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1 ÉTICA MÉDICA , LITERATURA E MONTEIRO LOBATO 1 MARISA LAJOLO 2 Emília, a heroína-mor da obra lobatiana , deve esta sua condição a um gesto médico e a um produto farmacêutico: o Dr. Caramujo e suas pílulas falantes . A partir da ingestão de uma delas, a boneca de pano tornou-se a irreverente criatura que fascina a todos. O episódio traz à tona a relação da Medicina com a literatura . Para muitos escritores brasileiros, a aventura nas letras é simultânea ao exercício da Medicina . Da safra mais recente Guimarães Rosa , Pedro Nava e Moacyr Scliar são os mais conhecidos, e dos mais antigos Joaquim Manuel de Macedo talvez seja o nome de maior peso, que inaugura o romance de grande público com A moreninha ( 1844) . Os estudantes de medicina retratados na história são levianos: um se vinga da velhota que o monopolizava numa festa diagnosticando-lhe hemorróidas e juntos organizam uma paródia de conferência médica , na qual o jargão profissional é instrumento pelo qual os futuros médicos se divertem às custas da platéia leiga. Minimizando os arranhões à ética , o narrador pisca um olho para o leitor : está satirizando o comportamento indesejável ... Mas ainda assim a leitura de A moreninha levanta a questão: a atitude dos estudantes foi adequada ? A situação não lembra a atitude de um médico que hoje indagasse sobre perda de líquido aminiótico a uma paciente distante do jargão médico ? Do aborto à eutanásia , do respeito a formas alternativa de medicina à ( necessária ?) intromissão em crenças alheias para salvar vidas ou minorar sofrimentos, questões de ética médica, hoje, derramam-se pela mídia , no horizonte da vida e da morte, em nome das quais se exerce a medicina. Assim como ninguém nasce sabendo medir pressão, fazer sutura, ou ler radiografias, também ninguém nasce com senso ético. Ética se aprende . 1 O presente textoconstituiu palestra feita na Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP em 3 de dezembro de 1998 . Foi, posteriormente publicado em Ser médico ( Revista do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) .2000 2 Marisa Lajolo é professora titular do Departamenbto de Teoria Literária da Unicamp. É autora, entre outros títulos , de A formação da leitura no Brasil ( Ed. Ática) e Monteiro Lobato, um brasileiro sob medida ( Ed. Moderna) 2 Ao chegar a um curso de Medicina, depois de mais ou menos onze anos de escola e dezoito de vida, o estudante de Medicina com certeza já tem noções de ética. Talvez até de ética Médica. Mas isso não basta . Por isso, um profundo e límpido senso ético tem de estar incluído no canudo que, ao fim de alguns anos, transforma jovens em profissionais da saúde, com direito a doutor antes do nome e bloco de prescrição. Entre as experiências que formam e educam o senso ético destacam-se as literárias . A literatura tanto registra a vocação ética do ser humano quanto testemunha as dificuldades e embaraços da realização desta vocação. A leitura literária faz o leitor vivenciar , na comodidade da sua poltrona , situações nas quais a Ética está na berlinda de forma que o leitor sai da leitura mais preparado para as decisões que o aguardam - agora com conseqüências - na vida real. Monteiro Lobato, que em vários momentos sua obra tratou de assuntos relativos à saúde pública pode contribuir para a discussão . O rapto ( Cidades mortas 1818) , conto ambientado numa pequena cidade do interior paulista, narra a história da família de Bento Cego que o rapta para impedir que , submetendo-se a uma cirurgia , ele recupere a visão: operado, Bento Cego deixaria de receber as esmolas com as quais sustenta a família . Fazendo a ponte entre o mundo do médico oculista e o mundo de Bento Cego , Lobato põe em cena Geremário , ajudante do médico- que explica e traduz a cultura interiorana dos pacientes para a cultura cosmopolita do jovem médico. Surpreso pela demora de Bento Cego chegar para a cirurgia já marcada , o médico pergunta ao ajudante : - Geremário, já aprontou o quarto do cego ? - Não, senhor , - Por quê ? Não ordenei isso ontem ? Geremário sorriu maliciosamente. - O homem não vem, seo doutor. Vai ver que não vem. Pois se a sorte dele é ser cego ... ( 239) Antecipando o desenlace, isto é, prevendo que Bento Cego não viria para a operação Geremário ensina a seu patrão ( e por tabela aos leitores de Lobato ) que, em matéria de doença e de saúde, doutores sabem muito mas não sabem tudo. Em carta ao amigo Godofredo Rangel, Monteiro Lobato registra que o conto foi inspirado na vida real : ( ...) na estação de Pinda vi um aleijado num carrinho , enérgico, a ralhar com os filhos que o puxam. Senti uma coisa: aquele homem, apesar de aleijado, era o importante e rico da família, o que ganhava a subsistência de todos com as esmolas recebidas. Daí o seu tom mandão , apesar de viver sem pernas dentro do carrinho. Um conto formou-se em minha cabeça, e de volta despejei-o no papel, como quem despeja a bexiga. Na passagem da cena vista na estação para a história contada na folha de papel, a beleza delicada da travessia da vida para a arte: o paralítico se transforma em cego e a história é protagonizada por um médico ambulante, cuja especialidade era curar cataratas. 