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ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Sintetizar o processo evolutivo do ser humano e das sociedades. > Reconhecer a presença e a ausência da noção da transcendência no pensa- mento religioso e no pensamento científico. > Identificar as diversas fases da evolução: da colheita de frutas ao mundo moderno. Introdução A passos lentos, mas contínuos, o ser humano e as sociedades caminham em direção à dessacralização e à laicização, respectivamente. Os encontros e desen- contros desses polos opostos, primitivos e modernos, não significa, exatamente, uma ruptura, pois o processo ocorre pela assimilação do homo religiosus, que, por meio de experimentos, vai se reconstruindo e adaptando aos novos tempos, dessacralizados. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico Valter Borges dos Santos Como todo processo, ele não ocorre de forma abrupta, cartesiana: há vestígios antigos na modernidade que, na intersecção de mudanças, vão se preservando sob novas interpretações. Por isso, apesar do advento das novas tecnologias e da tentativa de substituir a divindade, o homem moderno ainda carrega aspectos do homo religiosus, que, latente, encontra dificuldades de se manifestar, pois há carência do impulso externo, das hierofanias, que é a ausência da percepção da divindade no cosmos, agora dessacralizado, opaco, vazio. Neste capítulo, falaremos do processo evolutivo do ser humano e das so- ciedades a partir do enfoque antropológico. Especificamente, explicaremos a presença e a ausência da noção de transcendência no pensamento religioso e no pensamento científico, bem como analisaremos as diversas fases da evolução: da colheita de frutas ao mundo moderno, em períodos étnicos. Da religião à ciência: caminhada evolutiva O pensamento evolucionista, que trata da evolução como explicação para a diversidade cultural, não está ancorado na célebre obra de Charles Darwin (1809–1882), A origem das espécies por meio da seleção natural, isto é, na evolução biológica. Essa ideia de Darwin, grandemente disseminada entre os europeus cultos, era, na verdade, pouco compreendida. A ideia de progresso evolutivo que pululava entre eles tinha como “[...] imagem mais comum uma ‘escada’ cujos degraus estão dispostos numa hierarquia linear” (CASTRO, 2005, p. 12). Esse pensamento linear progressivo era a ideia corrente, em meados de 1870, e, somado às descobertas arqueológicas na Inglaterra e na França, levou ao “[...] enorme alargamento do tempo histórico da espécie humana, para muito além dos cerca de cinco mil anos apontados pela tradição bíblica” (CASTRO, 2005, p. 12), e fez pensar que os seres humanos descendiam de uma espécie inferior, extinta há muito tempo. Evidentemente, Darwin influenciou teólogos, filósofos, políticos e antro- pólogos; porém, foi Herbert Spencer (1820–1903), filósofo inglês, que pro- vocou mais impacto entre os autores que estudavam o progresso humano, como Lewis Henry Morgan e Edward Burnett Tylor. Foi Spencer, de fato, quem popularizou o termo evolução, que Darwin somente usaria na 6ª edição de sua obra. Dessa forma, foi sob a influência de Spencer que uma única escala evolutiva ascendente, por meio de vários estágios, tornou-se a ideia central do evolucionismo na antropologia (ao contrário de Darwin, que não propu- nha qualquer direção em sua teoria, muito menos “progressos unilineares”) (CASTRO, 2005). A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico2 Longe de servir de base para ideias hierarquizadas, nas quais os antigos eram considerados inferiores, e os modernos, superiores, o evolucionismo não transforma a gigantesca diversidade cultural humana em uma lógica permeada pela sobrevivência dos mais fortes, mas na ideia de “[...] reduzir as diferenças culturais a estágios históricos de um mesmo caminho evolutivo” (CASTRO, 2005, p. 13). A ideia evolucionista, na antropologia, baseava-se no entendimento de que o desenvolvimento das sociedades humanas ocorreu em estágios su- cessivos. Segundo Castro, “[...] o postulado básico do evolucionismo em sua fase clássica era, portanto, que, em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e ascendente” (CASTRO, 2005, p. 14). Assim, a humanidade toda, obrigatoriamente, passava pelos mesmos estágios, se- guindo uma direção do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado. Morgan afirmava que a evolução era natural e necessária, argumentando que a humanidade teve um único início, que seus caminhos também foram únicos, por meios diferentes, mas uniformes, em todos os continentes, e muito semelhantes em todas as tribos e nações da humanidade, que se encontram no mesmo status de desenvolvimento (CASTRO, 2005). Nas palavras de Castro, uma “[...] unidade psíquica de toda a espécie humana, a uniformidade de seu pensamento” (CASTRO, 2005, p. 14). Essa definição era um contraponto a uma ideia anterior da antropologia, a de que havia origens diferentes e, portanto, uma hierarquia entre os humanos. Tylor refutava a ideia poligenista das múltiplas origens e a hierarquização entre as sociedades humanas e entendia ser “[...] tanto possível, quanto dese- jável, eliminar considerações de variedades hereditárias, ou raças humanas, e tratar a humanidade como homogênea em natureza, embora situada em diferentes graus de civilização” (CASTRO, 2005, p. 14). Apesar disso, quanto ao monogenismo, os autores tinham dificuldades de tratar sobre questões das múltiplas diferenças entre os humanos, e acabavam se contradizendo. Poligenismo é a concepção antropológica que entende que o ser humano tem sua origem em várias linhagens. Monogenismo, por sua vez, defende a ideia de que a origem do ser humano descende de um ancestral comum. Houve debates intensos sobre esses conceitos entre os antropólogos clássicos. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 3 O caminho evolutivo adotado pela antropologia clássica de Morgan, Tylor e Frazer oferecia uma visão museológica dos povos considerados exóticos, ou não ocidentais. Eles seriam “[...] representantes de etapas anteriores da trajetória universal do homem rumo à condição dos povos mais ‘avançados’; como exemplos vivos daquilo ‘que já fomos um dia’” (CASTRO, 2005, p. 14). Frazer, metaforicamente, entendia o selvagem como um tipo de “documento humano”, enquanto Morgan entendia que o cerne dos comportamentos hu- manos dos selvagens, especialmente da família humana, ainda se encontrava nos humanos considerados evoluídos, apesar dos estágios de evolução pelas quais a humanidade atravessou (CASTRO, 2005). Com a carência do desenvolvimento da arqueologia para elucidar dúvidas ou confirmar pressupostos, nessa época os estudos das sociedades avan- çavam de modo a permitir reconstruir a trajetória evolutiva da humanidade, por etapas, com base no estudo das sociedades menos desenvolvidas, como a dos aborígenes australianos. Isso permitia associar o comportamento dessas sociedades exóticas com as antigas, de modo a complementar os relatos greco-romanos. Frazer sintetizou esse pensamento quando relacionou as sociedades primitivas às contemporâneas, como em uma comparação entre crianças e adultos. Assim, nas palavras de Frazer, “[...] exatamente como o crescimento gradual da inteligência de uma criança corresponde ao crescimento gradual da inteligência da espécie [...] assim também um estudo da sociedade sel- vagem em vários estágios de evolução” (CASTRO, 2005, p. 15). Frazer admite a possibilidade de compreender o homem primitivo ao analisar o homem exótico de hoje. Dessa forma, para Frazer, a selvageria é a condição primitiva da humanidade (CASTRO, 2005). A antropologia evolucionista, portanto, apropria-se do método compara- tivo (já empregado na anatomia e na linguística) para contrastar as sociedades exóticas atuaise preencher as lacunas evolutivas da cultura humana, a fim de compreender as sociedades primitivas. Usando o método comparativo, portanto, foi possível considerar a variedade dos grupos humanos a partir das condições externas que fizeram o ritmo de evolução dos grupos humanos ser diferente (CASTRO, 2005). Para Tylor, nessa análise comparativa, primeiramente é necessário de- talhar e classificar as civilizações estudadas e estabelecer sua distribuição geográfica e histórica, verificando a relação entre elas. A ideia de progresso está profundamente enraizada em nossas mentes, a ponto de Tylor considerar A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico4 que “[...] reconstruímos, sem escrúpulos, a história perdida, confiando no conhecimento geral dos princípios do pensamento e da ação humana como um guia para pôr os fatos em sua ordem apropriada” (CASTRO, 2005, p. 15). Castro nos informa que há, ainda, outro elemento importante na concepção do evolucionismo das culturas: trata-se do conceito de sobrevivência. Tylor entende esse conceito como aspectos mentais que sobrevivem em novos formatos nas sociedades atuais em relação às sociedades antigas, ou seja, aspectos que evoluíram. São “[...] processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que, por força do hábito, continuaram a existir” (CASTRO, 2005, p. 15). Frazer diz que são lembranças de práticas materiais e mentais que ficam como fósseis nas culturas atuais: O estudo científico das “sobrevivências” autorizava o antropólogo a recorrer, portanto, não apenas às sociedades “selvagens”, como também à sua própria sociedade. Tal procedimento ampliava enormemente o campo de investigação, permitindo que se incorporasse à antropologia aquilo que se costumava designar como “folclore” (CASTRO, 2005, p. 16). De forma universalista, a antropologia evolucionista se pautava no chamado teste de recorrência, no qual, segundo Tylor, não se poderia atribuir ao acaso diversos relatos encontrados em várias sociedades geográfica e historicamente diferentes (CASTRO, 2005). Academicamente, havia críticas sobre as pesquisas feitas, quase exclusi- vamente em gabinetes, embora Morgan fizesse viagens etnográficas. A an- tropologia evolucionista acabou estigmatizada como armchair anthropology. Sem o mesmo prestígio que alcançou na segunda metade do século XVII, a antropologia evolucionista, nas letras de Morgan, ainda aparece, embora reformulada e adotando interpretações multilineares, com base das ideias de Marx, Engels, Leslie White, Julian Steward e do brasileiro Darcy Ribeiro. Embora reconhecendo sua importância para a compreensão da evolução do pensamento, tratando-se de uma natureza psicológica (portanto, também do imaginário), para Morgan, a religião traz dificuldades imensas. Para ele, “[...] as religiões primitivas são grotescas e, numa certa medida, ininteligíveis” (CASTRO, 2005, p. 24). Eliade fornece elementos esclarecedores sobre isso no livro O sagrado e o profano: a essência das religiões. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 5 Segundo Mircea Eliade, para o homem moderno, é difícil compreender o pensamento do homo religiosus, por conta de sua limitada compreensão das religiões exóticas, primitivas, mitológicas, antigas. A compreensão religiosa do homem moderno se restringe ao cristianismo, às conhecidas religiões mun- diais como hinduísmo, judaísmo, budismo e islamismo, em suas concepções contemporâneas. Essa restrição o impede de compreender as recorrências e sobrevivências do universo mental do homo religiosus. Embora a percepção existencial do homo religiosus não se restrinja aos livros sagrados, a pesquisa etnográfica permite conhecer o folclore de comportamentos de situações variadas de regiões europeias diferentes, recuperando a compreensão, ainda hoje, que denotaria “[...] um estado de cultura mais arcaico do que aquele testemunhado pela mitologia da Grécia clássica” (ELIADE, 1992, p. 79). É necessário compreender a situação existencial do mundo primitivo “[...] dos caçadores totemistas, das populações ainda no estágio da caça miúda e da colheita” (ELIADE, 1992, p. 80), ou seja, do homem imerso na sociedade primitiva, que caracteriza o homo religiosus. Vejamos, portanto, como Eliade percebe as sobrevivências e recorrências entre o homem primitivo e o homem contemporâneo, a partir da evolução do pensamento religioso ao pensamento científico. Eliade (1992) demonstra que essas duas cosmovisões estão presentes no homem contemporâneo, em que sagrado e profano se articulam como elemento psíquico que traz lembranças transcendentais, mesmo na modernidade da sociedade laica e do pensamento dessacralizado. As recorrências e sobrevivências entre o ser humano primitivo (reli- gioso) e o ser humano moderno (a-religioso) se entrecruzam, tendo o pensamento religioso como característica marcante das sociedades primitivas e como o pensamento inicial, que evolui para o pensamento científico. Essa evolução não substitui o pensamento religioso, mas o adapta conforme avança o processo de dessacralização na história. Assim, o caráter do pensamento científico está repleto de sugestões que revelam princípios, pistas, éticas e lógicas religiosas, em uma combinação não excludente, mas complementar, adaptativa. Embora se entenda que, no homem contemporâneo, haja choque entre as duas formas de pensar, há mais aproximações do que distanciamentos. Na próxima seção, veremos como a experiência religiosa demarcou o pensamento e o comportamento dos primitivos, imersos na cosmovisão do sagrado, isto é, na sacralização, a fim de entender sua evolução e sua adequação ao homem contemporâneo, dessacralizado. Nosso fio condutor serão os conceitos de recorrências e sobrevivências. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico6 Transcendência: entre o religioso e o científico A experiência religiosa, tema tratado por Rudolf Otto na obra Das Heilige (1917), é o escopo da análise de Mircea Eliade, da qual emprestamos o debate sobre a presença e a ausência da noção de transcendência no pensamento religioso e no pensamento científico. Eliade esclarece que o sagrado “[...] não era o Deus dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma ideia, uma noção abstrata, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestado na ‘cólera’ divina” (ELIADE, 1992, p. 12). O mysterium tremendum gera um sentimento de pavor e de temor diante do mysterium fascinans. Essas experiências são consideradas numinosas, porque são provocadas pela revelação de um as- pecto do poder divino. Diante do “totalmente outro”, o ser humano vê sua limitação, ao ponto da nulidade, em razão da grandiosidade da experiência da relação com o sagrado. Eliade identifica que a “[...] primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano” (ELIADE, 1992, p. 13). Dessa forma, a ideia de sagrado será sempre apresentada, como fez Eliade, em dualidade oposta com o profano. Para ilustrar a ideia de como o sagrado se mostra e manifesta, Eliade (1992) propõe o termo hierofania, que exprime que algo de sagrado se revela. Os múltiplos fenômenos religiosos, portanto, revelam as múltiplas hierofanias que ocorreram, e ocorrem, na história humana. Essas hierofanias, segundo Eliade (1992), podem ser interpretadas, pelos seres humanos primitivos, diferente- mente de como o ser humano moderno as interpreta, e de modo distinto, ainda, entre os primitivos e modernos de regiões diferentes de uma mesma época. Dessa forma, “[...] a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore — e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade” (ELIADE, 1992, p. 13). Quando os primitivos percebiam a manifestação do sagrado em pedras, por exemplo, não significava uma adoração/veneração à pedra: “[...] são hierofanias, porque‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere” (ELIADE, 1992, p. 13). Eliade (1992) esclarece que a manifestação do sagrado em objetos os sacraliza, de forma que se tornam um meio de contato com o sagrado, não o próprio, sem, contudo, mudar sua substância. Assim, para quem tem uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 7 Nesse sentido, diante do desejo de estar no cosmos em oposição ao caos, os primitivos buscavam viver o mais próximo possível do sagrado e dos objetos sagrados. Assim, sagrado e profano podem ser identificados como real e irreal para o primitivo, respectivamente. A busca, portanto, do primitivo está em “[...] participar da realidade, saturar-se de poder” (ELIADE, 1992, p. 14). Para ele, a realidade é transcendental. Analisar o pensamento do homem primitivo (homo religiosus) é compre- ender como ele se esforça para se manter o máximo de tempo possível em um universo sagrado. Mas não só. A comparação com seu contrário, o homem dessacralizado, permite identificar “[...] como se apresenta sua experiência total da vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive, ou deseja viver, num mundo dessacralizado” (ELIADE, 1992, p. 14). Dessa forma, é possível reconhecer a presença e a ausên- cia da noção da transcendência no pensamento religioso e no pensamento científico. Mircea Eliade (1992) apresenta dois mundos de pensamentos distintos: 1. o pensamento religioso, que se pauta naquele mundo cujo princípio se circunscreve na completude, na perfeição, conduzindo o homo religiosus a comportamentos que suprem a necessidade de voltar àquele tempo mítico; 2. o pensamento científico, que considera que a perfeição não está nos mitos, nas arquês, mas no futuro, e que a evolução se encontra nessa direção específica. A relação do ser humano com o cosmo, em sua totalidade, sempre foi o espaço privilegiado do sagrado, na maior parte da história humana, enquanto “[...] o mundo profano na sua totalidade, o cosmos totalmente dessacralizado, é uma descoberta recente na história do espírito humano” (ELIADE, 1992, p. 14, grifo nosso). Assim, no contraste, percebemos como o pensamento religioso evolui para o pensamento científico: a partir da dessacralização, ou afastamento do sagrado do cotidiano e do pensamento humano. Eliade (1992) caracteriza que o “fosso” oposto entre as dimensões do sagrado e do profano é enorme. Isso é perceptível em várias dimensões: no espaço sagrado, na construção ritual das casas, nas experiências no templo, nas relações do homem primitivo com a natureza, no universo dos utensílios, na consagração da vida e na própria sacralidade, que se desdobra em atribui- ções da própria vida como o trabalho, a alimentação e a sexualidade. Tudo isso, para o homem religioso, reveste-se de sacralidade, um sacramento, uma A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico8 forma de comunhão com o sagrado. Para o homem contemporâneo, trata-se de “um ato fisiológico — a alimentação, a sexualidade etc. — não é, em suma, mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus que ainda o envolva” (ELIADE, 1992, p. 14). Percebe-se, sensivelmente, que há dois “centros” que denunciam formas diferentes de se relacionar com a realidade. O conhecimento de cada um deles capacita o ser humano, conectado nessa trama, a lidar com a realidade, de modo que gravitam, em torno desses centros, modos específicos de pensar, agir, falar, etc., com todos os aspectos da vida que interagem com o ambiente envolvente. Nas palavras de Eliade (1992, p. 15), “[...] o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história”. Dessa forma, as dimensões existenciais do ser humano, isto é, o modo de pensar, o modo de ser — seja sagrado ou profano — dependem das diferentes posições que o homem conquistou no cosmos. Embora o homo religiosus tenha, como centro, o sagrado, seus compor- tamentos estão na mesma base do homem contemporâneo dessacralizado — ou seja, há um padrão de comportamento do ser humano que se aproxima, independentemente do tempo e do espaço em que vivem/viveram. Mesmo diante de suas condicionantes culturais, de obstáculos e de tabus, criam-se os pensamentos que lhe são verdadeiros: sagrado ou profano (ELIADE, 1992). Objetivando diferenciar a dimensão religiosa da profana, Eliade (1992) pro- põe renunciar, momentaneamente, às condicionantes culturais, econômicas e de organização social, para focar em uma dimensão de aproximações entre essas duas cosmovisões. “[E]ntre os caçadores nômades e os agricultores sedentários, há uma similitude de comportamento que nos parece infinita- mente mais importante do que suas diferenças” (ELIADE, 1992, p. 16), uma vez que vivem em uma mesma dimensão: o mundo sacralizado. Assim, segundo Eliade (1992, p. 16), “[...] do mesmo modo, damo-nos conta da validade das comparações entre fatos religiosos pertencentes a diferentes culturas: todos esses fatos partem de um mesmo comportamento, que é o do homo religiosus”. O entendimento dos primitivos era de que o mundo fora criado pelos deuses e de que “[...] a própria vida do cosmos é uma prova de sua santidade, pois ele foi criado pelos deuses e os deuses mostram-se aos homens por meio da vida cósmica” (ELIADE, 1992, p. 80). O homem, ao se ver como micro- cosmos, reencontra, em si, a santidade que reconhece no cosmos, e sua vida se pauta por essa realidade cósmica. Eliade (1992) denota essa experiência como transumana, portanto, cósmica, ou, ainda, “existência aberta”. O homo A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 9 religiosus, então, tem sua existência “aberta” ao mundo, que percebe parte do cosmo vivendo nele, em seu interior. Essa vida aberta não se dá de forma inconsciente, mas “[...] permite ao homem religioso conhecer-se, conhecendo o mundo — e esse conhecimento é precioso para ele porque é um conhecimento religioso, refere se ao ser” (ELIADE, 1992, p. 81). Uma vez que a vida, para o primitivo, é uma vida santificada, ela se des- dobra de forma dupla: “[...] como existência humana e, ao mesmo tempo, participa de uma vida transumana, a do cosmos ou dos deuses” (ELIADE, 1992, p. 81). Dessa forma, tudo que o homem faz tem conotação religiosa, inclusive as principais funções fisiológicas. Ao homem dessacralizado, por sua vez, “[...] todas as experiências vitais — tanto a sexualidade como a ali- mentação, o trabalho como o jogo — foram [...] desprovidas de significado espiritual” (ELIADE, 1992, p. 81). Para o homo religiosus, porém, não só aos atos fisiológicos, mas também a regiões e a fenômenos cósmicos são atribuídos significados religiosos. O ato de comer se torna um sacramento e a prática sexual é ritualizada, assimilada aos fenômenos cósmicos (chuvas, semeadura) e aos atos divinos (hierogamia, Céu, Terra). Essas correspondências antropocósmicas são encontradas, também, nas religiões mais evoluídas, demonstrando a sacramentalização da vida fisiológica. Viver em dois planos, para o homo religiosus, significa transpor a vida da experiência humana para o transcendente, cósmico, transumano. Igualmente, a habitação, para o homo religiosus, é um microcosmos, mas não só: seu corpo é um microcosmos. Essas ideias são reinterpretadas pelas religiões e pelas filosofias evoluídas no decorrer da história, chegando à modernidade, a exemplo do pensamento religioso indiano, cujo religioso “cosmiza” o universo, bem como sua casa, que são tratados como corpo humano. Nessa compreensão, há um canal de trânsito para o outro mundo, o dos deuses, na parte superior, onde, por ocasião da morte, há correspondências de que a “[...] a alma do morto sai pela chaminé” (ELIADE, 1992, p. 84). Essas ideiasreligiosas são inconcebíveis ao homem dessacralizado por dois motivos: não vive em um mundo sacralizado, e, portanto, a morte foi dessacralizada. Ele já não se dá conta de que ter um corpo e instalar-se em uma casa equivale a assumir uma situação existencial. Para o homem a-religioso, nada disso tem significado. Seus valores não correspondem àqueles da cultura primitiva no que concerne “[...] a seu corpo, sua casa e seu universo” (ELIADE, 1992, p. 86). A casa e o corpo do homem moderno perderam os valores religiosos, cosmológicos. Eliade (1992, p. 86) é taxativo: “[...] para os modernos desprovidos de religiosidade, o cosmos se tornou opaco, inerte, mudo: não transmite nenhuma mensagem, não carrega nenhuma ‘cifra’”. