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TESTE DO PEZINHO INTRODUÇÃO O teste do pezinho é um teste preventivo que trás a suspeita de diversas doenças congênitas, normalmente assintomáticas no período neonatal, permitindo a instituição de tratamento precoce específico e a eliminação ou diminuição das sequelas associadas a determinada doença. Por ser um teste de triagem, ele não define o diagnóstico, mas trás uma suspeita importante acerca de determinada doença. Para isso, ele deve ter elevada sensibilidade, permitindo a identificação correta dos indivíduos que possuem a doença (quase nenhum falso-negativo); além de razoável especificidade, permitindo a correta identificação dos que não possuem a doença (poucos falso- positivos). Alguns critérios devem ser preenchidos para que a doença seja inclusa no teste do pezinho, tais como: • A doença a ser triada deve ser um importante problema de saúde • A história natural da doença deve ser bem conhecida • O tratamento em estágio precoce deve trazer mais benefícios do que em estágios posteriores • Os benefícios devem ser maiores que os riscos (físicos ou psicológicos) Histórico • Fase I: hipotireoidismo e fenilcetonúria • Fase II: hipotireoidismo, fenilcetonúria e hemoglobinopatias • Fase III: hipotireoidismo, fenilcetonúria, hemoglobinopatias e fibrose cística • Fase IV: hipotireoidismo, fenilcetonúria, hemoglobinopatias, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase o Doenças inclusas atualmente. Já foi aprovado a inclusão da Toxoplasmose congênita no teste, o que será instituído nos próximos anos. Benefícios • Detecção precoce de doenças graves e tratáveis antes da manifestação dos sintomas (e principalmente, antes da presença de sequelas); • Prevenção de complicações e óbitos precoces; • Identificação de portadores de determinadas doenças: tendo em vista que a maioria das doenças são genéticas (autossômica recessiva), além de tratar o RN, permite o aconselhamento genético com os pais e o estímulo a reprodução consciente. Riscos • Deixar de identificar alguns RNs afetados (falso-negativos); • Ansiedade nos familiares de falso- positivos; • Detecção de casos de falsa paternidade; • Detecção de doenças que não tenham tratamento efetivo (nos testes ampliados), causando um sofrimento sem benefício nas famílias. Método para coleta O teste do pezinho disponível no SUS é feito em papel filtro. A coleta deve ocorrer pelo menos após 48 horas de alimentação proteica (amamentação) e nunca superior a 30 dias, sendo o ideal entre o 3º e o 7º dias de vida. Não é necessariamente colhido na maternidade, podendo ser realizado nas unidades básicas de saúde. Após os 30 dias de vida, não é mais realizado o teste do pezinho; no caso de suspeita, faz-se os exames a partir de uma coleta de sangue habitual. Para a coleta, faz-se assepsia do local, prende-se o calcanhar para ativação da circulação, segue-se com punção e, após formação da gota de sangue, as insere em todos os círculos do papel filtro. Geovana Sanches, TXXIV Tipos de teste do pezinho O teste do pezinho disponível no SUS faz a triagem de seis doenças: hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria, fibrose cística, hemoglobinopatias, hiperplasia adrenal congênita e deficiência da biotinidase. Nos hospitais particulares, entretanto, existem testes ampliados que triam de 40 a 60 doenças. Muitas vezes esses testes diagnosticam doenças que não tem tratamento, de forma que não trás benefício algum para a família. Atualmente, o teste mais moderno é a triagem neonatal molecular (ou teste da bochechinha). É realizado a partir de uma amostra com swab na bochecha da criança, mandando-a para testes genéticos para verificar a presença de genes que causem as doenças do teste do pezinho. É um teste muito mais fidedigno, interessante para casos complicados. Todavia, tem elevado custo, sendo inviável em termos de saúde pública. HIPOTIREOIDISMO CONGÊNITO O hipotireoidismo congênito foi a