3 O leitor fica de camarote para julgar, de fora, o gesto da família : um paciente tem direito de recusar tratamento ? devia o médico denunciar o rapto e forçar a cirurgia ? se o rapto não contou com a conivência de Bento a questão cresce em complexidade , agravada por ter sido a catarata causada por uma surra dos filhos . A história é muito atual : durante a recente guerra do Vietnã , por exemplo, muitos jovens norte-americanos, suas famílias e seus médicos , para evitar o recrutamento militar , não medicavam fraturas cujas conseqüências eram, aos seus olhos , muito mais leves do que os riscos de um campo de batalha. Ao facultar ao leitor envolver-se ( na segurança do mundo do faz-de-conta) em situações limite de certo/errado , na impressão forte do verossímil sem o ônus do verdadeiro, a literatura permite que se realize o sonho antigo de ser-outro, continuando a ser o-mesmo. Ser outro, no caso da leitura de contos e romances significa, por exemplo, escolher o lugar a partir do qual se vai vivenciar a experiência do que se lê . No caso deste conto pode-se escolher vestir a pele do jovem médico itinerante. Ou a do homem com catarata. Ou a de Geremário. Ou ainda a de algum de seus familiares. É nesta mudança de identidade, temporária e reversível, que se aprende a pensar de outros ângulos o longo e delicado eixo que vai do certo ao errado, categorias que, ao longo da história, dão diferentes expressões à antítese Bem/Mal. A fulminante reação do médico à opinião de Geremário ( Revoltou-me aquele cinismo de opinião e ordenei-lhe com rispidez que cumprisse minhas ordens sem mais filosofias [ 239] ) lembra a soberba com que os estudantes de A moreninha afirmam-se face aos basbaques que testemunham a paródia da conferência médica . E nem mesmo o simpático Dr.Caramujo, dos livros infantis de Lobato é isento de petulância: chamado para reconstituir a perna de Emília, da qual Narizinho tirara uma boa porção do recheio de macela, quer impressionar a menina : ( ...) arrumou os óculos para examinar a perna de Emília. - É grave ! exclamou . A Senhora Condessa está sofrendo de uma anemia macelar no pernil barrigóide esquerdo. Caso muito sério. - E que receita, doutor ? Pílula de sapo outra vez ? - indagou a menina - Esta doença -explicou o grande médico - só pode sarar com um regime de superalimentação local. -Alimentação macelar, eu sei,eu sei - disse a menina rindo-se da ciência do doutor. Tia Nastácia sabe aplicar esse remédio muito bem. Em dois minutos, com um bocado de macela e uma agulha com linha ela cura Emília para o resto da vida. ( 63) Ainda que atenuada pelo humor , a petulância do Dr. Caramujo prossegue, desqualificando Tia Nastácia para a terapia necessária à reconstituição da perna da boneca: - Tia Nastácia ! - exclamou o médico escandalizado. Com certeza é alguma curandeira vulgar ! Macela ! alguma mezinha vulgar também ! Oh, santa ignorância ! Admira-me ver uma princesa tão ilustre desprezar assim a ciência de um verdadeiro discípulo de Hipócrates e entregar a Condessa aos cuidados de uma reles curandeira ! ... ( 63) 4 Ao destempero, preconceito e desrespeito - semelhantes à atitude do oculista que nega a Geremário o direito a filosofia - Narizinho responde sem papas na língua: - Reles curandeira ? exclamou a menina indignada. Chama então Nastácia de reles curandeira ? Se tem algum amor à casca retire-se, Senhor Cascudo, antes que eu faça o que fiz para a tal Dona Carochinha. Reles curandeira ! Já viu, Emília, um desaforo maior ? ( 63) Fica, assim, para Narizinho ( presença feminina luminosa nesta discussão de tão poucas mulheres ) a defesa da preta velha . Como ficou para Geremário a lição que ensinou a seu patrão médico que os polos da doença e da saúde não se inscrevem apenas na assepsia de lâminas de laboratório, nem na generalidade dos compêndios médicos. Ficou a lição de que no exercício diário da Medicina, doença e saúde são modos de ser de homens e mulheres que, além de um corpo, têm sonhos, medos e interesses que não poucas vezes dirigem o modo como gerenciam seu corpo, sua saúde e suas enfermidades . Exercendo-se a Medicina no bojo da vida social - e no caso brasileiro, de uma vida social cruzada por tantos e tão diferentes valores e crenças - fica como lição maior de Monteiro Lobato que os oculistas serão melhores oculistas quanto mais ouvirem Geremários, o que equivale a dizer que os médicos serão melhores médicos quanto mais lerem boa literatura.
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