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2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 4 2 IDEOLOGIA E SUBJETIVIDADE ................................................................ 5 2.1 A construção conceitual de ideologia e subjetividade .......................... 6 2.2 Principais abordagens teóricas .......................................................... 11 2.3 Ideologia e subjetividade na prática da psicologia social ................... 16 2.4 Cotidiano e constituição do sujeito na contemporaneidade ................ 19 3 CULTURA, PERSONALIDADE E PERCEPÇÃO ...................................... 21 3.1 O que é cultura? ................................................................................. 21 3.2 O hibridismo cultural ........................................................................... 23 3.3 Cultura, personalidade e percepção ................................................... 25 3.4 Cultura e personalidade ..................................................................... 27 3.5 Desenvolvimento da percepção através da mediação cultural ........... 30 4 ASPECTOS SUBJETIVOS DA CULTURA HUMANA ............................... 33 4.1 A subjetividade e os papéis sociais .................................................... 34 4.2 Constituição do ser social ................................................................... 35 5 FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO À LUZ DA PSICOLOGIA SOCIAL .......... 37 5.1 As relações de poder e a subjetivação ............................................... 38 5.2 Subjetivação e poder no campo da psicologia social ......................... 42 5.3 Poder e subjetivação na prática ......................................................... 46 6 O DEBATE PÓS-MODERNO: PSICOLOGIA E SUBJETIVIDADE ........... 48 6.1 Pós-modernidade e subjetividade a partir de Jean-François Lyotard . 48 6.2 Pós-modernidade e produção de subjetividade ................................. 49 6.3 A produção de subjetividade na pós-modernidade ............................ 51 6.4 Contribuições de Deleuze, Guattari e Negri ....................................... 52 3 6.4.1 Félix Guattari (1930–1992) ........................................................... 53 6.4.2 Gilles Deleuze (1925–1995) ......................................................... 54 6.4.3 Antônio Negri (1933) .................................................................... 55 7 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................... 57 4 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 5 2 IDEOLOGIA E SUBJETIVIDADE Fonte: http://genjuridico.com.br/ Falar sobre o nascimento do sujeito dentro do campo da psicologia implica reconhecê-lo como objeto de um discurso científico que profere uma ordem de verdades sobre as instâncias psicológicas que compõem o sujeito, como, por exemplo, o psiquismo, a cognição, a personalidade e a dimensão intrapsíquica das emoções e do desejo – onde opera a subjetividade. A partir disso, se instituem “realidades psíquicas”, universalizando-as e naturalizando-as por meio da matéria do corpo e da natureza (PRADO; MARTINS, 2007). O estudo da subjetividade e da ideologia, nesse contexto, busca compreender como as relações de poder e dominação entre indivíduos, instituições e estruturas sociais perfazem condições de possibilidades para que os sujeitos possam pensar o que pensam e sentir e desejar o que querem – o que contraria uma noção de subjetividade relacionada à ideia de essência para colocar em problematização as condições socio-históricas que constituem os sujeitos. 6 A palavra ideologia pode ser interpretada de diversas formas, bem como por diferentes vertentes teóricas. Ao longo do tempo, a ideologia ocupou concepções neutras, positivas e negativas. Nesses contextos, os movimentos se deram de acordo com o referencial teórico e a recepção da crítica de cada época, relacionando-se com a noção de sujeito, que também pode ser compreendida de diversas formas. A subjetividade, por sua vez, somente adentrou a ciência como espaço de saber no século XIX, tornando os estudos psicológicos um território próprio de pesquisa. A partir daí, passou a ser considerada um objeto de estudo dentro de um vasto campo de abordagens teóricas, epistemológicas e metodológicas. Ao tomarmos como base de discussão a perspectiva da psicologia social, a subjetividade passa a ser compreendida como uma construção histórica e social dentro de um jogo de relações de poder que orienta nossas práticas, pensamentos e desejos, relacionando o mundo externo com o mundo interno, tendo, portanto, importantes cruzamentos com o conceito de ideologia (FIGUEIREDO; SANTI, 2008). Por ser íntima e singular em cada sujeito, a subjetividade diz respeito à maneira como cada ser percebe, sente, identifica e interpreta as sensações e os acontecimentos. Faz parte da subjetividade de cada sujeito: gosto, preferências, afinidades, maneira de ser, de seguir em frente, de paralisar. Ainda que na mesma família, no mesmo contexto social, no mesmo tempo presente, com a mesma carga genética, cada sujeito possui sua subjetividade que é única e formada conforme as crenças e os valores íntimos de cada um. 2.1 A construção conceitual de ideologia e subjetividade A cultura é um conjunto de regras, normas, valores e ideologias que orientam modos de pensar, sentir e responder ao mundo que nos cerca dentro de um determinado território e espaço de tempo, constituindo os mais diversos tipos de sociedade. Não é à toa que a cultura tem importantes atravessamentos na nossa vida e é um campo vasto de pesquisa para a área da psicologia. O conceito de ideologia, por sua vez, é bastante vasto e complexo, podendo ter formulações distintas, com valorações diferentes ao longo da história, fazendo com que o termo seja mais bem aceito ou rejeitado ao longo dos anos. Entretanto, uma 7 coisa é certa, sua explicação e compreensão nunca têm uma repercussão de simples resolução, sendo, por vezes, uma temática que permite inúmeros equívocos e até discussões polêmicas no cenário social. Por ter importantes interfaces com a comunicação e as relações humanas, a psicologia social entende que estudar sobre ideologia é também um de seus papéis (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). Ademais, ainda que constitua um campo cercado de desacordos conceituais, a psicologia social, próxima à visão e à análise sociológica, compreende a necessidade de seu olhar crítico sobre o termo. O conceito de ideologia teve a sua origem como uma proposta de ciência, desenvolvida pelo filósofo francês Destutt, que atribuiu a origem das ideias às percepções sensoriais que conectam e codificam para nós o mundo externo relacionando-ocom o interno (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). Todavia, ao longo da história das ideias, o conceito de ideologia sofreu importantes modificações e rupturas que colocaram em discussão diferenças e controvérsias entre autores e disciplinas do conhecimento, perfazendo um jogo de relações de poder e modos de saber que permitiram, negaram e modelaram a concepção de ideologia conforme os interesses de cada época (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). A seguir, iremos recuperar algumas abordagens e contextos aos quais a ideologia foi historicamente relacionada produzindo efeitos e problematizações sobre questões que envolvem a psicologia social. O estudo da ideologia, nesse contexto, é vinculado ao estudo das relações de poder e dominação entre indivíduos, instituições e estruturas sociais que compõem o cenário de uma teoria social. Nesse sentido, busca-se problematizar a coesão e a padronização de sistemas de valores e crenças que se formam a partir de um consenso e de uma pluralidade de visões dentro de uma sociedade. Na perspectiva da psicologia social, o estudo da ideologia se direciona para o campo da linguagem como meio de ação e efeito social (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). Nessa ótica, ao atravessar as noções de visão, valores e normas consensuais que projetam interpretações distorcidas da realidade, faz-se necessário entender como o conceito de ideologia se relaciona com a compreensão de subjetividade e com os modos de subjetivação dentro do campo da psicologia social. 8 Partindo de uma análise arqueológica, podemos entender que a primeira problematização em relação à noção de subjetividade surgiu na filosofia moderna de Kant, a partir do questionamento das condições de possibilidades para a produção de verdades imutáveis, objetivas e universais. Tais questionamentos ganharam força a partir da compreensão da problemática de que quem produz o conhecimento são sempre sujeitos singulares, históricos e passíveis de cometer erros (PRADO; MARTINS, 2007). A subjetividade emergiu, nessa perspectiva, em meio a um contexto filosófico e epistemológico que se traduz na relação com a produção do conhecimento, sendo concebido, inicialmente, como algo que deveria ser neutralizado para que pudesse acessar uma verdade absoluta. Com o passar dos anos, a subjetividade foi aceita pela comunidade científica como algo que faz parte do jogo de produção do conhecimento e que, portanto, não se oporia, necessariamente, ao critério de objetividade (PRADO; MARTINS, 2007). Nesse sentido, a subjetividade é concebida como uma forma de captação e compreensão da realidade de forma objetiva, que constitui, por sua vez, um padrão global de funcionamento que atravessa as dimensões afetivas, culturais, econômicas, políticas e sócio históricas de cada sujeito (TORRES; NEIVA, 2011). Podemos considerar, portanto, que a subjetividade é a forma pela qual significamos o mundo. Diversas pesquisas apontam que, além da subjetividade, o poder também aparece como um possível fator de contaminação da suposta neutralidade científica, que, inicialmente, havia motivado a tentativa de neutralizar a subjetividade (PRADO; MARTINS, 2007). Cabe ressaltar que Foucault (2002), juntamente com outros teóricos, fez uma importante crítica sobre a importância da indissociabilidade do tripé, saber, poder e subjetividade. Para o autor, os elementos do tripé andam juntos e estão correlacionados no tecido social, sendo constitutivos e constituintes das relações que estabelecemos. Nessa perspectiva, a subjetividade adentra a ciência como objeto construído pelo conhecimento e pelo campo em que decorrem as experiências do sujeito, não implicando diretamente uma ideia de interioridade, substância ou permanência, como havia sido compreendida em um primeiro momento (PRADO; MARTINS, 2007). 