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico10 Na Contemporaneidade, há, entretanto, sentimentos religiosos, no ho- mem a-religioso, que ainda persistem, exclusivamente na zona rural. Ali, as populações ainda “respiram” uma religiosidade pautada no sentimento de santidade. Na sociedade urbana, industrializada, o cristianismo perdeu seus valores cósmicos. Sua experiência religiosa agora aflora no âmbito es- tritamente privado, não mais acessível ao cosmos. O mundo já não é sentido como obra de Deus. Ao contrário, ele é o caos, não deve ser habitado por não ser mais cosmizado. A relação corpo-casa, vista como imago mundi, tem papel importante nas mitologias e nos ritos arcaicos. Os formatos das urnas funerárias de cultu- ras arcaicas se assemelham a casas e possuem uma abertura superior que permite, à alma, entrar e sair. Esse pensamento encontra correspondência na estrutura cósmica, na ideia de passagem: das trevas para a luz, da vida para a morte. Assim, torna-se, por correspondência, a passagem para outro mundo, do devir, da renovação, e repetição da cosmogonia. Essa ideia de passagem se antropocosmiza fisiologicamente na exis- tência humana. Exprime que, uma vez nascido, deve renascer, dessa vez espiritualmente. Nesse processo, chega à plenitude, pelos ritos de passagem, ou iniciações consecutivas. O simbolismo de passagem também é visto na configuração dos caminhos das casas e dos locais de trabalho, nos caminhos, nas pontes, nas ruas estreitas, na passagem perigosa e de difícil travessia. A dificuldade dessas passagens assume, na mitologia e nos rituais, a ideia de dificuldade de transição e, portanto, o rito de passagem se reveste de uma importância religiosa de grande significância para o homo religiosus. Seja a “porta estreita” de acesso ao Pai, no cristianismo, seja nas lendas medievais ou, ainda, nos escritos místicos árabes, a dificuldade de transição se acentua. Nessa mesma lógica, elementos, que, no mundo dessacralizados, revestem-se de pouca significância, para o homo religiosus, têm caráter cósmico, religioso. Sendo uma representação antropocósmica, os ritos de passagem possibi- litam a integração do recém-nascido à comunidade e ajudam o jovem, quando da puberdade, a superar a fase infantil e o solteiro (celibatário) a passar para o grupo dos casados (chefes de famílias). Essas passagens são difíceis, geram crise e, portanto, exigem ritos. Na morte, os ritos são ainda mais complexos, pois sua passagem exige abandono do corpo e aceitação de sua alma no mundo dos mortos. Por sua vez, no mundo profano, há uma dessacralização completa, tanto da morte quanto do nascimento e do casamento. Mas, em tudo isso, o homo religiosus identifica sua incompletude, sendo necessário morrer e renascer em outro nível, religioso e cultural (ELIADE, 1992). A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 11 Nesse sentido, os conceitos de completude e de ritos estabelecem o ideal de humanidade em seu nível mais elevado, cósmico, religioso: “O homem primitivo esforça-se por atingir um ideal religioso de humanidade, e nesse esforço encontram-se já os germes de todas as éticas elaboradas mais tarde nas sociedades evoluídas” (ELIADE, 1992, p. 90). Eliade (1992) observa que, dessacralizados, os padrões de iniciação e de passagem permanecem sendo a raiz da ideia oriunda da cosmovisão do homo religiosus, que se reproduz, de forma dessacralizada, pelo homem a-religioso, no mundo contemporâneo. A vida existencial dos primitivos, envelhecidos pela história, com sua correspondente dessacralização, não desaparece por completo, sem deixar rastros. Ao contrário, está presente, em formatos e interpretações diferenciadas, e foi aperfeiçoada ao padrão do mundo a-religioso. Somos seres humanos religiosos cuja dessacralização foi incompleta, por isso há vestígios do pensamento religioso no pensamento científico. Do transcendente no imanente. O homem a-religioso nega a transcendência, aceita a relatividade da “re- alidade” e chega, até, a duvidar do sentido da existência. O dessacralizado se torna autossuficiente, reconhece-se como único sujeito e agente da história e rejeita todo apelo à transcendência, toda forma de vida fora da existência histórica. Ao contrário do homo religiosus, “[...] o homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo” (ELIADE, 1992, p. 98). Ao se desmitificar, ele se torna ele próprio, liberto dos deuses, em última instância quando matar Deus, que é visto como obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem profano, segundo Eliade (1992), conserva os vestígios do com- portamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Sendo produto do passado, não o pode abolir, pois é herdeiro do homo religiosus primitivo, tem natureza religiosa, mesmo esvaziado de sentido cósmico. No esforço de dessacralizar, os impulsos religiosos permanecem e buscam reatualizar ao estado religioso: “[...] a maioria dos ‘semrreligião’ ainda se comporta religiosamente” (ELIADE, 1992, p. 98). Comemorações re- ligiosas, como a passagem de ano novo, mesmo dessacralizada, são um ritual de iniciação; os casamentos continuam. Nos espetáculos, nos livros, nos cinemas, há a reprodução dos mitos, das mitologias e das religiosidades, que promovem êxtase. É certo que os “semrreligião” ainda reproduzem comportamentos religio- sos, tanto dos mitos quanto das teologias, e “[...] estão às vezes entulhados por todo um amontoado mágico religioso, mas degradado até a caricatura e, A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico12 por esta razão, dificilmente reconhecível” (ELIADE, 1992, p. 99). Exemplos são abundantes. A estrutura da constituição da concepção do comunismo cientí- fico tem-na em uma base mitológica e escatológica. O homem a-religioso, de acordo com Marx, faz valer “[...] um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático mediterrânico, a saber, o papel redentor do justo [...] cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo” (ELIADE, 1992, p. 99). Marx, ao resgatar a esperança escatológica, a vincula ao proletariado, que é chamado para sua própria salvação, mudando as estruturas do mundo, e esse político-econômico vê-se, no desejo, de volta ao estado puro do paraíso edênico, manifestado nos movimentos de nudismo e de liberdade sexual. A própria ciência da antropologia da religião, por sua base científica, é dessacralizada. Mesmo objetivando conhecer o fenômeno religioso, usa termos e utiliza teorias científicas para explicar o cosmos sacralizado. Será que dá conta? Comportamentos religiosos são verificados nas ações e nos gestos do homem dessacralizado, como na iniciação do soldado com “provas” para o combate. No trato do paciente, pela psicologia, quando da reflexão sobre si na volta às origens, temos reflexos às descidas iniciáticas aos locais habitados por seres espirituais. Termos como “luta pela vida”, “sofrimentos” e “torturas morais” são associados aos ritos de passagem para a vida adulta. “É por isso que, num horizonte religioso, a existência é fundada pela iniciação; quase se poderia dizer que, na medida emque se realiza, a pró- pria existência humana é uma iniciação” (ELIADE, 1992, p. 100). Dessa forma, entende-se que o homem profano, sendo descendente do homo religiosus, traz, em seu bojo, elementos comportamentais de seus antepassados reli- giosos, que o constituíram como ele é hoje. As crises existenciais acionam a aura religiosa do inconsciente, indagam sobre o sentido da vida, do passado, do futuro e da existência, pois esta, vazia de sacralidade, da percepção do cosmos e de si, cria um vácuo existencial, que, ao final, é uma crise religiosa. Nas palavras de Eliade (1992, p. 101): [...] na medida em que o inconsciente é o resultado de inúmeras experiências existenciais, não pode deixar de assemelhar-se aos diversos universos religiosos. Pois a religião é a solução exemplar de toda crise existencial, não apenas porque é indefinidamente repetível, mas também porque é considerada de origem trans- cendental e, portanto, valorizada como revelação recebida de um outro mundo, trans humano. A solução religiosa não somente resolve a crise, mas, ao mesmo tempo, torna a existência “aberta” a valores que já não são contingentes nem particulares, permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim das contas, alcançar o mundo do espírito. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 13 A tentativa de demonstrar como o homem dessacralizado ainda possui comportamento religioso, porém, está na psiquê mais profunda, que se perde na miscelânea própria do cosmos dessacralizado e industrial, pois o homem contemporâneo dissocia essa pulsão do comportamento sacralizado, visto que não vive mais no mundo pautado pela sacralidade, como o faziam os primitivos. Porém, está latente, pulsante, como que aguardando para se manifestar. Percebe-se isso quando a “[...] atividade inconsciente do homem moderno não cessa de lhe apresentar inúmeros símbolos, e cada um tem uma certa mensagem a transmitir, uma certa missão a desempenhar, tendo em vista assegurar o equilíbrio da psique ou restabelecê-lo” (ELIADE, 1992, p. 102). Por meio dos símbolos, o ser humano a-religioso se conecta ao uni- versal, tornando-se acessível, aberto, de forma que uma experiência pessoal, a despeito da dessacralização do cosmo de sua época vivida, transmuda- -se em ato espiritual, em compreensão metafísica do mundo. É na compreensão dos símbolos mitológicos que o homem primitivo consegue viver o universal, seja esse símbolo uma pedra ou uma árvore. O homem a-religioso moderno, da mesma forma, guarda arquivos do passado em sua mente, de forma que, diante das crises, recorre a esses arquivos de memória, inconscientes, mas que povoam o imaginário, que lhe despertam para a conexão com o universal. Porém, quando, diante da simbologia, essa não lhe desperta os arquivos de conexão ao sagrado, o símbolo não faz efervescer à elevação a espiritualidade; “[...] ou seja, não conseguiu revelar-lhe uma das estruturas do real” (ELIADE, 1992, p. 102). Em suma, mesmo sem auxílio do cosmo, sacralizado, que inexiste nas sociedades modernas laicizadas, o homem a-religioso é auxiliado por seus arquivos inconscientes, e por isso tem possibilidade de abrir-se ao cosmos, mesmo que parcialmente. Assim, “[...] o inconsciente oferece-lhe soluções para as dificuldades de sua própria existência e, neste sentido, desempenha o papel da religião, pois, antes de tornar uma existência criadora de valores, a religião assegura-lhe a integridade” (ELIADE, 1992, p. 102). Desse modo, a latência da religião encontra-se em seu inconsciente, pronta a despertar diante das crises que lhe afligirem, o “[...] que significa também que as possibilidades de reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem, nesses seres, muito profundamente neles próprios” (ELIADE, 1992, p. 102). Partindo do pressuposto de que, no século XXI, o mundo se encontra, há tempos, em constante crise, a busca pelo sagrado, mesmo que parcial, é de cunho particularista, manifestada em conceito de espiritualidade, e promove, no mundo dessacralizado, a busca pelo sagrado em vários nuances e formas, mundo afora. O crescimento das inúmeras religiões mundiais demonstra essa A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico14 forma rascunhada de tentativas de voltar às origens, à criação, ao tempo sagrado. É o homo religiosus que pulsa no interior do homem a-religioso. Essas são as aproximações propostas aqui: do primitivo ao primitivo reinter- pretado, ou seja, a-religioso, mas nunca em um estado puro, mas sincretizado na relação religião-ciência. Fases do desenvolvimento do pensamento científico Uma vez demonstradas as ausências e as permanências da transcendência no pensamento religioso e no pensamento a-religioso, avancemos para as fases que permitiram o desenvolvimento do pensamento científico. Para Morgan (CASTRO, 2005), a humanidade existe desde épocas imemo- riais, às quais o homem contemporâneo não tem acesso; estende-se pelo passado imensurável e se perde em uma vasta e profunda antiguidade. Assim, segundo Morgan, na compreensão da evolução da humanidade, pode-se afirmar que “[...] a selvageria precedeu a barbárie em todas as tribos da huma- nidade, assim como se sabe que a barbárie precedeu a civilização” (CASTRO, 2005, p. 21). Esse processo se deu de forma lenta, progressiva e evolutiva, em estágios sucessivos, e permitiu acumular conhecimento experimental (ainda que algumas tribos e nações, por conta das limitações geográficas, não tenham se desenvolvido como as demais). Mesmo que as invenções e as descobertas evoluam progressivamente, para Castro (2005, p. 21), “[...] as instituições sociais e civis, em virtude de sua conexão com perpétuos desejos humanos, desenvolvem-se a partir de uns poucos germes primários de pensamento”, o que demonstra, segundo Morgan, uma origem única para o ser humano. Considera-se que, “[...] ao longo da última parte do período de selvageria e por todo o período de barbárie, a humanidade estava organizada, em geral, em gens, fratrias e tribos” (CASTRO, 2005, p. 21). Essa organização social era encontrada na Antiguidade, em todos os continentes. Para Castro, “[...] sua estrutura e suas relações como membros de uma série orgânica bem como os direitos, privilégios e obrigações [...] ilustram o crescimento da ideia de governo na mente humana” (CASTRO, 2005, p. 21). A família também passou pelo processo evolutivo na mesma lógica pro- gressiva e evolutiva selvageria-barbárie-civilização. Segundo Morgan (CASTRO, 2005, p. 21), “[...] a família passou por formas sucessivas, e criou grandes sistemas de consanguinidade e afinidade que duram até os dias de hoje”. Acompanhando Morgan, encontra-se essa mesma lógica evolucionista no que A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 15 diz respeito à propriedade: “[...] começando do zero, na selvageria, a paixão pela propriedade, como representando a subsistência acumulada, tornou-se agora dominante na mente humana nas raças civilizadas” (CASTRO, 2005, p. 22). Assim, a organização social e a ideia de governo de família e de propriedade atravessaram eras e demarcam, de maneira peremptória, certa regularidade desde os tempos imemoriais de selvageria até a civilização. Portanto, a ex- periência e a luta contra obstáculos emergem como fatores determinantes no processo evolutivo, que denuncia as razões pelas quais uma sociedade evoluiu ininterruptamente e outras sofreram interrupções no processo. Para Morgan, diferentemente das invenções e das descobertas, “[...] as instituições se desenvolveram a partir de uns poucos germes primários de pensamento [...] Os fatos indicam a formação gradual e o desenvolvimento subsequente de certas ideias, paixões e aspirações” (CASTRO, 2005, p. 23, grifo nosso). As ideias são: � subsistência; � governo; � linguagem; � família; � religião; � vida doméstica e arquitetura; � propriedade. Especificando, Morgandetalha que a subsistência “[...] foi aumentada e aperfeiçoada por uma série de artes sucessivas, introduzidas no decorrer de longos intervalos de tempo e conectadas mais ou menos diretamente com invenções e descobertas” (CASTRO, 2005, p. 24). Sobre governo, Morgan afirma que o germe dessa ideia “[...] deve ser buscado na organização por gentes no status de selvageria, e seguido, através de formas cada vez mais avançadas, até o estabelecimento da sociedade política” (CASTRO, 2005, p. 24). No que diz respeito à linguagem, Morgan informa que ela foi desenvolvida “[...] a partir das formas mais rudes e simples de expressão” (CASTRO, 2005, p. 24), e concorda com Lucrécio em relação ao fato de a comunicação ter se dado, primeiramente, pelos gestos, depois pela fala articulada. Segundo ele, “[...] a inteligência humana, inconsciente de propósito, desenvolveu a linguagem articulada utilizando os sons vocais” (CASTRO, 2005, p. 24). Consanguinidade, costumes comuns e casamento foram os aspectos que, segundo Morgan, predominaram na evolução das famílias, e por meio dos A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico16 quais a história da família pode ser, seguramente, traçada pelas diversas formas sucessivamente assumidas (CASTRO, 2005). Da cabana à casa da família contemporânea, o tema sobre arquiteturas das habitações humanas “[...] está ligado à forma da família e ao plano de vida doméstica, [e] permite uma ilustração razoavelmente completa do progresso desde a selvageria até a civilização” (CASTRO, 2005, p. 24, grifo nosso). Sobre a ideia de propriedade, Morgan afirma que, de forma lenta, ela foi sendo construída na mentalidade humana da selvageria, passando por adaptações até sua dominância: “[...] como uma paixão acima de todas as outras, marca o começo da civilização” (CASTRO, 2005, p. 24). As ideias de governo, família e propriedade foram elementos pelos quais Morgan apresentou as evidências do progresso humano em sucessivos perí- odos étnicos. Sobre o governo, ele detalha os dois seguintes planos. 1. Societas (sociedade), que passou de gens para fratria, depois, de forma crescente e abrangente, para tribo, confederação de tribos, povo e nação. Essa forma de organização antiga “[...] perdurou entre os gregos e romanos após o surgimento da civilização” (CASTRO, 2005, p. 25). 2. Civitas (estado), baseado no território e na propriedade, com estágios de integração entre as propriedades em vilas e em condados cujo povo está organizado em um corpo político (CASTRO, 2005). Há preservação dos progressos humanos nas famílias, em que sexo, parentesco e território formam a base de sua organização. Assim, casamento, consanguinidade, cotidiano, arquitetura e herança promoveram a evolução e permanências nas sociedades contemporâneas. As próprias demandas da vida humana também demonstram evidências de progresso evolutivo. Segundo Morgan (CASTRO, 2005, p. 26), “[...] pode ser observado, finalmente, que a experiência da humanidade tem seguido por canais quase uniformes; que as necessidades humanas, em condições similares, têm sido substancialmente as mesmas”. Morgan, apresenta, ainda, outra divisão dos períodos para facilitar a compreensão evolutiva do progresso do conhecimento, que denomina pe- ríodos étnicos (CASTRO, 2005), superando a demarcação proposta pelos arqueólogos dinamarqueses, que instituíram os conhecidos períodos como Períodos da Pedra, do Bronze e do Ouro. Os períodos étnicos propostos são A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 17 da selvageria e da barbárie, ambos subdivididos em subperíodos inicial, intermediário e final, e cada um desses períodos pode ser considerado com status inferior, intermediário e superior da evolução humana. Assim, temos, progressivamente: 1. da fase da infância da humanidade até a fase da dieta de subsistência (selvageria inferior); 2. da dieta de subsistência até a invenção de arco e flecha (selvageria intermediária); 3. da invenção de arco e flecha até a invenção das artes cerâmicas (sel- vageria superior). A invenção das artes cerâmicas demarca a divisão entre selvagens e bárbaros: 1. até a domesticação de animais no hemisfério oriental e, no ocidental, com a agricultura de irrigação (barbárie inferior); 2. da domesticação de animais, no hemisfério oriental, e, no ocidental, com a agricultura de irrigação, até a invenção do processo de forjar o minério de ferro (barbárie intermediária); 3. da invenção do processo de forjar o minério de ferro até a invenção do alfabeto (barbárie superior). A partir daqui, inicia-se a civilização. Cada um desses períodos tem características peculiares, e os períodos étnicos permitem identificar tribos isoladas, que mantiveram sua forma de vida e não sofreram influências externas. Esses períodos ajudam a compre- ender que a evolução do conhecimento se deu “[...] a partir de uns poucos germes primários de pensamento” (CASTRO, 2005, p. 30). Referências CASTRO, C. Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico18 Leituras recomendadas CASTRO, C. Textos básicos de antropologia: cem anos de tradição. Editora Zahar, 2016. FRAZER, J. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982. MARCONI, M. A; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2019. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 19 ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Definir mito, rito, magia e sacrifício no contexto religioso. > Reconhecer a contribuição dos antropólogos Durkheim, Mauss e Evans- -Pritchard na definição de sacrifício, magia e rito. > Identificar o papel do rito na preservação da religião e das relações comu- nitárias. Introdução O mito, o rito, a magia e o sacrifício são componentes da religião que apresen- tam importantes distinções entre si. Por exemplo, o mito e o rito podem ser complementares, ou mesmo excludentes, e nem sempre os rituais mágicos e de sacrifício recorrem a uma mitologia para se justificarem. Ainda, o mito carrega quase sempre um aspecto explicativo do mundo, e os rituais às vezes encontram justificativas nos mitos. Esses e outros entendimentos relacionados aos conceitos de mito, rito, magia e sacrifício permitem uma melhor compreensão do fenômeno religioso. Assim, neste capítulo, você vai estudar esses conceitos e compreender as diferenças entre eles. Você também vai verificar as contribuições de alguns antropólogos e pensadores sobre o tema, notadamente os da escola funcionalista. Por fim, você vai compreender a importância dos ritos para a coesão social. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa Bruno Uhlick D'ambros Mitos: mentira, drama, ilusão e morte Para iniciar o estudo dos fenômenos religiosos, é importante compreender o que se entende por mitos. Os mitos são narrativas orais populares fantásticas sobre personagens humanos, divinos ou animais. Tais narrativas retratam o passado e tentam explicar algum aspecto da realidade presente, estando conectados com um aspecto religioso do povo que as narra. O principal ele- mento dos mitos é o elemento fantástico. Certamente há elementos religiosos nos mitos, bem como morais e epistêmicos, mas eles não são exclusivos. Burkert (1979, p. 1, tradução nossa) adota a definição de que o mito é “[...] pertencente a uma classe mais geral de contos tradicionais”. Assim, para Burkert (1979), o mito é um fenômeno linguístico como outros e é uma criação literária como outras. E, como ele é uma criação, surgem sempre as questões sobre quem criou e como, quando e por que foi criado. Em parte, essa é a função do estudioso dos mitos: descobrir quem, como, quando e por que se criou determinado mito. O sofista Aelius Theon, em sua obra Progymnasmata, diferenciavamito e narração dizendo que o mito é “[...] uma exposição falsa retratando a verdade” e que narração é “[...] uma exposição sobre eventos que aconteceram ou que poderiam ter ocorrido” (ELIADE, 2019, p. 111). Lang (1887), por sua vez, sustenta que há um conflito entre religião e mito. Para ele, “[...] religião é a crença em um ser original, um criador, imortal, sem negar a crença em seres espirituais, ainda que imorais” e que esse conflito está presente “nas crenças de antigos povos civilizados” (LANG, 1887, p. 3, tradução nossa). A mitologia é apenas um aspecto da religião. As histórias fantásticas dos mitos se conectam e, por vezes, fundam um sistema religioso, como é o caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Contudo, nem todas as religiões se reduzem à mitologia. A mitologia frequentemente fornece os elementos teóricos para a religião, o seu conjunto de conceitos, a sua teologia, a sua moral, mas nem toda a religião se reduz à mitologia. Por exemplo, a mitologia grega fornecia as histórias populares dos gregos, cantadas pelos rapsodos e narradas por Homero. Contudo, a religião grega não dependia apenas dessas mitologias, porque ela continha aspectos práticos e mágicos, que não dependiam das narrativas. Nas religiões ditas “do livro”, como as monoteístas, as mitologias quase sempre são a base da religião, e suas práticas são ritualísticas. Por exemplo, as histórias fantásticas narradas nos evangelhos são a base para muitas prá- ticas ritualísticas cristãs, como a cerimônia do lava-pés no Natal, a eucaristia Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa2 nas missas ou o próprio batismo por imersão ou aspersão. Já no paganismo grego, não há registros de práticas fundadas na mitologia grega, por exemplo, e nenhum grego tinha um rol de rituais a fazer com base nas ações míticas de Aquiles ou Odisseu, por exemplo. Havia, antes, uma moral heroica a se seguir, mas nem ela mesma dependia totalmente da fidelidade à narração mítica da Ilíada ou da Odisseia. A mitologia, além de fornecer em alguns casos uma ritualística, oferece também uma moral, por meio dos exemplos nas histórias narradas. Nos mitos, não importa tanto a veracidade ou não do acontecimento, mas sua lição, sua essência, por assim dizer. Nos mitos, suspende-se o juízo sobre verdade ou falsidade, e liga-se o juízo sobre o bom e o belo. A mitologia fornece aspectos estéticos e éticos muito mais do que aspectos epistêmicos. Ou seja, quando alguém ou um povo conta um mito, está muito mais preocupado em transmitir uma tradição, em entreter com uma história, em passar algum ensinamento arquetípico moral ou estético, do que falar a verdade cientificamente para alguém. É certo que há, segundo muitos teóricos, um aspecto explicativo dos mitos. As histórias fantásticas em geral tentavam explicar a origem de algum cos- tume, moral, valor, coisa, acontecimento, tradição etc. Eram, assim, tentativas pré-científicas de fornecer respostas para muitas dúvidas humanas. Porém, pergunta-se frequentemente no estudo dos mitos se eles são anteriores ou posteriores à coisa explicada. Por exemplo, no mito da ressurreição de Cristo: teria sido ele o criador da crença na ressurreição e, portanto, anterior a ela, ou teria sido ele decorrência da crença na ressurreição e veio para explicá-la? Ou, ainda, o mito da criação do homem a partir da argila foi a causa da crença da criação do homem a partir do barro ou foi uma tentativa de explicar essa crença? Em todos os casos, o mito sempre tenta explicar algo, ou a coisa em si, ou a crença nessa coisa. O estudo acadêmico dos mitos, ou mitologia, iniciou-se com os estudos filológicos na Alemanha do fim do século XVIII e início do século XIX. Assim, ele se desenvolveu dentro da área da linguística e posteriormente foi dissemi- nado para outras áreas das ciências humanas, como história, antropologia e ciências da religião. O interesse nesse estudo teve início junto com o interesse no estudo das línguas antigas, como grego, latim, hebraico e sânscrito, e está profundamente ligado também aos estudos do folclore. Por esse motivo, o estudo da mitologia floresceu concomitantemente com o estudo das línguas indo-europeias e das teorias ligadas a elas. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 3 Uma das teorias ligadas às línguas indo-europeias é a da existência de uma raça ariana. Essa teoria sustenta que uma leva migratória de falantes de línguas proto-indo-iranianas, os arianos (do sânscrito ārya, , nobre; etimologia sobrevivente no termo “irã” moderno), em direção ao ocidente, teria formado os povos caucasianos, as suas línguas e, consequen- temente, os seus mitos. Esses mitos teriam elementos comuns entre eles e, decantadas as devidas diferenças mútuas, suas estruturas podem ser traçadas até hoje. Tal fato originou a disciplina da mitologia comparativa, em que vários mitos de vários lugares são comparados para encontrar uma estrutura narrativa comum. Uma prova da origem comum dos mitos e das línguas europeias com os povos falantes de línguas arianas é a expressão “Zeus pai”: em grego, Zeus Pater, em latim, Jupiter Pater, em védico, Dyáuṣ Pitṛ́ . Essa semelhança sugere que gregos, romanos e indianos se originaram de uma mesma cultura ancestral e seria uma prova para a teoria da raça ariana e sua migração para o ocidente. A línguas e os mitos, assim, são objetos de estudos genealógicos para se traçar as origens comuns de línguas, culturas e mitos. Na mitologia, é possível encontrar muitos temas recorrentes entre vários mitos de vários lugares. Por exemplo, a criação do homem da argila é um tema comum em inúmeras mitologias: � na epopeia suméria de Gilgamesh, a deusa Aruru molda Enkidu a partir da argila; � na mitologia grega, Prometeu molda os homens a partir da argila; � na mitologia hebraica, o deus Elohim molda o homem da argila; � na mitologia hindu, Parvati molda Ganesh na argila; � na mitologia chinesa, Nüwa molda humanos a partir da argila amarela. Outro exemplo de um tema recorrente em vários mitos de vários lugares é o tema do domínio do fogo: � na mitologia grega, Prometeu rouba o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e levá-los à civilização; � na mitologia semítica, no livro de Enoque, os anjos caídos e Azazel ensinam os homens a usar o fogo; � na mitologia védica, Rigveda fala de um herói chamado Matarisvan que descobriu o fogo, que havia sido escondido da humanidade. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa4 Um último exemplo: a titanomaquia. Muitas culturas têm um mito de cria- ção, em que deuses mais jovens e civilizados combatem e derrotam deuses mais velhos e selvagens, que representam as forças do caos. Por exemplo: � na mitologia hindu, os devas guerreiam com os asuras; � na mitologia grega, os deuses olímpicos guerreiam com os titãs; � na mitologia celta, os deuses da vida e da luz guerreiam com os fomo- rianos, deuses da morte e das trevas. Alguns especialistas interpretam esses mitos comuns como um reflexo das conquistas dos povos indo-arianos em sua expansão para o ocidente, onde eles se viam como nobres e portadores da civilização. Esses são somente alguns exemplos de inúmeros temas mitológicos comuns espalhados por várias culturas. Existem muitos outros, como os temas dos gigantes, dos dragões e das serpentes, da luta contra o caos, do ouroboros, do herói, das metamorfoses, dos deuses que visitam os homens, dos homens que visitam os deuses, da virgem que concebe, das aparições celestes etc. Em todos eles, temos a narração de uma história fantástica. Essa primeira abordagem das mitologias era essencialmente diacrônica, ou seja, focava no estudo dos mitos e em seu desenvolvimento no tempo e no espaço. Portanto, utilizava largamente as teorias evolucionistas e difusionis- tas para elaborar as suas próprias teorias sobre a mitologia. Nessa primeira fase do estudo dos mitos, surgiram alguns nomes muito importantes, como Jacob Ludwig Karl Grimm (1785-1863), Andrew Lang (1844-1912),Franz Bopp (1791-1867), Friedrich Max Müller (1823-1900) e James George Frazer (1854-1941). Os trabalhos dessa primeira leva de mitólogos eram profundamente históricos e filológicos, tentando traçar hipóteses evolutivas dos mitos e encontrar origens comuns e processos migratórios comuns pelos quais os mitos tenham passado e se desenvolvido juntamente com a língua e o povo. Contudo, o excessivo foco no aspecto diacrônico pecava em explicar muitas coisas sobre os mitos, como sua função social, seu significado particular, seu aspecto prático e seu caráter religioso ou político dentro do sistema e da cultura em questão, bem como sua utilidade. Houve também uma abordagem estrutural-funcionalista da religião. Nessa perspectiva, deixava-se de considerar tão preponderantes os aspectos dia- crônicos nos mitos e levava-se em consideração seus aspectos sincrônicos, ou seja, sua função aqui e agora dentro da cultura e do sistema religioso em questão. São expoentes dessa abordagem: Émile Durkheim (1858-1917), Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 5 Marcel Mauss (1872-1950), E. E. Evans-Pritchard (1902-1973), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Georges Dumézil (1898-1986) e Joseph John Campbell (1904-1987). Uma interpretação frequente dos mitos é o chamado evemerismo. O evemerismo é uma teoria hermenêutica de interpretação dos mitos criada no século IV a.C. por Evêmero (330-220 a.C.), mas defendida já muito antes pelo sofista Pródico de Ceos (465-395 a.C.). Evêmero dizia que todos os persona- gens mitológicos, heróis ou deuses, teriam tido uma existência real e comum no passado, mas, ao longo do tempo, foram divinizados. Assim, histórias fantásticas foram sendo inventadas, e seus feitos foram amplificados por medo, ignorância ou admiração dos povos. Ou seja, não há nenhum sentido oculto nos mitos — apenas hipérboles e exageros de pessoas comuns reais do passado. David Hume e Voltaire, na modernidade, adotaram essa posição sobre os mitos cristãos. Já para Platão, os mitos tinham uma importante função política na pólis. Como o rei-filósofo é o único habilitado a mentir, então é importante criar bons mitos para o bom funcionamento da pólis. Assim, a função do filósofo não se oporia à do poeta: ambos criam e disseminam mitos, mas o primeiro cria mitos bons para o funcionamento social, e o segundo, não. Na sua obra A república, Platão censura os mitos tradicionais, contudo, não condena os mitos em si, mas sua função, porque seriam prejudiciais para a educação dos jovens na pólis. O mito deve estar à serviço da verdade, e não o contrário. As histórias fantásticas devem ser usadas de modo a incutir bons valores nos jovens. Isso se dá porque “[...] Platão, através dos mitos, trata de estruturas complexas constitutivas desse homem” (BOCAYUVA, 2014, p. 13). Bultmann (2000) também trouxe considerações importantes sobre os mitos com o seu conceito hermenêutico de demitologização. Ele argumenta que não é mais viável no mundo moderno crer nos mitos do novo testamento, porque a ciência moderna é irreconciliável com a mitologia cristã antiga. Portanto, é preciso desmitologizar o mito, o que significa que se deve ver a mensagem central por trás do mito, seu sentido simbólico. Assim, é importante depurar o cristianismo mítico da essência do próprio cristianismo, o chamado kerigma. O kerigma é a essência do cristianismo, a moral cristã nas palavras de Jesus no Sermão da Montanha, a mensagem por trás dos mitos cristãos. Assim, os milagres, a morte e a ressurreição, os exorcismos, as curas e as histórias fantásticas no Evangelho não são histórias reais, mas encobrem simbolica- mente o sentido real. Por exemplo, a história mitológica da ressurreição de Jesus esconde seu verdadeiro sentido — a saber, que a morte não é o fim, que há continuidade da vida, que o espírito prossegue sua jornada etc. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa6 Mito, para Bultmannn (2000), é o que era para o antropólogo britânico Edward Tylor (1832-1917): uma explicação primitiva e fantástica do mundo, incompatível com a explicação científica, e sua interpretação literal deve ser rejeitada para dar lugar a uma interpretação simbólica. A real intenção do mito é contar sobre o entendimento do próprio homem — por isso, o mito deve ser interpretado não cosmologicamente, mas antropologicamente e existencialmente. Bultmann (2000, p. 13-14) afirma que: Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por exemplo, a concepção do mundo como estruturado em três planos: céu, terra e inferno; o conceito da intervenção de poderes sobrenaturais no curso dos acontecimentos; e a concepção dos milagres, especialmente a ideia da intervenção de poderes sobrenaturais na vida interior da alma, a ideia de que os homens podem ser tentados e corrompi- dos pelo demônio e possuídos por maus espíritos. A esta concepção de mundo qualificamos de mitológica porque difere da que tem sido formada e desenvolvida pela ciência, desde que esta se iniciou na antiga Grécia, e que logo foi aceita por todos os homens modernos. Nesta concepção moderna do mundo, é fundamental a relação entre causa e efeito. Eliade (2019) não interpreta os mitos simbolicamente nem muda sua função aparente. Para ele, o mito é uma explicação sobre a origem de um fenômeno, e não apenas uma explicação de seu acontecimento pontual. Eliade (2019) crê que a ciência moderna também tem seus mitos, e os mitos, assim como a ciência, têm função explicativa do mundo. O mito fala sobre como em épocas longínquas os deuses criaram coisas, sociais ou naturais, que ainda existem. O mito, assim, tenta justificar o presente com histórias genealógicas passadas. Além desse aspecto “histórico-teórico” do mito, ele tem um aspecto prático — a saber, convencer o povo presente a aceitar dada tradição, reencená-la, teatralizá-la, para atualizá-la e voltar magicamente nesse tempo mítico de quando ela ocorreu, por meio de um rito acessório. Assim, o prêmio do mito é o reencontro com a própria divindade, com seu tempo primordial, e disso advém uma regeneração presente, em que se confirma que as ações presentes de dado povo estão corretas. O mito serve para não ser contestado, para ser obedecido, para servir de ligação com esse passado mítico da história. A ciência, ao contrário, não tem essa função. A ciência só explica; o mito explica e regenera. A ciência funciona por contestação constante de si mesma, o que leva a uma dúvida eterna sobre ela mesma e a um constante ruir de suas próprias bases. O mito, ao contrário, não admite revisão, ceticismo, dúvida — é essa certeza mítica que é a sua força. Os modernos creem na ciência, contudo, ela mesma precisa de seus próprios mitos constantemente — caso contrário, Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 7 deve justificar-se. Tylor, Frazer e Max Weber (1864–1920) argumentavam que o mito é vítima da secularização moderna. Eliade (2019) argumenta que o mito não morreu, mas permanece camuflado no meio da ciência. Eliade (2019, p. 122) crê que alguns "comportamentos míticos" sobrevivem no mundo moderno, como o mito do retorno às origens. O autor aponta que: [...] quando se empreendia uma inovação, esta era concebida, ou apresentada, como um retorno à origem. A Reforma inaugurou o retêm à Bíblia e ambicionava reviver a experiência da Igreja primitiva, ou mesmo das primeiras comunidades cristãs. A Revolução Francesa tomou como paradigmas os romanos e os espartanos. Os inspiradores e os chefes da primeira revolução europeia radical e vitoriosa, que assinalou não somente o fim de um regime, mas o fim de um ciclo histórico, consideravam-se os restauradores das antigas virtudes exaltadas por Tito Lívio e Plutarco. Na aurora do mundo moderno, a "origem" gozava de um prestígio quase mágico. Ter uma "origem" bem estabelecida significava, em suma, prevalecer-se de uma origem nobre. "Temos nossa origem em Roma!", repetiam comorgulho os intelectuais romenos dos séculos XVIII e XIX. A consciência de uma descendência latina era acompanhada, para eles, de uma espécie de participação mística na grandeza de Roma. Tylor (1920) defende uma completa separação entre mito e ciência. Ele inclui o mito na religião e a religião e a ciência na filosofia, dividida, por sua vez, em primitiva e moderna. A filosofia primitiva é igual à religião. Não existe ciência primitiva. A filosofia moderna tem duas divisões: religião e ciência. A religião moderna é composta de metafísica e ética, que não estão presentes na religião primitiva. A metafísica lida com entidades não físicas, das quais os primitivos não possuem a noção, já que toda entidade é física; e a ética lida com entidades morais que também não existem para os primitivos. Para ele, o mito se originou da mente infantil dos homens primitivos. Tylor (1920, p. 282, tradução nossa) foi um dos primeiros a defender a mitologia comparativa como modo de descobrir padrões mentais culturais relevados nos mitos; ele diz que: [...] tratar mitos semelhantes de regiões diferentes organizados em grandes grupos comparados torna possível rastrear na mitologia o funcionamento de processos imaginativos recorrentes com a regularidade evidente de um padrão mental; e, as- sim, histórias das quais uma única instância teria sido uma mera curiosidade isolada tomam seu lugar entre estruturas bem marcadas e consistentes da mente humana. Tylor (1920) entende a religião como animista, tanto a primitiva quanto a moderna, porque a crença em deuses é derivada da crença em almas, e as almas são entidades físicas nas religiões primitivas. A religião primitiva era análoga à ciência, porque tinha pretensões explicativas do mundo. A expli- Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa8 cação religiosa é personalista: as decisões arbitrárias dos deuses explicam as coisas. A explicação científica é impessoal: as leis naturais explicam as coisas. Como hoje a ciência explica mais e melhor do que a religião, os mitos perderam qualquer utilidade explicativa. Tylor interpreta os mitos literalmente e se opõe a qualquer hermenêutica mitológica alegórica, poética, metafórica, simbólica ou evemérica. O alemão Max Müller pensava que os próprios antigos haviam interpretado mal seus próprios mitos, considerando-os literais. Histórias originalmente simbólicas de fenômenos naturais passaram a ser lidas como descrições lite- rais dos atributos dos deuses. Por exemplo, um mar “furioso” foi interpretado como uma pessoa realmente irada, e então o mito foi criado para explicar essa antropomorfização. Isso acontecia porque, segundo Müller, as línguas antigas não possuíam substantivos abstratos ou de gênero neutro. Sempre se pensava e se falava personalisticamente e antropomorfizadamente. Os mitos foram inventados devido a uma lacuna de expressão nessas línguas antigas proto-indo-arianas (MÜLLER, 1901). Frazer (1982) considerava o mito parte da religião primitiva, e esta, por sua vez, parte da filosofia universal. A religião primitiva é contraparte da ciência natural. Mito e ciência ou verdade são exclusivos. A religião primitiva funciona como contraparte da tecnologia. O mito serve para criar eventos magicamente, como o bom rendimento da safra. O ritual é encenação do mito. Um mito querido a Frazer era o de Adônis. Adônis era filho do rei Ciníras de Chipre com sua filha Mirra. Pérsefone e Afrodite eram apaixonadas por ele. Contudo, Adônis preferia Afrodite e passava mais tempo com ela. Ares, amante de Afrodite, enciumado, mandou um javali matar Adônis. O javali atingiu fatalmente Adônis na anca, que jorrou sangue. O sangue, ao cair na terra, fez nascer uma anêmona. Afrodite, que corria para salvá-lo, feriu-se em uma rosa — as rosas até então eram todas brancas — e a transformou em rosa vermelha com seu sangue. Adônis morto desceu ao submundo e lá encontrou Perséfone. Zeus, compadecido de Afrodite, decidiu que Adônis passaria quatro meses com Afrodite, quatro com Perséfone e quatro livre. Segundo Frazer, o mito explica as estações do ano, a safra e as colheitas. O antropólogo polonês Bronisław Malinowski (1884–1942) afirma que os primitivos procuram controlar a natureza pelos ritos, em vez de explicá-la pelos mitos. Malinowski (1988) argumenta que os primitivos estão muito ocupados correndo atrás da sobrevivência para se dar ao luxo de refletir sobre isso. Para Malinowski, os primitivos usam o mito como uma reserva para a ciência. Onde a ciência para, volta-se para a mágica. Outro aspecto do mito é que ele, por narrar eventos passados sobre a origem, diz que nada Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 9 pode ser feito, que as coisas são como são, e assim tende a justificar uma moral resignada sobre os fenômenos sociais e naturais presentes. Já o rito seria seu oposto: seria a crença na possibilidade de que alguma mudança é possível, de que é possível alterar o curso da realidade; assim, um de seus pressupostos é a crença em alguma liberdade humana. A mitologia grega é muito rica e muito bem documentada. Ao longo do tempo, muitas coletâneas e versões dos mitos gregos apareceram. A Biblioteca Mitológica, de Pseudo-Apolodoro, os poemas épicos Ilíada e Odisseia, de Homero, a Teogonia, de Hesíodo, as tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, as Histórias, de Heródoto, a Biblioteca Histórica, de Diodoro Sículo, a Descrição da Grécia, de Pausânias, as Metamorfoses, de Ovídio, e a Eneida, de Virgílio, são algumas das obras que recontam os mitos gregos. Talvez um dos mitos mais famosos e populares na Antiguidade tenha sido o de Hércules. Hércules era filho de Zeus e Alcmena, filha do rei de Argos. Ele era odiado por Hera, esposa de Zeus e sua madrasta. Hércules ficou conhecido por sua extrema força, mas também por ter matado sua própria esposa Mégara e seus filhos em um acesso de raiva. Para obter a expiação desse erro, o rei Euristeu o incumbiu de 12 trabalhos, que fez com maestria. Contudo, ele morreu devido a uma poção mágica mortal, que sua esposa, enganada pelo centauro Nesso, passou em seu manto, que queimou sua carne. Zeus concedeu-lhe a imortalidade junto ao Olimpo. Em torno de Hércules desenvolveu-se um culto que foi muito popular na Península Ibérica. O estreito de Gibraltar era chamado na Antiguidade de Colunas de Hércules, e em Cádis haviam algumas torres em sua homenagem. Lévi-Strauss (2007), por sua vez, resgata uma visão intelectualista dos mitos. O mito também é uma tentativa de compreender o mundo, uma ex- plicação de algo, um procedimento intelectual. Lévi-Strauss considera que o pensamento primitivo é concreto, e o moderno, abstrato, e isso se reflete na mitologia. O pensamento primitivo é qualitativo, enquanto o moderno, quantitativo. O pensamento primitivo foca em aspectos sensíveis e visíveis da realidade — os minerais, as plantas, os barulhos, os sons, as cores, as texturas, os sabores, os odores e os mitos manipulam essas qualidades dos sentidos, enquanto o pensamento lógico moderno os exorciza da ciência. Lévi-Strauss (2007, p. 21) considera os mitos como parte da “[...] ciência do concreto”. Ainda, ele diz que todos os homens e povos pensam de modo classificatório, em pares de oposições, e as projetam no mundo. Os fenômenos culturais e os mitos, especialmente, mostram esses binarismos estruturantes da realidade e tenta solucioná-los. O próprio Lévi-Strauss nos diz qual era seu objetivo quanto aos mitos, quando escreve que: Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa10 As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma criação «fantasiosa» da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única — não se esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente. O meu problema era tentar descobrir se havia algum tipo de ordem por detrás desta desordem aparente — e eratudo (LÉVI-STRAUSS, 2007, p. 23). Para quem se interessar mais pelo tema do mito, existem algumas obras básicas, tanto coletâneas de mitos quanto teoria mitológica. Abaixo listamos os principais títulos e seus respectivos autores: � Jacob Grimm — Mitologia alemã � Pierre Commelin — Mitologia grega e romana � Jenny March — Mitos clássicos � Andrew Lang — Mito, religião e ritual � James Frazer — O ramo de ouro � Robert Graves — Os mitos gregos � Reginaldo Prandi — Mitologia dos orixás � Junito de Souza Brandão — Dicionário mítico-etimológico � Thomas Bulfinch — O livro da mitologia � Ovídio — Metamorfoses � Claude Lévi-Strauss — Mitológicas; Mito e significado � Georges Dumézil — O festim da imortalidade: estudo de mitologia comparada indo-europeia � Joseph Campbell — O herói de mil faces � Rudolf Bultmann — Novo Testamento e Mitologia � Robert Segal — Mito: uma breve introdução � Jordan Peterson — Mapas do significado: arquitetura da crença � Ernst Cassirer — Linguagem e mito � Mircea Eliade — Mito e realidade � K. K. Ruthven — O mito Rito: teatro e drama O rito, junto com o mito, é um dos principais componentes da religião. É quase difícil, para não dizer impossível, achar uma religião sem um conjunto de mitologias próprias e de ritos específicos. Mesmo aquelas Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 11 vertentes mais “racionalizadas” do cristianismo e depuradas de aparatos ritualísticos barrocos, como o luteranismo e o presbiterianismo, têm sua ritualística mínima. Mas o que é o rito? Um ritual é uma sequência de ações, pessoas, gestos, objetos e palavras específicas feitas em um local específico com uma finalidade específica, diri- gidas a uma entidade específica, para modificar alguma realidade específica. Assim, um ritual se caracteriza como profundamente concreto, performático, prático e ordenado. Enquanto o mito é essencialmente oral e narrativo, o rito é essencialmente performático. Por vezes, os ritos podem ser a atualização de um evento mítico passado. É o caso do rito eucarístico católico, que pretende ser a constante reatualização da noite da santa ceia e da morte de Jesus. Nesse caso, mito e rito caminham juntos. Todo rito depende um mito, mas nem todo mito depende de um rito. Nessa definição, estão incluídas toda a liturgia católica, ortodoxa e pro- testante, as liturgias judaicas, islâmicas e pagãs, os cultos, os louvores, os sacramentos, os ritos de passagens, os batismos, os casamentos, as cerimô- nias orientais e também os ritos não religiosos, como juramentos, coroações, posses presidenciais, inaugurações, casamentos, funerais, colações de grau, condecorações honoríficas, formaturas etc. Basicamente toda ação perfor- mática pode ser um rito. Rito, em sentido restrito, é um conceito religioso. Contudo, em uma sociedade laicizada que tomou emprestadas ritualísticas religiosas do cristianismo, pode-se perfeitamente falar em rito no sentido amplo. Contudo, à título de delimitação, sempre que falarmos de rito aqui, falaremos no sentido religioso. O termo “rito” vem do latim ritus, um conceito jurídico e religioso romano usado para significar a performance correta do direito, análoga ao nosso moderno direito processual — literalmente “o reto”, o jeito certo de fazer algo. Este, por sua vez, é derivado do sânscrito ṛtá, que significa “ordem visível” nos Vedas — ou seja, a ordem regular do normal, o modo apropriado, justo e natural da estrutura cósmica e das ações humanas. Nota-se, já na sua etimologia, que o termo “rito” tinha uma conotação ética, a saber, o modo correto de agir, que devia ser uma mimese da natureza. A natureza, para os antigos, tinha uma racionalidade intrínseca, uma lógica, um propósito — não era puro caos, mas essencialmente ordenada. Portanto, a vida humana tam- bém deveria ser assim. Os ritos, portanto, mimetizavam essa ordem natural no mundo humano. Existe um aspecto mágico nos ritos religiosos. A correta manipulação de objetos, o correto uso e proferimento de palavras secretas ou encantamentos, dada entonação de voz, o correto uso de ingredientes ou elementos, o correto Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa12 uso de roupas específicas e gestos específicos — tudo isso aproxima os rituais de um aspecto mágico. A magia, como veremos a seguir, é a manipulação e a performance de coisas com vista a alterar uma realidade natural. Os ritos se aproximam desse aspecto mágico, na medida em que exigem uma correta manipulação ou performance. William Robertson Smith (1846–1894), orientalista escocês, argumenta que a crença, ou o convencimento, só é importante para as religiões modernas, mas não era nas religiões antigas, que focavam muito mais nos rituais, ou seja, em aspectos práticos da religião. Em vez de as religiões antigas possuírem um credo, um rol de dogmas fixos, elas possuíam uma história mitológica que explicava ou justificava os ritos estabelecidos por alguma instituição direta dos deuses ou por seu exemplo. Mas esse mito explicativo não era obrigatório. Desse modo, o mito era secundário ao rito. O rito não dependia de um mito para ser performado (SMITH; SUTHERLAND, 1912). O problema da teoria de Smith é que ela somente explica o mito, mas não o rito, e, ademais, restringe o mito ao rito, de modo que só se pode compreender um mito posteriormente ao próprio rito. Para Tylor (1920), o mito é uma explicação do mundo físico, e não do ritual, e funciona independentemente do rito; é uma declaração, uma narrativa equivalente a um credo, mas na forma de uma história fantástica. O ritual pressupõe um mito para Tylor, diferentemente do que diz Smith, porque o mito é a explicação, a fundação do rito, a fonte de onde a performance se origina. Frazer dedica o cerne de seu clássico O ramo de ouro para tratar do estágio intermediário entre a religião e a ciência, um estágio em que magia e religião estão combinadas. É nessa fase do desenvolvimento evolutivo da religião que está o ritualismo mítico, porque nele o mito e o rito se fundem. Frazer (1982) mostra um exemplo de ritual mágico, em que o deus da vegetação morre e renasce. O ritual é feito quando se quer que o inverno acabe logo. O ritual funciona pela lei da similaridade, em que a imitação de um acontecimento natural faz com que ele realmente ocorra — como ocorre no vodu. Para Fra- zer, a explicação mítica é só um meio de controle, e o ritual é sua aplicação; contudo, o mito ainda está subordinado ao rito. Burkert (1979) defende a completa separação e independência entre mito e rito — contudo, ambos se reforçam mutuamente. O mito confere ao rito justificativas: deve-se dramatizar o mito porque os deuses assim o fizeram. O rito reforça o mito, transformando uma simples história fantástica em um comportamento. Burkert (1979) funda o mito no sacrifício e na violência e agressão, que tem sua origem no sacrifício da caça, expressão primitiva da agressão. O ritual do sacrifício é a caça dramatizada. