que empresas buscam otimizar seus objetivos financeiros, ou seja, aumentar o lucro. Considerando um mercado perfeitamente homogêneo, onde não há diferença de preços, por tratar-se de produtos iguais, essa teoria leva à busca do menor custo de produção. Isto é, a minimização dos custos de capital e trabalho. Nesse cenário praticamente perfeito, é válido assumir que países com os mesmos custos de capital e salários são levados a escolher as mesmas tecnologias. Porém, como mostra Yeoman (1968), devem-se fazer alguns questionamentos a respeito desse modelo. Por exemplo, existiria uma gama de tecnologias suficientemente ampla para permitir ao gerente a utilização de várias combinações de capital e mão de obra? Na Figura 1, a curva isoquanta representa a mesma produção (output), com requerimentos diferentes de capital e mão de obra (inputs). Porém, ainda que exista uma combinação de recursos (A1,B1), não é certo que exista a combinação (A2,B2), pois pode se referir a uma quantidade inacessível de mão de obra ou capital. O gerente seria obrigado então a escolher outra combinação, como (A3,B3), por exemplo. Figura 1 Isoquanta (YEOMAN, 1984) 25 Durante a avaliação das combinações dos recursos, seria necessário considerar também a taxa marginal de substituição técnica (TMST), isto é, a quantidade em que se pode reduzir o insumo capital quando se utiliza uma unidade extra de insumo trabalho, mantendo a produção da isoquanta. A característica decrescente da TMST representa a produtividade limitada dos recursos. Isto é, à medida que se adiciona quantidade cada vez maior de trabalho, produz-se menos por unidade acrescentada. O resultado seria o mesmo para quantidades maiores de capital. Ou seja, dentro das opções reais e alcançáveis pelo decisor, a produção requer uma combinação equilibrada de insumos (PYNDICK e RUBINFELD, 2002), (VARIAN, 2003). Outra questão proposta refere-se à comparação de fatores de produção em países diferentes. Por exemplo, salários discrepantes podem refletir diferentes qualidades de mão de obra em cada país, o que afetaria a escolha de tecnologia usada em cada um. A realidade em cada país poderia levar a diferentes conclusões dessa escolha. Tomando os países menos desenvolvidos como exemplo, poder-se- ia esperar que investissem em tecnologias intensivas em trabalho, devido aos baixos salários pagos no país inteiro. Consequentemente, haveria uma contribuição para a diminuição da taxa de desemprego (STOBAUGH e WELLS JR., 1984). A partir dos anos 60, começa a ficar evidente que empresas de um mesmo país usavam tecnologias diferentes para obter resultados praticamente idênticos e, contrário ao que havia sido previsto, setores em crescimento não registravam aumento significativo nas vagas oferecidas. Foi então que começaram as investigações acerca da existência de outros fatores de peso no processo de escolha de tecnologia. Dentre vários, na obra de Stobaugh e Wells, Jr. (1984), destacam-se: a elasticidade dos preços dos produtos da empresa, isto é, quanto uma empresa consegue forçar o mercado a acolher um preço que ela mesma estabelece; a relação entre os custos de produção e os custos totais da empresa, o que pode fazer com que a minimização dos custos de produção não seja prioridade quando comparados a outros custos, como marketing, por exemplo; 26 os objetivos dos gerentes, que incluem mais que simplesmente minimizar os custos de produção. Isto é, o gerente pode preferir tecnologias intensivas em trabalho ou em capital para cumprir objetivos de engenharia ou trabalhistas, respectivamente; a preferência pela automatização do processo, ou seja, fábricas intensivas em capital, que permitem a negociação de dívidas geradas durante o investimento inicial, além de serem mais flexíveis, uma vez que não operam sob leis trabalhistas e não demonstram oscilações humanas na produtividade; o risco de erro humano, que está diretamente relacionado à qualidade da produção para tecnologias intensivas em trabalho; o risco de falta de sobressalentes e/ou assistência técnica quando se usa uma tecnologia intensiva em capital; o risco de dificuldades na adaptação da mão de obra e/ou das matérias primas locais a uma tecnologia intensiva em capital; o risco de escolher uma tecnologia diferente daquela usada pela empresa líder na indústria e, com isso, não poder garantir paridade em termos de qualidade e assistência técnica confiável; a influência governamental, como, por exemplo, a existência de incentivos fiscais, que pode levar a empresa a escolhas economicamente sub-ótimas; a indisponibilidade e o alto custo da informação sobre as tecnologias disponíveis, dificultando, assim, a aproximação entre gerente e tecnologia e impedindo que essa entre para a lista de opções da empresa. Uma última consideração a respeito dos fatores que influenciam a escolha de tecnologia está citada na obra de Keddie (1975), onde o autor trabalha com a hipótese de que a diferenciação do produto levaria a empresa a escolher uma tecnologia que oferecesse melhor qualidade. Ainda que o autor tenha constatado que a qualidade do produto final não necessariamente levasse a resultados financeiros melhores, é interessante saber que esse resultado pode, de alguma forma, ser impactante na decisão tecnológica. 