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POSMODERNISMO E ALIENAÇÃO 1 Ronaldo Rosas Reis2 APRESENTAÇÃO A presente comunicação compõe parte de um trabalho coletivo desenvolvido no âmbito da pesquisa “Rumo à Nova América. Trabalho e educação superior no subúrbio do Rio de Janeiro”, na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Ela está organizada em torno de três eixos tendo como interseção a ideologia como categoria central da dimensão ético-estética da atualidade. No primeiro eixo, preocupo-me em expor a motivação de base a partir da qual penso valer a pena retomar a necessidade de dar combate aos posmodernistas cujos impulsos antiintelectual e anticlassista, respectivamente, têm insistido, nos últimos trinta anos, em decretar o “fim” da história e a fazer a apologia do “nada”. Nesse sentido, o texto analisa a contradição em termos que é a civilização burguesa, concluindo que, em conjunto, as ideologias que expressam com mais força a decadência posmoderna o fazem numa perspectiva mítica de retorno ao sagrado. O segundo eixo aborda a decadência e a barbárie atual à luz da hiper-realidade provocada pelos excessos posmodernos. A idéia é dimensionar a ética e a estética nas manifestações ideológicas que presidem a práxis da juventude contemporânea. Por fim, a guisa de conclusão, o texto consolida no último eixo a idéia de que longe de representar o “alívio criativo” do indivíduo em face dos impasses impostos pela necessidade de apreensão da totalidade – como defendem a legião de críticos do pensamento marxiano –, o posmodernismo tem se caracterizado como o próprio antirreino da liberdade. 1. NADIFICAÇÃO POSMODERNISTA Para quem cresceu e se formou nos anos de 1990 e 2000 pode parecer desprovido de sentido ou até escandaloso pela perda de tempo o esforço de alguns pesquisadores – dentre os quais eu me incluo – em insistir na historicização do posmodernismo. Afinal, por que motivo e com que finalidade se deve pesquisar sobre 1 Procurei observar no presente texto as novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. 2 Doutor em Comunicação e Cultura (UFRJ) com Pós-Doutorado em Educação (UFMG). Professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq e da Faperj. 2 algo que é – como muito se tem dito – a definição de antihistória, um fim em si mesmo, um nada3? Uma primeira resposta a esta questão diz respeito à necessidade de mantermos uma linha de combate ao impulso antiintelectual que há pelo menos três décadas vem se manifestando num ambiente cultural cada vez mais dominado pelo conformismo de tendências culturais que celebram a apoteose da “inatualidade aberta” 4. Nessa linha, críticos de arte como o italiano Bonito Oliva, o holandês Rudi Fuchs e o francês Jacques Louis-Binet, além de inúmeros jornalistas de cadernos culturais mundo afora, há tempos têm se dedicado com relativo sucesso entre artistas e setores do público a defender aquele impulso como uma possibilidade de ampliação do imaginário criador. Para eles, a imaginação criadora deve voltar-se para a atualidade, ignorando as formalidades e etiquetas da razão. Na base disso está, conforme nota Fredric Jameson, uma visão populista ou demagógica segundo a qual a cultura do alto modernismo, centrada na razão, teria gerado um valor social estigmatizado por sua associação com a elite universitária, sendo um “passatempo típico do status de um reduzido grupo de intelectuais” 5. Ora, se não restam dúvidas desta associação, sendo também certa a existência de uma enorme rejeição da arte moderna pelo público de massa, creio que muito disso se deve a atitude filistina de amplos setores da burguesia e dos segmentos pequeno- burgueses desinteressados de promoverem uma efetiva democratização do acesso a educação em geral e em especial ao conjunto de ações que compreendem a educação estética. Para esses indivíduos, certamente, não se trata de desinteresse, mas, sim, da irredutível crença que alimentam na associação entre o livre arbítrio e o mercado. Para eles, enquanto que o livre arbítrio oferece a qualquer um que queira a oportunidade de exercitar a sua vontade de aprender, de conhecer, por outro lado entendem