primeira doença a ser incluída no teste do pezinho. Ela pode ser ocasionada pela deficiência na produção e/ou atuação dos hormônios tireoideanos, ou por redução generalizada dos processos metabólicos. É classificada em primária, caso o problema seja na própria glândula tireoide; secundária quando a alteração é na hipófise e há produção inadequada de TSH; ou terciária, quando a alteração é no hipotálamo (produção ineficaz de TRH). As causas secundária e terciária são chamadas conjuntamente de causas centrais. Além dessas, existe o hipotireoidismo por resistência ao hormônio tireoideano, na qual todos os hormônios são funcionais, mas os receptores de T3/T4 na periferia não funcionam. O teste do pezinho não é capaz de identificar esse subtipo da doença. O controle da função tireoideana é feito através da análise do eixo HHT e da conversão periférica de T3 em T4. Efeitos dos hormônios tireoidianos Desde o final da gestação até os 1-2 anos de idade, os hormônios tireoidianos são essenciais para o desenvolvimento do sistema nervoso central, atuando sobre a proliferação de axônios e dendritos, formação de sinapses, gliogênese e mielinização. Sendo assim, o hipotireoidismo congênito causa perda do desenvolvimento estrutural e da organização cerebral, cursando com perdas cognitivas. Trata-se da principal causa previnível de retardo mental. As manifestações clínicas são escassas ao nascimento, sendo que os sinais e sintomas começam a ficar mais evidentes após 30 dias de vida. O tratamento, entretanto, deve ser iniciado com até 15 dias de vida para que a criança não tenha atraso no DNPM; após esse período sem tratamento, há uma perda de até 20 pontos do QI. Isso mostra a importância da triagem neonatal na vida futura desse indivíduo. Incidência O hipotireoidismo congênito é uma doença relativamente comum, com incidência mundial de 1:1800 a 1:10000 nascidos vivos. No Brasil, temos uma média de 1 caso a cada 2500 nascidos vivos. Etiologia Diferentemente do hipotireoidismo na vida adulta, cuja etiologia mais frequente é o Hashimoto, destacam-se aqui as disgenesias Geovana Sanches, TXXIV (malformações), as quais não tem cura, mas podem ser controladas. • Disgenesia de tireoide (75%) o Ectopia, agenesia e hipoplasia o Não tem cura, sendo necessária a reposição hormônio para o resto da vida • Defeitos de síntese hormonal (15%) o É a segunda causa mais comum de hipotireoidismo congênito; há alteração na junção do iodo à tireoglobulina o Não tem cura, sendo necessária a reposição hormônio para o resto da vida • Hipotireoidismo central o Alteração no hipotálamo ou na hipófise o É uma condição rara • Hipotireoidismo transitório o Mães com tireoidite autoimune ou em uso de drogas anti- tireoidianas: passam a barreira placentária, destruindo o parênquima da glândula tireoide temporariamente o Prematuridade o Exposição do feto à excesso ou falta de iodeto Sinais e sintomas No recém-nascido, nota-se principalmente a dificuldade de sucção, presença de hérnia umbilical e choro rouco, mas esses parâmetros são muito inespecíficos. • Icterícia prolongada, por mais de 30 dias o Assemelha-se a icterícia do leite materno, porém é muito prolongada. Caso o tratamento seja instituído após 30 dias de vida, já há perda significativa de QI • Fontanela anterior alargada, com maior demora para o fechamento • Macroglossia: a língua do bebê não é tão grande, mas como ele é hipotônico, a língua acaba ficando para fora (há macroglossia relativa) • Choro rouco, semelhante à laringite • Dificuldade de sucção e baixo ganho ponderal • Distensão abdominal, hérnia, persistência do coto umbilical, constipação o Normalmente o coto umbilical cai até 2 semanas de vida. Nesses casos, há pacientes com 20 – 30 dias cujo coto ainda não caiu • Hipotonia, bradicardia, hipotensão • Fácies mixedematosa,bócio o Aparecem apenas com 30 dias de vida • Retardo na maturação óssea e crescimento • Deficiência mental Diagnóstico laboratorial Triagem neonatal • Dosagem do TSH em papel filtro, do 2º ou 3º até o 7º dia de vida o No SUS, é dosado apenas o TSH. Tendo em vista que no hipotireoidismo central esse hormônio sempre vai estar baixo, o teste do pezinho da rede pública não tria essa doença. • T4 total em papel filtro, seguida de dosagem de TSH na mesma amostra quando o T4 é menor que o percentil 10 o Permite a identificação tanto do hipotireoidismo primário, quanto do central • Valores de referência: o TSH neonatal: < 10 mcUI/mL o T4 neonatal: > 6 ng/dL • Nas primeiras 24h de vida, os níveis de TSH podem estar transitoriamente elevados devido ao estresse do nascimento • Crianças prematuras: redução fisiológica nos níveis de T4 Confirmação Nos casos em que o teste do pezinho vem alterado, não é indicado solicitar a recoleta. A confirmação da doença será feita através da dosagem de TSH e T4 livre em sangue venoso. Quando o teste do pezinho está normal, os pais demoram para receber o resultado (30 a 40 dias), mas quando há alteração no exame, eles são rapidamente convocados – a vigilância epidemiológica vai atrás da criança para fazer a confirmação sérica e iniciar o tratamento o mais precocemente possível. Exames para diagnóstico etiológico O primeiro exame solicitado para o diagnóstico etiológico do hipotireoidismo congênito é uma ultrassonografia de tireoide, Geovana Sanches, TXXIV tendo em vista que é um exame mais barato e menos invasivo. Nos casos em que o médico não identifica a tireoide ao exame e há suspeita de glândula ectópica, segue com uma cintilografia de tireoide (em I131), verificando locais em que há tecido tireoideano. A dosagem de anticorpos antitireoideanos, tais como Anti-Th e Anti-TPO, só é realizada nos casos em que a mãe tem alteração. Tratamento O tratamento do hipotireoidismo congênito, assim como no adulto, é feito com a Levotiroxina via oral, administrada uma vez ao dia, pela manhã em jejum. Esse medicamento só é absorvido em pH ácido, sendo necessário jejum para tal (a presença de comida no estômago pode reduzir até 80% da disponibilidade da droga). O ideal é sejam feitas 8h de jejum, mas como no recém-nascido isso é impossível, 2h já é suficiente. A dose de hormônio utilizada pela criança é proporcionalmente muito maior do que no adulto, tendo em vista, principalmente nos primeiros anos de vida, ele é essencial para o desenvolvimento do SNC. Idade Dose (Ug)/Kg/dia 8 a 28 dias 10 a 15 1 a 6 meses 8 a 10 7 a 11 meses 6 a 8 1 a 5 anos 5 a 6 6 a 10 anos 3 a 4 11 a 20 anos 2 a 3 Adultos 1 a 2 Avaliação do tratamento • Valores alvos após 4 semanas do tratamento o TSH < 4 mcUI/mL o T4 livre: normal o T4 total: 10 a 18 ng/dL Prognóstico Apenas 5% dos casos detectados pela triagem tem alguma suspeita clínica. Sem o tratamento adequado, podem ocorrer lesões irreversíveis no Sistema Nervoso Central antes do início das manifestações clínicas. Quando mais precoce o diagnóstico e o tratamento, melhor será o prognóstico do ponto de vista intelectual e neurológico. O QI normal médio varia entre 100 e 170. Com início do tratamento aos 3 meses de vida, o paciente já tem QI médio de 89, caindo para 70 entre 3 e 6 meses. O início do tratamento aos 7 meses cursa com QI médio de 54 – abaixo de 60 já há dificuldades intensas, de forma que o indivíduo necessitará de ajuda para o resto de sua vida. HIPERLASIA ADRENAL CONGÊNITA Existem seis subtipos de hiperplasia congênita suprarrenal (HCSR), todas transmitidas por herança autossômica recessiva. • Deficiência de 21-OH-hidroxilase o É a única identificada no teste do pezinho, tendo em vista que é o subtipo mais comum e com maior risco de vida • Deficiência de 3-b-OH-desidrogenase • Deficiência de 11-b-hidroxilase • Deficiência de 17-a/17,20 liase • Deficiência de sTAR • Deficiência de POR Deficiência de 21-OH-hidroxilase A produção dos hormônios na glândula adrenal parte de um precursor comum – o colesterol. Dependendo da zona da glândula, há diferentes enzimas atuando sobre o colesterol, de