27 2.1.2 “Tecnologia apropriada” Durante algumas décadas, pensou-se que a tecnologia era a solução para amenizar a pobreza ao redor do mundo. Diversos estudos foram realizados focando particularmente em países em desenvolvimento, onde a decisão tendia para o que se chamava de “tecnologia apropriada”. O termo foidefinido de maneiras diferentes, todas com seu conjunto particular de critérios. Inclusive, durante os primeiros anos de uso, tal termo era semelhante à expressão “tecnologia intermediária”, que se referia a um meio-termo entre técnicas tradicionais de vilarejos e tecnologia avançada, intensiva em capital, característica do Mundo Ocidental. Porém, de maneira geral, tratava-se de técnicas usadas para abordar pobreza, igualdade social e desemprego, além de serem aplicáveis em operações de pequena escala, serem intensivas em mão de obra, consumirem energia de maneira eficiente e serem controladas e gerenciadas pela comunidade local (MURPHY, MCBEAN e FARAHBAKHSH, 2009). Estudos como os de Morley e Smith (1977) e Lecraw (1979) analisaram o cenário competitivo de algumas empresas de países em desenvolvimento e constataram, como mencionado acima, que havia outros fatores além de custos de capital e mão de obra influenciando a escolha de tecnologia. Um deles poderia ser a falta de opções disponíveis durante tal escolha. Além disso, risco, custo da informação, experiência e educação da gerência, pressão competitiva e lucros projetados eram variáveis que levavam a duas medidas: buscar uma maior oferta de tecnologia e mudar os custos de capital e mão de obra para que refletissem a realidade da escassez naquela economia (LECRAW, 1979). No mesmo estudo, Lecraw (1979) propôs que o cenário competitivo nos países em desenvolvimento oferecia margem a comportamentos não ótimos na escolha de tecnologia, de maneira que as medidas propostas não teriam o impacto previsto ou esperado. Com isso, seria melhor que gerentes, engenheiros e investidores tivessem mais informação sobre tecnologia apropriada e que o cenário competitivo fosse melhorado através da redução de tarifas ou incentivos à exportação, por exemplo. Já fazem mais de 50 anos que o termo “tecnologia apropriada” foi cunhado, mas ainda existe controvérsia sobre seu significado e se, de fato, representou algum tipo de impacto significativo para países em desenvolvimento. Hoje em dia, 28 representa uma filosofia mais do que uma regra ou definição rígida (MURPHY, MCBEAN e FARAHBAKHSH, 2009). 2.1.2.1 Tecnologia social Durante a globalização, o conceito de “tecnologia apropriada” perdeu força, porém, devido à consequente exclusão social e degradação ambiental, foi trazido novamente à cena de pesquisa com o nome de “tecnologia social” (RODRIGUES e BARBIERI, 2008). Um aspecto importante que talvez não tenha sido considerado para a tecnologia apropriada é que inovação não deve ser desenvolvida em um lugar e aplicada em outro, mas sim no mesmo local onde a tecnologia será implementada e pelos próprios atores que irão utilizá-la(DAGNINO, BRANDÃO e NOVAES, 2004). Posto isso, pode-se dizer que a tecnologia social não é distinta da tecnologia convencional produzida pela empresa, intensiva em conhecimentos gerados em unidades de P&D, mas difere em resultados a serem alcançados em termos de geração de postos de trabalho, redução do consumo de recursos naturais e promoção de autossuficiência regional e local. Difere ainda pela maneira como é produzida, pois ressalta a participação efetiva dos que serão os seus pretensos beneficiados, tendo como elemento central a emancipação dos atores envolvidos. Desse modo, a tecnologia social é um instrumento do desenvolvimento sustentável de modo autêntico, pois além da erradicação da pobreza e cuidado com o meio ambiente, promove a cidadania deliberativa, aquela na qual a “pessoa toma consciência da sua função como sujeito social, e não adjunto, e como tal passa a ter uma presença ativa e solidária nos destinos da sua comunidade” (TENÓRIO, 1998). 