9 De acordo com essas percepções, a subjetividade, como resultante de forças sociais, históricas, políticas e econômicas, requer a compreensão de si enquanto articuladora de movimentos que decorrem do campo social e, portanto, passível à interferência do mundo e às possibilidades de transformação. Assim, o conceito se afasta de uma concepção biológica para ser vista a partir de um entendimento social. A subjetividade passa a ser entendida como pertencente à ordem dos efeitos e da exterioridade do ambiente, produzida entre as relações de saber e poder e dos sujeitos consigo mesmos. Dessa forma, é possível afirmar que tanto a subjetividade quanto a noção de interioridade são produções históricas e resultantes dos efeitos dessas relações. Fato que contraria, consequentemente, a ideia inicial de um suposto sujeito universal da razão, da cognição ou da consciência, totalmente autônomo e livre para decidir sobre si. Assim sendo, somos todos seres sociais imersos em relações históricas e localizadas em certas condições de possibilidades para ser quem se é (PRADO; MARTINS, 2007). Somado a isso, configura-se no tecido social outras possíveis ramificações sobre o conceito de subjetividade. Figueiredo e Santi (2008), por exemplo, compreendem a subjetividade como uma concepção individualizada de uma vida privada, a qual nomeiam como “subjetividade privatizada”. Isso coloca em discussão a noção de um “eu” individual que possibilita as condições necessárias para o nascimento da psicologia, que se preocupa com a construção do indivíduo moderno, estudando questões como a personalidade que advém da ideia de um eu privado que se sustenta em uma essência imutável e particular (FIGUEIREDO; SANTI, 2008). A psicologia social, por outro lado, busca problematizar a concepção de subjetividade colocando em discussão as relações de poder e as técnicas de subjetivação. Ao colocar o indivíduo como objeto de conhecimento estudando questões relativas à adaptação, adequação e compreensão das formas de sentir, pensar e habitar o mundo, não estamos nos dirigindo apenas à subjetividade como aspecto relativo a uma essência ou a uma substância no mundo, mas a modos de subjetivação que criam desejos e incitam comportamentos (FIGUEIREDO; SANTI, 2008). 10 A partir disso, a psicologia social compreende a subjetividade como uma ferramenta que orienta práticas e discursos de verdade, entendendo que a nossa visão e percepção são sempre atravessadas pelo filtro de interpretação da nossa subjetividade, interferindo diretamente nos nossos julgamentos. Os modos de subjetivação são concebidos como um conjunto de práticas que constituem o sujeito, sendo a subjetividade um efeito dessas práticas, que, consequentemente, orienta regimes de verdade pautados em relações de poder e saber que produzem sentidos, desejos e experiências (FIGUEIREDO; SANTI, 2008). Fonte: https://www.ex-isto.com/ Assim, o sujeito não detém a verdade, mas é efeito de interações e práticas de relação de poder e saberes já existentes dentro de uma sociedade, e essas condições criam as possibilidades que revestem e constituem a sua subjetividade. O desejo é produzido a partir dos modos de subjetivação dado por um conjunto de práticas e relações que envolvem e tornam o “eu” o encontro dos acontecimentos que o rodeiam (FIGUEIREDO; SANTI, 2008). A experiência da subjetividade privatizada proposta por Figueiredo (1994) exemplifica a ideia de que nossos pensamentos são privados, que podemos pensar e decidir livremente sobre as nossas vidas, que podemos admitir ou negar sentimentos. 11 A privacidade é altamente desejada e valorizada, atrelada ao desejo de sermos livres e donos do nosso próprio destino. Normalmente, temos a sensação de que o que vivemos não é vivido por mais ninguém, que o que sentimos ninguém mais sente e que os nossos pensamentos e ideias são sempre únicos e originais. As experiências da subjetividade privatizada se ligam, cada vez mais, à noção que os indivíduos têm da sua própria experiência de existência.Ao se explicitar no sujeito as condições históricas, sociais e políticas do seu contexto, é possível que ele seja capaz de reconhecer sua própria inscrição subjetiva, reconhecendo suas amarras e relações com o mundo. Sendo a política, nesse sentido, entendida como um conjunto de regras de convívio que orientam dinâmicas históricas de interações sociais, com atravessamentos no passado, no presente e no futuro de cada indivíduo. Logo, a psicologia social se ocupa do estudo de tudo que se refere à ideologia e à comunicação, bem como às estruturas, origens e funcionalidades que constituem e atravessam os modos de subjetivação, de ser e de estar no mundo. 2.2 Principais abordagens teóricas O conceito de ideologia foi citado pela primeira vez no tratado filosófico do francês Destutt, Conde de Tracy, no final do século XVIII, com a compreensão de que o estudo das ideias e das sensações advém dos sentidos e das percepções sensoriais e são resultantes da interação entre os indivíduos e o ambiente social no qual estão inseridos (LÖWY, 1985; THOMPSON, 1995). A ideologia era configurada, nessa época, dentro da área da zoologia, relacionada ao estudo do comportamento dos organismos vivos. Partia da ideia de que somente somos capazes de conhecer o mundo por meio das ideias oriundas das nossas sensações. Assim, a ideologia era compreendida enquanto o estudo sistemático das ideias e sensações que amparam o conhecimento científico e as resoluções práticas que se dão a partir dele (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). A ciência das ideias seria, portanto, a mãe de todas as outras formas de fazer ciência, detendo o conhecimento da natureza humana e, por conseguinte, orientando a ordem social e política (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). 12 Todavia, essa concepção foi duramente atacada por Napoleão, que nomeou Destutt de Tracy e seus adeptos como ideólogos, afirmando que estes viviam em um mundo abstrato e distante da realidade e do poder político (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). Logo, o sentido neutro do conceito de ideologia formulado por Destutt passou a carregar uma conotação negativa devido às afirmações de Napoleão. A partir daí a ideologia deixou de ser uma ciência das ideias para ser colocada apenas como uma “ideia”, irreal, ilusória e malvista. Sendo, na visão de Napoleão, uma vertente científica que deveria ser altamente combatida (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). O termo foi retomado por Marx, sofrendo uma importante alteração conceitual, associando-se a um referencial teórico e a um programa político. Alguns autores compreendem, contudo, que a concepção de ideologia formulada por Marx não é objetiva e coerente ao longo de toda a sua obra. Em certas partes, assemelha-se à perspectiva de Napoleão, que via o conceito como algo equivocado e que coloca muito enfoque no âmbito das ideias e se afasta das condições de vida socio-históricas que originam essas ideias. Nesse sentido, existe uma crítica aos jovens hegelianos cujo pensamento tinha a intenção de opor ideias (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). Thompson (1995) percebia isso como uma concepção “polêmica” da ideologia. Marx também associou a questão da ideologia a uma consciência de classe, referindo- se a ela como um sistema de ideias como a moral, a religião e as doutrinas políticas, o que está sempre atrelado aos interesses da classe dominante, que formula variações da realidade e que deturpa o que é visto, de modo a criar uma falsa consciência, cujo objetivo é manter relações de dominação. Outro sentido para a ideologia que também poderia ser extraído das obras de Marx diz respeito a um sistema de representações, símbolos, costumes, tradições, crenças e valores que orientam a vida social e sustentam relações de dominação por meio de um desvio para o passado e a invisibilização das questões de classe e das mudanças sociais para um futuro iminente (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016; THOMPSON, 1995). As três visões de Marx sobre o conceito de ideologia são orientadas por uma valorização negativa e crítica. Nesse sentido, sua perspectiva apresenta algumas semelhanças com a interpretação de Napoleão, como afirmar que o conteúdo da 13 ideologia é pautado em representações inadequadas e distantes da realidade social da população, formulando ideias ilusórias a fim de manter os interesses da classe dominante e a ordem intacta. Essas formulações ilusórias poderiam, na visão de Marx, ser facilmente desmentidas pela análise científica e crítica sobre as condições materiais de produção