que o mercado de bens culturais cumpre com eficiência o papel de nivelar o conhecimento entre as diferentes classes sociais. Um dos exemplos mais difundidos pelos formadores de opinião desse segmento, é que o acesso cada vez mais amplo aos canais de televisão por assinatura com a sua diversidade de filmes, seriados, programas culturais e educativos, noticiários, jogos interativos, bem como a massificação da oferta de 3 Para Roberto Pontual o posmodernismo expressa positivamente “uma série de nadas: nada de frieza, nada de olimpismo, nada de altas teorias [...] nada de exclusões ou de proibições” . Cf. PONTUAL (1984, p.50 e 54). 4 Cf. OLIVA, A.B, apud PONTUAL, R. (1984, p.38). 5 JAMESON, F. (1996, p. 9). 3 produtos de massa de qualidade tecnológica cada vez mais avançados, como, por exemplo, DVDs, jogos, Ipods, celulares etc., preencheriam com folga as funções da escola e das instituições culturais convencionais, como os museus, as pinacotecas, os teatros. Analisando essa questão na perspectiva da juventude – categoria hoje central tanto no debate sobre a educação como no debate sobre o mercado –, Beatriz Sarlo diz que “o mercado ganha relevo e corteja a juventude, depois de instituí-la como protagonista da maioria dos seus mitos”, sendo que em contrapartida “[...] os jovens encontram no mercado de mercadorias e bens simbólicos um depósito de objetos e discursos fast preparados especialmente”. E conclui: “o mercado promete uma forma de ideal de liberdade e, na sua contraface, uma garantia de exclusão” 6. Como nota Jameson, se é verdade que o capitalismo na sua atual fase aburguesou o trabalhador travestindo-o num consumidor conspícuo, não menos verdadeiro é a incapacidade estrutural do Sistema Capital em realizar os ideais de igualdade social7. Portanto, não estou convencido de que o tal impulso populista antiintelectual tenha efetivamente promovido algum tipo de ideal de igualdade social. Muito pelo contrário, são cada vez mais evidentes os efeitos nocivos do culto a hipocrisia como norma e do cinismo como estilo observados numa cultura programada para a obsolescência e a reciclagem de seus produtos: em síntese mais simulacros, mais reificação, mais miséria, mais barbárie, mais elitismo. Já uma segunda resposta à questão do por que historicizar o posmoderno tem a ver com o esforço de resistência às investidas anticlassistas que têm caracterizado a teoria e a arte posmoderna de qualquer tipo. Referenciados nos pós-estruturalistas franceses – Derrida e Foucault, especialmente –, uma impressionante quantidade de intelectuais, sobretudo educadores, há um quarto de século têm procurado desconstruir o conceito de classe denunciando e combatendo aquilo que denominam de “discursos ideológicos totalizantes”, em especial aqueles oriundos da fenomenologia hegeliana e os da economia política marxiana. Para os posmodernistas tais discursos teriam sido responsáveis pelo surgimento no século XX de distopias totalitárias e excludentes, como o nazismo e o stalinismo, e nesse sentido seria necessário, portanto, pensar as relações entre as pessoas a partir de uma teia ou rede por onde circulam as práticas sociais como o poder, a violência, a corrupção, a segregação etc. Desse ponto de vista, 6 SARLO, op. cit. (pp.40-41). 7 Cf. JAMESON, F. (1996). 4 denominado por Foucault como “microfísica”, isto é, o poder é uma produção subjetiva – como as demais mencionadas – que “transita pelo corpo dos indivíduos e os forma” sem que isso signifique que ele exista a partir deum centro “e pretender caracterizá-lo no movimento de sua irradiação” 8. Na mesma linha, Boaventura de Souza Santos, um dos intelectuais anticlassista com mais penetração entre educadores posmodernistas, fala da necessidade da emergência de um pensamento múltiplo e fluído, advogando o conhecimento criado no cotidiano como insubstituível no que se refere, sobretudo, aos conhecimentos da prática. Todos, nesse sentido, procuram convencer-nos de que todo o questionamento acerca da ideologia do poder deve vincular-se à questão cultural e aos temas a ela imediatamente subordinados, como, por exemplo, gênero, sexualidade e etnia, dentre outros. Nesse