2.1.3 Modelo multiobjetivo e multicritério Ao longo dos anos, o estudo de escolha tecnológica mostrou que algumas tecnologias podem ser inadequadas em certas condições, mas não necessariamente devido a aspectos técnicos. Na verdade, existem outras dimensões do contexto no qual uma tecnologia é inserida, como, por exemplo, as dimensões ambiental, econômica, social e cultural (CORDEIRO NETTO, SOUZA e LOPES JR, 2001). Os autores definem que as teorias multicritério de auxílio à decisão propõem abordagens que permitem tratar de problemas decisórios que apresentam mais de um objetivo e são caracterizados por tipos e níveis de incerteza que aumentam a complexidade da escolha como um todo. 29 A análise multicritério pode também ser empregada em casos nos quais não se tem apenas um tomador de decisão, mas um grupo deles, cada um com objetivos e critérios próprios, frequentemente conflitantes. O agente que decide pode ser composto por grupos maiores da sociedade, organizações, agências de meio ambiente, bancos de fomento, etc. 2.1.3.1 Histórico Segundo Souza et al. (2009), o método multiobjetivo e multicritério é um estágio avançado, porém não final, da evolução dos métodos de escolha tecnológica. Os autores ressaltam que fatores econômicos, sociais, culturais, cognitivos e educacionais podem e devem ser considerados na escolha da “melhor” tecnologia. Consequentemente, não se trata apenas de selecionar a alternativa mais barata ou a mais simples, mas aquela que atenda concomitantemente a alguns padrões de preferência e que satisfaça aos múltiplos atores do processo de decisão. Em um exemplo simples, é possível ilustrar os principais elementos da metodologia. Considerando a compra de comida para a semana, deve-se atender ao apetite variado de toda a família (multiobjetivo), pelo menor preço e maior prazo de validade (multicritério). Nesse cenário, a metodologia multiobjetivo e multicritério é capaz de fornecer os instrumentos para sistematizar a informação e captar as preferências de todos os atores, além de fornecer uma solução que, teoricamente, é a mais próxima do ponto de satisfação comum a todos os atores. Historicamente, um processo de decisão dessa natureza vinha sendo pautado em métodos econômicos e financeiros. Foi assim que o mundo evoluiu para métodos econômicos mais racionais, chamados “custo-benefício” e “custo-efetividade”, em que não se escolhia mais a alternativa de menor custo, mas a alternativa que oferecesse o máximo de benefícios com o mínimo de custos (SOUZA, CORDEIRO e SILVA, 2009). Entretanto, nas últimas décadas, alguns movimentos sociais introduziram novas variáveis ao problema, como é o caso dos conceitos de tecnologia apropriada e, mais recentemente, de desenvolvimento sustentável. O conceito de tecnologia apropriada introduziu a concepção de “ajuste tecnológico”, que significa que um determinado elemento deve atender justamente às necessidades, nem mais, nem menos. O segundo conceito – desenvolvimento sustentável – insere de maneira incisiva no processo decisório a variável ambiental, a preservação e a conservação da natureza (SOUZA, CORDEIRO e SILVA, 2009). 30 É nesse contexto que o método multiobjetivo e multicritério aparece como um avanço na maneira de decidir, introduzindo vários gestores no processo e tornando a decisão mais “social” e democrática. A partir da definição dos atores, eles podem ser consultados para escolherem os objetivos da decisão em questão. Esses objetivos devem ser convertidos em atributos ou critérios, que podem ser de ordem educacional, jurídica, social, econômica, ambiental ou técnica. Os atores podem optar pelas alternativas que devem ser consideradas no processo de decisão e a maneira de criar essas alternativas (SOUZA, CORDEIRO e SILVA, 2009). Além disso, com a análise multiobjetivo, pode-se inserir o fator humano na decisão, administrando-se conflitos de interesses e de preferências (CORDEIRO NETTO, SOUZA e LOPES JR, 2001). 2.1.3.2 Etapas do método multiobjetivo e multicritério As técnicas de análise de decisão com múltiplos objetivos e múltiplos critérios baseiam-se no conceito de que é impossívelencontrar uma única solução ótima para um problema do mundo real, já que esse é suficientemente complexo, admitindo mais de um objetivo a ser atingido. O conceito comum é o do “Ótimo de Pareto”, de acordo com o qual existe um ponto no sistema que atinge a “satisfação” máxima dos atores envolvidos naquela decisão (SOUZA, CORDEIRO e SILVA, 2009). Souza et al. (2009) definem cinco passos sequenciais para a resolução completa de um problema, envolvendo múltiplos objetivos e múltiplos critérios: 1. Início: o processo começa quando o agente decisor identifica a necessidade de alteração no sistema (conjunto de partes e suas interrelações para alcançar um conjunto de metas), diagnosticando a situação e estabelecendo objetivos gerais e necessidades globais. 