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 13 A Figura 1 exemplifica um ritual dos Karajás, no Tocantins, que marca a passagem da infância para a idade adulta. Figura 1. Ritual Hetohoky, ou festa da casa grande, dos Karajás, no Tocantins, que marca a passagem da infância para a idade adulta. Fonte: Araújo (2016, documento on-line). Para Durkheim (1996), o rito, a aglomeração de indivíduos em torno da mesma crença, faz surgir uma efervescência social que leva, por sua vez, ao sentimento religioso. Sobre isso, ele escreve que “[...] só o fato da aglomeração já age como excitante excepcionalmente poderoso. Uma vez que os indivíduos estão reunidos, emana da sua aproximação uma espécie de eletricidade que os conduz rapidamente a grau extraordinário de exaltação” e “[...] portanto, é nesses meios sociais efervescentes e dessa própria efervescência que parece ter nascido a ideia religiosa” (DURKHEIM, 1996, p. 274). Magia: ilusão e encantamento Um aspecto indissociável do rito é a magia. É difícil separá-los,porque ge- ralmente o rito é um processo mágico, e a magia é um ritual. Quase todos os ritos têm um aspecto mágico, e quase toda magia tem um aspecto ritual. A magia primitiva, dos povos selvagens, a magia de tradição ocultista, a magia nas religiões africanas, a magia na cabala, a magia nas religiões antigas de mistério gregas e até mesmo a magia nos ritos do cristianismo (batismo, Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa14 eucaristia, crisma etc.) são indissociáveis de rituais. A magia quase sempre acontece dentro de um ritual, de um rito, de uma liturgia, de uma cerimônia, de uma ordem religiosa, porque sua eficácia depende de sua correta perfor- mance: palavras corretas, gestos corretos, ingredientes corretos, sacerdote correto, tempo e espaços corretos, preparação correta etc. A falta de qualquer desses elementos pode acarretar sua ineficácia. No entanto, há quem oponha magia e publicidade ritual, alegando que a magia é um ritual privado, secreto, misterioso, e não parte de um culto organizado, e que, geralmente, ela visa a algo proibido. Essa é a definição de Marcel Mauss (2000), por exemplo. Assim, a magia se opõe à religião. O que define a magia? É um conjunto de procedimentos, ingredientes, palavras, gestos, pessoas, sons, lugares e datas feitos para se alterar algum aspecto da realidade. A magia é essencialmente prática e utilitária e funda-se na crença de que o homem é capaz de alterar as coisas, se souber a magia correta. A própria etimologia da palavra nos revela isso. O termo “magia” vem o latim magia, que, por sua vez, veio do grego μάγος, que veio do proto-indo- -europeu magh, que significa “ser capaz”. A raiz do termo gerou inúmeras palavras que, para os hermeneutas mais criativos, é rico em interpretações: imagem, imaginário, magistério etc. Frazer (1982) diz que há dois tipos de magia: a homeopática e a simpática. A magia homeopática se baseia no princípio da similaridade, em que o mago imita atos que se deseja que ocorram: aspergir água na terra para fazer cho- ver, espetar o braço de um boneco para infligir dor em alguém etc. A magia simpática se baseia no princípio da simpatia, em que o objeto e o contato com dado objeto afetam a própria pessoa por contágio: cabelo, sangue e pele seriam perigosos, pois têm ligação direta com o possuidor. Por trás da crença mágica, há a crença na causalidade, o que faz com que Frazer a aproxime, nesse quesito, da ciência, visto que a ciência também opera por causalidade. Contudo, a magia, diferentemente da ciência, não pode ser guia de comportamento. A magia, para Frazer, é como uma ciência infantil — seria como uma protociência. Tanto a magia quanto a ciência também não se identificariam com a religião, porque em ambas há a crença na liberdade e no poder humanos de mudar coisas naturais. Para Frazer, a magia é anterior à religião, e a passagem daquela para esta ocorreu quando seus praticantes notaram que o rito mágico nem sempre funcionava e concluíram que havia forças maiores do que eles. Para Durkheim (1996), tanto a mágica quanto a religião pertencem ao sagrado — a diferença está na organização social. Magia descreve coisas inerentemente antissociais, contrastando com a religião, que é essencial- Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 15 mente social. Na magia, existe uma espécie de antirreligião, porque a crença mágica não pretende juntar seus adeptos e uni-los em um grupo para uma vida comum. Durkheim afirma que: [...] a religião é coisa eminentemente social. As representações religiosas são repre- sentações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estados mentais desses grupos” (DURKHEIM, 1996, p. 38). Durkheim não parece, no entanto, distinguir claramente magia e religião. Parece, nesse caso, que a divisão importante é entre o sagrado e o profano, e não entre religião e magia. Onde há esse sistema classificatório entre coisas sagradas e coisas profanas, há religião e magia. Contudo, a religião parece estar muito mais ligada à sociedade e ao caráter público e social, enquanto a magia é uma técnica utilitária individual e, por isso mesmo, desinteressante como tema sociológico. Malinowski (1988) rejeita a versão evolutiva de Frazer de que a magia se encontra no primeiro estágio evolutivo. Ele defende, ao contrário, que os três estágios estão presentes concomitantemente em cada sociedade. Segundo ele, tanto a magia quanto a religião emergem e funcionam em situações de tensão emocional; contudo, a religião é primeiramente expressiva, e a mágica é prática. Malinowski (1988) define magia como uma arte prática de atos que são somente meios para uma finalidade definida e esperada. Além do mais, na magia, as ações são feitas com vistas para um fim, enquanto, na religião, as ações são um fim em si mesmo. A magia não é irracional, mas racional dentro do sistema social onde é praticada, porque tem uma utilidade. Mauss (2009) contesta dois critérios de magia de Frazer: o da simpatia e o da coação. Frazer aponta que toda magia é simpática, ou seja, opera por seme- lhança: o semelhante produz semelhante. Contudo, para Mauss, há magias não simpáticas, há simpatia na religião, e a religião também tem força de coação. A magia é uma das muitas categorias de ritos: religiosos, solenes, públicos, obrigatórios, regulares e mágicos. Mauss traça uma distinção muito forte entre magia e religião: a religião é pública e aberta, e a magia, privada e fechada, de modo que a magia exprime uma irreligiosidade, porque não forma um culto or- ganizado, rito privado, secreto, misterioso e que tende no limite ao rito proibido. Mauss (2009) argumenta que a magia tem três elementos essenciais: o mágico, os rituais e as representações. O mágico deve ter qualidades distin- tivas das demais pessoas e passa por uma iniciação. Os rituais podem ser mais manuais ou orais, e as representações podem ser impessoais abstratas ou concretas e pessoais. Mauss diz que: Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa16 Para nós, devem ser ditas mágicas apenas as coisas que forem realmente tais para toda uma sociedade, e não as que foram assim qualificadas apenas para uma fração de sociedade. Mas sabemos que as sociedade nem sempre tiveram de sua magia uma consciência muito clara, e que, quando a tiveram, só chegaram a isso lentamente [...] A magia compreende agentes, atos e re- presentações: chamamos mágico o indivíduo que efetua atos mágicos, mesmo quando não é um profissional; chamamos representações mágicas as ideias e as crenças que correspondem aos atos mágicos; quanto aos atos, em relação aos quais definimos os outros elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos (MAUSS, 2009, p. 55). Sacrifício: morte e vida Assim como é difícil pensar em uma religião sem mito, rito e magia, é igual- mente difícil pensar uma religião sem o sacrifício. O sacrifício é uma constante universal em quase todas as religiões, seja o sacrifício propriamente dito, seja o moral. O termo sacrifício vem do latim sacrificium e significa “ofício sagrado”. Ofício, por sua vez, vem de officium e significa “dever”, “obrigação moral”. Assim, sacrifício significa “obrigação sagrada”. Há vários sinônimos para sacrifício: imolação, oferta, oblação etc. Em todos ele remete à morte de algo, ao assassinato de alguma coisa ou alguém. É a prática de oferecer aos deuses uma vítima (animal, pessoa, planta, colheita) como ato de propiciação e expiação. No judaísmo há o korban e o holocausto, no islã há o Udhiyah e o Dhabĥ, no candomblé, o Axogun, no catolicismo, a missa. Os sacrif ícios religiosos começaram com sacrif ícios animais (Figura 2). Existem inúmeros registros arqueológicos de sítios de sacrifícios ani- mais espalhados pelo mundo, mas hoje temos registros mais seguros sobre Egito, Grécia, Jerusalém e Roma Antiga. Os animais próprios para o sacrifício eram bois, vacas,ovelhas, touros, porcos e aves, o que indica que o homem começou essa prática quando aprendeu a domesticá-los. Os sacrifícios de animais consistem basicamente na degola do animal, na separação de suas gorduras, na leitura da sorte pelo fígado, no banho de sangue, na repartição das outras partes entre os sacerdotes, na confecção de utensílios litúrgicos com suas partes restantes, como as peles, e na queima de suas partes para os deuses em altares. Os altares gregos mais famosos eram o de Hieron e o de Pérgamo. O sacrifício serve tanto como agradecimento como penitência. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 17 Figura 2. Sacrifício de um porco na Grécia Antiga. Técnica de pintura em cerâmica vermelha em tondo, atribuída a Apolodoro, hoje exposta no Louvre. Fonte: Épidromos (2007, documento on-line). Talvez o pensador que mais falou sobre o sacrifício foi René Girard (1923- 2015). Sua tese fundamental é a de que os desejos são cópias, e não originais. O desejo é mimético do desejo alheio. Desejamos porque o outro deseja. Queremos porque o outro quer. O bode expiatório, o sacrifício ritual, seria uma tentativa de pôr um fim nesse conflito entre o desejo original e o desejo imita- ção. Essa violência mimética é a origem da cultura. O conflito de desejos gera uma violência direcionada para um bode expiatório. Quando muitas pessoas imitam o desejo umas das outras, elas entrarão em conflito mútuo pelo mesmo objeto de desejo. Agora, elas não desejam apenas a mesma coisa, mas desejam destruírem-se umas às outras para se apossar do mesmo objeto de desejo. Toda essa violência e agressividade tende a ser direcionada para a mesma vítima, que, antes modelo de desejo, agora é modelo de antipatia geral. O sacrifício brutal e violento dessa vítima vai gerar uma sensação de satisfação e pacificar o grupo agressivo. A vítima morta deixa de ser fonte da violência, mas salvação da própria violência. Sacrificada essa vítima, há a pacificação Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa18 e a reconciliação do grupo. Essa seria a origem da religião. O sacrifício ritual seria uma reconstituição inconsciente desse evento originário. Essa é a origem da religião e da sociedade para Girard: o sacrifício. A perseguição e o sacrifício do bode expiatório é um processo social dolo- roso, em que culpados aleatórios (mas não na perspectiva dos perseguidores e sacrificadores) são escolhidos para aplacar a ira dos deuses e saciar a sede de vingança da sociedade. Sobre isso, Girard (2004, p. 23) escreve que: Os perseguidores acabam sempre por se convencer de que um pequeno número de indivíduos ou até mesmo um só pode tornar-se extremamente nocivo para toda a sociedade, apesar de sua relativa fraqueza. É a acusação estereotipada que facilita e autoriza esta crença, desempenhando com toda evidência um papel mediador. Mauss, em seu Ensaio sobre o sacrifício (1899), entende o sacrifício como um procedimento de comunicação com o mundo sagrado e o profano pela vítima. Os sacrifícios podem ser pessoais ou objetivos e contêm um sacrifi- cante e um sacrifício. A vítima deve ser separada do mundo profano e levada ao mundo sagrado. Há dois tipos de sacrifícios: o de sacralização, como os ritos de entrada, e o de dessacralização, como os ritos de saída. Nos sacri- fícios agrários, deve-se dessacralizar a vítima para liberar o espírito divino da planta e sacralizar os novos campos de cultivo. Nesse caso, a origem dos sacrifícios está no mundo agrário, e não no pecuário. O mesmo ocorre com a noção de um sacrifício de deus, quando inicialmente só havia sacrifícios a deus. Os sacrifícios a deus são relações de trocas do mundo profano com o mundo sagrado por meio da vítima. O sacrifício de deus é a total abnegação sem barganhas. O exemplo de abnegação divina pede abnegação humana. O sacrifício mostra que os indivíduos podem se servir das forças sociais para seus objetivos. Demonstra-se que as noções religiosas existem, objetivamente, como fatos sociais. Sobre o conflito entre sacrifícios agrários e sacrifícios pecuários, leia o mito bíblico de Caim e Abel (Gênesis 4:1-7), que explica, dentre outras coisas, porque Deus prefere animais sacrificados do que colheitas: E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim, e disse: Alcancei do Senhor um homem. E deu à luz mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o Senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 19 sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou. E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra. Então disse Caim ao Senhor: É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará. O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse. E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Node, do lado oriental do Éden. E conheceu Caim a sua mulher, e ela concebeu, e deu à luz a Enoque; e ele edificou uma cidade, e chamou o nome da cidade conforme o nome de seu filho Enoque. O funcionalismo e a religião A escola funcionalista em ciências sociais foi uma reação às escolas de ten- dência evolucionista e difusionistas. Seu “pai” foi Émile Durkheim. Em suas três principais obras, é possível ver a aplicação do seu funcionalismo: A divisão do trabalho social (1893), Regras do método sociológico (1895) e Formas elementares da vida religiosa (1912). Na Divisão do trabalho social (DTS), há duas tipificações de sociedade possíveis, as simples e as complexas, cada qual com suas características e uma antitética à outra. As sociedades simples são sociedades com pouca diferenciação social, em que predomina a coletividade, há menos liberdade individual e, por isso, o direito deve ser repressivo. As sociedades complexas se caracterizam como sociedades com muita diferenciação social, em que predominam o indivíduo e os direitos individuais, e o direito é restitutivo. Até aqui, na DTS, Durkheim (2010) somente repete algumas generalizações antropológicas de seu tempo sobre sociedades primitivas e modernas. No entanto, há uma inovação. Durkheim (2010) diz que o que mantém essas duas sociedades unidas em seu interior são, respectivamente, dois tipos de solidariedade: a mecânica e a orgânica. Em sociedades simples, a unidade e a coesão social são conseguidas por meio do direito repressivo e da baixa diferenciação entre os indivíduos, e não há espaço para a liberdade individual. Esse tipo de solidariedade entre os membros é chamada de solidariedade mecânica. Nelas, ainda não há divisão social do trabalho, e, justamente por isso, a solidariedade é mecânica. Já em sociedades complexas, há uma enorme divisão social do trabalho e é esta que faz seus membros se unirem em solidariedade orgânica. Assim, a primeira inovação, ao comparar socie- Mito, rito, magia,sacrifício e narrativa20 dade primitivas e modernas, está no vínculo de solidariedade proporcionado pela divisão social do trabalho. A divisão social do trabalho, assim, não é necessariamente um mal do capitalismo, mas tem uma função específica no interior dessas sociedades. Aqui está a inovação metodológica de Durkheim: a ideia de função. Em sua segunda obra, Regras do método sociológico (RMSs), a ideia de função já aparece bem formulada. Nessa obra, há cinco noções metodológicas importantes para as ciências sociais. A primeira é a noção de fato social. O objeto próprio da sociologia são os fatos sociais. Nisso, as RMSs estão acompanhando o naturalismo metodológico de Comte. O naturalismo diz que toda realidade é subsumida pela natureza e que, portanto, a natureza é a única fonte das explicações possíveis. A própria palavra “fato” é buscada na distinção naturalista entre fato e valor. Fato é aquilo que pertence à natureza, e não ao mundo humano (DURKHEIM, 2019). Portanto, ao dizer que a sociedade deve ser estudada com um fato, Durkheim (2019) está dizendo que a sociedade deve ser estudada como um objeto natural, mesmo sabendo que não o é. A primeira regra é considerar um fato social como uma coisa. Portanto, a noção de fato social durkheimiana decorre, antes, de seu naturalismo metodológico, herança claramente positivista. Um fato social, assim como um fenômeno natural, é exterior, geral e constringente. Então, temos que o naturalismo metodológico desliza para a noção de fato social, e esta, por sua vez, implica que mesmo as exceções na natureza, as anomalias, as diferenças, estão englobadas e não são, propriamente, aber- rações dentro do sistema, mas exercem uma função. Portanto, o naturalismo metodológico durkheimiano implica em seu funcionalismo metodológico. Em miúdos, isso quer dizer que, dentro da sociedade, as exceções e diferenças são abarcadas e englobadas, a fim de que o organismo chegue a uma homeostase social, um equilíbrio, uma resolução de conflitos. Ideia muito diferente, por exemplo, a título de comparação, daquela de Marx. Outra noção metodológica presente nas RMSs é a de holismo metodo- lógico. Na verdade, é uma consequência da noção de fato social. O holismo metodológico afirma que a sociedade precede o indivíduo, a sociedade é um todo orgânico. A generalidade do fato social implica que ela, a própria sociedade, é maior que o indivíduo. O todo precede as partes. Se as coisas que sucedem na sociedade devem ser encaradas como fato social, e se o fato social se caracteriza como exterior, geral e constringente, então o fato social é maior que o indivíduo e tem capacidade de englobá-lo. Portanto, o todo, a sociedade, é maior que suas partes, os indivíduos. Isso implica em um certo antivoluntarismo, por certo. Durkheim (2019) observa que, mesmo em uma Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 21 sociedade livre como a moderna capitalista França, ainda assim o indivíduo não pode se desvincular de inúmeras coisas ou fatos sociais: a linguagem, o direito, as instituições sociais, os padrões morais gerais. Há sempre algo maior que constringe os indivíduos. A terceira noção metodológica é a da morfologização social: substituir a multiplicidade de indivíduos por um número restrito de tipos sociais. Visto que é impossível estudar todos os indivíduos e as relações entre eles, deve- -se tipificar agrupamentos e criar morfologias sociais explicativas do mundo social. Por fim, o quarto princípio metodológico nas RMSs é o do método comparativo. O método comparativo é o único que convém à sociologia. Deve-se comparar variações seriadas, regulares, ligadas entre si, graduadas e contínuas. Por meio dessas comparações, pode-se chegar a alguma lei social. O que Durkheim (2019) está apontando aqui não é a comparação diacrônica entre fenômenos sociais iguais em sociedades diferentes, à moda dos evolu- cionistas culturais ingleses. Trata-se de comparações sincrônicas entre fatos sociais iguais em sociedades contemporâneas, sem buscar a origem ou casa de tal fato social no passado. Assim, a noção do método comparativo pode ser expressa como sincronia, em vez de diacronia. Outra obra evidente do funcionalismo de Durkheim é Formas Elementares de Vida Religiosa (FEVR). A ideia de função perpassa toda ela. Não é somente uma teoria social, mas um princípio metodológico: as diferenças, as anomalias, as clivagens e mesmo os próprios indivíduos devem ser vistos, por princípio metodológico, como funções neste organismo vivo chamado sociedade. Em FEVR, a noção de função está plenamente desenvolvida. A religião é definida como um sistema social, ou seja, uma funcionalidade social. Mesmo no auge do capitalismo do fin de siècle, quando a religião era vista com desprezo, sombra de um mundo passado primitivo, Durkheim (2001) afirma que ainda há funcionalidade da religião no interior da sociedade moderna. Durkheim (2001), ao analisar o totemismo australiano, conclui que os componentes elementares da religião são as crenças e os ritos. As crenças são sistemas filosóficos explicativos, tão funcionais como a ciência para os modernos, e os ritos são sistemas práticos, igualmente tão funcionais como a medicina ou o direito. Há rituais positivos, que são os deveres, e negati- vos, que são os tabus. A religião é um sistema cognitivo-classificatório. O conhecimento tem origem na vida social. Sem a vida social seria impossível conhecer o mundo. É em sociedade que as pessoas constroem suas ideias, seus conhecimentos, suas palavras classificatórias das coisas. Assim, a religião funciona como o primeiro sistema classificatório e cognitivo humano. Para Durkheim (1996, p. 344), as forças religiosas: Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa22 [...] são forças apenas coletivas hipostasiadas, isto é, forças morais; são feitas de ideias e dos sentimentos que o espetáculo da sociedade desperta em nós, não das sensações que nos vêm do mundo físico. Elas são, portando, heterogêneas às coisas sensíveis nas quais nos situamos. Podem perfeitamente tomar dessas coisas as formas exteriores e materiais sob as quais são representadas; mas nada lhes advém daquilo que faz sua eficácia. Elas não estão presas por laços internos aos suportes diversos sobre os quais vêm se colocar; não têm raízes neles; de acordo com uma expressão que já empregamos e que pode servir para caracterizá-las melhor, elas se acrescentam a eles. Marcel Mauss, ele também um funcionalista e sobrinho de Durkheim, aplica seu funcionalismo como uma chave de leitura social, em especial para os fenô- menos religiosos, em seus ensaios Esboço para uma teoria geral da magia (1904) e Ensaio sobre a dádiva (1924). Mauss faz uma interpretação funcionalista da religião, em particular dos fenômenos da magia e do sacrifício. Quanto à magia, Mauss (2000) a insere em uma espécie de rito, no entanto, de caráter privado, fechado, misterioso, secreto, por tender a ações mal vistas socialmente. Esse tipo específico de ritual precisa de no mínimo três elementos essenciais, a saber: � o mágico, aquele que faz a magia, que deve ser um iniciado e saber lidar com essa técnica; � os rituais propriamente ditos, ou seja, a sequência de ações e palavras corretas para que a magia funcione; e � as representações impessoais ou pessoais. Quanto ao sacrifício, Mauss (2008) o tratou sob a forma de dádiva. Dife- rentemente do sacrifício animal, a dádiva é outra forma de sacrifício. Mauss começa seu famoso ensaio tratando de um poema escandinavo sobre a obrigação de dar e receber presentes. O texto é uma grande reflexão sobre formas arcaicas de contrato e trocas protoeconômicas, comparando-as entre sociedades da Polinésia, da Melanésia e do noroeste americano. Nessas formas arcaicas, nota-se a obrigação de dar, receber e retribuir, que existem também nas sociedades ocidentais. Nas sociedades primitivas, os contratos são feitos entre clãs e tribos por meio de trocas coletivas de presentes, de modoa formar um sistema de dádivas. Esse sistema é não apenas econômico, mas moral; são prestações e contraprestações de presentes, alianças e amizades. Ele os chama de sistemas de prestações totais. Neles, circulam amabilidades, banquetes, ritos, serviços, mulheres, crianças, festas, danças e objetos também. Tudo é objeto de troca. A finalidade é a comunhão entre as partes. As coisas trocadas têm uma alma própria ligada ao doador, o chamado hau. Assim, dar um objeto é dar-se. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 23 As noções de honra, prestígio e vaidade estão presentes nessas trocas. Quando alguém doa, doa-se e estabelece uma dívida com que recebe. A dádiva é sempre uma dívida. Para pagá-la, ele também deve doar. O donatário deve oferecer uma dádiva à altura da que recebeu. Quanto mais grandiosas as doações, maior prestígio concedido a seus doadores. Um exemplo notável é o ritual do Potlatch norte-ameríndio, em que há uma forma agonística da troca, marcada pelo sacrifício. Outro funcionalista importante no tema foi Evans-Pritchard. Ele fez um trabalho de campo entre os Azande, um povo selvagem primitivo africano. A noção de bruxaria entre esse povo é como uma filosofia natural, ou ao menos tem tal função análoga. Por ela se explicam acontecimentos cotidianos e tam- bém aqueles considerados sobrenaturais. Além de aspectos protoepistêmicos, a bruxaria tem aspectos morais, pois regula o comportamento desse povo. A hipótese de bruxaria nos eventos lúgubres é rejeitada quando há possibilida- des outras, como o oráculo e a quebra de um tabu (EVANS-PRITCHARD, 1965). Nesse sistema, qualquer um pode ser considerado bruxo ou alvo de bru- xarias. Entre eles, a magia e os oráculos são usados como modo de identificar os bruxos. As relações de causalidade feitas entre os Azandes não admitem a coincidência ou o acaso — tudo tem uma causa, por mais remota que seja, e a bruxaria tenta suprir as lacunas causais quando não se sabe ou não se tem outra possibilidade. Contudo, mesmo tendo outras hipóteses, eles sempre recorrem à bruxaria como explicação de infortúnios, chamando-a de umbaga, ou “segunda lança”. A primeira lança é a primeira causa de morte de um animal, a segunda lança contribui para a morte. Assim, analogamente, ao usar a palavra umbaga, segunda lança, para se referir à bruxaria, os Azande creem que, de um modo ou de outro, a bruxaria sempre está presente nos infortúnios (EVANS-PRITCHARD, 1965). Evans-Pritchard é um grande crítico tanto das teorias psicológicas sobre a religião como das sociológicas de viés evolucionista e difusionista. Ele critica a pretensão dos antropólogos dessas duas correntes em comparar culturas diferentes. Em sua opinião, essas correntes tendem a ver o mundo dividido entre “nós” e “eles”, em que: [...] nós somos racionais, eles são povos pré-lógicos vivendo em um mundo de sonhos, de mistérios e temor; nós somos capitalistas, eles comunistas; nós somos monogâmicos, eles promíscuos; nós monoteístas, eles fetichistas e animistas, pré- -animistas ou coisa do gênero e etc. O homem selvagem assim era representado como infantil, rude, comparável a animais e imbecis (EVANS-PRITCHARD, 1965, p. 105, tradução nossa). Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa24 O caráter conservador do rito Na manutenção da religião, o rito tem um papel fundamental. Como o rito tem um caráter, quase sempre, de dramatização do mito, e como o mito é uma narrativa fantástica sobre as origens de uma tradição, um costume, uma moral, uma pessoa, um herói, um deus ou um fenômeno natural, então o rito preserva as tradições. Por meio do rito, o passado é constantemente reatualizado no presente. Esse é o caso da missa cristã, por exemplo. Um ritual de sacrifício se perpetua no tempo ininterruptamente, por meio da memória de uma história fantástica. O rito, além de preservar a religião e as tradições morais, preserva as relações comunitárias. É importante ter em mente que a maior parte das religiões surgiu e se desenvolveu intimamente ligada à política, ao governo, aos reis, aos governantes, de modo que a separação entre os conceitos mo- dernos de Estado e de religião é muitíssimo recente, remontando à Revolução Francesa. Na grande maioria das religiões primitivas de que a antropologia trata, a religião ainda é intimamente ligada à vida social e política. Desse modo, é quase impossível separar ritos religiosos de ritos políticos, porque toda a vida social dos primitivos é profundamente imersa em ritos. As antigas cerimônias de coroação dos reis eram ritos políticos, mas também religiosos. As cerimônias rituais de sacrifício no antigo templo judaico de Salomão eram ritos religiosos, mas profundamente políticos. E, mesmo na Roma Antiga, onde nasceu a ideia de república, os rituais oblativos e as cerimô- nias de preparação à guerra eram ritos tanto religiosos como políticos. A religião permeava toda a vida social na Antiguidade e ainda permeia nos povos arcaicos. Alguns pensadores refletiram muito sobre o papel da religião e de seus elementos míticos e ritualísticos no mundo moderno, como Max Weber e Jean- -Marie Guyau (1854-1888). Cassirer (1946, p. 44, tradução nossa) aponta que “[...] consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e da moralidade, as formas básicas de comunidade e estado estão todas originalmente ligadas com concepções mítico-religiosas”. Se assim for, todos os aspectos sociais estão intimamente ligados com aspectos profundamente religiosos e míticos, mesmo em um mundo supostamente racional e tecnológico como o nosso. Weber (2013) falou que o mundo moderno do século XIX estava passando por um grande desencantamento do mundo — literalmente, em alemão, uma entzauberung der welt —, uma “desmagicalização”. Nele, o mundo, em um crescente de racionalidade, pragmatismo, utilitarismo e capitalismo, vai perdendo suas origens religiosas, esquecendo sua herança religiosa, Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 25 perdendo o encanto e o mistério sobre as coisas da vida, de modo a levar a consequências trágicas do ponto de vista social e psicológico. Guyau (2014) falava que o futuro da religião não seria propriamente seu desaparecimento, como advogavam os positivistas, em que a religião seria apenas um estágio passado na evolução humana, mas, sim, que a religião seria transmutada em uma espécie de irreligião, uma mistura sincrética de credos, de tradições religiosas conflitantes e de ciência, de modo a ser mais palatável para o público. Guyau influenciou muitos pensadores como Nietzsche, Bergson, Jankelévitch e Kropotkin. Já Durkheim (2001) viu nas religiões primitivas a expressão de uma coesão social perdida na modernidade. Nas sociedades simples, onde há pouca diferenciação social e pouco valor à liberdade individual, com predomínio da coletividade e do direito repressivo, a coesão social se obtém por solidariedade mecânica. Ou seja, mecanicamente, como em uma engrenagem fabril, tudo nessas sociedades simples é feito para funcionar bem, sem percalços, e os mínimos sinais de caos e liberdade individual são solapados para preservar a unidade. A religião e seus ritos nessas sociedades são fatos sociais funcionais para a manutenção da ordem, da homogeneidade e da coesão. O rito, para Durkheim, é um dos componentes dos fatos religiosos, junto com as crenças, e exprime condutas chanceladas pelas crenças. Tanto os ritos como as crenças organizam o mundo entre coisas sagradas e coisas profanas. Os ritos coletivos têm as funções de pôr o povo que os pratica em movimento para sua celebração e, assim, aproximar os indivíduos, reforçar seus laços de proximidade e coesão, criar inimigos e amigos comuns e criar uma identidade comum. A sociedade molda e envolve os indivíduos nos fatos religiosos; por meio dos ritos, esses indivíduos praticam tais fatos mais despertos e ligados. Deixamos uma questão: como o mundo republicano, democrático, liberal e laico moderno consegue criar coesão socialsem os ritos religiosos e sem uma mitologia comum? Essa pergunta ecoa desde a Revolução Francesa. Dado que hoje a religião e os seus ritos não são mais fundamentos para a unidade política, como a sociedade contemporânea consegue alguma uni- dade e coesão social sem mitos fundacionais e sem ritos próprios? Pode o mundo social sobreviver sem uma mitologia e sem rituais? Pensemos sobre os símbolos nacionais, sobre o hino nacional, sobre a bandeira, sobre os processos de independência dos países latino-americanos durante o século XIX, sobre a tentativa de criação de uma identidade nacional nos primeiros anos de proclamação da República no Brasil. A república e a democracia modernas não criaram seus próprios mitos e ritos para ter unidade e coesão social? Seria a política moderna uma nova forma de religião? Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa26 Referências ARAÚJO, W. Festa Hetohoky da etnia Karajá representa identidade cultural do Estado. Portal Tocantins, 16 mar. 2018. Disponível em: https://portal.to.gov.br/noticia/2018/3/16/ festa-hetohoky-da-etnia-karaja-representa-identidade-cultural-do-estado/. Acesso em: 16 nov. 2020. BOCAYUVA, I. A atualidade dos mitos presentes na obra de Platão. Archai, n. 13, p. 115-120, 2014. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/archai/article/ view/8491. Acesso em: 16 nov. 2020. BULTMANN, R. 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Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 27 Leituras recomendadas SEGAL, R. Myth: a very short introduction. Oxford University Press, 2004. VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 2013. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa28 ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Problematizar a questão da antropologia urbana nos âmbitos individual e social com base no conceito de comportamentos desviantes. > Descrever os possíveis diálogos entre a antropologia urbana e as demais ciências humanas. > Identificar as novas identidades religiosas e as novas práticas ritualísticas no contexto urbano. Introdução Neste capítulo, você vai aprender sobre o espaço urbano a partir de uma perspectiva das ciências sociais, mais especificamente, da antropologia, e sua inter-relação com os demais campos das ciências sociais. A antropologia urbana é um subcampo da an- tropologia relativamente recente nas ciências sociais. Consolidou-se como disciplina entre o final da década de 1960 e o início de 1970. Sua contribuição perpassa estudos dos fenômenos urbanos, principalmente fenômenos manifestados nas grandes metrópoles, onde há maiores complexidades e diferenciações sociais e culturais. Assim, neste capítulo, você vai estudar como surgiu a antropologia urbana, quais são seus métodos e suas técnicas e quais são as suas especificidades dentro da grande área que é a antropologia. Você também vai compreender como antropólogos urbanos compreendem o comportamento desviante no meio social, bem como o que é o comportamento desviante. Por fim, você vai aprender sobre as formas de manifestações religiosas no meio urbano. Antropologia urbana Ráisa Lammel Canfield Introdução à antropologia urbana A antropologia, de forma geral, é um dos campos de conhecimento das ci- ências sociais. Ela tem como objeto principal de análise os estudos cultu- rais — dentro desse amplo campo de possibilidades que existe dentro das expressões culturais — e as formas como os seres humanos são constituídos socialmente e expressam suas identidades a partir do que foi internalizado culturalmente. Ela surgiu no contexto histórico de expansão das grandes navegações, quando diferentes civilizações passaram a interagir ao entrar em contato umas com as outras. As primeiras explicações para as diferenças culturais foram elaboradas com base nos determinismos biológico e/ou geográfico. O determinismo geográfico se mobilizava para explicar diferenciações culturais tendo como base o território de moradia dos grupos sociais considerados diferentes. Já o determinismo bioló- gico buscava explicar tais diferenciações com base nos aspectos biológicos dos sujeitos. As explicações deterministas justificavam as diferenças, por exemplo, a partir do que era considerado como capacidades inatas aos seres humanos, dentro das diferenciações criadas a partir do critério racial. Nesse sentido, esse modelo explicativo reforçava a dominação sobre certas populações a partir de um viés carregado de preconceitos e sem sustentação científica (LARAIA, 2001). Um exemplo de argumento determinista pode ser demonstrado a partir da justificativa dada para a escravização de povos africanos, quando diziam que se tratava de uma “raça submissa”. Outro exemplo pode ser identificado no fragmento contido no Tratado da Terra do Brasil, escrito por Pero de Magalhães Gândavo (2015), que diz que os índios se constituem como “povo sem fé, lei e rei”, além de preguiçoso. Tais afirmações consistiam em justificativas para desprezá-los, inferiorizá-los e dominá-los. Os estudos antropológicos surgiram para refutar esses determinismos. Ao estudar de forma minuciosa cada cultura, os antropólogos puderam constatar e afirmar que não existe povo mais ou menos evoluído, assim como não existe nenhum que possa ser considerado como melhor ou pior. O que existem são diferenças culturais, de significação para as ações e concepções de mundo, não sendo possível, portanto, justificar qualquer diferença a partir de aspectos biológicos ou geográficos. Foi a partir dos primeiros estudos antropológicos que aprendemos mais profundamente sobre hábitos e costumes dos povos primitivos. Ou seja, a partir de estudos antropológicos, podemos aprender como determinado Antropologiaurbana2 grupo social é formado e desenvolve sua cultura e como os costumes e valores constitutivos dessa cultura são produzidos, reproduzidos e internalizados por seus participantes. É um trabalho de imersão que busca compreender como cada ação e concepção de mundo é significada pelos indivíduos em análise. Somos, portanto, seres produtores, mas também produto da cultura, e o principal fator disso é a linguagem, o que também nos faz diferenciar de outras espécies animais. Por exemplo, a arte rupestre foi uma das primeiras formas de representação artística, mas também de expressão da consciência simbólica humana. Foi a partir dela que a linguagem humana se desenvolveu e pôde ser expressa e significada de diferentes formas. É com base em narrativas emitidas por interlocutores que, a partir de estudos antropológicos, memórias são reconstruídas, por meio de processos de construção e expressão de identidades, sejam elas subjetivas, artísticas, religiosas, políticas etc., assim como de qualquer especificidade cultural de qualquer grupo populacional, comunidade, tribo etc. (LARAIA, 2001). Para saber mais sobre antropologia, acesse o canal Leituras Obri- gaHISTÓRIA no YouTube e assista aos vídeos “O que é ANTROPOLOGIA? - Antropológica” e “O que é ETNOGRAFIA e como fazer? - Antropológica”. No primeiro vídeo, a antropóloga Mariane Pisani explica o que é a antropologia, de forma mais abrangente do que é apresentado neste capítulo e, no segundo, o que é a etnografia, método próprio da antropologia. Como campo de conhecimento, a antropologia parte de um método de investigação próprio, a etnografia. Este é um método que tem por base a chamada observação participante, em que os pesquisadores se inserem no campo a ser pesquisado e passam a acompanhar a rotina. O objetivo é coletar dados que auxiliem na compreensão das diferentes formas com que os sujeitos dão significado às suas ações e compreendem os espaços em que estão inseridos, sem deixar de contextualizá-los. De forma geral, a etnografia é um método que auxilia no processo de compreensão das representações e concepções de mundo de diferentes grupos sociais. Geertz (1978, p. 15) define a etnografia da seguinte forma: […] segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer rela- ções, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário de campo e assim por diante. Mas não são estas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que define é um tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrição densa. Antropologia urbana 3 É por meio dessa descrição densa e minuciosa, como diz Geertz (1978), que passamos a compreender aspectos que são específicos de cada cultura, de cada grupo social. Podemos entender também como, por exemplo, uma determinada concepção, comportamento ou categoria pode ser reproduzida e compreendida de forma diferente, de acordo com o meio em que os sujeitos estão inseridos. Para exemplificar de forma didática e simples essa ideia, há um relato clássico na antropologia que é o famoso “caso das piscadelas”, um exemplo de como uma simples piscadela pode ter diferentes significados. Direcionar uma piscadela a alguém pode significar um interesse (paquera) ou pode ser um sinal de alerta, de consentimento ou mesmo um “tique nervoso”, e é nesses pequenos significados que os antropólogos se detêm. O estudo minucioso, de observação em detalhes, permite explicar os rituais, os costumes e os significados das ações, das categorias sociais, das normas, enfim, das concepções de mundo e das estruturas de significação em geral. A antropologia é, portanto, um campo geral de conhecimento, e, dentro dele, há diferentes subcampos, como antropologia da alimentação, antropo- logia da educação, antropologia brasileira, antropologia econômica, antro- pologia do direito, dentre outras que podem, inclusive, se sobrepor. Daremos ênfase neste capítulo à antropologia urbana. A antropologia urbana se consolidou como disciplina no final da década de 1960 e, de certa forma, rompeu com os estudos clássicos voltados às sociedades tradicionais (camponesas e indígenas, especialmente). As- sim, voltou-se aos estudos em espaços urbanos, com foco nas chamadas sociedades complexas, em contraponto às sociedades tradicionais ou primitivas. O contraponto é no sentido de que, nos espaços urbanos, a configuração social é diferente e com maior complexidade do que nas comunidades tradicionais. Nos espaços urbanos, há uma diversidade de grupos sociais, com es- tilos de vida diversificados e normas diversas; os indivíduos podem se entrelaçar, de forma sobreposta ou não, construindo e reconstruindo suas identidades e concepções de mundo. Por isso, também não podemos afirmar a existência de uma cultura comum a todos. Sendo assim, cabe ao antropólogo social compreender as lógicas urbanas, as especificidades dos territórios, a forma como os indivíduos vivenciam esses espaços e dão sentidos a eles. No decorrer deste capítulo, essas especificidades ficarão melhor especificadas. Antropologia urbana4 Comportamentos desviantes e a relação indivíduo versus sociedade No campo das ciências sociais, a discussão sobre a relação indivíduo versus sociedade e/ou cultura é recorrente entre os teóricos clássicos, como Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber, e também entre os contemporâneos, como Norbert Elias e Pierre Bourdieu. De forma geral e resumida, as perspectivas variam conforme descrito a seguir (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002). 1. Foco na influência da sociedade sobre o indivíduo, ou seja, na coerção social a partir das normas e instituições sobre os indivíduos — nesse caso, as formas de agir, pensar e sentir são propriedades que existem fora das consciências individuais, pois dependem das relações externas a eles para serem produzidas (Émile Durkheim). 2. Foco nas relações e ações sociais, com a identificação dos sentidos dados às ações e de como as ações coletivas impactam as estruturas coletivas, e não exclusivamente as estruturas no comportamento individual (Max Weber). 3. Foco de análise de acordo com o contexto das condições materiais e situações sociais, pois são os acessos materiais dos sujeitos que determinam suas condições e suas subjetividades (Karl Marx). O modelo analítico varia conforme o autor e a intensidade com que os aspec- tos subjetivos e/ou sociais impactam a construção das identidades e produções culturais. Mas, de forma geral, podemos compreender que a relação entre indivíduo e sociedade é construída como uma via de mão dupla: estruturas e instituições sociais influenciam e são também influenciadas pelas ações dos sujeitos, estando todos em transformações contínuas. Com isso, percebemos, de início, que esse é um tema complexo dentro das ciências sociais. A seguir, vamos direcionar o foco para a forma como Velho (2013) constrói a noção de comportamento desviante a partir de diferentes concepções teóricas (descritas a seguir) que se apropriam da relação entre indivíduo e sociedade para indicar caminhos possíveis dentro da antropologia urbana. Historicamente, os comportamentos desviantes eram explicados por pers- pectivas atualmente superadas dentro do campo das ciências sociais, como o positivismo e o determinismo biológico. Por um lado, havia explicações que indicavam que os desvios eram decorrentes de uma sociedade disfun- cional, por outro, que eram características inatas aos indivíduos desviantes, caracterizando-os como criminosos natos. Tais concepções remontam ao Antropologia urbana 5 século XVIII, quando surgiu o chamado cientificismo, corrente de pensamento decorrente de diversas áreas de saberes que estavam em efervescência na Europa Ocidental. Entre esses saberes, destacavam-se a frenologia, a fisiono- mia, o darwinismo, o positivismo, a craniologia, dentre outros (BANDERA, 2013). Merton (1949) é um autor que seguea mesma linha de Durkheim ao estudar a relação do comportamento desviante, pois se apropria de uma explicação funcionalista, que indica que comportamentos desviantes são decorrentes do mau funcionamento das instituições sociais e da consequente fragilidade dos laços sociais. De acordo com esse autor, há pressões sociais que favorecem o desvio de comportamento, quando, por exemplo, determinados padrões sociais não podem ser seguidos ou quando socialmente também não são oferecidos os meios para alcançar esses padrões. Quando isso acontece, é gerada uma situação de anomia. Nesse momento, há o que Merton chama de comportamento aberrante, o qual “pode ser considerado sociologicamente como um sintoma de dissociação entre as aspirações culturalmente prescritas e as vias socialmente estruturadas para realizar essas aspirações” (MERTON, 1949, p. 207). Ou seja, o conceito de anomia indica uma sociedade doente, e os sintomas são os comportamentos desviantes. A teoria da anomia supera a posição lombrosiana e positivista em relação ao desvio, ao classificar a anormalidade como um fato social e presente no convívio social humano desde sempre. A conduta desviante, portanto, tem a função de permitir que a sociedade defina com maior clareza seus padrões de ordem moral, ou seja, sua consciência coletiva, sedimentando os valores da população. No entanto, para Velho (2013), essa perspectiva é ainda insufi- ciente, pois remete a possíveis relações de causalidade com patologias para explicações dos comportamentos desviantes. Ou seja, segundo o autor, a partir do conceito de anomia, passa-se da ideia de uma patologia do indivíduo para uma patologia do social. Dentro dessa perspectiva, a anomia se refere à desorganização de normas e valores, à falta de acordos e de respeito às normas, gerando a sensação de insegurança e produzindo um ambiente social favorável ao aparecimento de indivíduos “anômicos”. O problema de desviantes é, no nível do senso comum, remetido a uma perspectiva de patologia. Os órgãos de comunicação de massa encarregam-se de divulgar e enfatizar esta perspectiva quer em termos estritamente psicologizantes, quer em termos de uma visão que pretende ser “culturalista” ou “sociológica”. A formulação deste tipo de orientação é feita a partir de trabalhos muitas vezes de orientação acadêmica, que não são capazes de superar a camisa de força de preconceitos e intolerância (VELHO, 2013, p. 36). Antropologia urbana6 Partindo disso, Velho (2013) se propõe a analisar o desvio a partir de uma perspectiva que dê conta de explicar como determinados compor- tamentos são classificados como desviantes, mas desde que de forma relativizada. Isso é considerado no sentido de que não há uma verdade absoluta quando se fala de fenômenos culturais, pois há valores que são relativos e precisam ser analisados dentro dos contextos sociais especí- ficos em que ocorrem. O autor chama a atenção para o fato de que os sujeitos agem como des- viantes em determinadas situações, mas também como cidadãos “normais” em outras. Por isso, patologizar a questão é generalizar e condicionar os sujeitos a algo maior do que eles, criando, assim, um marcador permanente nas identidades. Para Velho (2013), por fim, a antropologia urbana deve ana- lisar os comportamentos desviantes, buscando pontos de encontro entre as tradições “psicológicas” e também as “socioculturais”. Comportamento desviante é todo ato efetuado contra normas em geral, o que pode variar conforme o contexto sócio-histórico. Por isso, esse é também um fenômeno que pode ser analisado pela antropologia urbana, pois pode ser compreendido como um aspecto cultural, se pensarmos que um mesmo ato pode ser entendido ou não como desviante dependendo de onde é praticado e em que período histórico é efetivado. Por exemplo, o consumo de determinadas substâncias psicoativas, especialmente a maconha, não é criminalizado em países como Holanda e Uruguai, mas no Brasil, sim. Desse modo, o ato de consumir droga é considerado desviante no Brasil, mas não na Holanda. Por isso, a categoria desviante está muito atrelada à ordem moral e à consciência coletiva de cada sociedade em específico. Diálogos entre ciências humanas e antropologia urbana Sinalizamos anteriormente que o campo de estudos culturais é amplo e he- terogêneo. Agora, vamos enfatizar a importância dos estudos antropológicos urbanos frente aos demais campos do conhecimento das ciências sociais, como sociologia, economia, psicologia, história, entre outros. O objetivo é tentar mostrar como a antropologia urbana pode introduzir um olhar mais humano para as cidades, pois as experiências vividas e as sensibilidades coletivas se tornam dados para os antropólogos sociais durante a construção dos estudos urbanos. Antropologia urbana 7 Dentro das ciências sociais, os estudos urbanos passaram a ganhar maior notoriedade a partir da década de 1970 entre sociólogos e antropólogos da Escola de Chicago. Esta, segundo Frúgoli Jr. (2005, p. 134), foi “a primeira [es- cola] a tomar a cidade como laboratório privilegiado de análise da mudança social”, buscando entender, inicialmente, aspectos da “desorganização social” e abrindo espaço para uma série de investigações antropológicas. Na mesma época, o campo de pesquisa da antropologia urbana estava se consolidando no Rio de Janeiro e em São Paulo. As primeiras pesquisas urbanas perpassavam relações com a violência, principalmente com pesquisas realizadas nas periferias urbanas, e buscavam compreender os fatores sociais e culturais por trás dos crimes e os distintos papéis sociais desenvolvidos na atuação do mundo ilegal do tráfico de drogas. Pesquisas como a da antropó- loga Alba Zaluar (2007) são referência até hoje nos estudos da antropologia e da sociologia da violência. Zaluar (2007) traz aspectos sobre as diferentes formas de