forma a produzir aldosterona, cortisol ou testosterona. A hiperplasia adrenal congênita nada mais é do que um defeito enzimático – pensando numa reação A à B, ao faltar uma enzima, o substrato A aumentará, enquanto o B diminuirá. Nesse caso, há deficiência da enzima 21- hidroxilase, a qual está envolvida nas vias de formação da aldosterona e do cortisol, mas não é necessária para formação de andrógenos. Com essa deficiência, todos os substratos das reações acima dela aumentam, da mesma forma que os abaixo diminuem: • Via dos mineralocorticoides o Aumento da progesterona o Diminuição da aldosterona • Via dos glicocorticoides o Aumento de 17- hidroxiprogesterona Geovana Sanches, TXXIV § É o substrato dosado no teste do pezinho. Quando aumentado, indica que não está ocorrendo a conversão o Redução de 11-deoxicortisol e, consequentemente, do cortisol A criança se apresenta clinicamente, portanto, com deficiência de aldosterona (hormônio que retém sódio e excreta potássio, de forma que a criança cursa com hiponatremia e hipercalemia) e de cortisol (presença de hipoglicemia, tendo em vista que o cortisol é contrarregulador da insulina). 3H’s clássicos na hiperplasia adrenal congênita • Hiponatremia • Hipercalemia • Hipoglicemia Apesar da 21-hidroxilase não interferir na via dos andrógenos, há uma enzima denominada 17-20 liase que une as zonas da adrenal. Sendo assim, quando há aumento dos substratos mencionados, essa enzima faz com que eles sejam direcionados à zona reticular (que está em pleno funcionamento). Com isso, há maior substrato para produção de testosterona, hormônio que ficará aumentado. A partir disso, temos uma terceira manifestação: a virilização da genitália associada à insuficiência adrenal. Epidemiologia • Subtipo mais comum de HCSR, representando mais de 90% dos casos • Incidência de 1:10000 a 1:14000 nascidos vivos (não é tão frequente) Triagem neonatal • Ideal: coleta entre 48 e 72h de vida • Considerar IG (há redução de 17OHP com aumento da IG) e PN • Confirmação: níveis séricos de 17OHP, androstenediona e testosterona • PS: verificar níveis séricos de Na, K, glicemia e renina • Falsos positivos: estado crítico, estresse • Prematuridade: exige medidas seriadas de 17OHP devido ao risco de falso-positivo Formas clínicas A hiperplasia adrenal por deficiência de 21- hidroxilase pode ser dividida em três subtipos. Trata-se da mesma doença, com alteração no mesmo gene (em locus diferentes), porém com diferentes níveis de deficiência enzimática. • Clássica o Perdedora de sal: é a forma mais grave, quando há deficiência quase completa da enzima o Virilizante: presença de 5 a 10% da enzima • Não clássica: apresenta até 30% da ação da enzima O teste do pezinho só diagnostica a forma clássica perdedora de sal, tendo em vista que ela é a mais grave e pode levar a morte. O teste da bochechinha, por sua vez, identifica exatamente a mutação do gene e em qual local ela se encontra, de forma que diagnostica os três subtipos. Forma clássica – perdedora de sal A forma clássica perdedora de sal corresponde de 75 a 80% dos casos clássicos. Nesse quadro, a deficiência enzimática se aproxima de 100%, de forma que há deficiência intensa de cortisol e aldosterona. Associadamente, há passagem dos precursores para a via dos andrógenos, com acúmulo de grandes quantidades de testosterona. - Quadro clínico clássico • Hipoglicemia (devido a falta de cortisol) • Hiponatremia e hipercalemia (devido a falta de aldosterona) • Hipotensão (não retém sódio e água, de forma que a pressão arterial declina) • Acidose metabólica o Paciente chega ao pronto-socorro comvômitos incoercíveis, desidratação e evolução para choque. o Normalmente o quadro só se inicia a partir da 2ª semana de vida, pois até 10/12 dias, ainda há um pouco de cortisol proveniente da mãe. A partir do momento que o bebê passa a depender de sua suprarrenal, abre-se o quadro clínico clássico. • Ambiguidade genital em meninas, macrogenitalia