2. Formulação do problema: consiste na tradução dos objetivos globais em um conjunto de objetivos múltiplos mais específicos e na discriminação dos elementos essenciais do sistema. 3. Modelagem do problema: constrói-se um modelo por meio de um conjunto de variáveis-chave e suas relações lógicas ou físicas, de modo a facilitar a análise efetiva dos aspectos pertinentes ao sistema e gerar cursos de ação alternativos. Podem-se empregar diversos tipos de modelo, tais como modelos mentais, gráficos, físicos e matemáticos. 31 4. Análise e avaliação: busca-se traduzir os objetivos particulares em atributos que são medidos em escala apropriada para uma dada alternativa e servem como unidades de comparação. Os valores dos atributos medidos para cada alternativa podem ser obtidos tanto por meio de um modelo como por meio de julgamentos subjetivos. Essa etapa é concluída com a avaliação de cada alternativa em relação às outras em termos de uma regra de decisão pré- estabelecida ou de um conjunto de regras usado para classificar as alternativas disponíveis. A alternativa que tiver a melhor classificação, de acordo com a regra de decisão, é escolhida para implementação. 5. Implementação: compreende a tomada de decisão, por parte do agente decisor, na qual a alternativa escolhida é implementada, encerrando-se o processo, ou é considerada insatisfatória. Nesse último caso, pode-se retornar ao passo de formulação do problema, reavaliando todas as definições feitas e repetindo-se todo o processo até que se alcance uma decisão satisfatória. No processo de análise de um problema com múltiplos objetivos e critérios, destacam-se dois grupos distintos que influenciam o resultado final (SOUZA, CORDEIRO e SILVA, 2009): o grupo de decisores, devido à sua avaliação numérica dos critérios e pesos; o grupo de analistas (engenheiros ou indivíduos que dominam as técnicas de análise de auxílio à decisão), que fazem várias escolhas subjetivas durante a configuração do sistema de análise. A próxima seção introduz a definição de critérios, uma vez que este elemento será o foco principal desta pesquisa. 2.1.3.3 Elementos da formulação do problema multiobjetivo e multicritério Retomando a segunda das cinco etapas propostas por Souza et al. (2009) para resolução de um problema (seção 2.1.3.2), a aplicação do método multiobjetivo e multicritério requer a identificação de alguns elementos-chave no sistema, mais especificamente, os atores e seus objetivos, que levam à definição de critérios de 32 decisão na quarta etapa. A respeito da determinação desses elementos, Souza et al. (2009) observam: 1. Atores são pessoas ou grupos de pessoas envolvidos de maneira direta ou indireta na escolha das alternativas de solução do problema ou no processo de decisão da solução para esse problema. Os atores geralmente têm interesses ou objetivos distintos na escolha de alternativas para a solução do problema. 2. Os objetivos constituem as condições nas quais, idealmente, os atores desejam que o sistema esteja. Podem ser factíveis ou não, e auxiliam na comparação entre o estado atual do sistema com o estado que se deseja atingir. Existem várias maneiras de se fixarem os objetivos para um dado problema, sendo indicada, quando possível, a consulta direta aos atores. Em caso de dificuldade, a definição dos objetivos pode ser feita, por exemplo, através de consulta a trabalhos prévios, nos quais tenham sido considerados os mesmos atores. 3. Os objetivos delineados para o caso estudado deverão ser traduzidos em metas claras e quantificáveis, por meio da especificação de escalas muito bem definidas (SOUZA, 1997). Tais escalas são, então, denominadas critérios de decisão, que podem ser tangíveis ou intangíveis. Critérios tangíveis são assim denominados por serem avaliados com base em variáveis quantificáveis, enquanto os intangíveis se identificam por não possuírem essa característica, ou seja, sua mensuração se faz através de julgamento de valor. A seção a seguir introduz a área de saneamento e inicia a argumentação acerca da escolha de tecnologia para tais processos, considerando sempre os critérios de decisão. 