ponto cabe um breve comentário sobre o combate inaugural do filósofo alemão Jürgen Habermas, ainda nos anos 70, ao avanço da desconstrução posmodernista conforme os termos brevemente expostos acima. Para Habermas, as idéias posmodernistas que relacionam poder e cultura são falsas e no limite conservadoras porque, segundo ele, não apenas escondem a sua origem modernista, isto é, as tendências anárquicas do início do século XX – como o dadaísmo e o surrealismo, por exemplo – como conservam dessas tendências algo que já se mostrara de todo modo inviável num mundo regido pela comunicação: isto é, a ausência de compromissos políticos com a Razão. Se num primeiro momento os temas e a perspectiva crítica levantados por Habermas mostraram certa eficácia no confronto com os teóricos franceses posmodernos, não posso deixar de pensar que no médio e longo prazo o pensamento habermasiano mais serviu como uma espécie de contra-referente no ambiente cultural, alimentando teóricos modernistas tardios cujo reformismo evoca nostalgicamente o idealismo simétrico, ético-subjetivista, de resto paralisante. Quero acreditar que o conjunto dessas duas respostas indicou que ambos os impulsos – o antiintelectualismo e o anticlassismo –, entrelaçados, configuram a base da dimensão ético-estética da realidade posmoderna. Uma realidade que muitos intelectuais, artistas, jornalistas, formadores de opinião, subservientes e aliados do mainstream, reconhecem apenas se legitimada pelo mercado, este último muitas vezes camuflado por ONGs e outras agências de “aparatos sociais”. Assim, do ponto de vista dos valores éticos, morais e estéticos que a burguesia constituiu duramente ao longo dos 8 Cf. KONDER, L. (2002, p. 172). 5 séculos XVII, XVIII, XIX e boa parte do século XX, o posmodernismo atual representa um contra senso à lógica cultural que presidiu a origem da própria classe burguesa. Sua idéia de “fim” – fim da história, fim das classes etc. e de “nada” – pouco têm de semelhante com o esforço filosófico burguês que percorre, do iluminismo aos dias atuais, uma trajetória repleta de ilustres pensadores. A diferença entre estes últimos e aqueles outros se situa no âmbito do que podemos apreender como a ascensão e o declínio do humanismo como parâmetro ético e moral do conhecimento burguês 9. Isto é, para o filósofo humanista tradicional o conhecimento deve representar, em síntese, os limites entre o racional e o irracional, se oferecendo ao homem para que este possa nortear os seus passos e organizar o seu mundo. Já para os pensadores posmodernistas o conhecimento é uma espécie de pensamento mágico mediante o qual evocam o retorno mítico ao sagrado em oposição ao “terror da história”, diante do qual a civilização desumanizada se sente impotente. 2. MAIS DO MESMO, O MESMO E A HIPER-REALIDADE Decerto que as questões de fundo analisadas no presente trabalho terão pouca ou nenhuma relevância epistemológica e metodológica para o debate nessa área se não retomarmos o questionamento sobre a dupla natureza do posmoderno, coisa que confere ao nosso presente, sem dúvida alguma, uma característica esquizóide jamais antes experimentada. De fato, sendo uma das naturezas do posmoderno o próprio moderno e a outra a sua recusa, resulta daí a esquizofrenia de não se saber ou de se saber desconhecendo-se. Ora, não fosse esse motivo por si mesmo bastante convincente para voltarmos a um problema exaustivamente estudado pelo viés de uma “ontologia do presente” 10, preocupa-me ainda mais o agravamento dos sintomas que denunciam o paroxismo do posmoderno: a decadência e a barbárie. Sobre a decadência Jameson já assinalara há tempos sua característica escatológica na medida em que ela “constrange pela ausência, como um cheiro que ninguém menciona, um pensamento que todos os convidados se esforçam para não pensar” 11. Todavia, é certo que nos últimos dois séculos uma quantidade prodigiosa de artistas chamados ou auto denominados “decadentes”, tão niilistas e cínicos quanto geniais, surgiu no cenário cultural de vários países. A percepção de que os “cheiros” das suas obras não apenas são mencionados como os pensamentos emanados por elas 9 Cf. DELACAMPGNE, C. (1997) 10 Cf. JAMESON, F. (2006). 