em meninos o A suprarrenal começa a funcionar na 11ª semana de vida intrauterina, de forma que a menina já nasce com genitália ambígua (produção excessiva de testosterona vem desde o intra- útero). Há diferentes graus, iniciando por clitorimegalia; nos Geovana Sanches, TXXIV casos mais graves, a menina pode apresentar genitália completamente masculina (o clitóris forma um “pênis” e os grandes lábios se fecham para formar a bolsa escrotal). o A genitália interna nesses casos é totalmente feminina, ou seja, ela apresenta útero, ovários e trompas. A cirurgia de readequação geralmente é realizada quando a criança tem pelo menos de 10 meses a 1 ano, tendo em vista que ela não terá sofrimento psicológico até essa idade e a cirurgia se torna mais segura. Caso seja necessário, outras cirurgias são feitas subsequentemente. o Crianças a termo com criptorquidia bilateral devem chamar atenção para verificar se realmente é um menino – podemos estar diante de uma menina virilizada o Nos casos dos meninos, chama atenção a presença de um pênis maior do que 3 cm ao nascimento, indicando excesso de testosterona - Exames complementares • Aumento de 17-hidroxiprogesterona (17OHP), androstenediona, DHEA e testosterona o No teste do pezinho, identifica-se o aumento de 17OHP, mas no exame de sangue os demais também são dosados. • Aumento de ACTH e redução do cortisol • Hiponatremia, hipercalemia, hipoglicemia e acidose metabólica • ECG: deve ser realizado devido ao risco de arritmias por hipercalemia (onda T apiculada) • USG pélvico e de adrenais: permite a verificação do aparelho genital nos casos de dúvida - Tratamento • Reposição volêmica vigorosa • Correção da hipoglicemia e dos distúrbios hidroeletrolíticos • Reposição de corticoide: A hidrocortisona é o corticoide de escolha na infância pois é o que menos altera a cartilagem de crescimento o Ataque: 50 a 200 mg/m2/dia o Manutenção: 10 a 15 mg/m2/dia • Se necessário, pode-se administrar fludrocortisona (100 a 200 mcg/dia), um mineralocorticoide que fará o papel da aldosterona. • O tratamento será realizado para o resto da vida, tendo em vista que a deficiência da enzima não tem cura. - Recomendações Para o recém-nascido em aleitamento materno exclusivo ou em uso de fórmulas infantis, faz-se necessária a suplementação de NaCL (1 a 2g ao dia) até introdução de refeições com sal. Em condições de estresse físico ou psíquico (infecções, por exemplo), não esquecer de aumentar a dose do corticoide (assim como aconteceria fisiologicamente). FIBROSE CÍSTICA A fibrose cística é uma doença crônica autossômica recessiva que afeta principalmente os pulmões e o trato gastrointestinal. A prevalência média é de 1:2500 nascidos vivos na etnia branca, sendo a doença genética letal mais frequente em caucasianos. Na raça branca, temos 1 portador do gene a cada 20-40 pessoas. No Brasil, há alta prevalência, com incidência de 1:9500 nascidos vivos. Com o diagnóstico precoce possibilitado pela triagem neonatal, houve um aumento na sobrevida e na qualidade de vida dos pacientes. Genética Trata-se de uma doença autossômica- recessiva, relacionada a um gene do cromossomo 7. Já foram descritas mais de 1500 mutações, porém a “clássica” é a ΔF508, sendo esta a avaliada no teste genético. A alteração se dá na proteína CFTR, com mutação nos canais de cloro. A permeabilidade ao íon fica diminuída nos ductos das células sudoríparas e superfícies das mucosas, de forma que o sódio e água voltam para o interior da glândula – há ressecamento do fluido extracelular no interior das glândulas exócrinas, de forma que o muco se torna de 30 a 60x mais viscoso. Fisiopatologia No trato respiratório (principal problema), o transporte mucociliar está intacto, porém é Geovana Sanches, TXXIV ineficaz devido ao maior acúmulo de muco. As secreções espessas obstruem a passagem de ar e retêm bactérias, causando infecções respiratórias de repetição. Esse quadro cursa com hipersensibilidade brônquica, broncoespasmos