e de mudança social (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). Já autores como Löwy (1985) e Thompson (1995) demonstram que o termo ideologia sofreu mudanças a partir de Lenin e o movimento leninista, quando passou a se considerar a realidade social e/ou política como associada aos interesses e às posições das classes sociais, abrindo o campo de discussão para o reconhecimento de duas possibilidades de ideologia: a ideologia burguesa e a ideologia proletária. Essa diferenciação reduziu a valoração negativa do conceito de ideologia que ainda restava da concepção de Marx (LÖWY, 1985; THOMPSON, 1995). O filósofo Lukács se referiu a uma ideologia do proletariado tomando o conceito, em uma perspectiva generalista, como um conjunto de ideias que operam interesses de classe, não sendo articulado por um sentido ilusório a ser combatido, mas por um aspecto concreto da vida social (LÖWY, 1985; THOMPSON, 1995). Entretanto, tal concepção foi compreendida por Thompson (1995) como uma certa neutralização do conceito de ideologia. Por outro lado, Gramsci (1978) entendia o conceito de ideologia como a hegemonia que perfaz um caminho moral e intelectual, no qual a luta ideológica ocorre na apropriação ou na reapropriação de certos elementos e não a partir de uma disputa entre paradigmas opostos. Para tanto, o autor elaborou uma distinção entre duas modalidades de ideologia: a primeira entendida como ideologia historicamente orgânica, intrínseca a uma dada estrutura e com validação “psicológica”, que organiza o movimento das massas, e a ideologia arbitrária, pautada em racionalidades e desejos que formulariam movimentos individuais e polêmicas no campo social (GRAMSCI, 1978). Althusser (1974), por sua vez, relacionou a ideologia com o Estado, compreendendo-a enquanto uma concepção de mundo, que pode, em alguns níveis, ser ilusória. Esse autor também via a ideologia como parte da realidade concreta dos indivíduos em diálogo com as suas condições de existência, que se dão por meio dos 14 aparelhos ideológicos do Estado, os quais prescrevem práticas, leis e relações de poder. Dessa forma, as práticas sempre são regidas por ideologias, e a própria ideologia só existe na relação entre os sujeitos e do sujeito consigo mesmo, sendo ela constitutiva de quem se é. Essa abordagem pode ser considerada tanto neutra e positiva como negativa e crítica (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). A partir desses movimentos, fica claro que o conceito de ideologia não fornece uma compreensão absoluta e que varia conforme o tempo, a história e os interesses de quem o articula, colocando em foco a condição histórica na qual o termo discorre. Dentro do campo da psicologia social, diversos autores operam com a visão crítica da ideologia, por meio da análise da linguagem, sem buscar avaliar se dado discurso é verdadeiro ou falso. Isto é, sem adotar a ideia de ideologia como falsa consciência (GUARESCHI; ROSO; AMON, 2016). O que se busca é identificar os meios linguísticos e discursivos que possibilitam condições para criar e manter relações de poder e modos de ser e estar no mundo. Foucault, importante pensador da psicologia social, por exemplo, compreendeu o conceito de ideologia como uma “[...] noção muito importante e ao mesmo tempo muito embaraçosa” (FOUCAULT, 2002, p. 27). Isso porque o termo pode ser representado de diversasformas e carregar uma avaliação que se modifica conforme a época e o contexto histórico, o que irá definir e compreender um dado significado e designar uma avaliação moral para a palavra em questão. Para pensar sobre ideologia, Foucault (2002) buscou compreender a visão marxista e fazer uma crítica ao modelo proposto por Marx. A ideologia aparece nas análises marxistas mais tradicionais como um termo negativo, tomando o conceito como o meio pelo qual o conhecimento é tido como algo velado pela existência, pelas relações sociais ou pelas formas políticas que são impostas pelo ambiente externo ao sujeito do conhecimento. Para Foucault (2002), entretanto, a “ideologia é a marca, o estigma destas condições políticas ou econômicas de existência sobre o sujeito de conhecimento que, de direito, deveria estar aberto à verdade” (FOUCAULT, 2002, p. 27). O posicionamento marxista tradicional impõe ao conceito de ideologia uma importante associação à ideia do véu que encobre uma verdade, ou seja, a relação de conhecimento é velada, encoberta pelas condições de existência, sendo esse véu 15 a própria ideologia que abafa a relação de conhecimento (TASSARA; ARDANS, 2007). Contudo, Foucault (2002) parte de uma noção de ideologia em contraposição a Marx: O que pretendo mostrar [...] é como, de fato, as condições políticas, econômicas de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade. Só pode haver certos tipos de sujeitos de conhecimento, certas ordens de verdade e certos domínios de saber, a partir de condições políticas que são o solo em que se formam o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade (FOUCAULT, 2002, p. 27). O que Foucault coloca em discussão é a necessidade de compreender os discursos da verdade que operam no cenário social e nas condições políticas, econômicas e culturais que tornam tais discursos possíveis de serem proferidos em determinados contextos, territórios e tempo histórico. Busca-se, portanto, entender como essas relações formam modos de subjetivação que fazem os sujeitos se reconhecerem enquanto tais, dentro de uma relação de jogos de poder, saberes e modos de ser que inscrevem nos sujeitos possibilidades de pensar e sentir o mundo ao seu redor. Dessa forma, o que seria considerado um obstáculo na posição marxista é compreendido por Foucault (2002) como um substrato que forma o sujeito nas relações com o domínio do saber e os discursos da “verdade”. Esse solo que germina a ideologia parte, portanto, das condições políticas em que se socializa o indivíduo, entendendo por política não uma noção partidária, mas um conjunto de regras e valores que orientam saberes e tipos de normatividade. Foucault permite que se compreenda a ideologia não somente como objeto de interpretação do mundo, mas como algo que também impõe uma venda na relação entre o sujeito e o objeto e na relação do sujeito com o conhecimento (TASSARA; ARDANS, 2007). O que é posto em questão na relação entre a visão marxista e a foucaultiana é o entendimento da ideologia como um véu que interpõe atos de dominação na relação entre objeto e sujeito e como uma venda que opera na relação entre sujeito e objeto, 16 que é um resultado constitutivo da formação da subjetividade que ocorre por meio da socialização, além de dificultar a compreensão do conhecimento. Podemos compreender, portanto, que a análise da ideologia e da subjetividade nos impõe a discussão do objeto e do sujeito, que, em primeiro momento, podem ser invisibilizados ou inacessíveis (TASSARA; ARDANS, 2005). Além disso, o jogo de relações de poder, saber e modos de ser que nos subjetivam e incitam práticas e formas de habitar o mundo nos permite reconhecer as condições da formação do sujeito enquanto tal e o seu campo de socialização que decorre dessas práticas. 2.3 Ideologia e subjetividade na prática da psicologia social Fonte: https://www.ex-isto.com/ O conceito de subjetividade, inicialmente trabalhado no campo da psicanálise, passa para o domínio da psicologia ao se substancializar uma noção de interioridade, que, posteriormente, foi compreendida, em termos históricos, sociais e políticos, como capaz de produzir modos de subjetivação. Na contemporaneidade, o conceito se tornou objeto de estudo de diversas vertentes da psicologia de cunho crítico, que passaram a problematizar a ideia de “identidade”, colocando em discussão a multiplicidade das diferenças em um campo de normatividade (PRADO; MARTINS, 2007). Esse movimento ganhou força ao ser atrelado a uma perspectiva histórico- -política da subjetividade a partir do declínio do 17 conceito de identidade que se consome pela cristalização de uma noção sedimentada na noção do “idêntico”, padronizado pelas práticas de poder que operam no tecido social (PRADO; MARTINS, 2007). Essa questão política envolve jogos de normalização, formas de reconhecimento de si e dos outros, assim como modos de subjetivação que exigem um posicionamento crítico e uma resistência a práticas de opressão exercidas pelo Estado (PRADO; MARTINS, 2007). Contudo, nem sempre os exemplos são tão facilmente identificáveis a partir de rotulações específicas. Quando nascemos, temos a impressão de que somos únicos, que não existe ninguém com as mesmas qualidades e defeitos, assim como não é possível existir alguém com a mesma vida e rotina que a nossa. Passamos a acreditar em determinadas religiões, verdades, grupos sociais, valores e costumes, mas quando esse padrão de realidade com o qual estamos acostumados entra em crise, passamos a duvidar dos nossos conjuntos de regras e valores que ditam as “verdades" que assumimos para as nossas vidas. Somos compelidos a buscar novos caminhos e a repensar as escolhas que tomamos para a nossa vida, assim como os filtros a partir dos quais avaliamos e julgamos o que é certo ou errado. A perda de uma referência coletiva abre espaço para o que Figueiredo e Santi (2008) chamaram de subjetividade privatizada, contestando quem somos, o que sentimos, desejamos e julgamos ser certo ou errado. Essa discussão teórica ganhou espaço e repercussão positiva no tecido social no período do Renascimento (FIGUEIREDO; SANTI, 2008). Passamos a acreditar que somos donos de nossas opiniões e capazes de tomar decisões de forma autônoma e