11 JAMESON, F. (1996, p. 375). 6 constituem um vasto e rico acervo a ser explorado por admiradores leigos e especialistas de diferentes áreas do conhecimento, exige que voltemos sumariamente às considerações finais da primeira parte deste capítulo. Dizia então que sob o capitalismo tardio a cultura efetivou-se como Mercadoria, intensificando o processo de “coisificação” das relações sociais entre produtores, aprofundando a Alienação e a ampliando a Reificação, sendo ela a forma mais radical e generalizada de vida social na atualidade. Ora, num mundo com tal característica que motivo haveria para a “decadência” ficar de fora do Sistema Capital? Não havendo motivo algum, a rejeição ao “cheiro” dura somente o tempo necessário para que o Sistema Capital o absorva. Nesse sentido, desde que o produto “decadente” seja submetido positivamente a uma avaliação mercadológica, havendo nichos de mercado, como os punks dos jovens operários ingleses e do ABC paulista, os raps norte-americanos e os funkeiros das favelas cariocas etc. tudo é passível de coisificação. O cinismo não tem limite. Portanto, o que ali se chama de “decadência” é na verdade mais uma das inúmeras transfigurações ou máscaras estilísticas que presidem a dimensão ético- estética do posmodernismo. E nesse ponto é indispensável chamar a atenção para o sentido dessa farsa histórica e apreendermos o momento certo em que o Sistema Capital recusa a arte “decadente”. No atualíssimo clássico A necessidade da arte, publicado pela primeira vez em 1959, o poeta e ensaísta marxista Ernst Fischer, analisando a questão do niilismo, dizia que a questão central da decadência da arte sob o modo de produção capitalista encontrava ecos “revolucionários” e canalizava as revoltas para um desespero absurdo e passivo somente a classe dominante se sentia “incomumente segura” 12. Há cinqüenta anos Fischer então evidenciava algo que os impulsos antiintelectualistas e anticlassistas dos posmodernistas cinicamente negligenciam. Isto é, o fato de que a liberdade é o valor a ser preservado, e o custo disso não pode ser medido por nenhum valor de troca. Sabe-se, no entanto, que tenha o nome de “decadência” ou qualquer outro, o sintoma do qual estamos falando é a má-fé, ou a alienação extrema. Podemos, então, a partir daqui, abordar a problemática da barbárie à luz do nosso objeto de estudo. Ora, há tempos que o discurso posmodernista – seja ele positivista ou negativista – difunde em todas as esferas da vida social, campos de atividades e áreas do conhecimento o ideal da Criatividade artística e científica como instrumento primordial 12 Op. Cit. (1983, p.103). 7 para solucionar os conflitos civilizatórios. Vale dizer que nesse sentido a Criatividade surge aqui como algo associado a um projeto de tipo positivista para justificara reencarnação do homo faber – na educação laica, por exemplo, parece ser esta uma coqueluche – mas também associada a qualquer fé religiosa como o catolicismo, o cristianismo evangélico, o islamismo, o criacionismo etc. A Criatividade é por definição o sintagma posmoderno a reunir em si tudo aquilo que na atualidade é vagamente chamado de “subjetividade”, “livre arbítrio” etc. Do ponto de vista filosófico sua função primordial é ludibriar a liberdade, apaziguar a angústia da verdade da humanidade frente a barbárie capitalista. Trata-se da má-fé em estado bruto, uma espécie de Deus ex- machina criado para salvar pela via do relativismo e do cinismo os indivíduos – principalmente os mais jovens – atormentados pela visão da barbárie. Não por acaso voltamos aqui a falar da juventude para seguir adiante na abordagem da problemática da decadência e da barbárie capitalista. O motivo me parece óbvio, pois é para a juventude que a redenção pelo Deus ex-machina posmoderno se volta prioritariamente. Qualquer que seja a cadeia produtiva de uma mercadoria, o fato é que numa das pontas, juntamente com os publicitários, estão reunidos especialistas em decifrar o imaginário da juventude, como psicólogos, antropólogos etc. O esforço dessa turma é “capturar o mito da novidade permanente”, diz Beatriz