sentir, vivenciar e efetivar violências, sem deixar de problematizar as distintas dimensões das violências, que podem possuir configurações decorrentes de violações nem sempre materiais ou físicas, mas também do campo simbólico, psicológico, institucional e moral (ZALUAR, 2007). Outro viés analítico, no caso de São Paulo, é o construído a partir de movi- mentos culturais com diferentes formas de manifestação, como os realizados por grupos de jovens ligados ao hip hop, ao grafite, aos slams etc. Trata-se de expressões muito atreladas às relações étnicas, aos territórios de moradia e a reivindicações sociais, podendo servir também como formas de resistência às diferentes situações. Esse campo é permeado por todo um contexto de representações compartilhadas e reproduzidas por meio das músicas, dos grafites e das ações promovidas por esses grupos. Muitas das representações, no entanto, trazem à tona questões étnicas, de gênero, geracionais, morais etc. sobre as violências existentes nos territórios de periferia, principalmente. As pesquisas urbanas trazem à tona o que Velho (2013) chama de “nível consciente do morador”, ou seja, concepções que formam a base e determi- nam a complexidade cultural contida no espaço urbano. O nível consciente do morador consiste, portanto, na forma como os sujeitos compreendem as suas vivências, os espaços em que transitam no âmbito público, para além de seus espaços de moradia, e como impactam, são impactados e dão sentidos a eles. Isso traz especificidades analíticas que só estudos socioantropológicos conseguem absorver por meio de seus métodos e suas técnicas qualitativas de pesquisa. Segundo Magnani (2003, p. 83), frente às demais áreas das ciências sociais, Antropologia urbana8 […] a antropologia tem uma contribuição específica para a compreensão do fenô- meno urbano, mais especificamente para a pesquisa da dinâmica cultural e das formas de sociabilidade nas grandes cidades contemporâneas. Para cumprir esse objetivo, tem à sua disposição um legado teórico-metodológico que, não obstante as inúmeras releituras e revisões, constitui um repertóriocapaz de dotá-la dos instrumentos necessários para enfrentar novos objetos de estudo e questões mais atuais. O método etnográfico faz parte desse legado, e um dos desafios é como aplicar essa abordagem à escala da metrópole sem cair na “tentação da aldeia”. A “tentação da aldeia” a que o autor se refere consiste na tradição an- tropológica de realizar pesquisas em comunidades tradicionais. Ao contrário das sociedades tradicionais, nas sociedades complexas, há uma variedade cultural muito grande. Quanto maior o espaço urbano, maior poderá ser a complexidade e a heterogeneidade das manifestações culturais. Dentro dessa complexidade, um único indivíduo pode construir diferentes teias de relações, tanto no âmbito público como no privado. O desafio atual consiste no fato de que o urbano, ao contrário das aldeias, nos é familiar, e não é fácil desnaturalizar o que está naturalizado em nós — isto é, desconstruir padrões, normas e concepções já internalizadas por nós e acessar outras concepções de mundo, reconstruindo-as em pesquisas. Além disso, há uma variedade muito grande de possibilidades de análises das culturas urbanas. Dentro desse escopo de possibilidades, a antropologia urbana vai contribuir para o estudo das lógicas das trocas e relações sociais que ocorrem no meio urbano. No livro Um antropólogo na cidade, Velho (2013) levanta questões sobre a pesquisa no meio urbano, a relação entre as diferentes subjetividades e as influências sociais externas aos indivíduos. Inclusive, ele trata sobre a subjetividade do próprio pesquisador em um campo que é natural e comum para ele, pois é o espaço de sua convivência, mas sem deixar de reforçar que também há elementos que podem ser analisados para além do que nos é familiar. O espaço público, portanto, é o espaço de visibilidade, de comunicação, de produção e reprodução da cultura urbana. Já o espaço privado é o espaço de produção de outros tipos de subjetividades. Frúgoli Jr. (2005) traz um apanhado de estudos realizados por antropólogos como Macedo (1979), Magnani (1984) e Caldeira (1984), indicando-os como fontes potentes no campo da antropologia urbana. Segundo o autor, esses pesquisadores Antropologia urbana 9 [...] tomaram as áreas periféricas como local de pesquisa, buscando compreender detidamente redes de parentesco e de vizinhança, modos de vida, estratégias de sobrevivência, formas de sociabilidades e representações políticas, com ênfase em dimensões cotidianas e em representações simbólicas, muito pouco contempladas nas perspectivas “macroestruturais”. (FRÚGOLI Jr., 2005, p. 141). As pesquisas realizadas na área econômica, por exemplo, possuem uma perspectiva macrossocial sustentada principalmente por dados quantitativos, e as pesquisas da psicologia são restritas às subjetividades. Já o foco das pesquisas antropológicas e, em grande medida, das pesquisas sociológicas é voltado para interesses diferenciados nas ciências sociais, ao envolver, principalmente, os sistemas simbólicos marcados por múltiplas determina- ções. Entretanto, apesar de serem campos diferentes, segundo Velho (2013, p. 43), em pesquisas antropológicas no espaço urbano, não se pode “negar a especificidade de fenômenos psicológicos, sociais, biológicos ou culturais, mas sim reafirmar a importância de não perder de vista seu caráter de inter- -relacionamento complexo e permanente”. O que Velho (2013) parece nos indicar é que o comportamento humano deve ser analisado e compreendido de forma integrada, pois somos seres sociais, multifacetados, que interagimos de diferentes formas e com dife- rentes estruturas e grupos sociais, ao mesmo tempo que também somos constituídos por uma carga genética. Por isso, é preciso tomar cuidado com análises generalizantes, construídas de forma arbitrária e que possam reforçar estigmas e marcadores sociais da diferença. Por conta disso, o autor propõe também acabar com a dicotomia indivíduo/sociedade ou cultura e integrar as possíveis dimensões de análise e campos do conhecimento, possibilitando um olhar mais ampliado da vida humana nas cidades, captando fatores de natureza física, mental e espiritual. No próximo tópico, vamos abordar como essas perspectivas são operacionalizadas em estudos sobre expressões religiosas no espaço público. Se você gostou do tema sobre comportamento desviante, bem como sobre estudos realizados por antropólogos urbanos, indicamos o livro do antropólogo Gabriel Feltran (2018) intitulado Irmãos: uma história do PCC. Nesse livro, Feltran aborda a relação construída entre integrantes do Primeiro Comando da Capital, o PCC, uma facção criminosa dominante no estado de São Paulo, relatando as formas de sociabilidade, as prisões, o mercado do tráfico, dentre outros aspectos que compõem o “mundo do crime”. Antropologia urbana10 Práticas religiosas no contexto urbano Após o processo de secularização e racionalização moderno e ocidental, as normas religiosas deixaram de ser determinantes na vida pública e também política do Estado, ficando restritas ao âmbito privado dos seus seguidores, o que acarretou também o processo de laicidade dos Estados modernos. Além disso, a relação entre fiéis e Igreja, que antes ocorria de forma vertical e quase inacessível, passou por um processo de ampliação de acesso aos seguidores, reconfigurando o universo religioso ao ampliar a horizontalidade na relação entre a fé e seus adeptos. Nas raízes históricas do Brasil, há uma herança cultural religiosa plural advinda de matrizes indígenas, africanas e europeias. No entanto, por conta da colonização portuguesa, a religião dominante sempre foi o catolicismo, e, por muito tempo, muitas manifestações religiosas foram proibidas no nosso país. Foi com o processo de laicidade que houve também o processo de pluralismo religioso no Brasil, a partir do qual a diversidade de tradições e práticas religiosas passou a se manifestar livremente. Os princípios inclu- ídos na Constituição de 1988 passaram a servir como parâmetro normativo, instituindo, assim, a livre manifestação das religiões como um princípio democrático. Pensar as relações entre cidade e religião dentro do contexto do plura- lismo religioso é pensar sobre as diferentes formas que existem atualmente de expressar a religiosidade. Os estudos antropológicos, desde seu início e ainda atualmente, sempre estiveram atentos às manifestações religiosas das sociedades primitivas. O interesse perpassa por mitos, ritos, magias e demais formas representativas, buscando compreender as relações dos sujeitos com a fé e os seus símbolos. Já os estudos da antropologia urbana, interpostos à antropologia da religião, buscam entender, a partir de exercícios etnográficos, as manifestações e expressões de fé no espaço público, ou mesmo a relação entre a cidade e as religiões. No Quadro 1, são especificados alguns conceitos relacionados às manifestações da religião no espaço urbano. Quando falamos que o campo é amplo e heterogêneo é porque uma única categoria pode ter diferentes significados, como vimos no caso das piscadelas. Quando falamos de religião, há todo o contexto da pluralidade religiosa e a forma como cada ator entende o processo religioso em sua subjetividade. Segundo Magnani [200-?], em seu artigo “Religião na Metrópole”, o que se entende por “religião” é aplicado a um variado conjunto de experiências que estão diretamente relacionadas a diferentes doutrinas, ritos, experiências e Antropologia urbana 11 formas de entender e dar diferentes sentidos ao universo e à própria vida. E a cidade é um espaço que oferece condições de desenvolvimento e mani- festação para as práticas religiosas. Ao andar pela cidade, principalmente as grandes cidades, podemos observar a presença de templos, igrejas, sinagogas, santuários, oratórios, terreiros, casas espíritas, dentre outros. Todos eles são centros de mani- festação e expressão de diferentes fés, cada um com formas representa- tivas e concepções de mundopróprias, que são materializadas por meio de cultos, passes, ritos, cerimônias, festas públicas e devoções diversas. Eles representam também uma pluralidade de expressões identitárias por meio da fé, podendo inclusive um mesmo indivíduo circular por diferentes religiões ao mesmo tempo ou em diferentes fases da vida. Segundo Peter Berger (1997, p. 78): O indivíduo moderno existe numa pluralidade de mundos migrando de um lado a outro entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes contraditórias, cada uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua coexistência involuntária com outras estruturas de plausibilidade. Além dos “outros significantes” que confirmam a realidade, há sempre e em toda parte “aqueles outros”, incômodos refutadores, descrentes — talvez o incômodo moderno por excelência. O que podemos compreender dessa citação é que as identidades dos sujeitos são construídas a partir de elementos diversos, heterogêneos e fragmentados, sendo as religiões um dos campos de possibilidades, dentro de outros elementos constitutivos, para a formação do ser. Esse é um aspecto do cosmopolitismo moderno e da pluralidade religiosa, que criam um campo de possibilidades de manifestação e expressão da fé no espaço público. Alguns exemplos podem ser verificados a partir de diferentes festejos em datas comemorativas, como a Festa dos Santos Reis, a Festa do Bonfim, a Festa de São Sebastião, a Semana Santa, as procissões religiosas em geral, bem como eventos e encontros promovidos por diferentes religiões, dentre outras possibilidades. Segundo Mafra e Almeida (2009, p. 139), “é na amplitude de significado que a cidade como espaço representa, que notamos proximidades dos universos urbanos e religiosos”. Apresentamos apenas um quadro geral para identificarmos algumas relações possíveis e visualizarmos possibilidades dentro dos contextos em que estamos inseridos de forma exemplificada. Os estudos das formas de pensar o espaço da cidade e da religião devem ser especificados de forma minuciosa e precisa, considerando a diversidade de olhares de quem participa. Apesar de todo o processo de racionalização e laicidade, Antropologia urbana12 a religião é um aspecto muito forte no Brasil e é manifestada de diferentes formas. Um exemplo disso é a música “Andar com fé eu vou”, de Gilberto Gil, que diz o seguinte: Andar com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / [...] Que a fé tá na mulher / A fé tá na cobra coral / oh oh / Num pedaço de pão / A fé tá na maré / Na lâmina de um punhal / Oh oh / Na luz e na escuridão / […] A fé tá viva e sã / A fé também tá pra morrer / Oh oh / Triste na solidão / Certo ou errado até / A fé vai onde quer que eu vá / Oh Oh / A pé ou de avião / Mesmo a quem não tem fé / A fé costuma acompanhar / Oh oh / Pelo sim pelo não. A partir dessa letra, podemos compreender alguns aspectos represen- tativos das manifestações de fé. Por exemplo, vamos considerar o possível significado de alguns trechos: � “a fé tá na mulher” — pode representar a figura de Maria; � “na cobra coral” — pode-se considerar que a cobra sempre esteve ligada a diferentes símbolos religiosos e míticos; há, por exemplo, um caboclo na umbanda que se chama Cobra Coral e representa a pureza e a magia, algo ligado à fé que habita em cada indivíduo; � “num pedaço de pão” — nas missas, o pão representa “o corpo de cristo”; � “a fé tá na maré” — pode representar as oferendas à Iemanjá, em que há o ideal de que as oferendas sejam transmutadas em prosperidades vindas com a maré. Enfim, essas expressões se referem a diferentes religiões que possuem atividades em espaços públicos, e as possibilidades de análise sobre as representações são variadas. Um mesmo fragmento, prática ou categoria pode possuir diferentes significados e explicações de mundo. Nesse sentido, a antropologia amplia a relação com os espaços de fé e a ma- nutenção da memória, pois se baseia em estruturas de discursos e significações que permitem intercambiar signos. Serve ainda como intermediação cultural, ao tratar da relação das pessoas com o espaço de significação que ocupam, abordando questões que vão além do que dados quantitativos podem oferecer. A religião é ampla e possui inúmeras modalidades de relação com a cidade. Com isso, o foco de análise da antropologia urbana consiste na forma como os sujeitos compreendem, internalizam e dão sentido às suas ações baseadas em princípios da religião com que possuem vínculo. A inscrição religiosa é manifestada nos eventos públicos, mas também nos corpos, nas mentes e no espaço físico e político da cidade. Antropologia urbana 13 Quadro 1. Noções conceituais para ampliar a compreensão sobre a antro- pologia urbana e a sua relação com as religiões Pluralismo religioso É um fenômeno moderno que corresponde à pluralidade de manifestações religiosas e crenças que possuímos hoje no Brasil. Há uma pluralidade de formas de conceber o mundo e dar explicações místicas a ele, e todos os sujeitos possuem liberdade para seguir a religião que desejarem, ou não seguir, se assim desejarem. Há princípios normativos na Constituição de 1988 que garantem o respeito, a liberdade de culto e a isonomia a todas as religiões. Manifestação pública de fé Também conhecida como Fé Pública, são atos de fé realizados no espaço público ou fora dos seus locais sagrados. Identidades religiosas O processo de construção identitária ocorre ao longo de toda a vida e está muito atrelado às experiências que possuímos, às relações, interações, regras, valores etc. É, portanto, um produto cultural. No que se refere às identidades religiosas, esse é um termo que tem sido usado também para estudar processos em que sujeitos trocam de religião. Nesse processo, há a desconstrução e a reconstrução de novas perspectivas religiosas que impactam diretamente as novas formas de expressar as identidades religiosas. Por exemplo, suponha um sujeito que nasceu e cresceu como judeu ortodoxo e, por isso, seguiu por um determinado tempo da vida seguindo normas de comportamento, de vestimenta e de relações subjetivas específicas. Se, por acaso, ele resolver trocar de religião e seguir a umbanda, por exemplo, aspectos identitários nele e relativos ao judaísmo serão desconstruídos, e novos serão criados. Isso impactará diretamente a forma de expressar sua identidade. Um exemplo de estudo antropológico sobre uma manifestação pú- blica de fé é a tese de doutorado de Daniel Bitter (2008) intitulada A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Em seu estudo, o pesquisador direciona a análise às representações e à circulação da bandeira e da máscara no contexto social e ritual das folias de reis, evento festivo que ocorre em grande parte do território brasileiro. O objetivo principal do estudo é entender como ocorre a construção de vínculos, relações e significados dados pelos participantes do empreendimento festivo. Antropologia urbana14 Referências BANDERA, V. Código de Menores, ECA e adolescentes em conflito com a lei. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 114, jul. 2013. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-114/ codigo-de-menores-eca-e-adolescentes-em-conflito-com-a-lei/. Acesso em: 28 out. 2020. BERGER, P. Rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. Petrópolis: Vozes, 1997. BITTER, D. A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias de reis. 2008. 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No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Antropologia urbana 15 ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Analisar o caminho trilhado pelos antropólogos clássicos no contexto da análise da religião. > Descrever as teorias sobre as sociedades e as visões do mundo dos mais importantes antropólogos clássicos. > Relacionar as teorias dos antropólogos clássicos com as teorias de outros antropólogos de sua época. Introdução A antropologia clássica, desde seu ensejo inicial, no século XIX, se defrontou com grandes problemáticas em torno da relação entre natureza e meio social. Nesse contexto, a corrente evolucionista se tornou predominante, uma vez que a história e a antropologia, de uma só vez, podiam ser pensadas de forma linear. Considerava-se que quanto mais conhecimento uma sociedade, uma comunidade ou uma tribo tinha, mais evoluída ela era. Mais tarde, Franz Boas e sua seguidora, Ruth Benedict, estabeleceram, a partir de estudos etnográficos, a relação entre determinismo mental e determinismo do meio, para pensar a anormalidade como resultado de uma sociedade. Já no século XX, com Claude Lévi-Strauss, surgiu uma perspectiva multicul- turalista. O antropólogo francês revolucionou a forma como a antropologia era pensada até então quando uniu o determinismo natural ao social e cultural, sob a alegação de que o sujeito é constituído de modo múltiplo. Posteriormente, após Antropólogos clássicos Mayara Dionizio uma possível superação da antropologia modernista, surgiram correntes diversas que pensavam a figura do antropólogo, bem como a importância do relato das experiências dos estudados. Neste capítulo, você vai compreender a leitura antropológica da religião em relação à cultura e à natureza. Você também vai verificar como os antropólogos mais consagrados compreenderam as sociedades e quais eram as suas respectivas visões de mundo. Por fim, você vai estudar as diferenças entre a antropologia clássica moderna e as teorias antropológicas pós-moderna e contemporânea. A análise antropológica clássica sobre a religião Quando pensamos as sociedades ocidentais em suas estruturas fundantes, inevitavelmente encontramos fronteiras que não só dividem os saberes e as instituições, mas também os unem. É nesse hiato correlacionado que a filosofia, a história e a religião se cruzam. Mais tarde, acrescidas dos saberes sociológi- cos e antropológicos, as ciências humanas se voltaram para o indivíduo, não somente em sua individualidade, mas, antes, em sua manifestação coletiva. Nesse contexto, antes de nos aprofundarmos nos aspectos mais transdisci- plinares, cabe compreender com maior atenção a relação entre a antropologia e a história, para então delimitarmos a análise religiosa dos antropólogos clás- sicos. Se podemos pensar as sociedades ocidentais por meio de uma cronologia marcada, que nos remete ao conceito de historicidade, isso se dá também pela possibilidade de uma etnografia singular das sociedades, dos povos. Ao contrário de uma concepção evolutiva da história, a antropologia nos permite pensar a história não só como um sistema progressivo das ideias e dos sistemas filosóficos, mas antes a partir da essencialidade singular etno- gráfica de cada povo. Assim, dignifica-se a experiência comum da passagem temporal e da passagem individual do tempo. O que nos leva àquilo que nos disse Émile Durkheim sobre a sociedade: todas as sociedades constroem uma noção de tempo, contudo, elas se realizam empiricamente de acordo com a sua cultura própria. De acordo com Lévi-Strauss (1975), a diferença entre as sociedades se mostra a partir daquelas que têm história e daquelas que não tem. Isto é, há aquelas sociedades que reivindicam a mudança, e há aquelas que buscam a reiteração. Assim, essas distinções servem tão só para classificar as dife- renças culturais, ressaltando a unidade da história em suas diferenciações, segundo o antropólogo. Antropólogos clássicos2 Voltando para a antropologia e seu amplo arcabouço contextual, podemos dizer que a antropologia clássica, a partir do evolucionismo, se volta ao pen- samento diacrônico. Ou seja, nos primórdios do pensamento antropológico, encontrava-se uma busca fundante por apenas uma história. Nela, estariam compreendidas as distinções: na história entendida linearmente de modo comparativo, aquelas sociedades ainda ligadas ao passado ocidental em sua estruturação seriam pensadas como menos evoluídas, se comparadas às so- ciedades que evoluíram dado o acúmulo de conhecimento e desenvolvimento tecnológico. Essas sociedades tidas como menos evoluídas passavam a ser classificadas como primitivas e infantis, logo, desinteressantes ao estudo das ciências humanas de modo geral. Tal modo segregacionista de pensar a história dos povos primitivos a partir do evolucionismo passou a ser rejeitado por escolas antropológicas insurgentes. É nesse contexto que encontramos os primeiros embates acerca da disciplina de antropologia. Já no século XVIII, a partir da distinção acerca das noções de cultura — ou seja, aquela entendida como civilização, ligado ao iluminismo, ou aquela pensada de acordo com o romantismo alemão, kultur — surgiram as primeiras associações entre os conceitos de civilização e história. Se, de um lado, a cultura é aquilo que é progressivo, acumulativo e atribuído à essencialidade humana, ou ainda à sua especialidade, por outro lado, a civilização em sua abordagem também “cultural” é resultado de um processo racional atribuído somente ao ser humano. Em ambas as compreensões, encontramos o ser humano como um ser privilegiado em relação a outras espécies, e as sociedades modernas como superiores às sociedades “primitivas”. Por esse motivo, a cultura passou a ser objeto da antropologia clássica como uma via de acesso à reconstituição das origens e dos níveis de evolu- ção entre as sociedades “selvagens” e as sociedades “civilizadas”. Isso nos permite observar que a cultura pensada de forma evolucionista decorre em um etnocentrismo, em uma imposição universalista do que é o indivíduo e, por fim, lança as bases para o colonialismo. Essa retórica, ao final do século XIX, levou ao embate construtivista entre a corrente da kultur (aquela ligada à formação do espírito) e o evolucionismo, que ganhava uma enorme projeção no continente europeu. De um lado, o etnocentrismo/evolucionismo/univer-salismo, e de outro, o relativismo, que defendia o não universal. Nesse contexto se deu o marco para o surgimento da antropologia estadu- nidense, com a publicação do antropólogo Boas (2014): As limitações do método comparativo em antropologia social. No texto, Boas (2014) argumenta que a cultura deve ser pensada em sua particularidade, o que o liga diretamente Antropólogos clássicos 3 à corrente da kultur. Boas (2014) entende, a partir de seus estudos acerca da distribuição espacial dos mitos do povos ameríndios da América do Norte, que a cultura é composta por elementos que são frutos de um processo histórico em que se relaciona o intercâmbio entre os povos e, por isso, trata-se de um processo de constante transformação cultural. Isso implica também na análise sobre o fenômeno religioso: uma vez que a cultura é composta também a partir da difusão cultural, ela não tem uma origem comum, como argumentavam os evolucionistas. As instituições, a organização social e espacial e, acentuadamente, a religião são resultados de diversos processos históricos. Para tanto, Boas exemplifica sua teoria a partir da reflexão sobre tribos primitivas organizadas em clãs totêmicos, que têm formulações totalmente distintas entre si, portanto, não advêm de uma origem idêntica psíquica de tribos distintas. Isto é, apesar de uma predisposição psíquica, cada tribo se desenvolve de forma singular, de acordo com o seu processo histórico. Nesse contexto, a partir da obra de Benedict (2013) — seguidora da antropologia boasiana — intitulada Padrões de cultura, publicada origi- nalmente em 1934, sobre a cultura do Novo México, os Dobu da Nova Guiné e os Kwatiutl da Columbia Britânica, podemos compreender os padrões culturais em sua relação com a sociedade. Para Benedict (2013), é a socie- dade