individual e a desenvolver uma reflexão moral e ética sobre determinados assuntos, buscando novos valores e novas crenças, valorizando nossa liberdade e individualidade. Esse contexto foi fortemente marcado pelo pensamento de Descartes com as suas conhecidas frases “penso, logo existo” e “a verdade reside no homem, dá-se para ele” (FIGUEIREDO; SANTI, 2008). Nesse período, as condições de possibilidades foram constituídas para que se tornasse possível uma crise de subjetividade privatizada, na qual nossas verdades são postas à prova dia após dia, sendo contrariadas a cada nova descoberta. Revendo com frequência nossas verdades, crenças e culturas e instaurando uma sensação de insegurança frente ao futuro e ao controle de nossas vidas, gradualmente, passamos 18 a questionar até que ponto realmente estamos no controle de nós mesmos, abrindo as condições necessárias para uma crise da subjetividade privatizada em meio a um mundo globalizado, dentro de moldes e estereótipos, em uma rede de relações que se estabelecem por meio do consumo e do capital (FIGUEIREDO; SANTI, 2008). Já não sabemos com exatidão se escutamos determinada música, comemos certa comida ou vestimos tal roupa porque gostamos ou apenas porque fazem parte do nosso círculo social, determinados para nós como algo que está na moda, que é bom ou legal de ser utilizado. Ainda que a subjetividade privatizada nos faça crer que somos únicose que temos o pleno controle de nossas escolhas e senso de justiça próprio, nossos gostos e desejos ainda são similares aos de grande parte da população. Assim, aos poucos, passamos a entender que não somos tão únicos e que a liberdade se constitui numa ilusão alimentada pelo desejo social incutido em nós. O que consequentemente pode acarretar perda de referências, sentimentos de desamparo e insegurança, abrindo caminho para patologias sociais como depressão e ansiedade. Assumimos papéis sociais, nos adaptamos aos meios em que estamos, nos esforçamos para sermos profissionais competentes, para não sermos demitidos, nos encaixar em padrões de beleza e não sermos excluídos. Nos relacionamos por situações de interesses sociais, econômicos, culturais e políticos, e, com o advento da globalização e com o mundo cada vez mais homogêneo, dividimos as pessoas entre “normais” e “anormais”, boas e más, certas e erradas (FIGUEIREDO, 1994). A partir do declínio das crenças liberais e dos ideais do romantismo, instaurou- se a suspeita de que nossa singularidade e liberdade são ilusórias, abrindo espaço para a construção de saberes e pesquisas científicas que colocam em foco a previsão e o controle do comportamento humano, da qual decorre as percepções de sociedades disciplinares e de controle, conforme propostas por Foucault e Deleuze, respectivamente (FIGUEIREDO, 1994). Ao mesmo tempo, emergiram condições para críticas a esse sistema por meio de problematizações teóricas e práticas de subjetividade que buscaram resistir ao regime disciplinar e que orientaram diversas escolas contemporâneas com importantes interfaces com a clínica e a educação (FIGUEIREDO, 1994). 19 Como afirma Figueiredo (1994, p. 36), “por um lado, a ciência moderna pressupõe sujeitos livres e diferenciados — senhores de fato e de direito da natureza; de outra procura conhecer e dominar esta própria subjetividade, reduzir ou mesmo eliminar as diferenças individuais”. A psicologia social, nesse contexto, busca entender as condições de possibilidades para se pensar o que se pensa, desejar o que se quer e sentir o que se sente, colocando em discussão as relações de poder, os jogos de verdade e os tipos de normatividade de cada contexto, local e período histórico. Ao serem reconhecidos os movimentos que acompanham o termo ideologia e os modos de subjetivação que se dão pelo âmbito social no qual estamos imersos, é possível visualizar como esses discursos compõem e orientam as nossas vidas. O que, por conseguinte, possibilita ações de resistência a modos de objetivação e subjetivação dentro de um jogo de identificação e reconhecimento de si. Afirmar a diversidade significa, portanto, reconhecer as multiplicidades de formas de existência de ser e estar no mundo, ultrapassando situações de opressão, quaisquer que sejam elas. A problematização dessas questões permite a quebra de dicotomias discursivas como corpo e mente, biológico e cultural, individual e social ou o “eu” e os “outros”. Pudemos concluir que cada território e momento histórico proporciona novos dilemas que não dizem respeito apenas sobre o sujeito posto em questão, mas sobre a cultura e a sociedade, o que excede e constitui um jogo de relações de poder e saber. Dessa forma, a subjetividade não implica uma noção de essência, mas uma produção contínua que se dá por meio dos encontros com o mundo e com os outros, sendo efeito e produzindo efeitos. 2.4 Cotidiano e constituição do sujeito na contemporaneidade No cotidiano, os sujeitos podem experimentar qual a melhor forma de exercer seu existir de forma singular, conforme as oportunidades contínuas que emergem no esquema frequente do repetir do cotidiano. Assim, na cotidianidade, os sujeitos expressam seu sentido de viver, suas crenças e ideologias, seus desejos e potencialidades. É na cotidianidade que a subjetividade dos sujeitos entra em prática. 20 O existir de todos os sujeitos é atravessado pelo cotidiano. O cotidiano diz respeito a cada momento comum na rotina diária dos sujeitos, desde as tarefas mais simples, como despertar, se vestir, comer, até as mais complexas, como planejar tarefas, viabilizar sua concretização, atender a todas as demandas diárias. E tudo isso em meio a uma enxurrada de emoções e sentimentos atravessados pelo cotidiano, emoções e sentimentos das socializações. Assim, podemos entender o cotidiano também como uma ferramenta. Poderíamos exemplificá-lo como um palco teatral, no qual a cada ensaio, ou espetáculo propriamente dito, se cria a possibilidade de fazer algo novo, ainda que dentro de uma métrica de tempo, fala atuações e acontecimentos entrecruzados. O cotidiano está, dessa forma, consolidado ao existir de todos os sujeitos. Não sendo possível dissociá-los, os modos de existir dos sujeitos e o cotidiano se ajustam e complementam objetivando plenitude para constituição de conhecimentos. George Lukács (1885-1971), filósofo húngaro, desenvolveu sua teoria influenciado pelo pensamento de Marx e Weber e propõe um aprofundamento sobre aspectos pouco explorados nas obras desses influenciadores. Lukács propõe uma transição entre consciência coletiva e consciência individual, em decorrência do capitalismo, geradores de forças no cotidiano. Agnes Heller (1929-), autora e filósofa húngara, foi aluna de George Lukács e participou de seu círculo de estudos sobre estética e ontologia do ser social, ou seja, a sua condição de singular, em sua singularidade com relação ao social. Heller (2004) desenvolveu seu pensamento sobre a teoria do cotidiano pensando nas possibilidades do universo que contribui para a formação do ser social, referindo sobre o despertar de uma consciência e atitude ética e política atuando para e na vida social possibilitam uma vida reflexiva. Com o auxílio desses pensadores, podemos entender o cotidiano como um ciclo constante, em uma infinita sucessão de acontecimentos que se relacionam entre si. Embora aparentemente caóticos, conectam o que é vivido com a vida social. Veroneze (2013) refere sobre o pensamento de Heller sobre a impossibilidade de separação entre o existir de cada sujeito e a cotidianidade, onde o viver está intrínseco ao cotidiano. Assim, o cotidiano se desenvolve em sua cotidianidade conforme a existência subjetiva de cada sujeito. 21 3 CULTURA, PERSONALIDADE E PERCEPÇÃO Fonte: https://aempreendedora.com.br/ De forma sintética, pode-se dizer que cultura é tudo o que é criado pelas sociedades humanas (incluindo crenças, hábitos, moral, leis, arte, etc.) com o intuito de satisfazer suas necessidades e de conviver em sociedade. Ou seja, de acordo com Barroso (2017), é por meio da cultura que os seres humanos aprendem a habitar o mundo e a conviver da forma como convivem. Além disso, a cultura diferencia a espécie humana das demais existentes no planeta, por ser exclusividade dessa espécie. 3.1 O que é cultura? A antropologia estuda o fenômeno do homem, a mente do homem, seu corpo, sua evolução, origens, instrumentos, artes ou grupos – não simplesmente em si mesmos, mas como elementos ou aspectos de um padrão geral ou de um todo. Para enfatizar esse fato, os antropólogos tomaram uma palavra de uso corrente para nomear o fenômeno e difundiram seu uso. Essa palavra é cultura. Quando se fala como se houvesse apenas uma cultura, como em cultura humana, isso se refere muito amplamente ao fenômeno do homem; por outro lado, quando se fala sobre uma 22 cultura ou sobre culturas da África, a referência ocorre em relação às tradições geográficas e históricas específicas, casos especiais do fenômeno homem. Assim, a cultura se tornou uma maneira de falar sobre o homem e sobre casos particulares do homem quando visto sob uma determinada perspectiva. Quando se fala de pessoas que pertencem a diferentes culturas, estamos, portanto,nos referindo a um tipo de diferença muito básico entre elas, sugerindo que há variedades específicas do fenômeno humano. A cultura é dinâmica e se recicla incessantemente, incorporando novos elementos, abandonando antigos, mesclando os dois e transformando-os num terceiro com novo sentido. Tratamos, portanto, do mundo das representações, incorporadas simbolicamente na complexidade das manifestações culturais. Cultura não é acessório da condição humana, mas sim o essencial. O ser humano é humano porque produz cultura, dando sentido à experiência objetiva, sensorial. É o que diz o conceito de “cultura” defendido por Geertz (1989), segundo o qual o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, sendo a cultura essas teias e sua análise. A cultura é pública porque o significado também é. Fica marcado, portanto, o caráter eminentemente social das identidades. Ainda aqui, os membros escolhem aderir ao conjunto de práticas e crenças vinculadas a tal identidade, “[...] a mais essencial de todas as criações ou invenções modernas [...]”, como afirma o sociólogo polonês Bauman (2008). Daí a importância da interação social do “outro” na construção dos espaços simbólicos onde expressamos nossa existência humana em termos de múltiplas identidades. Portanto, quando se diz que “fulano é sem cultura”, a referência é sempre onde nossos pés pisam. Ou seja, pressupõe-se que essa pessoa não se adeque aos princípios, valores, comportamentos e atitudes específicos da cultura em que estamos inseridos e que compartilhamos no dia a dia. Já no senso comum, isso também pode significar que a pessoa em questão possui pouco estudo, uma vez que a referência, nesse caso, passa a ser a erudição e o acesso aos saberes mais elaborados. 