2.1.4 Análise tecnológica para tratamento de esgotos No âmbito do tratamento de esgotos, o método multiobjetivo e multicritério é bastante reconhecido, inclusive devido à crescente presença dessa ferramenta como apoio de decisão em problemas ambientais. Outros exemplos de emprego da ferramenta citados por Brostel et al. (2001) incluem: processos decisórios em planejamento e gestão de recursos hídricos; metodologias de seleção de 33 alternativas para tratamento de esgotos; gestão e disposição de resíduos sólidos; planejamento e uso do solo; gestão de recursos naturais; e auditorias ambientais. Cordeiro Netto et al. (2001) reforçam a aplicabilidade do método multiobjetivo e multicritério no caso específico de avaliação do desempenho de unidades de tratamento de efluentes, ressaltando algumas características do processo. São elas: os vários objetivos a serem atingidos (sanitários, ambientais, econômicos e financeiros); os vários agentes decisores (o prestador de serviços de saneamento, o órgão ambiental, etc.); e o caráter holístico e multidimensional da escolha tecnológica. Em um estudo sobre indicadores para processos de tratamento de efluentes, Brostel et al. (2001) sugerem que seus achados, ainda que referentes àquele caso específico, podem ser extrapolados para outros processos de tratamento, já que se referem às condições gerais das estações de tratamento de esgotos (ETE’s). Sendo assim, a presente dissertação aproveitará alguns dos indicadores utilizados por Brostel et al. (2001). Por ter impacto direto na qualidade de vida e na saúde pública, o tratamento de esgotos está fortemente ligado à atuação do governo na região atendida. Ao mesmo tempo, a oferta de água de alta qualidade utilizando fontes de baixa qualidade apresenta alto custo. Consequentemente, existe o desafio de combinar operações eficazes, cujo custo total por unidade de volume de água tratada seja menor que o valor percebido da água oferecida ao público (WEBER, 2006). Caso contrário, não haverá incentivos do ponto de vista da população atendida para consumir água tratada, o que impedirá o desenvolvimento das ETE’s e o pagamento do investimento inicial. No campo de tecnologias para o tratamento de esgotos sanitários, existem diversas alternativas disponíveis, explicitadas na seção 2.2.4.4. Os fatores vistos na seção 2.1.1, para escolha de tecnologia no setor industrial, podem então ser adaptados para o setor de saneamento, traduzindo-se em (UNICAMP, 2005): área disponível para implantação da ETE; topografia dos possíveis locais de implantação e das bacias de drenagem e esgotamento sanitário; volumes diários a serem tratados e variações horárias e sazonais da vazão de esgotos; 34 características do corpo receptor (rios e mares) de esgotos tratados; disponibilidade e grau de instrução da equipe operacional responsável pelo sistema; disponibilidadee custos operacionais dos insumos (ex. energia elétrica); clima e variações de temperatura da região; disponibilidade de locais e/ou sistemas de reaproveitamento e/ou disposição adequados dos resíduos gerados pela ETE. Além desses critérios técnicos e legais, é de interesse da atual pesquisa compreender a forma com que a tecnologia se insere e se relaciona com o meio ambiente, isto é, o impacto ambiental do processo, considerando especialmente o consumo de recursos para seu funcionamento. Tal impacto inclui, principalmente, a poluição gerada e o consumo de energia, mas considera também outros fatores, que serão explicitados no devido momento. 2.2 A água Esta seção apresenta um pouco da situação da água no mundo atual. Isso inclui uma revisão sobre as fontes de água, seus usos e descarte, além das tecnologias utilizadas para o tratamento e reciclagem da água. 2.2.1 Sobre a água A água, um mineral abundante no planeta Terra, é rara no sistema solar e no universo conhecido. É também condição essencial para a existência da vida, assim como um importante insumo de diversos processos produtivos (MIRANDA, 2004). Existe água em praticamente toda parte do planeta, sendo de particular importância o seu papel para a existência dos seres vivos. Alguns chegam a considerá-la o recurso mais precioso disponível para a humanidade (GOMES, 2009), o que eleva o grau de relevância de estudos que objetivam sua preservação. Quase toda a água do planeta está concentrada nos oceanos. Menos de 3% estão em terra e a maior parte desta fração está sob a forma de gelo e neve ou abaixo da superfície (água subterrânea). Estima-se que haja 34,6 milhões de km3 de água doce no mundo, mas somente 30,2% podem ser utilizados para a vida vegetal e animal nas terras emersas (água doce subterrânea, rios, lagos, pântanos, umidade