Sarlo13, para impulsionar a juventude, sendo esse o ponto em que as contradições entre o particular e o universal se manifestam, exigindo daquele Deus ex-machina operações complexas. Tomemos um exemplo comum de um final de semana em qualquer grande cidade brasileira ou da América Latina. Durante a semana, grandes, médios e pequenos aparatos publicitários são mobilizados numa disputa comercial que visa cooptar os jovens de todas as classes sociais para as discotecas, shows e baladas da juventude. Aparentemente, diz Sarlo, o enunciado do discurso publicitário visa à universalidade ou à igualdade, o que é reforçado pelos cadernos culturais dos meios de comunicação – jornal, TV, rádio, blogs na internet. Entretanto, sabe-se que os embalos jovens não são eles próprios um fim em si mesmo, mas os canais mediante os quais ocorrerá a disjunção do universal e do particular, a partir do que as escolhas dos indivíduos seguirão os estereótipos de classe. Assim, os embalos ou raves da juventude abastada serão movidos ao som eletrônico de DJs internacionais, coquetéis sofisticados, ecstasy, cocaína e energéticos; já nos bairros 13 Op. Cit. (2006, p. 41). 8 industriais da periferia ou nas favelas urbanas as quadras de esporte são improvisadas para abrigarem centenas de jovens carecas de coturnos militares e piercings ou rapazes e moças de cabelos descoloridos que se agitarão a noite inteira ao som dos ritmos punk ou funk, sob os gritos dos chamados MCs (“Mestres de Cerimônias”). A essa juventude serão oferecidas misturas de bebidas baratas (gummy), cerveja, maconha e crack. Esses e outros tantos estereótipos que são vendidos massivamente como máscaras estilísticas pela indústria cultural, reforçam a reificação cultural experimentada pelos jovens nas suas vidas pessoais e no convívio social com outros jovens. A espessura da casca alienante que cobre parte significativa da juventude aprisiona-a numa espécie de antirreino da liberdade mascarando a barbárie em que vivem. Segundo Sarlo esse reforço da idéia de igualdade na liberdade constitui “a parte central das ideologias juvenis bem pensantes” que, de resto, “desprezam as desigualdades reais a fim de armar uma cultura estratificada” baseada numa suposta identidade musical14. Depois de o homem burguês moderno ter matado Deus, o homem burguês posmoderno matou sucessivamente a Arte, a Ciência e, finalmente, por falta de outra coisa, o próprio Homem. Abandonou-se à sua própria sorte em meio à decadência que ele próprio criou e, agora, o homem burguês posmoderno faz e refaz os seus cálculos à maneira de um prestidigitador para manter a sensação de satisfação que ora assume a forma de uma fantasmagoria moral ora a forma de uma fantasia narcísica. Em todo caso, sabe ele que a ilusão de solidez é evanescente. Cessados os estímulos que deram origem à busca de satisfação o indivíduo imerge de volta na dor das suas antigas renúncias, porém sem sabê-las assim. Isso porque a sua profunda alienação em relação a tudo aquilo que supõe ser uma civilização, resulta de uma conta de resultado impossível: quanto mais do mesmo ele acumula para si mais profunda é a sua ignorância de saber-se prisioneiro do mesmo. CONCLUSÃO Inúmeros são os exemplos que atestam o acúmulo de frustrações que um indivíduo posmoderno carrega. Na sua existência cotidiana, à medida que a administração da vida doméstica subordina-se cada vez mais à exigência de objetividade do Sistema Capital, valores pessoais, familiares e comunitários autênticos são abandonados nas tomadas de decisões. Em seu lugar o homem burguês posmoderno passa a gerenciar o amor, o sexo, o casamento e os filhos, o cachorro da família, a 14 Op. Cit. (2006, p. 41) 9 gorjeta do entregador de pizza etc. como numa empresa típica, não apenas na forma de funcionamento (envolvendo inúmeras decisões e sujeitos e seus recursos e limitações tecnológicas), mas, principalmente, nos seus investimentos (economias/capital ativo; bens duráveis/ equipamentos; membros da família/força de trabalho) 15. Na esfera das relações sociais mais amplas, envolvendo a sua profissão, a empresa, a administração pública e a política etc. o acúmulo de