23 3.2 O hibridismo cultural Fonte: https://sites.google.com/ A cultura em seu sentido antropológico, por outro lado, transcende a noção de refinamento intelectual (cujo adjetivo é “culto”, e não “cultural”). A cultura permite traduzir melhor a diferença entre nós e os outros e resgata a nossa humanidade no outro e a do outro em nós mesmos (DAMATTA, 1997). Ao seguirmos essa perspectiva, tornamo-nos mais respeitosos com relação ao outro, pois este outro nada mais é do que nosso espelho, refletindo a unidade na diversidade. Para além da tolerância, perseguimos a convivência e a harmonia. Logo, é muito importante trazer o conceito de hibridismo cultural de Canclini (2011), pois ele é pioneiro ao pensar o conceito de hibridismo cultural sob um viés político que se estabelece por meio de interações entre as culturas de elite e indígena. Para o autor, o processo de hibridação garantiria a sobrevivência da cultura indígena e levaria a um processo de modernização da cultura de elite. O hibridismo cultural, para o autor, traz consigo a ruptura da ideia de pureza. É uma prática multicultural possibilitada pelo encontro de diferentes culturas. Nesse sentido, são apontados pelo autor dois processos principais que, segundo ele, possibilitaram a desarticulação cultural na América Latina: o descolecionamento e a desterritorialização. Ambos os processos foram fundamentais para a expansão dos gêneros “impuros”, que, de acordo com ele, são a expressão máxima do hibridismo cultural. O descolecionamento dá sentido, sobretudo, ao fim da produção de bens culturais colecionáveis, resultando na quebra de divisões entre cultura elitista, popular e massiva. 24 O descolecionamento seria possibilitado pelo uso de recursos tecnológicos como a fotocopiadora, o videocassete e o videogame, que destituiriam as referências que ancoravam o sentido das coleções. Eles permitem que um bem cultural seja reproduzido e disponibilizado mais facilmente para a população. Já o processo de desterritorialização, segundo fator responsável pela desarticulação cultural na América Latina, não é entendido, conforme tenciona Canclini (2011), tendo como ponto de alicerce apenas as questões geográficas. Ele é fundamentado, sobretudo, pela transnacionalização dos mercados simbólicos, ocasionada pela descentralização das empresas e a disseminação dos produtos pela eletrônica e telemática. As culturas hoje se encontram mescladas, dialogam entre si e, para muitos estudiosos, têm se tornado homogeneizadas, recebendo assim, uma nova nomenclatura – “culturas” –, não sendo mais possível referir-se a elas como algo heterogêneo. Esse fator foi possibilitado pela intensificação do processo de globalização, que proporcionou o encurtamento das distâncias e a propagação, em escala mundial, da narrativa dos meios de comunicação, grandes responsáveis por ligarem pessoas das mais diversas partes do mundo. Contudo, o fato é que essa homogeneização é possibilitada, principalmente, pela uniformização do consumo. Apesar do processo de globalização, que busca a mundialização do espaço geográfico – tentando, por meios de comunicação, criar uma sociedade homogênea –, aspectos locais continuam fortemente presentes. A cultura é um desses aspectos: várias comunidades continuam mantendo seus costumes e tradições. Podemos definir, portanto, “culturas híbridas” como um rompimento entre as barreiras que separa o que é tradicional e o que é moderno, entre o culto, o popular e o massivo. Em outras palavras, culturas híbridas consistem na miscigenação entre diferentes culturas, ou seja, uma heterogeneidade cultural presente no cotidiano do mundo moderno. Essa miscigenação une traços distintos de diferentes visões de mundo, formando, assim, uma nova cultura, que resultará na elaboração de signos de identidades. Esse processo dá origem a uma identidade própria de um povo, uma cultura local. Contudo, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. “Estamos sempre em processo de formação cultural [...]” (HALL, 2003). O mesmo autor afirma que a cultura é uma produção que possui seus recursos, sua 25 matéria-prima e seu “trabalho produtivo”. Cuche (2002) aponta que, da mesma forma como a cultura, “[...] a identidade se constrói, desconstrói e se reconstrói, segundo as situações [...]”. Ela está incessantemente em movimento; cada mudança social a leva a se reformular de modo diferente. 3.3 Cultura, personalidade e percepção Os seres humanos são os únicos seres vivos que desenvolvem fenômenos culturais. A cultura nos diferencia do restante das espécies (BARROSO, 2017). Estudar a cultura engloba diversos aspectos, já que ela atua, inclusive, no desenvolvimento dos processos psicológicos. Através de um resgate histórico, é possível observar que até a década de 1970 a cultura era vista sob uma ótica mentalista, sendo entendida como um conjunto de crenças compartilhadas. A partir desse período, o conceito de cultura passou a ser compreendido de uma forma mais concreta, sendo visto como um conjunto de costumes ou práticas compartilhadas. Ou seja, pode-se presumir que para estudar cultura é preciso tratar de comportamento. Sendo assim, Baum (2006) define cultura como um comportamento operante (voluntário), que inclui tanto aspectos verbais quanto não verbais, aprendido por alguém que pertence a um grupo (sociedade). Para compreender melhor, vale relacionar os fenômenos culturais com a carga genética. Os traços culturais são transmitidos dentro de uma sociedade (através da educação e da imitação) como uma herança social, perpassando gerações, o que ocorre de maneira análoga a um conjunto gênico, ou seja, semelhante a uma herança biológica (BARROSO, 2017). Complementando esse conceito, Barroso (2017) afirma que é através da cultura que os seres humanos aprendem a conviver e a habitar o mundo da forma como habitam. A aprendizagem cultural se dá por meio do processo de socialização do sujeito e abarca o desenvolvimento da linguagem e da compreensão de símbolos. De uma forma geral, de acordo coma autora, pode-se entender que tudo o que é criado pelas sociedades humanas, como crenças, hábitos, moral, leis, arte, entre outros, com o intuito de satisfazer suas necessidades e de conviver em sociedade, pode ser considerado cultural. 26 Tendo em vista o exposto, destacam-se dois pré-requisitos para que uma cultura exista (BAUM, 2006): A existência da sociedade: sem um grupo de pessoas organizadas de maneira cooperativa, não há sociedade, logo não há cultura. A capacidade de aprendizagem dessa sociedade: a capacidade de os membros desse grupo aprenderem uns com os outros, visto que é dessa forma que a cultura é transmitida. A partir dessa discussão, compreende-se que os fenômenos culturais são de grande impacto em uma sociedade, atingindo cada uma das pessoas que a compõe. Para compreender como esse impacto ocorre, resgatam-se as contribuições de Bronfenbrenner (2011) acerca do desenvolvimento humano. Para esse autor, o desenvolvimento humano é fruto da interação de quatro níveis do sistema ecológico: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. Esses níveis funcionam como um conjunto de estruturas encaixadas, com planos mais próximos à pessoa em desenvolvimento e mais afastados dela (da maneira como funciona um conjunto de bonecas russas, uma dentro da outra). O nível mais interno, marcado pelo contato imediato com a pessoa em desenvolvimento, como a casa ou a sala de aula, é o microssistema. O próximo nível, o mesossistema, refere-se às relações que dois ou mais ambientes imediatos (microssistemas) estabelecem entre si, como a escola e a família, e que impactam na pessoa em desenvolvimento. O terceiro nível, chamado de exossistema, diz respeito a ambientes em que a pessoa em desenvolvimento não interage diretamente, mas que, mesmo assim, a impactam, como é o caso do ambiente de trabalho dos pais. E, por fim, o macrossistema, que diz respeito a um ambiente mais amplo, como a cultura da qual aquela pessoa em desenvolvimento faz parte. Quanto à compreensão de processos psicológicos, destaca-se que eles podem ser divididos em processos psicológicos básicos e superiores. Entre os básicos estão a memória (capacidade de lembrar), a percepção (capacidade de reconhecer algo ou uma situação), o raciocínio (capacidade de resolver ou de pensar sobre algo) e a atenção (capacidade de estar centrado em algo). Já os processos psicológicos 27 superiores são mais complexos, englobam o pensamento, a linguagem e o comportamento volitivo (que envolve vontade). Esses últimos, em especial, são enfatizados por Vygotski (1991), por estarem fortemente relacionados ao âmbito cultural, já que a única forma de serem desenvolvidos é por intermédio da socialização e aquisição da linguagem (BARRETO, 2005; NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2017; MARTINS, 2004; VYGOTSKI, 1991). Os fenômenos culturais relacionam-se aos processos psicológicos à medida em que um é produto e, ao mesmo tempo, produtor do outro. A cultura impacta no desenvolvimento de cada ser humano que compõe a sociedade e, simultaneamente, é impactada pelas próprias pessoas, visto ser fruto da capacidade de aprendizagem de quem nela está inserido. Sendo assim, cultura é, por definição, um processo dinâmico (BARROSO, 2017; BAUM, 2006; BRONFENBRENNER, 2011; MARTINS, 2004). Na sequência você estudará as relações entre cultura e personalidade. 