do solo e vapor na atmosfera). O restante encontra-se nas calotas polares, geleiras 35 e solos gelados. Dos 10,5 milhões de km3 de água doce, apenas 0,9% é água doce superficial (rios e lagos) diretamente disponível para o consumo humano, estando o restante no subterrâneo. Esse volume é suficiente para atender de seis a sete vezes o mínimo anual exigido por pessoa, considerando-se uma população global de 6,4 bilhões de habitantes (GOMES, 2009). Apesar da aparente abundância de água doce em escala global, sua distribuição é irregular, conforme mostra a Figura 2. Os fluxos estão concentrados nas regiões intertropicais, que possuem 50% do escoamento das águas, enquanto as zonas temperadas contêm 48% e as zonas áridas e semi-áridas contêm apenas 2%. Além disso, as demandas também são diferentes entre populações, sendo maiores nos países desenvolvidos. Figura 2 Distribuição mundial dos recursos hídricos (GOMES, 2009) Ainda segundo Gomes (2009), o Brasil detém aproximadamente 12% da reserva hídrica do planeta, além de possuir os maiores recursos mundiais, tanto superficiais (bacias hidrográficas do Amazonas e Paraná), quanto subterrâneos (bacias sedimentares do Paraná, Piauí e Maranhão). Todo esse potencial tem o reforço de chuvas abundantes em mais de 90% do território que, aliadas a formações geológicas, favoreceram a gênese de imensas reservas subterrâneas, assim como possibilitaram a instalação de extensas redes de drenagem, gerando cursos d’água de grandes expressões. No entanto, esse potencial hídrico é distribuído de forma irregular pelo país. A Amazônia, por exemplo, que apresenta a segunda menor densidade demográfica (IBGE, 2003), possui 78% da água superficial, enquanto o sudeste, que detém a América do norte; 17% América central; 2% América do sul; 27% Europa; 15% África; 9% Ásia; 26% Oceania; 4% Distribuição dos recursos hídricos 36 maior concentração populacional do país, possui somente 6% do total da água disponível. 2.2.2 Considerações sobre a água para uso humano A água está presente em praticamente todos os aspectos da vida animal e vegetal, sendo usada tanto na nutrição quanto para outros fins, como higiene e recreação. De acordo com a Carta Europeia da Água, proclamada pelo Conselho da Europa em maio de 1968, “não há vida sem água. A água é um bem precioso, indispensável a todas as atividades humanas”. O corpo humano contém de 70% a 75% de água, adquirida principalmente através da alimentação e expelida através de transpiração, respiração ou excrementos (MIRANDA, 2004). Para suprir a necessidade de hidratação, estima-se que o consumo ideal médio seja de três litros diários por pessoa. No entanto, quando se leva em consideração outros usos da água, este valor pode chegar a 50 litros por pessoa (ANDERSON, 2007). Mesmo assim, segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o desenvolvimento dos recursos hídricos no mundo, atualmente, 1,3 bilhão de pessoas não possuem acesso à água potável e cerca de 40% da população mundial não dispõem de condições sanitárias básicas (GOMES, 2009). Além disso, a cifra mencionada não considera os gastos decorrentes do mau uso da água ou mesmo da falta de informação de seus usuários. Finalmente, acredita-se que a água poluída seja responsável por mais mortes do que a violência, incluindo guerras (REUTERS/BRASIL ONLINE, 2010). O crescimento da população mundial tem seguido um ritmo acelerado nos últimos anos, com taxas que levam à previsão de nove bilhões de pessoas até 2050, comparados aos seis bilhões de habitantes em 2009 (WMO, 2009). Como consequência, cresceu também a demanda por água (RICHARDS e SCHÄFER, 2010). Porém, a capacidade da natureza de repor suas fontes está bem abaixo da nova demanda (WEBER, 2006). Além, disso, vivemos o fenômeno do aquecimento global, que altera o nível dos oceanos, causando extremos meteorológicos como enchentes e secas, o que altera diretamente a disponibilidade da água para consumo (WMO, 2009). Para melhor ilustrar esse cenário, existe uma estimativa da ONU de que, em 2025, os prováveis oito bilhões de habitantes devem partilhar da mesma quantidade de água doce disponível hoje. Desse modo, as reservas em 2025 serão, em média, 37 de 4.800 m3 por habitante/ano, contra 7.300 m3 disponíveis em 2000 e 16.800 m3 em 1950. No Brasil, esse valor era de 34.000 m3 por habitante/ano em 2000, não diferindo muito em relação a 2009, o que caracteriza o país como privilegiado em disponibilidade hídrica em comparação à média mundial (GOMES, 2009). O autor aponta que o cenário de escassez não se deve apenas à