frustrações tende a ser ainda maior. Em parte porque elas são alimentadas, de um lado, pelo desejo hiperrealista da maioria dos indivíduos dos segmentos médios das classes subalternas de que as relações sociais ocorram sem mediações entre os integrantes da sociedade, e, de outro lado, por se considerarem individualmente habilitados para atuarem como árbitros da distribuição dos recursos nacionais16. Dada a impossibilidade real de encontrarem uma solução para este paradoxo suas frustrações aumentam com a mesma intensidade com que condenam moralmente a busca de soluções políticas para os problemas da coletividade. Apesar disso toda a solidez de que se jactam os ideólogos do Sistema tem se mostrado volúvel quando a examinamos pelo ângulo das relações sociais que a produzem material e subjetivamente. Isto é, neste espaço-tempo cada vez mais o trabalho está fora do alcance dos jovens, o contingente de indivíduos nas classes médias recuou e o contingente de pobres no mundo inteiro aumentou significativamente, a família e os valores comunitários parecem desmanchar-se no ar. Os indivíduos ricos continuam sendo muito poucos e acumulando cada vez mais propriedades detendo cada vez mais o controle sobre a força de trabalho e os meios técnicos de produzir a tecnologia mais avançada. Dizer que hoje é crescente o número de pessoas com acesso aos computadores e à Internet é dizer apenas meia verdade. A verdade inteira oculta o fato de que – num cálculo grosseiro – apenas uma em cada 10 milhões de pessoas tem acesso ilimitado ao conhecimento capaz de produzir ferramentas avançadas para os computadores. De resto, o indivíduo comum se utiliza de máquinas e programas ordinários, no mais das vezes, obsoletos. A constatação de que a dimensão ético-estética alcançou no posmodernismo uma amplitude até então desconhecida da civilização burguesa apenas reforça o que dissemos até aqui: ou seja, que essa civilização baseada num modo de produção excludente não apenas continuou injusta com os pobres como se tornou ainda mais condescendente com os ricos. 15 Cf. BECKER, G. apud JAMESON, F. (1996). 16 SARLO, B. (2006, pp. 84-85). 10 Ao longo de todo o trabalho evitei premeditadamente discutir o pontoque envolve a ideologia de um suposto marco divisório entre o modernismo e o posmodernismo. Farei isso brevemente a título de conclusão sintetizando o que escrevi não faz muitos anos. Dizia então a propósito dos detratores do posmodernismo – dentre eles alguns poucos colegas marxistas da universidade – que de nada valeria atacar aquela posição partindo de uma perspectiva indefensável como é o modernismo. Dizia ainda haver aí um traço paradoxal de um tipo de nostalgia (à Razão Moderna) ao fim do que a crítica ao posmodernismo acabava elidindo o fato do modernismo ser “a mais vazia de todas as categorias culturais” 17. Mais do que isso, simplesmente elidiam o fato de que sob a Razão Moderna as condições estruturais da sociedade não foram de modo algum diferentes das atuais, sob a hegemonia dos impulsos antiintelectualistas e anticlassistas posmodernos. Em suma, o que pretendi e ainda pretendo demonstrar com tudo isso é que, contrariamente do que dizem os defensores do modernismo e também os apologistas do posmodernismo, não havendo revolução a história continuará sendo a prisão da classe trabalhadora, não fazendo diferença, como agora, se os grilhões forem de vidro. BIBLIOGRAFIA DELACAMPGNE, Christian. História da filosofia no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. EAGLETON, Terry. Ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. HARVEY, David. A condição posmoderna. São Paulo: Loyolla, 1992. JAMESON, Fredric. Posmodernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. MARX, KARL, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PONTUAL, Roberto. Explode geração. Rio de Janeiro: Avenir, 1984. REIS, Ronaldo Rosas. Educação e estética. Ensaios sobre arte e formação humana no posmodernismo. São Paulo: Cortez, 2006. SARLO, Beatriz. Cenas da vida posmoderna. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. 17 ANDERSON, P. apud REIS (2006, p. 61).
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