3.4 Cultura e personalidade Fonte: https://culturaegestao.com.br/ O termo personalidade vem do latim, persona, que remete a uma máscara utilizada por personagens teatrais. Entretanto, remontando a sua origem, observa-se que a compreensão desse conceito sempre foi mais ampla, sendo ligada ao entendimento de ser humano e de suas relações com o mundo (MARTINS, 2004). Pela compreensão da psicologia, a personalidade é composta pelos pensamentos, respostas emocionais e comportamentos que são característicos de 28 uma pessoa e organizados de uma forma dinâmica. Por ter essa organização dinâmica, pressupõe-se a existência de um todo coerente (organizado) e não estático, sensível às mudanças e adaptável ao ambiente em que a pessoa está (GAZZANIGA; HEATHERTON; HALPERN, 2018). Concomitante a isso, há evidências de aspectos biológicos envolvidos no desenvolvimento da personalidade. Ou seja, é sabido que há uma carga genética determinante na personalidade, entretanto, ainda assim, observa-se que a expressão desses componentes não é fixa, mas sim adaptativa (algumas características, herdadas biologicamente, serão desenvolvidas, enquanto outras não). Essa característica adaptativa diz respeito à noção de que a personalidade vai se desenvolvendo a partir da interação da pessoa com o meio em que está inserida, logo, está relacionada à cultura (GAZZANIGA; HEATHERTON; HALPERN, 2018). Martins (2004) complementa esse raciocínio, destacando que a formação do ser humano e de sua personalidade representa um processo que sintetiza outros fenômenos produzidos pela história humana, de forma que a construção da personalidade dos indivíduos está no cerne da construção da humanidade como um todo. Assim, pode-se dizer que a personalidade é um atributo do indivíduo, mas, ao mesmo tempo, um fruto da interação do indivíduo com o meio. Há diversas teorias que tratam da personalidade, trazendo diferentes olhares para o mesmo fenômeno. Uma das principais teorias enfatiza cinco grandes fatores para descrever a personalidade, é a teoria chamada de Big Five ou Cinco Grande Fatores (CGF). Esses fatores são usados com frequência no estudo da personalidade, por demonstrarem validade mesmo quando aplicados em diferentes países/culturas (GAZZANIGA; HEATHERTON; HALPERN, 2018). No Brasil, os termos utilizados para cada um dos fatores (tendo em vista que são termos traduzidos do inglês), não são uma unanimidade entre os pesquisadores. Em geral, os fatores têm sido organizados da seguinte forma (ANDRADE, 2008): Abertura (openness to experience, intellect): descreve a complexidade, abertura e profundidade da mente humana. Pessoas com alta pontuação geralmente são francas, imaginativas, espirituosas, originais e artísticas. 29 Conscienciosidade (conscientiousness): analisa a cautela, a confiança, responsabilidade e a organização dos indivíduos. Extroversão (extraversion): considera o quanto um indivíduo é ativo, entusiasmado, dominante, sociável, eloquente e falante. Amabilidade (agreeableness): considera os aspectos relativos à agradabilidade, amabilidade e afetuosidade. Neuroticismo (neuroticism): avalia a instabilidade emocional, considerando nervosismo, sensibilidade, tensão e preocupação dos indivíduos. Essa teoria ajuda na compreensão do que compõe a personalidade, como ela se expressa e pode ser observada. Entretanto, a personalidade não é fixa, nem predeterminada (mas sim dinâmica), sendo impactada pelo meio em que a pessoa está inserida. Nesse sentido, quando se trata da relação entre personalidade e cultura, alguns pontos devem ser destacados. De acordo com Gazzaniga, Heatherton e Halpern (2018), a cultura influencia a personalidade, pois dita os comportamentos e reações adequados dentro de diferentes situações. Além disso, a cultura também impacta na forma como a pessoa percebe ou interpreta determinadas situações, já que ela serve como um referencial (a pessoa sempre avalia as situações a partir do seu referencial cultural). Francisco (2013) afirma que não se pode estudar a personalidade de maneira isolada da cultura. O autor reforça o entendimento de que a personalidade, nessa perspectiva, é resultado das interações sociais da pessoa com o meio. Ou seja, é construída por intermédio das relações com os outros e com o mundo. Ela é entendida como resultado da atividade subjetiva (singular a cada pessoa), condicionada pelo ambiente concreto e cultural do qual a pessoa fazparte. Sendo assim, destaca-se o entendimento de que a personalidade tem componentes individuais, singulares, e componentes coletivos, que dizem respeito à sociedade na qual a pessoa está inserida, isto é, aos aspectos culturais. Nesse sentido, a cultura pode ser entendida como o ponto em comum entre a pessoa (esfera individual) e a sociedade (esfera coletiva). 30 Como foi visto, a cultura está fortemente relacionada ao desenvolvimento da personalidade humana. Pode-se dizer que a personalidade é um aspecto individual, singular, mas, ao mesmo tempo, fruto de uma relação social representada pela cultura. Ainda que a personalidade tenha componentes genéticos e individuais, ela se expressa na sociedade e é desenvolvida por meio das relações que a pessoa estabelece (FRANCISCO, 2013; MARTINS, 2004). Para finalizar este capítulo, na sequência você estudará o desenvolvimento da percepção, da infância à idade adulta, com ênfase na mediação cultural desse processo psicológico. 3.5 Desenvolvimento da percepção através da mediação cultural Nesta parte do capítulo insere-se a discussão sobre o desenvolvimento, em específico, do processo psicológico da percepção. Inicialmente, retoma-se a breve descrição de percepção feita anteriormente, para servir como um pontapé para a reflexão que se segue. A percepção pode ser entendida como a capacidade de reconhecer algo ou uma situação (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2017). Essa descrição, entretanto, não é suficiente para a compreensão de como se dá o desenvolvimento desse processo psicológico, da infância à idade adulta, com ênfase na mediação cultural. Para que isso seja possível, é importante diferenciá-lo da sensação, visto que comumente esses dois conceitos são confundidos. A sensação pode ser entendida como um processo de detecção de estímulos físicos e de transmissão desses estímulos para o cérebro. Ela compreende o processo pelo qual os cinco sentidos (visão, tato, paladar, olfato e audição) apreendem informações do ambiente. Ou seja, a sensação é o primeiro contato de um estímulo com o organismo (FELDMAN, 2015; GAZZANIGA; HEATHERTON; HALPERN, 2018). Já a percepção funciona de uma forma um pouco mais complexa. Para perceber algo é necessário que o sujeito analise e interprete aquele estímulo. Sendo assim, a percepção compreende o processamento, a organização e a interpretação de um estímulo sensorial. Pode-se dizer que a percepção é um passo além da sensação, é quando o organismo se relaciona com o meio de uma forma consciente 31 e constrói uma informação útil e significativa sobre aquela experiência (FELDMAN, 2015; GAZZANIGA; HEATHERTON; HALPERN, 2018). Pode-se dizer, tendo em vista o que foi discutido, que a relação entre organismo e ambiente inicia pela sensação, através dos cinco sentidos, estabelecendo um primeiro contato do organismo com o meio, e passa para a percepção quando o organismo interpreta e organiza o estímulo (FELDMAN, 2015; GAZZANIGA; HEATHERTON; HALPERN, 2018). Piovesan (1970) destaca que a sensação é um fenômeno relativamente constante dentro da espécie humana (visto que depende apenas dos sentidos), já o processo de percepção é essencialmente variável de sociedade para sociedade. Ou seja, a percepção é mediada pela cultura em que a pessoa está inserida. A partir do exposto, torna-se evidente que o fenômeno da percepção é mediado pela cultura. Entretanto, ainda se faz necessário compreender como essa mediação ocorre ao longo da vida das pessoas, da infância até a idade adulta. Para isso, destacam-se as contribuições de Pimenta e Caldas (2014), que realizaram um estudo sobre o desenvolvimento da percepção na infância. De acordo com a perspectiva apresentada pelas autoras, quando um bebê nasce, o organismo, sob a perspectiva biológica, está estruturado (mesmo que ainda precise se desenvolver, a partir do nascimento o bebê já possui o aparato biológico necessário). Porém, para além do aspecto biológico, o bebê quando nasce precisa ser humanizado. Nesse sentido, o desenvolvimento do bebê ocorre em duas linhas: a primeira, relativa ao desenvolvimento biológico e a segunda, relativa ao desenvolvimento histórico-cultural, relacionado ao seu processo de humanização. A humanização do bebê ocorrerá através da interação social (ou seja, através da relação desse bebê com as outras pessoas que compõem a sociedade em que ele está inserido). A partir dessas interações, à medida em que o bebê cresce, vai desenvolvendo a capacidade de interpretar os estímulos do ambiente, isto é, de dar significado para os estímulos com os quais tem contato. O desenvolvimento da percepção ocorre a partir da mediação cultural, e inicia na infância. Entretanto, diferente do que comumente se pensa, o desenvolvimento (de uma forma global) não encerra no período caracterizado como infância, apesar de ter seu ápice nesse momento. 