irregularidade na distribuição da água e ao aumento das demandas, mas também ao fato de que, nos últimos 50 anos, a degradação da qualidade da água aumentou em níveis alarmantes. Atualmente, grandes centros urbanos, industriais e áreas de desenvolvimento agrícola com grande uso de adubos químicos e agrotóxicos já enfrentam a falta de qualidade da água, o que pode gerar graves problemas de saúde pública. No cenário brasileiro, a realidade observada é que a água limpa está cada vez mais rara na região litorânea e a água potável cada vez mais cara, devido ao uso sem consciência. O desperdício fica entre 50% e 70% nas cidades, onde também se questiona a qualidade da água. Assim, parte da água no país já perdeu a característica de recurso natural renovável, principalmente nas áreas densamente povoadas, em razão de processos de urbanização, industrialização e produção agrícola, que são incentivados, mas pouco estruturados em termos de preservação ambiental, sobretudo em relação aos recursos hídricos. Gomes (2009) mostra que, nas cidades, de um modo geral, os problemas de abastecimento estão diretamente relacionados ao crescimento da demanda, ao desperdício e à urbanização descontrolada, que atinge as áreas de mananciais. A baixa eficiência das empresas de abastecimento associa-se ao quadro de poluição: as perdas na rede de distribuição por roubos e vazamentos atingementre 40% e 60%, além de 64% das empresas não coletarem o esgoto gerado. O saneamento básico não é implantado de forma adequada, já que 90% dos esgotos domésticos e 70% dos efluentes industriais são jogados sem tratamento nos rios, açudes e águas litorâneas, gerando um nível de degradação sem precedentes. Na zona rural nota-se com frequência que os recursos hídricos são também explorados de forma irregular, muitas vezes com retirada excessiva de água dos mananciais, um problema agravado ainda pela escassez de mata ciliar e de cobertura vegetal nas nascentes, fundamental na proteção dos cursos d’água. Não raramente, os agrotóxicos e dejetos utilizados nessas atividades também alteram a qualidade da água. 38 Como indicado na Carta Europeia da Água, “os recursos de águas doces não são inesgotáveis. É indispensável preservá-los, administrá-los e, se possível, aumentá-los.” Fica claro, portanto, que a água, apesar de abundante e disponível por direito à humanidade (UN, 2002), não deve ser tratada de forma banal. Pelo contrário, é importante que esse recurso seja valorizado de maneira a garantir sua sustentabilidade, ou seja, que esteja também disponível para as gerações futuras. É necessário haver conscientização da população mundial, sem exceções, para que sejamos capazes de preservar um recurso vital. Como mencionado anteriormente, a água existe de maneira natural no planeta, obedecendo a um ciclo de evaporação, condensação e precipitação. Porém, esse ciclo não aumenta a quantidade de água consumível, tornando então imprescindíveis a pesquisa e o desenvolvimento de reuso e reciclagem hídricos. 2.2.3 O conceito de reuso e reciclagem Apesar da degradação, a água disponível no território brasileiro é suficiente para as necessidades do país. Torna-se necessário, então, maior conscientização da população sobre o uso da água e maior cuidado com a questão do saneamento e abastecimento por parte do governo. Estima-se que 90% das atividades modernas poderiam ser realizadas com água de reuso, diminuindo a demanda por água tratada e o custo para o usuário, já que essa água chega a ser 50% mais barata que aquela fornecida pelas companhias de saneamento (GOMES, 2009). O reaproveitamento ou reuso da água é o processo pelo qual a água, que pode ser tratada ou não, é reutilizada para o mesmo ou outro fim. Tal reutilização pode ser direta ou indireta, conforme vemos a seguir (UNIVERSIDADE DA ÁGUA, 2003). Reuso indireto não planejado: ocorre quando a água é descarregada no meio ambiente e novamente utilizada a jusante do ponto de descarga, de maneira não intencional e não controlada. Durante o trajeto até o ponto de captação do novo usuário, a água está sujeita às ações naturais do ciclo hidrológico (diluição, autodepuração). Reuso indireto planejado: ocorre quando os efluentes, depois de tratados, são descarregados de forma planejada nos corpos de águas superficiais ou subterrâneas, e utilizados a jusante, de maneira controlada. O reuso indireto planejado pressupõe que exista também um 39 controle sobre as eventuais novas descargas de efluentes no caminho, garantindo assim que o efluente tratado esteja sujeito apenas à mistura com outros efluentes que também atendam aos