e DPOC. No TGI, as secreções pancreáticas e intestinais espessas obstruem as glândulas, tornando o processo digestivo comprometido, o que se manifesta clinicamente por perda ou dificuldade no ganho ponderal e estatural. Há evolução para insuficiência pancreática endócrina e exócrina. Nas glândulas sudoríparas e salivares, há secreção de líquidos com elevado teor de sal. Doença pulmonar • Infecções de repetição (pneumonias) e crises de broncoespasmo (BCE) • DPOC precoce e cor pulmonale • Tosse crônica e produtiva • Taquipneia e dispneia • Tórax em barril • Baqueteamento digital e cianose • Anormalidades radiológicas crônicas, com presença de bronquiectasia Doença gastrointestinal e nutricional • Intestinal: íleo meconial, síndrome da obstrução intestinal, prolapso retal o O mecônio se torna tão espesso que o recém-nascido não consegue expelir. O excesso de força na tentativa de eliminação cursa com prolapso retal. • Pancreática: insuficiência pancreática (inicialmente exócrina, progredindo para endócrina), pancreatite recorrente o Comum o desenvolvimento de diabetes devido ao acometimento de células beta • Hepática: doença hepática crônica • Nutricional: hipodesenvolvimento pôndero-estatural, hipoproteinemia e edema, complicações secundárias à deficiência de vitaminas lipossolúveis. Doença naso-sinusal Nos casos mais leves de fibrose cística, quando o diagnóstico é feito apenas da vida adulta, é comum a manifestação de doença naso- sinusal, a qual se manifesta pela presença de pólipos nasais e sinusite de repetição, além de obstrução de vias aéreas superiores. Suspeita clínica Lactentes • Íleo meconial • Icterícia obstrutiva (colestase) • “Failure to thrive” • Edema, hipoproteinemia e anemia • Bronquiolite ou pneumonia recorrente • Prolapso retal • Pele salgada: antigamente, a FC era conhecida como a doença do beijo salgado, devido a característica das secreções Pré-escolares e escolares • “Failure to thrive” • Dificuldade no ganho pôndero-estatural • Esteatorreia • Prostração / distúrbio hidroeletrolítico com calor • “Asma”, bronquiectasias, baqueteamento digital • Polipose nasal • Prolapso retal • Pele salgada Diagnóstico No teste do pezinho, é dosada e tripsina imunorreativa sérica, a qual sugere fibrose cística quando alterada. Após essa triagem, é necessário seguir com um teste diagnóstico (teste de sódio e cloro no suor ou pesquisa da mutação genética). Tratamento Após o diagnóstico, inicia-se o tratamento o mais precocemente possível visando melhorar a qualidade de vida do paciente, tendo em vista que a doença não tem cura. Os princípios do tratamento consistem em melhorar o clearance pulmonar, tratar a inflamação pulmonar crônica e otimizar o estado nutricional desses pacientes. • Antibioticoterapia profilática para evitar as infecções pulmonares recorrentes; • Reposição de enzimas pancreáticas; • Fisioterapia pulmonar para retirada da secreção; Geovana Sanches, TXXIV • Nutrição adequada: dieta hipercalórica e hiperproteica e com teor normal de gordura, para que o paciente não entre no estado de “failure to thrive” • Reposição de vitaminas lipossolúveis • Reposição de sódio no calor, febre e atividade física extenuante FENILCETONÚRIA A fenilcetonúria é uma doença autossômica recessiva, na qual há um erro no código genético que configura a enzima fenilalanina hidroxilase. Há produção de uma enzima anômala que deveria transformar afenilalanina (aminoácido essencial) em tirosina (aminoácido não essencial), cursando com: • Falta de tirosina o Falta precursores de serotonina e outros neurotransmissores o Falta precursores de melanina: paciente tem pele e cabelos mais claros, independentemente da raça • Acúmulo de fenilalanina o Toxicidade no sistema nervoso Quadro clínico Ao nascimento, o quadro clínico está ausente. Gradativamente, com o acúmulo de fenilanalina e a falta da tirosina, inicia-se o quadro clínico devido a neurotoxidade. Nas primeiras semanas, verifica-se choro constante (irritabilidade), sustos frequentes (hiperreflexia) e urina com odor forte (cheiro de mofo), o qual é proveniente da fenilalanina. Após os 3 meses de idade, as alterações clássicas ficam cada vez mais evidentes: • Odor urinário mais forte • Pele e cabelos cada vez mais claros • Eczema e dermatites • Irritabilidade mais evidente • Piora nos sinais de SNC o Hipotonia o Déficit motor o Déficit de fala o Evolução para deficiência mental, que pode ser grave se não tratada Tratamento O tratamento consiste em não deixar que a fenilalanina se acumule no organismo do indivíduo, mas esse aminoácido está presente em todas as proteínas animais e vegetais (carnes, ovos, leite, leguminosas, cereais) – é necessário que a criança faça uma dieta pobre em proteínas, sendo que há uma porção permitida para cada faixa etária. Ela pode ingerir tipos específicos de frutas e legumes; os açúcares estão liberados. Com isso, as crianças ficam com déficit nutricional, sendo necessário repor aminoácidos (fórmulas especiais que não contém fenilalanina). Nos casos de dieta adequada e administração correta da fórmula, a criança não evolui com nenhum sintoma neurológico, demonstrando a importância do diagnóstico precoce. DEFICIÊNCIA DE BIOTINIDASE A deficiência de biotinidase entrou recentemente no teste do pezinho (2014). Biotina A biotina, ou vitamina B7, é essencial e hidrossolúvel. Naturalmente, pode ser encontrada no arroz integral, trigo, laranja, melão, iogurte, nozes, ovos, carnes, leite etc. Atua como coenzima no metabolismo das purinas e dos carboidratos, transferindo uma molécula de CO2 para o piruvato na neoglicogênese. Também tem ação na formação da pele, unhas e cabelo. Biotinidase A biotinidase é uma enzima que separa ou libera biotina das proteínas dos alimentos, ou seja, ela permite a reciclagem da biotina várias vezes para que não haja necessidade de consumirmos a vitamina em grandes quantidades. Nos casos de deficiência, é necessária a ingestão de grandes quantidades de biotina para que haja disponibilidade dessa vitamina livre. Quadro clínico O quadro clínico clássico consiste nas alterações de pele e cabelo, tais como dermatite eczematóide e alopecia precoce. Todavia, tendo em vista que ao longo do tempo a vitamina é utilizada como cofator, também podem ocorrer distúrbios neurológicos, como epilepsia, hipotonia, microcefalia e atraso no DNPM. Quando o início do tratamento é precoce, antes de 15 a 30 dias de vida, não há alterações de pele, cabelo ou neurológicos, de forma que o indivíduo apresenta uma vida normal. Nos casos de diagnóstico tardio, podem ocorrer alterações visuais e auditivas, além de atraso no DNPM e na linguagem. Geovana Sanches, TXXIV Tratamento O tratamento consiste na reposição oral de biotina, de 10 a 20 mg por dia, para o resto da vida. HEMOGLOBINOPATIAS: ANEMIA FALCIFORME Nas hemoglobinopatias, o foco do teste do pezinho é a triagem da anemia falciforme, doença autossômica recessiva comum em nosso país devido a miscigenação – incidência em torno de 1:1500. O exame permite identificar pacientes homozigotos (que manifestam a doença) e heterozigotos (traço falciforme). Devemos ter cuidado com os falso-negativos, nos casos em que a criança recebe transfusões, e com os falso- positivos, nos casos de transfusão e prematuridade. Fisiopatologia A anemia falciforme é caracterizada pela presença da hemoglobina S, a qual promove a polimerização da hemácia em qualquer situação de baixa saturação de oxigênio. Há episódios de hemólise e crises vaso- oclusivas decorrentes de falcização das hemácias. Essas crises podem levar a infartos teciduais por micro-oclusões e complicações, como crise álgica, dactilite, AVC, priaprismo, alterações de vesícula biliar, infecções de repetição etc. Com o diagnóstico precoce, pode-se iniciar as orientações, promover imunizações precoces, profilaxias de infecções e educação familiar quanto aos cuidados, reduzindo assim a morbidade e mortalidade da doença.