32 O desenvolvimento humano ocorre de forma contínua, durante todo o ciclo vital, sendo atualizado e modificado à medida em que interage com novos estímulos (PIMENTA; CALDAS, 2014). Nesse sentido, destaca-se que os processos psicológicos, tais como a percepção, são processos cerebrais, ou seja, tem base biológica, mas o seu desenvolvimento é mediado essencialmente pela interação do indivíduo com o contexto no qual se desenvolve. Por meio da interação com as pessoas, com os instrumentos, com os símbolos, entre outras construções produzidas por aquela cultura. É essa interação que produzirá a informação que servirá como referencial quando um determinado indivíduo captar um estímulo e o interpretar (PIMENTA; CALDAS, 2014). Diante do exposto, destaca-se a importância da cultura como mediadora do desenvolvimento humano. Como visto ao longo do capítulo, o desenvolvimento dos processos psicológicos é impactado pelas interações do organismo com o meio cultural do qual faz parte. Em específico, destaca-se o fenômeno da percepção, que diz respeito ao processo de sensação e interpretação de um estímulo do ambiente. A percepção é desenvolvida desde a infância, perpassando todo o ciclo vital, tendo como base as interações entre o organismo e o meio, com ênfase no meio histórico- cultural (FELDMAN, 2015; GAZZANIGA; HEATHERTON; HALPERN, 2018; PIMENTA; CALDAS, 2014). Fonte: http://canaldaimprensa.com.br/ http://canaldaimprensa.com.br/ 33 4 ASPECTOS SUBJETIVOS DA CULTURA HUMANA A literatura sobre o assunto em questão concorda em que não se pode pensar a essência humana fora das relações sociais. Ela resulta do conjunto de suas relações totais, uma vez que o ser humano se constrói à medida que ativa esse complexo de relações. Nesse sentido, os aspectos subjetivos da cultura humana contribuem e colaboram para a constituição do sujeito social, bem como seu universo psíquico e a relativização dos papéis sociais. Trata-se sobretudo de compreender como os as vivências e práticas sociais favorecem a formação e constituição do ser social. Ainda antes de nascermos somos seres em relação com o mundo. Primeiro somos gerados pelo imaginário materno, cultivados por meio da noção de mundo desse imaginário. Logo ao nascermos, iniciamos nossa jornada social. Somos atravessados pelas demandas familiares, somos frustrados por tais demandas ou temos sanado nossos desejos. Ou seja, nos constituímos na relação com o mundo influenciado pelas relações anteriores a nossa constituição. O sujeito enquanto ser social reflete seu universo psíquico por meio do seu comportamento, expressando sua subjetividade conforme seu modo de agir. Atravessado por suas escolhas e implicações ao mesmo tempo em que se relaciona com o mundo. Genuíno, efetivo, autêntico, assim o ser social é captado e dialeticamente integrado ao viver. Possui capacidade inerente de transmutar a própria natureza e a si mesmo sincronicamente. Dessa forma, o ser social se constitui comoser criador, não somente por sua capacidade de pensar, mas também por sua capacidade de agir de forma consciente e racional (BARUS-MICHEL, 2004). O ser social se constitui de acordo com sua natureza relacional, assim sendo, a partir das relações com outros sujeitos, tomando para si a realidade vivenciada por culturas anteriores ao seu existir. Desfruta da oportunidade de experimentar o manuseio dos instrumentos e dos aprendizados cultivados pelas gerações anteriores, com o objetivo de adaptar, aprimorar ou mesmo perpetuar os conhecimentos. As relações sociais também são prévias e inerentes a todo sujeito. Por exemplo, seu histórico familiar, a história do local em que vive os acontecimentos sociais, entre outros, colocam o sujeito em constante movimento e transformação na construção do ser social. O universo interior de todos os sujeitos se forma de acordo com questões 34 provindas da cultura humana, ou seja, muitas das formas de agir e pensar de todo sujeito surgem de acordo com movimentos vindos de sua relação com o mundo e são importadas para a estruturação do ser social. Assim, o ser social está em constante formação por meio das relações sociais provindas do tempo presente ou do passado. E se disponibiliza por meio da conexão com sua própria subjetividade e com a subjetividade inerente às vivências sociais. Passa adiante sua herança social em progressiva vinculação com o mundo exterior e com a continuidade da movimentação da cultura humana (BARUS-MICHEL, 2004). 4.1 A subjetividade e os papéis sociais Como vimos, o sujeito não está alheio aos preceitos sociais. Por estar em constante movimento constitutivo, se disponibiliza subjetiva e intrinsecamente. Articula, combina e se reinventa enquanto ser social, na busca por novas aprendizagens e modos de viver. Portanto, se aproximam reciprocamente os processos de constituição do psiquismo e do ser social, por meio da subjetivação das experiências relacionais. Logo, a dimensão afetiva está ativamente implicada na construção de ambos aspectos do desenvolvimento do sujeito. A personalidade é característica própria e singular de cada sujeito, constituindo uma forma de sentir, pensar e atuar que o torna único e incomparável. Possui três fatores que se entrecruzam em sua constituição: a estruturação genética básica, as influências do meio e o modo como o sujeito interpreta os acontecimentos. A estruturação genética básica se refere às características hereditárias herdadas da família, como os aspectos físicos, a cor da pele, olhos e cabelos, e aspectos emocionais, como tendência a oscilações de humor, fantasias e também transtornos graves, como a esquizofrenia. As influências do meio se referem às contribuições das relações sociais para o desenvolvimento do ser e o modo como o sujeito interpreta os acontecimentos, utilizando suas ferramentas potenciais, reunindo as características genéticas e o seu desenvolvimento social, relacionando de uma forma ao instrumentalizar para uma melhor fluência do seu modo de viver. A personalidade tem seu início estrutural ainda no útero materno. A maneira como a mãe sente e reage sobre a gestação começa a 35 contribuir para a formação da personalidade. Ainda nos primeiros anos de vida, a criança se constitui enquanto sujeito, atribuindo sentido e relacionando seu existir no mundo. O modo como o mundo se apresenta para a criança, no início com a representação da família, seguida da escola e das demais relações sociais, vai definir o desenvolvimento da personalidade da criança. Vygotsky e Alexander (1996) referem sobre uma personalidade social construída conforme as relações ao longo da existência do sujeito. Dessa forma, podemos compreender que a constituição e formação da personalidade é atemporal, pois se desenvolve de acordo com o viver de cada ser. Todas as relações, vivências e percepções do mundo que nos rodeia atribuem significado, influenciando significativamente na formação da personalidade. E esta se coloca na seleção e atuação dos papéis sociais, conforme afinidade e preferências únicas a cada ser social. Sendo os papéis sociais criativos, estão implicados a vivenciar fenômenos transicionais, e dessa forma criam uma flexibilidade de atuação. Tanto a história individual, como os afetos, os valores e a posição que o sujeito ocupa colaboram para a constante formação e desenvolvimento das subjetividades do universo psíquico, assim como refletem a relativização dos papéis sociais (LEONTIEV, 1998). 4.2 Constituição do ser social Em um processo lento e atravessado por múltiplos fatores, o sujeito se constitui progressivamente e de maneira não linear, desde sua formação biológica até seu posicionamento enquanto ser social. Influenciado por sua hereditariedade histórica, compreende formas diversas de ser, pensar, se comunicar e agir. Desde a necessidade de manutenção da sua existência, em meio a luta para se manter vivo e protegido, assim como a sua família, o sujeito se adapta ao meio em que vive e ainda promove transformações propagando adaptações. É em meio a esse movimento que os sujeitos adquirem um “corpo social”, implicado no desenvolvimento de capacidades especificas para a sobrevivência social (MORIN, 1999). Até mesmo o desenvolvimento de aptidões motoras, a complexidade da linguagem, a afinação dos sentidos como visão, audição, olfato, gustação, tato e 36 principalmente a propriocepção, que é a capacidade de perceber, interpretar e reagir a acontecimentos de acordo com as sensações percebidas em seu corpo orgânico, são processos desenvolvidos a partir do viver social. É possível afirmar que nossas habilidades são melhores, ou menos estruturadas, de acordo com nossa participação e implicação como seres sociais. Da mesma forma, pensamentos, sentimentos, emoções e desejos são compostos diante das relações sociais. Apropriando-se da realidade, por meio das relações com os demais seres sociais, os sujeitos se apropriam da oportunidade do encontro para