requisitos de qualidade do reuso objetivado. Reuso direto planejado: ocorre quando os efluentes, depois de tratados, são encaminhados diretamente de seu ponto de descarga até o local do reuso, não sendo descarregados no meio ambiente. É o caso com maior ocorrência, destinando-se a uso em indústria ou irrigação. Reciclagem: é o reuso interno da água, antes de sua descarga em um sistema geral de tratamento ou outro local de disposição, servindo como fonte suplementar de abastecimento do uso original. Este é um caso particular do reuso direto planejado. Apesar de a água de reuso ser inadequada para consumo humano, pode ser utilizada nas indústrias, para resfriamento de máquinas, na lavagem de áreas públicas e nas descargas sanitárias de condomínios. Além disso, novas construções residenciais ou comerciais podem incorporar sistemas de aproveitamento da água da chuva para usos gerais que não o consumo humano. 2.2.4 Tratamento da água Tendo entendido o valor da água na rotina dos seres vivos e a escassez que podemos experimentar em um futuro não muito distante, é necessário buscar formas de reciclar o recurso existente. Como grande parte do consumo hídrico requer água limpa, ou seja, livre de organismos e substâncias que não são naturais a ela, a reciclagem da água representa a limpeza do próprio recurso, a fim de retirar tais impurezas. A água que alimenta o processo de tratamento é conhecida como água residual e se caracteriza por ser a combinação dos resíduos líquidos, ou contidos em água, que são descartados por residências, instituições e estabelecimentos comerciais e industriais. Além disso, a água residual contém tambémágua de lençóis subterrâneos, água de superfície e precipitação. Águas residuais geralmente contêm grande carga de resíduos consumidores de oxigênio, agentes patogênicos ou causadores de doenças, material orgânico, nutrientes que estimulam o crescimento 40 de plantas, químicos inorgânicos, minerais e sedimentos (SONUNE e GHATE, 2004). A água residual pode ser controlada em três momentos do ciclo de uso: quando é gerada; em estações de tratamento municipais, antes de ser descartada; e onde será reutilizada ou descartada diretamente em outros cursos d’água (SONUNE e GHATE, 2004). Existem, portanto, diferentes tipos de tratamento para cada tipo de água residual, dependendo de suas características químicas, físicas e biológicas. A Tabela 2 resume quais tipos de características podem ser observadas na análise da água residual. Tabela 2 Características observadas para o tratamento da água residual (CRUZ, 1997) Característica Observação Caracterização Física Temperatura A temperatura é um indicador da facilidade de sedimentação, além de influenciar na velocidade das reações químicas, na solubilidade dos gases e na taxa de crescimento dos microrganismos. Cor A cor é um indicador da origem da água: natural inorgânica (ex.: metais), orgânica (animal ou vegetal) e industrial (ex.: pasta de papel e refinarias). Turvação Constata a presença de partículas coloidais não sedimentáveis e de sólidos suspensos, interferindo na passagem da luz através da água. Sabores e odores Propriedade que está diretamente associada à existência de impurezas orgânicas. Sólidos totais Matéria que permanece como resíduo após evaporação de 103 a 105ºC. É o critério mais simples de medição da carga poluente de uma água residual, incluindo os sólidos dissolvidos e os sólidos suspensos. Caracterização Química pH Ácido, neutro ou alcalino. Alcalinidade Determina o número de equivalentes de ácido forte para neutralizar a amostra até o ponto de equivalência. Condutividade É uma medida da capacidade de uma solução aquosa para transportar uma corrente elétrica. Dureza Afeta a quantidade de sabão necessária para produzir espuma e dá origem a incrustações em tubulações de água quente, panelas e outros equipamentos nos quais a temperatura da água é elevada. Oxigênio dissolvido Permite a determinação da quantidade de carga de poluentes orgânicos existentes na amostra. Geralmente, utiliza-se o método de Winkler. Demanda bioquímica de oxigênio (DBO) Determina o oxigênio consumido na oxidação da matéria orgânica em condições aeróbicas. O método mais utilizado é também o de Winkler. Demanda química de oxigênio (DQO) Permite a determinação das substâncias orgânicas e inorgânicas suscetíveis à oxidação por ação de agentes oxidantes fortes. (Cont.) 41 Tabela 2 (Cont.) Caracterização Biológica Coliformes A determinação dos coliformes totais e fecais é um indicador da quantidade de matéria
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