afinar seu modo de ser e acabam, muitas vezes, constituindo novos modos. Podemos dizer que o desenvolvimento orgânico, moral e emocional são instrumentos, ferramentas para a constituição e articulação do ser social. Cada sujeito escolhe a forma como manuseará cada instrumento e quais passará adiante, dando continuidade, dessa maneira, ao fluxo constante de construção de si e de outros seres sociais. Assim se dá a constituição do ser por meio do social, em um movimento constante de apropriação, trocas e afinações. Algumas conexões promovem mudanças mais profundas e podem tocar com profundidade a constituição do ser, como grandes tragédias e perdas, que podem ser distantes, próximas, coletivas, individuais, reais, eminentes, por exemplo, em questões relacionadas à segurança, com o aumento da criminalidade, devido a furtos, assaltos, latrocínios e assassinatos, ou só existentes no imaginário de cada sujeito. Outras mudanças podem acontecer sutilmente, sem que exista uma reflexão sobre algum ocorrido, mudança de hábitos ou preferências, como ocorre, por exemplo, com a diminuição da necessidade de sono ao longo dos anos. 37 5 FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO À LUZ DA PSICOLOGIA SOCIAL Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/ A construção dos sujeitos como algo a ser buscado por todos, o encontro de uma melhor versão de si mesmo, especialmente na atualidade. Porém, construir-se a si mesmo é mais complexo do que meramente buscar metas e sentidos de vida, como se fosse algo completamente desprovido de conexão com tudo aquilo que cerca e forma as pessoas a cada minuto. Tornar-se alguém só acontece nas relações entre o sujeito e sua cultura, e isso implica que, para ser alguém, será necessário estar em relações de poder. Assim, subjetivar-se, ou tornar-se sujeito, não é tarefa isolada, que se dá apenas na própria intimidade, mas, sim,um jogo de forças entre aquilo que é imposto e aquilo que (não) é aceito. A psicologia social se ocupa de conceitos que visam analisar as relações entre os indivíduos e a forma como adquirem uma consciência sobre si mesmos, a sua subjetivação. Contudo, por vivermos em sociedade devemos pensar que a construção de si mesmo só pode acontecer no contato do indivíduo com outros e com as estruturas que formam a sociedade. Tais estruturas são todas formadas com base em relações de poder, entre aqueles que o detêm e aqueles que obedecem, mesmo sem saber que o fazem. Por isso torna-se importante estudar os conceitos de poder e subjetivação nas diferentes visões de filósofos e sociólogos que primeiro questionaram tais relações e compreender qual a importância desses conceitos para a área de psicologia social. 38 5.1 As relações de poder e a subjetivação O conceito de poder foi definido e redefinido ao longo dos séculos englobando diferentes dimensões a partir da visão de cada movimento social e filosófico que fez tal revisão. Assim, definir poder foi uma tarefa sobre a qual filósofos e sociólogos se debruçaram desde a Antiguidade Clássica, sempre reestruturando o termo de acordo com o contexto histórico de cada período. Por volta do século IV a. C., Platão estudou a política e definiu que ela deveria ser exercida por reis e rainhas dotados de razão e mais capazes que o restante da população para governar de forma vertical, tomando decisões de cima para baixo. Já na Modernidade, Nicolau Maquiavel lançou uma obra revolucionária para o século XVI, defendendo a violência e a coerção como formas de exercer o poder e impor a vontade dos governantes sobre um povo indisciplinado. Mudamos então da razão e da moral à força (MACKENZIE, 2011). Após o lançamento da obra O Príncipe, de Maquiavel, houve modificações profundas na Europa, com revoluções e surgimento de um novo sistema econômico, o capitalismo. Tais alterações também fizeram mudar a ideia que pensadores tinham sobre poder e autoridade. Dentre os autores que questionaram as bases estabelecidas sobre a autoridade política está o filósofo Thomas Hobbes, com sua obra Leviatã, publicada em 1651. Nessa obra, Hobbes defende a ideia de que os seres humanos não possuem livre arbítrio, uma vez que seríamos todos movidos pelas nossas paixões e estas guiariam nossa capacidade de raciocinar e prever o desenrolar dos acontecimentos. Logo, a única liberdade que teríamos seria aquela definida por nossos desejos, mas que termina tão logo é barrada por impedimentos externos ao sujeito. O poder seria então conseguir o objeto de desejo a qualquer custo, mas isso acarretaria caos social. De acordo com Mackenzie (2011), para Hobbes os sujeitos concedem ao Estado seu próprio poder de escolha e de tomada de decisões por meio de um contrato social que garante certa paz e a preservação da vida na luta individual pela satisfação de seus desejos. O Estado é aquele que governa acordos sociais que garantem harmonia e a estrutura social e, em troca, os sujeitos alienam-se de seu poder político. 39 Avançando no tempo e na concepção de poder, já no século XIX o filósofo e sociólogo Karl Marx discutiu as relações de poder no âmbito do sistema capitalista. Para ele, o poder se coloca como uma relação de dominação a partir da economia e do controle dos meios de produção. O capitalismo aprofundou a distinção entre as classes sociais, gerando disputas pela propriedade da produção, especialmente pela classe trabalhadora, que entrega sua força de trabalho em troca de um retorno muito baixo. É nessa luta pelo direito aos frutos do trabalho que se estabelecem as relações de poder (MACKENZIE, 2011). Na virada do século XIX para o século XX, Max Weber, jurista e economista alemão, munido de uma visão influenciada por Maquiavel, estabeleceu uma ideia de poder que foi empregada largamente do longo do século XX. Para ele, os líderes devem tomar decisões que protejam a cultura e os valores da nação. Assim, “o poder é a capacidade de impor sua vontade a outros, mesmo se eles resistem” (WHIMSTER, 2009, p. 302). O poder então passa a ser equivalente à dominação. Em seguida, o século XX viu florescer muitas vertentes sociológicas e filosóficas, incluindo o construtivismo estruturalista na sociologia e a análise histórico-crítica na filosofia. Os representantes desse movimento são respectivamente Pierre Bourdieu e Michel Foucault. Para Foucault, a compreensão de um poder vertical que se emprega para subjugar as pessoas e mantê-las dentro da classe à qual pertencem não faz mais tanto sentido como antes. Para o filósofo, o poder está agora descentralizado e se instala em todas as relações: “ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma o saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (FOUCAULT, 2000, p. 8). O poder não é mais algo que é adquirido com um cargo, e sim uma forma de exercer dominância. As relações de poder são administradas por diferentes atores e de diferentes formas. Se antes havia um monarca que ditava as regras, agora a sociedade criou instituições que se retroalimentam na execução do poder, incluindo a polícia, a igreja, a escola e as administrações locais. Além disso, Foucault chama a atenção para um poder que passa a ser exercido de forma disciplinar, por meio dos saberes que definem o que é “normal" para os sujeitos. Dessa norma que controla a 40 todos, nascem diversas ciências, entre elas a psicologia (HENNIGEN; GUARESCHI, 2006). Por sua vez, Bourdieu discorre acerca do poder simbólico, que tem a capacidade de fabricação da realidade por meio da instituição de valores e crenças que formam os sujeitos. Para o sociólogo, cada um traz em si uma herança social, isto é, capitais culturais e sociais pertencentes à classe social dominante, que perpetua seus valores e suas crenças por meio de agentes que divulgam os símbolos dessa cultura dominante. Tais agentes são figuras públicas, celebridades, intelectuais, entre outros (BRAGHIN, 2017). O pensador entende ainda que cada sujeito internaliza normas de comportamento a partir de tais crenças e valores, constituindo um habitus. Ademais, transitamos por diferentes campos — político, econômico, profissional, religioso, acadêmico etc. — e cada um deles vai delimitar suas regras, exercendo um poder sobre os sujeitos, os quais se enquadram dentro de uma hierarquia de forma a acolher as normas dominantes como se fossem suas próprias (ÁLVARO; GARRIDO, 2006). Portanto, como você pode ver por esse brevíssimo resumo, o poder é uma força que se estabelece nas relações, sejam elas entre cidadãos e um governo ou entre sujeitos e instituições que tentam manter uma hierarquia dominante por meio de símbolos de autoridade, sem necessariamente usar a força bruta para fazer valer seus desígnios. O sujeito, ser de relações, o qual modifica e é modificado por suas experiências, tem a capacidade de se moldar a partir dos contatos com o tecido social, construindo incessantemente então a subjetividade, isto é, as características que delimitam o sujeito. Ao processo de construir-se sujeito denominamos subjetivação. E a subjetivação acontece diariamente nas lutas estabelecidas nas relações de poder (MANSANO, 2009) De acordo com Jacó-Vilela, Ferreira e Portugal (2006), a subjetividade é uma capacidade de reflexão a respeito de uma experiência de “eu”, de ser alguém em contato com outros “eus”. Contudo, essa busca por fazer-se sujeito, por definir identidades a cada encontro e dar sentido à própria existência é recente. Até pelo menos o Renascimento não havia busca por sentidos individuais e dúvidas a respeito do significado das ações e das relações entre as pessoas. 41 Na Antiguidade, havia
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