mesma que acaba legitimando a integração social e a validade de suas instituições. É por esse motivo que Benedict (2013) argumenta que os desviantes são reprimidos socialmente e institucionalmente e usa como exemplo a experiência com o uso de entorpecentes. Em muitas sociedades, são aceitos rituais em que é feito o uso de substâncias entorpecentes, a fim de se atingir um estado transcendente; contudo, em grande parte da sociedade ocidental, o uso dessas substâncias não é aceito, mesmo em condições culturais e religiosas. Em 1944, Benedict realizou um estudo antropológico, a pedido do governo norte-americano, sobre os padrões culturais japoneses es- tabelecido após a Segunda Guerra Mundial. Isso se deu muito pelo interesse sobre a lógica do comportamento dos soldados japoneses durante a guerra: demonstravam orientação, determinação e disciplina mesmo quando se encontravam em desvantagem. Benedict concluiu que o comportamento dos japoneses estava ligado aos padrões culturais peneirados socialmente e reforçados institucionalmente. Curiosamente, nesse sentido, comparados culturalmente ao exército norte-americano, Antropólogos clássicos4 os japoneses estavam em busca da afirmar seu lugar como superiores aos demais, enquanto os norte-americanos lutavam por valores como liberdade e democracia. Por esse motivo, Benedict chegou à constatação de que há relação entre a cultura e a estrutura psíquica: “[...] esta relação é recíproca e tão íntima que não se pode tratar de padrões culturais sem considerar especificamente as relações destes com a psicologia do indivíduo [...]” (BENEDICT, 1988, p. 12). Portanto, é a partir desses padrões culturais selecionados e reforçados institucionalmente que podemos compreender a cultura também pelo que dela difere. Assim, as condutas tidas como “desviantes” são o que possibilita o olhar sobre o que padroniza. Para Benedict (1988), essa padronização revela que a sociedade é tão predominante e busca se manter dentro de sua própria estrutura que aqueles que são considerados “anormais” não são admitidos. É nesse hiato entre a cultura e a disposição psíquica que encontramos a noção de louco. Isto é, os conceitos de louco e normal, ou, no sentido foucaul- tiano, razoado e desarrazoado, são pensados como uma construção cultural. Por exemplo, Benedict (1988) trata sobre a questão de como as sociedades ocidentais entendem a homossexualidade: nas sociedades capitalistas, os homossexuais são considerados como anormais; já em outras sociedades, a homossexualidade é valorizada. Nesse contexto, podemos citar a compreensão platônica acerca da sexualidade na República (PLATÃO, 2000), em que o amor sexual entre homens é valorizado, pois é entendido como o amor entre iguais superiores hierarquicamente. Conclui-se que as relações entre cultura e predisposição psíquica são inter-relacionadas. Assim, a sociedade, desde o surgimento da an- tropologia, vem sendo pensada a partir dessas relações. Franz Boas foi o responsável por inaugurar essa forma “neoevolucionista” de pensar a antropologia, que, por conseguinte, foi aprofundada por Ruth Benedict, sua seguidora. Essas noções sobre a cultura e a psiquiatria que levaram ao reconhecimento de uma cultura dos desviantes possibilitou a reflexão acerca das questões de gênero e da cultura de forma ampla. Fruto desses estudos antropológicos e etnográficos, em 1960, surgiu o movimento pós-moderno, que também influenciou diversos movimentos insurgentes das minorias (Figura 1), considerados como rupturas culturais e psíquicas, nas quais se insere a crítica aos discursos religiosos considerados como conservadores da ordem até então vigente. Antropólogos clássicos 5 Figura 1. Jornadas estudantis em maio de 1968, na França — um movimento de contraluta, que lutava contra o conservadorismo e os padrões culturais da sociedade francesa. Fonte: Cros (2000? apud COGGIOLA, 2018, documento on-line). As sociedades e as visões do mundo dos mais importantes antropólogos clássicos A obra do antropólogo Claude Lévi-Strauss se tornou fundamentalmente norteadora na esfera antropológica. Entre os pensadores mais caros a essa tradição, Lévi-Strauss revolucionou a forma de pensar a sociedade a partir da relação entre natureza e cultura. Nesse sentido, mais do que uma sepa- ração ou junção entre esses campos, a antropologia straussiana de dedicou a refl etir sobre o que vincula esses campos no contexto social e formativo. Desde o final do século XIX, a antropologia se manteve às voltas com a pressuposição de uma unidade humana em que não se consideravam as teorias e diversidades culturais, muito menos os dados empíricos ou dialéticos ou ainda as identidades e diferenciações. A questão que se colocou à antropologia nesse sentido é: de que forma as diferenciações vinculantes ou irruptivas se transformam no campo da cultura e da psique? Lévi-Strauss (1973) entende que essa vinculação, além de fundamentar o problema estrutural da antropologia, também caracteriza e define o que ele entende como campo da etnologia. Segundo o filósofo contemporâneo Descola (2011, p. 35), “[...] ninguém duvida que o século XX, em antropologia, ficará como o século de Lévi-Strauss, a tal ponto suas ideias, mesmo quando rejeitadas, marcaram vigorosamente Antropólogos clássicos6 o conceito que se tem dessa ciência, de seu objeto e de seus métodos [...]”. Nesse contexto, convém ressaltar por quais vias a antropologia straussiana marcou fortemente o pensamento antropológico: 1. a relação entre continuidade e descontinuidade no que compete à natureza e à cultura; 2. as relações estruturais entre cultura e natureza, ou, ainda, entre espírito e determinações ecológicas. Analisaremos o que nos diz Lévi-Strauss sobre essas estruturas a partir de sua conferência intitulada Structuralism and ecology, que ocorreu em 1972, nos Estados Unidos. Nessa conferência, o antropólogo explicitou o papel da junção entre o espírito e a ecologia na operação estrutural do sistema social e psíquico. Ou seja, Lévi-Strauss defendia que a seleção feita socialmente em torno de um significante não é um processo puramente natural. A partir da obra O pensamentoselvagem, também de Lévi-Strauss (1989), podemos compreender como as culturas, tanto animais quanto vegetais, demonstram aleatoriedade simbólica entre si: trata-se, portanto, de carac- terísticas distintas presentes nas mesmas espécies ou reinos em sua função simbólica. Assim, a arbitrariedade fundamental que define os traços dessas espécies se organiza em decorrência das transformações das regras que até outrora eram predominantes. Esse percurso percorrido pelo antropólogo tem em vista compreender como os mitos oriundos de tribos, em especial aquelas mais próximas, são utilizados e têm suas funções simbólicas distintas no que compete às suas relações com a natureza. Dito de outro modo, Lévi-Strauss (1989) compreende que, nas tribos, os mitos são os mesmos, por muitas vezes, mas se estruturam em relação à natureza de formas distintas entre as tribos. Tais afirmações de Lévi-Strauss (1989) geraram conflitos com os materia- listas norte-americanos. No caso em questão, a controvérsia se deu com o professor de ecologia cultural Marvin Harris. Para Harris (1966), a antropologia estrutural se encontrava fundamentada em um naturalismo radical, isto é, em um determinismo geográfico. Ao pensar as transformações culturais, Lévi- -Strauss (1989) teria vinculado a ecologia e a cultura a partir das disposições geográficas das tribos e das espécies. O que traz à luz o caráter condicionante da leitura straussiana: a cultura seria resultado também das relações empí- ricas estabelecidas a partir de uma estrutura orgânica. Descola (2011, p. 37) vê nessa querela entre os estudiosos a disputa entre um programa científico de caráter dualista e uma epistemologia monista, dizendo respeito: Antropólogos clássicos 7 [...] à etnografia, assistida pela história e pela tecnologia, o estudo da base material das sociedades; à antropologia estrutural, o estudo das ideologias — e uma teoria do conhecimento decididamente monista, visto que ela considera o espírito dando sentido ao mundo como parte e produto desse mesmo mundo. De acordo com Lévi-Strauss (1989), não poderíamos compreender o sujeito a partir de uma separação desvinculante entre cultura e psique, matéria e espírito, mas tão só a partir da vida social pensada por determinismos com- plementares. O que nos leva a pensar a sociedade como uma junção entre o determinismo econômico — aquele que se coloca de forma coercitiva na vida do sujeito, exigindo dele uma ação tecnoeconômica — e o determinismo de funcionamento, que exige formas de ação inerentes ao sujeito. Esses deter- minismos exigem do antropólogo o conhecimento tanto sobre propriedades objetivas em relação aos objetos naturais quanto sobre a ecologia de uma sociedade. Isso implica os seguintes aspectos: � primeiro, conhecendo os objetos naturais, pode-se compreender melhor a seleção social em torno de um significante (seja o mito, a religião, entre outros significantes); � em segundo lugar, conhecendo a ecologia social, pode-se compreender a produção ideológica de uma sociedade, ou seja, a forma como ela dispõe e organiza os seus pensamentos. Assim, segundo Lévi-Strauss (1989), existe uma simetria entre os deter- minismos, o mental e o do meio. Contudo, o determinismo do meio é consi- derado pelo antropólogo como inferior hierarquicamente; isso porque é no material da realidade que encontramos a matéria-prima para aquilo que vai se tornar miticamente um significante. O que significa que Lévi-Strauss não rejeita totalmente o materialismo, mas não o considera tão determinante para além de meramente produto da atividade simbólica. Trata-se, assim, de uma afinidade que é capaz de unir o mental e o meio. Portanto, os dados imediatos não são: [...] uma espécie de cópia autêntica dos objetos apreendidos, mas consistem em propriedades distintivas, abstraídas do real por mecanismos de codificação e de decodificação inscritos no sistema nervoso e que funcionam por meio de oposições binárias: contraste entre movimento e imobilidade, presença ou ausência de cor, diferenças de contorno dos objetos (LÉVI-STRAUSS, 1976 apud DESCOLA, 2011, p. 39). Antropólogos clássicos8 Para além da obra straussiana, outro pensador que se dedicou a pensar sobre a sociedade e a sua vinculação com a cultura e a natureza foi Marshall Sahlins, participante e fundador da Escola de Cultura e Personalidade, que surgiu em meados da década de 1940 e tinha como principal característica a oposição ao particularismo histórico alemão. Sahlins, nesse contexto, foi responsável por retomar o conceito de evolucionismo aliado à questão cultural, juntamente com Leslie White. A obra de Sahlins é dividida em dois grandes marcos: primeiramente, têm-se a fase de juventude de viés estrita- mente neoevolucionista; posteriormente, tal noção é associada às relações de produção no contexto tecnológico insurgente (SAHLINS, 1976). Entre os anos de 1954 e 1955, Sahlins realizou uma pesquisa de campo em algumas comunidades do Pacífico e pôde, a partir de então, analisar suas hipóteses evolucionistas de caráter marxista. Assim, a evolução das comunidades era analisada de acordo com as suas hierarquias, que, por sua vez, se dividiam em dois eixos de análise (SAHLINS, 1976): � a matéria da qual a sociedade/comunidade dispõe (incluindo o avanço tecnológico); � como o poder é distribuído entre os membros. Portanto, a ênfase do estudo foi dada à questão econômica e à organização política. Sahlins chegou à conclusão de que o fator mais determinante nessa co- munidade estava ligado à questão material. Ou seja, o desenvolvimento político se encontrava pautado, ritmado pelo progresso tecnológico. Ao se desenvolver uma tecnologia, a economia se desenvolvia com vistas a esse progresso, o que acabava por determinar a distribuição de poderes políticos (SAHLINS, 1976). Já em 1960, Sahlins reelaborou seus posicionamentos em razão do evo- lucionismo e acabou por adotar uma visão mais perspectivista e, portanto, culturalista. Isso decorreu dos diálogos insurgentes no cenário acadêmico entre o estruturalismo francês e o materialismo histórico. Em 1976, Sahlins publicou Cultura e razão prática; nessa obra, o autor apresenta uma análise cultural do Ocidente e o processo de produção capitalista enquanto simbólico. Concluiu-se que os objetos produzidos pelas sociedades ocidentais não têm apenas uma utilidade prática, mas também uma função simbólica, o que levou Sahlins a entender que o esquema simbólico é a real finalidade dos objetos produzidos. De acordo com Gonçalves (2010), os produtos vendidos, antes de determinarem os seus valores em si, determinam o valor econômico daquele Antropólogos clássicos 9 que compra, daquela relação de compra. Por fim, Sahlins (1976) concluiu que a produção capitalista só se realiza a partir dos objetos produzidos por meio de uma mediação simbólica — trata-se, antes de tudo, de um projeto cultural determinante. Os antropólogos clássicos e os antropólogos contemporâneos Ao tratarmos das teorias antropológicas clássicas e das teorias contemporâ- neas, tratamos também de uma série de tendências metodológicas e teóricas que marcam constantes mudanças na disciplina de antropologia desde seu surgimento, no século XX. Contudo, foi a crítica americana sobre os modelos de pesquisa e abordagem antropológica que acarretou um deslocamento no modo como se pensava a disciplina até então. Existem duas abordagens mais referidas a esse período: a abordagem interpretativa, representada forte- mente por Clifford Geertz nos anos 1970, e as perspectivas pós-modernas, que partem da abordagem etnográfica. Ambas as formas de pensar e aplicar a antropologia, em um sentido metodológico, se desenvolveram e possibili- taram a antropologia tal como vemos hoje, por um viés mais perspectivista. A abordagem de Geertz (1989) argumentava em função da interpretação das culturas como um conjunto de textos. Para tanto, a metodologia se fundamentava em um modelo de leitura contextual, o quetrazia para a antropologia uma possibilidade diferente daquela da vivência sob argu- mento de autoridade. Ou seja, sendo a antropologia um estudo científico, era necessário que os estudos apresentassem mais dados do que aqueles somente autorreferenciados pela experiência — o que se traduz na contem- poraneidade (a partir do identitarismo) como a autoridade do “lugar de fala”. A antropologia interpretativa conseguia, assim, analisar as culturas como texto em detrimento da autoridade etnográfica, o que tornou possível a desmistificação e o questionamento acerca das descrições etnográficas e, por outro lado, o estabelecimento de um rigor maior. Dessa forma, ao mesmo tempo que Geertz (1989) rompe com o modelo clássico, também questiona o processo de interpretação, pois entende que a cultura observada é separada do antropólogo que a interpreta. Nos anos 1980, influenciadas pela antropologia interpretativa, várias perspectivas pós-modernas surgiram e passaram a apresentar formas me- todológicas de pesquisa e texto. Metodologias baseadas na produção de textos dialógicos, testemunhais e polifônicos ganharam espaço nas discus- Antropólogos clássicos10 sões acadêmicas. Ao mesmo tempo, os críticos ao positivismo científico, ao empirismo e ao reducionismo passaram a insinuar que a antropologia deveria abandonar essas abordagens e assumir uma postura humanista e parcial no que se refere às análises culturais. Nesse contexto, a antropologia se abriu totalmente ao empreendimento geertziano de uma análise que considera a cultura como texto e começou a reconhecer a autoridade científica e etnográfica a partir da crise da repre- sentação. Cabe ressaltar que esse movimento de crise da representação consiste no reconhecimento dos limites da linguagem, no sentido de uma apreensão do ser pela palavra. Essa foi a temática central para os movimentos estruturalistas e pós-estruturalistas franceses. Assim, os teóricos da segunda metade do século XX passaram a analisar o texto a partir de seu contexto estrutural, o que compreende o importante conceito derridiano de desconstrução. Ou seja, decompõe-se a estrutura para melhor compreendê-la. Tal movimento filosófico estabeleceu relações com todas as áreas das ciências humanas, em especial a antropologia. Isso levou a antropologia a experimentar estilos distintos que passavam por dialetos e, até mesmo, interpretações idiossincráticas. Você sabe o que significa o termo “desconstrução”, cunhado primeira- mente pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida? Trata-se de um conceito elaborado como uma crítica aos conceitos filosóficos que apresentam uma pressuposição sem levar em consideração a estrutura. Dito de outro modo, Derrida era associado ao movimento francês pós-estruturalista, o que significa que o seu pensamento filosófico se debruçava sobre a investigação das estruturas. Nesse sentido, o conceito de desconstrução leva em consideração a estrutura que compõe o objeto de análise. Assim, mais do que uma crítica expressa à ideia de objetos não analisados em sua estrutura, a desconstrução derridiana busca desmontar, decompor, desconstruir os elementos de um texto, da escrita. Podemos dizer que a crise da representação possibilitou a abertura in- clusive para abordagens tidas como mais moderadas e que buscavam uma “verdade etnográfica”, ou aquelas que estipulavam a impossibilidade de estabelecer uma objetividade a partir de um contato subjetivo. Tais tendências transparecem como a antropologia assumiu, a partir de Geertz (1989), uma abordagem mais crítica, dialógica e polissêmica, uma vez que foi com o pós- -modernismo que a desconstrução dos textos etnográficos se fez possível, contrariando a abordagem mais clássica, em que as etnografias dos cânones da antropologia eram indiscutíveis. Antropólogos clássicos 11 Resta-nos delimitar mais precisamente o modernismo antropológico, para, de fato, entendermos com maior propriedade a ressignificação da disciplina. Ao contrário de outras disciplinas das ciências humanas — a título de ilustração, as ciências sociais em que faz parte da análise a ausência do pesquisador da “cena”, no sentido freudiano do termo —, na antropologia, é fundamental a presença do antropólogo no trabalho de campo — ou seja, também no texto etnográfico. Portanto, o antropólogo é aquele que mede os universos culturais, fazendo-os se conhecerem, ainda que seja por meio de seus olhos. De acordo com Caldeira (1988), o antropólogo em cena exige uma ambi- guidade, pois ele é tanto quem revela uma realidade quanto aquele que se ausenta, tentando garantir a objetividade do estudo. Para Geertz (1989, p. 94), a presença do antropólogo, sobretudo nos textos, deve ser compreendida a partir das “[...] peculiaridades de uma curiosa estratégia de construção textual [...]”, o que pode ser verificado, segundo Geertz (1989), nas heterogeneidades presentes nas discursividades de Bronisław Malinowski, E. E. Evans-Pritchard e Claude Lévi-Strauss, por exemplo. Nesse contexto, podemos identificar em Malinowski, ilustrativamente, a legitimação da figura profissional do antropólogo, que se dá por meio de uma abordagem antropológica que propõe a observação participante. Cabe res- saltar que foi essa abordagem que garantiu à antropologia o status científico e causou a ruptura com o pensamento preponderantemente evolucionista do século XIX. Até esta feita, os antropólogos eram aqueles que, fechados em suas salas, colecionavam tesouros etnográficos do mundo todo e, com isso, construíam narrativas acerca da história da humanidade. Foi com Malinowski que a etnografia se fez presente na antropologia enquanto metodologia que possibilitava a descrição e a tradução dos costumes de um povo. A produção de conhecimento antropológico passou a ter como objeto de estudo, se podemos assim dizer, o estudo dos povos coloniais. De acordo com Geertz (1989), tratava-se de um processo em que se colocava tudo para dentro, e a etnografia possibilitava que o antropólogo colocasse para fora, para a prosa. Contudo, o século XX trouxe outras contextualizações do mundo ocidental. Ocorreu de forma mais aprofundada o processo de descolonização dos paí- ses colonizados, muito pela mundialização da cultura e da economia e pela ascensão de campos de estudos das ciências humanas, que possibilitaram outras condições de produção do conhecimento. Assim, o antropólogo não era mais aquele que tinha um acesso exclusivo às comunidades, às tribos e aos povos “distintos”. Nesse sentido, Marcus e Fisher (1986) cunharam o termo “visão do mundo de ourives” para descrever a crise da representação Antropólogos clássicos12 e os efeitos que ela causou na antropologia, uma vez que, agora, a disciplina necessitava mais do que nunca entender os processos culturais de perto. Foi aí que a antropologia, que até então tinha seu foco estritamente no estudo das sociedades primitivas, voltou-se às sociedades mais complexas e às nações-Estado. Isso resultou em inovações no texto etnográfico e na forma como a diversidade cultural passou a ser pensada e tratada. Assim, as mudanças consideradas contemporâneas na etnografia consistem em aplicar uma metodologia que seja capaz de ter uma função estratégica nesse contexto; detalhadamente, elas abrangem repensar a figura do antropólogo/ autor, a produção de conhecimento textual, o objeto, o leitor, a legibilidade e a legitimidade do texto. Isso ocorre principalmente por se considerar o processo de autocrítica antropológica (atual na disciplina), assim como outros aspectos da prática metodológica, o que recentemente vem sendo questionado e descontruído das mais diversas formas. Conclui-se que a mudança gradual no campo metodológico da antropo- logia acabou, na contemporaneidade, por colocar paralelamente o nativo e os cidadãos, ao passo que os nativos revelam a diversidade irredutível entre ambos. Por outro lado, ao contrário da antropologia moderna, que recons- truía o todo para dar sentidoà heterogeneidade cultural, a antropologia contemporânea coloca para si a tarefa de considerar o ponto de vista dos nativos e as suas experiências, a fim de o antropólogo poder representá-los. É nesse ponto que os modos de vida trocam influências, encontram suas semelhanças e também as criam, lutam por superioridade, por dominação, traduzem-se e subvertem-se. Referências BENEDICT, R. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 1988.BENEDICT, R. Padrões de cultura. Petrópolis: Vozes, 2013. Originalmente publicado em 1934. BOAS, F. As limitações do método comparativo da antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. CALDEIRA, T. P. R. A presença do autor e a pós-modernidade em antropologia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 21, p. 133–157, 1988. COGGIOLA, O. 1968 no mundo, além da lenda. 2018. Disponível em: https://jornal.usp. br/artigos/1968-no-mundo-alem-da-lenda/. 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Por sua especificidade e metodologia, a antropologia possibilita a compreensão de nós mesmos pelo olhar do outro e que nos situemos diante dos diferentes mundos culturais e sociais, compreendendo-os melhor. A antropologia surgiu com o objetivo de resolver os problemas e encontrar soluções para a urbanização, a industrialização e a expansão europeia. Ao contrário da sociologia, por exemplo, desenvolvida no séc. XVIII para compreender melhor as sociedades europeias, com o objetivo de um “olhar interno”, para dentro de sua sociedade, a antropologia foi desenvolvida com foco no “olhar externo”, visando a melhor compreender os povos colonizados na África, na Ásia e na Américas. Assim, floresceu por meio de pesquisas financiadas pelas elites europeias, pela Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira Adriane da Silva Machado Möbbs necessidade de conhecer para dominar. Por outro lado, a antropologia brasileira surgiu e se desenvolveu com o objetivo de compreender sua própria diversidade social e cultural, com o foco em suas múltiplas culturas. Neste capítulo, você vai descobrir como se deu o desenvolvimento da antropologia no Brasil, o que permitirá a compreensão de nossa diversidade cultural e, consequentemente, um melhor entendimento da coletividade como povo. O desenvolvimento da antropologia no Brasil No Brasil, a antropologia surgiu entre as décadas 1930 e 1940. Muitos aspectos favoreceram seu surgimento e desenvolvimento no Brasil, e acabaram por caracterizar o pensamento antropológico brasileiro por um longo período. Podemos considerar o alemão Curt Nimuendajú (1883–1945), nascido Curt Unckel, o “pai da Antropologia brasileira”. Tido como um expoente em estudos indígenas no País, o etnólogo dedicou mais de 40 anos de sua vida ao estudo dos povos indígenas brasileiros. Sem formação acadêmica, mudou-se para o Brasil aos 20 anos e, dois anos depois, juntou-se aos Apapokuva, povo guarani do interior de São Paulo (atualmente conhecido como Nhandeva). A partir dessa imersão, que deu origem à obra As len- das da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani, publicada em 1915, começa o desenvolvimento da etnologia brasileira. Incialmente, a antropologia era reconhecida por sua prática e, assim, considerada uma etnologia. Desde seus primórdios, a antropologia brasileira esteve presa a seus objetos reais de investigação, como afirma Cardoso de Oliveira (1988, p. 230): Isso significa que o que se poderia chamar de modo de conhecimento — que deveria marcar a natureza do saber antropológico — ficou historicamente su- bordinado à natureza dos objetos reais (quer seja o índio, o negro ou o branco) com todos os "equívocos que posições deste teor geram no desenvolvimento da disciplina. E, em razão dessa mesma preponderância do objeto real sobre objetos teoricamente construídos, surgiram duas tradições no campo da An- tropologia Brasileira, ordenando a divisão de trabalho, seja na academia, seja nas atividades profissionais não universitárias. A primeira tradição que aparece com mais vigor é a da Etnologia Indígena, sendo a segunda a da Antropologia da Sociedade Nacional. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira2 Podemos, portanto, considerar que, inicialmente, a antropologia se de- senvolveu a partir de duas tradições: 1. a etnologia indígena, na qual o nome de Curt Nimuendajú é, sem dú- vida, referência; 2. a Antropologia da Sociedade Nacional, cujo expoente é Gilberto Freyre. Isso ocorreu entre as décadas de 1920 e 1930, quando a profissão de antropólogo e o campo da antropologia ainda não estavam bem definidos no Brasil. Embora, nos anos 1930 e 1940, Lévi-Strauss e Radcliffe-Brown tenham lecionado no Brasil, eles não são tidos como atores do desenvolvimento da antropologia. Sabe-se, porém, que suas obras tiveram impacto nas décadas seguintes, como afirma Cardoso de Oliveira (1988, p. 230–231): “[...] o certo é que a absorção de suas ideias se daria nas gerações seguintes pela leitura de seus livros. Nesse caso, destaca-se a influência de Lévi-Strauss a partir dos anos 1960, enquanto a de Radcliffe-Brown (salvo engano) restringiu-se aos anos 1940 e 1950”. Desde os primórdios da antropologia no Brasil, vários pesquisadores utilizaram o termo ‘etnologia’ como parte da antropologia cultural ou social, o qual “[...] abrange os estudos em que o pesquisador entra em contato direto, face a face, com os membros da sociedade, ou segmento social estu- dado, contrastando-a com a arqueologia, que abarca as pesquisas apoiadas em vestígios deixados por sociedades desaparecidas ou por períodos passados de sociedades que continuam a existir” (MELATTI, 1983, p. 4). Contudo, confundem-se os termos “etnologia” e “etnografia”; por isso é sempre importante observar a época em que o termo é empregado. Segundo Kottak (2013), antropólogo contemporâneo, há dois tipos de ati- vidades realizadas pelos antropólogos: a etnografia (com base no trabalho de campo) e a etnologia (com base na comparação intercultural). De acordo com Kottak (2013,p. 33), “A etnografia fornece uma descrição de determinada comunidade, sociedade ou cultura. [...] A etnologia examina, interpreta, analisa e compara os resultados da etnografia — os dados coletados em diferentes sociedades — e os usa para comparar, contrastar e fazer generalizações sobre a sociedade e a cultura”. No artigo Traficante do excêntrico: os antropólogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60 (1988), Mariza Corrêa (1988, p. 79) destaca um aspecto importante acerca do desenvolvimento da antropologia: Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira 3 Talvez seja uma ironia adequada a esta disciplina que se quer uma ciência do outro que ela tenha criado, em quase toda a parte, tradições antropológicas nacionais fundadas por estrangeiros: Franz Boas nos Estados Unidos, Curt Nimuendajú no Brasil, Bronislaw Malinowiski na Inglaterra. A pesquisadora destaca, ainda, um certo descompasso em meio ao inter- câmbio entre os pesquisadores nacionais e estrangeiros, e, sobretudo, acerca de “como nos pensamos” e “como nos pensam” (1988, p. 79–80): No caso brasileiro, se acrescenta ainda a esta ambiguidade, às vezes uma harmonia, às vezes um descompasso, entre “como pensamos” e “como nos pensam”. A traje- tória brasileira da disciplina é, mais do que costumamos registrar explicitamente, parte tanto de seu percurso internacional, quanto do imaginário dos antropólogos em geral: lembrando de novo o exemplo de Geertz, é de Lévi-Strauss que ele está falando quando escreve “mito brasileiro” ao invés de seu nome (1983, p. 150). Ao fazermos uma genealogia da antropologia no Brasil, deparamo-nos com tradições também inventadas. Esse é um fato importante a ser considerado, uma vez que o distanciamento do pesquisador nem sempre foi possível. Percebe-se, muitas vezes, considerações um tanto distantes de nossa re- alidade. Nesse sentido, podemos citar a percepção de nossos índios como “selvagens”, de acordo com a interpretação de Lévi-Strauss. Acerca dessas tradições-invenções, afirma Corrêa (1988, p. 80): As tradições aqui inventadas, se não o foram apenas por estrangeiros, tiveram uma forte participação deles nessa invenção: se olharmos atentamente o mapa etno- lógico de Curt Nimuendaju, quase poderemos ver as sombras dos pesquisadores que as estudaram projetando-se sobre os contornos das comunidades indígenas por eles estudadas até a década de 40, projeção que nos ajudaria mais, entretanto, a entender a distribuição deles, pesquisadores, num território disciplinar comum, do que a de seus objetos de interesse. Como sabemos, o trabalho etnográfico do antropólogo consiste em inserir-se na comunidade e, com certo distanciamento, observar os hábitos e costumes de determinada cultura. Observar e interpretar sem adjetivar, porém, talvez seja bastante difícil depois de muitos anos inserido na mesma comunidade. O início da caminhada da antropologia no Brasil Até a década de 1930, aqueles que faziam antropologia no Brasil não eram formados na área e, por isso, são referidos como cronistas, pois não realizavam o trabalho etnográfico. Contudo, por meio de suas crônicas, forneceram-nos Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira4 bons registros de observações, ainda que sem controle ou orientação me- todológica, pois não havia cientistas sociais na época. Nesse período, como afirma Melatti (1983, p. 5): [...] não existe a formação acadêmica de etnólogo no Brasil. Os estudiosos brasilei- ros que dão contribuições nessa área são médicos, juristas, engenheiros, militares ou de outras profissões. Mesmo os etnólogos que vêm do exterior são formados em centros de pesquisa de criação recente, pois a Antropologia era então ramo novo das ciências, mesmo na Europa. Alguns deles são também de outras áreas acadêmicas e que, tendo-se interessado pela Etnologia, procuraram aperfeiçoar-se nos centros que a cultivavam. Como ainda não tínhamos a presença de cientistas sociais, alguns ter- mos foram utilizados de forma diferente daquela compreendida hoje, como acontece com a etnologia, por exemplo, cuja definição e classificação atuais podem ser observadas no Quadro 1. Contudo, por um longo período no Brasil, chamou-se de etnólogo aquele pesquisador que estudava as tribos indígenas. Acerca dessa etnologia praticada na época, Melatti (1983, p. 5) afirma: A partir de meados do século passado, alguns brasileiros se incumbem de tarefas de caráter etnológico. Esses pesquisadores, quase todos autodidatas em Antro- pologia, a par de seus levantamentos a respeito de índios, negros, sertanejos, mostravam na maior parte dos casos um certo interesse no destino das popula- ções que estudavam e seu lugar na formação do povo brasileiro, cujo futuro era objeto de suas preocupações. Boa parte desses autores vivem um conflito entre a simpatia que devotavam às minorias que estudavam e a situação de inferioridade em que as colocavam na hierarquia biológica que supunham existir. Sobre as idéias conflituosas a respeito da população nacional, mantidas pelos intelectuais brasileiros no final do Império e da Primeira República, é muito útil a leitura de Thomas Skidmore (1976). Por outro lado, esses autores já estavam atentos para o problema do contato interétnico, tratado daí por diante por todas as gerações de etnólogos brasileiros, naturalmente segundo os recursos teóricos de cada época. Quadro 1. Etnografia e etnologia: duas dimensões da antropologia cultural Etnografia Etnologia Exige trabalho de campo para coletar dados Utiliza os dados coletados por uma série de pesquisadores Muitas vezes, descritiva Normalmente, sintética Específica de um grupo ou de uma comunidade Comparativa/intercultural Fonte: Adaptado de Kottak (2013). Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira 5 A história do surgimento da antropologia no Brasil pode ser dividida em três momentos, compreendidos entre as décadas de 1930 e 1960, segundo Corrêa (1988, p. 80): Os três momentos são, eles mesmos, exemplares: nas décadas de trinta e quaren- ta, com a chegada do cinema falado (como lembra Almir de Castro, 1977), entrou também no país a modernidade da língua inglesa — belas cartas de amigos de Eduardo Galvão, dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra, sugerem o impacto do modo de vida norte-americano sobre os brasileiros, assim como o registram os cronistas da época; na década de cinqüenta, o espírito de desenvolvimento vigente no país se expressou também na institucionalização dás ciências sociais e, na década seguinte, muitas das iniciativas dos anos anteriores amadureceram, não obstante os obstáculos políticos conhecidos. A seguir, abordaremos esses momentos a partir da história da antro- pologia e com foco nas contribuições de alguns antropólogos, utilizando, como exemplo, o trabalho de Melatti. Certamente, não poderemos abarcar toda a história da antropologia brasileira. Então, destacaremos a etnologia, pois há mais trabalhos e registros nessa área. Assim, cabe ressaltar que começaremos pelo período anterior ao identificado como inicial por Corrêa (1988), pois vamos considerar os cronistas e o período dedicado à etnologia (como a compreendiam àquela época). Após, abordaremos a antropologia e os antropólogos até os anos 1930, dos anos 1930 aos anos 1960 e, por fim, dos anos 1960 em diante. Os principais antropólogos brasileiros e suas contribuições A antropologia no Brasil, como comentamos, começa com pesquisadores autodidatas, sem formação na área, uma vez que ainda não existia a pro- fissão no Brasil. Contudo, mesmo sem formação acadêmica na área, esses pesquisadores fizeram descobertas bastante relevantes, e seus registros nos permitem compreender melhor os índios, os negros e os sertanejos. Antigamente, os pesquisadores se mantinham atentos ao problema inte- rétnico, que acabou sendo abordado por todas as gerações de antropólogos brasileiros, considerando os recursos disponíveis em cada época (MELATTI, 1983). Entre esses pesquisadores,podemos citar, por exemplo, Antônio Gon- çalves Dias. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira6 Antônio Gonçalves Dias integrou a Comissão das Borboletas, comissão científica que participou de uma expedição exploradora às províncias do Brasil setentrional projetada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). A expedição, que partiu em 1859, ficou mais tempo no Ceará, mas Gonçalves Dias foi para a Amazônia, onde se dedicou aos estudos linguísticos e a coleções etnográficas. Embora tenha feito parte dessa comissão, Gonçalves Dias não possui registros históricos nem publicações acerca de levantamentos da expedição. Possui escritos que datam desse período, mas se trata de pesquisas de base bibliográfica, entre as quais se destacam: “Amazonas”, trabalho publicado na Revista do IHGB em que apresenta e discute o problema das mulheres guerreiras que dão nome ao Rio Amazonas, e “Brasil e Oceania”, no qual faz referência aos cronistas, apresenta uma descrição dos índios do litoral brasileiro e das populações da Oceania e discute o problema da civilização cristã. Sobre esse estudo, Melatti (1983, p. 6) afirma o seguinte: “Brasil e Oceania”, longo texto em que, baseado nos cronistas, ainda que de modo não exaustivo, apresenta uma descrição dos índios do litoral brasileiro, seguida de uma descrição resumida das populações da Oceania, para finalmente discutir o problema de qual das duas populações estava mais apta para receber a civilização cristã. No fim do trabalho Gonçalves Dias propõe que, ao lado do incentivo à colo- nização estrangeira, haja uma retomada da catequese dos índios. Gonçalves Dias não estava à frente das idéias de seu tempo: aceitava uma hierarquia das raças e admitia, como Martius, que os índios estavam em decadência, não motivada, mas apenas acentuada pelo contato com os brancos. Além de Gonçalves Dias, merece destaque José Vieira Couto de Magalhães, militar e presidente das províncias de Goiás e de Mato Grosso. O político se interessou pelo estudo dos indígenas durante sua empreitada acerca da navegação regular a vapor do Araguaia ao Tocantins. Entre seus estudos, os mais conhecidos são Viagem ao Araguaia (1863) e O selvagem (1876). Sobre eles, Melatti (1983, p. 6) afirma, respectivamente: O primeiro se refere a uma viagem que realizou em 1863 e contém dados sobre índios das vizinhanças do Araguaia e Tocantins. No segundo apresenta esboços de classificação das raças, que hierarquiza, e das línguas indígenas; lendas indí- genas, sem dizer exatamente quem narrou cada uma, mas indicando que obteve uma delas em Belém e que coligou outras entre soldados indígenas do Exército. Defende a ideia de assimilar os índios, aprendendo-lhes a língua para se poder ensinar-lhes o português, de modo a evitar seu extermínio futuro. Esse cuidado estaria relacionado à sua previsão de que a seleção natural iria eliminar os índios, mas aconselhava a se tomar o cuidado de misturá-los com os brancos antes que isso acontecesse, a fim de que estes criassem resistências ao ambiente físico do Brasil. O melhor mestiço seria o branco com um quinto de sangue indígena. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira 7 Além das figuras já mencionadas, cabe destacar João Barbosa Rodrigues, botânico e responsável pelas informações de diversos grupos indígenas da Amazônia e pelo primeiro contato amistoso com os Krixaná, no ano de 1884. Rodrigues tinha interesse pelo curare, além de pelas lendas e cantigas amazônicas em língua geral (língua Tupi que fora modificada e usada pelos colonizadores) e pelos muiraquitãs. Outra figura de destaque foi o engenheiro Antônio Manoel Gonçalves Tocantins, que publicou, em 1877, Estudos sobre a tribo “Mundurucú”, pequena monografia acerca dos vários aspectos do modo de vida dos Munduruku (família, agricultura, guerra, conservação das cabeças dos inimigos, pintura de corpo, feitiçaria, mitos etc.). Gonçalves Tocantins visitou essa tribo em 1875, o que o motivou a abordar também “[...] importantes problemas do contato interétnico, como relações dos índios com os missionários, destes com a população civilizada, o comércio com os regatões” (MELATTI, 1983, p. 6). Destaca-se, também, o engenheiro, militar e jornalista Euclides da Cunha, que relatou os sertanejos de Canudos e os do Sudoeste da Amazônia, uma vez que os conheceu pessoalmente. Obviamente, sua obra não ficou isenta de comentários e críticas. Entre seus críticos, estão Gilberto Freyre, Clovis Moura, Dante Moreira Leite e Thomas Skidmore. Além dos autores já mencionados, cabe acrescentar dois autores res- ponsáveis pelos primeiros estudos sobre o negro no Brasil: o desenhista e arquiteto Manuel Raimundo Querino e o médico Raimundo Nina Rodrigues. Manuel Raimundo Querino, descendente de africanos, foi responsável por minuciosas descrições das tradições de origem africana, enquanto Nina Rodrigues deixou, em seu legado, contribuições acerca da diversidade de culturas trazidas pelos escravos e seus locais de origem na África. Contudo, aderiu às noções (comuns na época) de inferioridade e superioridade racial. No período inicial da antropologia no Brasil, havia grande interesse de pesquisadores alemães na população indígena. Houve vários, mas o primeiro e mais famoso foi Karl von den Steinen, que deixou a psiquiatria para se dedicar à etnologia por influência de Bastian. Karl von den Steinen, como destaca Melatti (1983, p. 8): “[...] em sua expedição de 1884 descobriu os grupos indígenas xinguanos e foi o primeiro a descer o rio Xingu desde seus formadores até a foz. Numa segunda expedição, de 1887 a 1888, voltou a visitar os xinguanos”. Há vários outros pesquisadores alemães, mas optamos por mencionar apenas Steinen, por ser o primeiro e o mais famoso. As preocupações evolucionistas e difusionistas foram abandonadas so- mente nas décadas de 1920 e 1930, no que se refere às pesquisas com índios. O número de pesquisadores alemães também vai diminuindo, mas a maioria Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira8 dos pesquisadores continua sendo estrangeira, embora alguns acabem se estabelecendo no Brasil ou em países vizinhos. Entre esses pesquisadores de origem alemã e que se radicaram no Brasil, destaca-se Curt Nimuendajú, como mencionamos anteriormente, considerado o “pai da antropologia no Brasil”. Nimuendajú se destaca no estudo das sociedades indígenas devido à extensão de seu trabalho e, também, pela dedicação com que o realizou. Sua produção vai desde obras mais extensas sobre os Guarani, os Xerênte, os Canelas, os Apinayé e os Tukúna, até outros trabalhos acerca da língua, da mitologia, da história, de diversos grupos indígenas, além de um mapa etno-histórico dos índios do Brasil, com uma enorme lista de referências aos materiais consultados. A contribuição de Nimuendajú não ficou restrita à teoria. Quando era funcionário do Serviço de Proteção aos Índios (então recentemente criado), garantiu a fixação dos Guarani em reservas, no estado de São Paulo. Sua atuação como funcionário do Serviço lhe permitiu, ainda, atuar junto à atração dos índios Parintintin, sobre os quais elaborou um importante relatório — que, inclusive, foi tema do romance de Ferreira de Castro intitulado O instinto supremo. Nimuendajú se correspondia com o antropólogo Robert Lowie, nascido em Viena, mas radicado nos Estados Unidos. O diálogo com Lowie preencheu, em parte, as lacunas de sua formação acadêmica, mas a contribuição não foi apenas por meio da correspondência: Lowie traduziu e providenciou tra- duções para o inglês das principais monografias de Nimuendajú, chamando a atenção para a importância do estudo das sociedades Jê. Em sua autobio- grafia, mencionou a correspondência e intitulou o capítulo 9º de “Trabalho de campo realizado A distância”, o que talvez demostre sua influência no trabalho realizado por Nimuendajú. Além disso, é importante salientar a contribuição do trabalho etnográ-fico dos missionários salesianos nesse período: Antônio Colbacchini, César Albisetti e Ângelo Jayme Venturelli. Guardadas as devidas proporções, os trabalhos dos salesianos se aproximam daquele realizado por Nimuendajú, uma vez que demostram certo cuidado na descrição, preocupam-se com a organização social e evitam os antigos temas evolucionistas e difusionistas, ainda que não tivessem orientação teórica. Contudo, diferentemente de Nimuendajú, eles se concentraram no estudo dos Borôro e, por conta de seu trabalho confessional, por meio da catequese, eram atores de mudança social, intervindo e alterando crenças e costumes. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira 9 Antropologia no Brasil: dos anos 1930 aos anos 1960 Esse período tem seu início marcado pela criação da primeira Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Brasil, na também recém-criada Universidade de São Paulo (1934). Na mesma época, nasce a primeira Escola de Sociologia e Política. A partir da criação da Universidade, houve a necessidade de con- tratação de professores da área, até então não existente no Brasil, motivo pelo qual foram contratados professores estrangeiros. Nesse sentido, Melatti (1983, p. 11) afirma: Para fazer frente à necessidade de professores, foram contratados vários mestres estrangeiros. Desse modo, Roger Bastide, Emílio Willems, Claude Lévi-Strauss passaram a trabalhar na primeira, enquanto Herbert Baldus, Donald Pierson, na segunda, onde esteve como professor visitante, por breve período durante a Segunda Guerra Mundial, Radcliffe-Brown. Também no Rio de Janeiro criava-se a Universidade do Distrito Federal, onde Gilberto Freyre assumiu em 1935, como seu primeiro professor, a cátedra de Antropologia Social e Cultural; ocupou também a cátedra de Sociologia, enquanto Arthur Ramos ficava com a de Psicologia Social. Segundo Mariza Corrêa (2013, p. 43), é importante considerar que: Fora do eixo central do país, em regiões onde as Faculdades de Filosofia se instala- riam mais tarde, seguindo aqueles modelos, e dependendo da região, a concentração daqueles que seriam depois definidos ou reconhecidos como antropólogos estava em torno de um museu (caso do Museu Paraense Emilio Goeldi, por exemplo, de tradição antiga), de um personagem (como Gilberto Freyre, já nessa época perso- nagem nacional em Pernambuco), ou de um “movimento” (o da defesa do folclore, de Câmara Cascudo, em Natal, ou os Congressos Afro-Brasileiros, no Recife, em 1934, organizado por Gilberto Freyre, e na Bahia, em 1937, organizado por Édison Carneiro). Que essas instituições, pessoas ou grupos eram os pontos de referência de uma território antropológico implicitamente reconhecido são testemunhos os depoimentos daqueles que vinham de fora dele, como os antropólogos estrangeiros, ou os antropólogos nativos em sua circulação interna: esses pontos, mencionados por todos, vão assim desenhando o perfil de um grupo que se reconhecia, ainda que não se definisse explicitamente como tal, nos anos trinta e quarenta. A maioria dos professores de São Paulo vinha da Europa, mas a maior influência nas pesquisas e nos estudos era norte-americana. Nesse período, havia um profundo interesse norte-americano pelos países da América Latina, entre eles o Brasil. Tal influência se dava não apenas pelos docentes que aqui ministravam, mas também pela presença dos primeiros pesquisadores Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira10 norte-americanos, cujo objeto de estudo eram as sociedades indígenas, as religiões afro-brasileiras ou pequenas comunidades, e por conta dos jovens brasileiros que iam estudar nos Estados Unidos. Em 1941, foi fundada a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etno- logia, cujo primeiro presidente foi Arthur Ramos. Em 1942, publicou um Manifesto contra o racismo. Em 1955, a Sociedade deu lugar à Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Florestan Fernandes (1956) nos apresenta uma excelente avaliação acerca do desenvolvimento da etnologia durante este período. Para conhecer a obra e a contribuição de Florestan Fernandes, sociólogo e educador brasileiro, autor de duas excelentes mono- grafias sobre os Tupinambás, povo indígena extinto no século XVII, e de um relato sobre a importância social dos relatos dos cronistas, acesse o volume da Coleção Educadores cujo título leva seu nome e está disponível no site Domínio Público. Segundo Cardoso de Oliveira (1988), Nimuendajú (na etnologia indígena) e Gilberto Freyre (na Antropologia da Sociedade Nacional) desempenharam seus papéis como “heróis civilizadores”: Tanto um quanto o outro se utilizaram amplamente do conceito de Cultura: Curt Nimuendajú pela importância que teve, em seu trabalho, Robert Lowie; Gilberto Freyre por seus estudos de pós-graduação na Columbia University. Embora exis- tam, com certeza, outros nomes nesses períodos, nenhum deixou uma obra com o impacto das obras de Nimuendajú e Freyre. O impacto deixado pelas obras destes autores, nos permite dizer que "a partir delas a disciplina antropológica entre nós, nas duas tradições que me referi, teria se firmado de maneira irreversível (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, p. 112). Contudo, se o período no qual se inserem Nimuendajú e Freyre, segundo Cardoso de Oliveira (1988) pode ser considerado o que ele chama de “Período Heroico”, o período em que se insere Darcy Ribeiro é chamado de “Período Carismático”. É importante esclarecer que a divisão e a classificação da his- tória da antropologia do Brasil são realizadas por Cardoso de Oliveira (1988), segundo as categorias de cultura e estrutura (Quadro 2). Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira 11 Quadro 2. Fases históricas da disciplina (1920–1950) Categorias/ tradições Etnologia indígena Antropologia da Sociedade Nacional Cultura � Período Heroico: Nimuendajú � Período Carismático: Darcy Ribeiro (Cultural funcionalismo) � Período Heroico: Gilberto Freyre � Período Carismático: Charles Wagley (Cultural histórico) Estrutura Período Carismático: Florestan Fernandes (Estrutural funcionalismo) Período Carismático: D. Pierson (Sociologismo funcionalista) Fonte: Adaptado de Cardoso de Oliveira (1988). Foi entre os anos 1930 e 1960 que se desenvolveram os estudos acerca das interpretações gerais do Brasil e os estudos de mudança social, cultural e/ou aculturação, e quando houve a predominância do funcionalismo no estudo das culturas e sociedades indígenas. Durante as décadas de 1940 e 1950, foram realizados os chamados estudos de comunidade, nos quais se realiza a observação direta de pequenas cidades ou vilas, utilizando as técnicas desenvolvidas pela etnologia no estudo das sociedades tribais. Houve, ainda, a abordagem funcionalista do folclore. Entre os vários trabalhos, destacam-se aqueles realizados por Florestan Fernandes e a pes- quisa de Cristina Argenton Colonelli, cuja bibliografia arrolou cerca de 4.919 trabalhos sobre o folclore brasileiro (MELATTI, 1983). Salienta-se a importância de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta para a antropologia no Brasil, mas suas contribuições serão abordadas na seção seguinte, em que vamos falar da identidade brasileira e da antropologia a partir dos anos 1960. A construção da identidade brasileira na imensa diversidade cultural e geográfica do País Anteriormente, a cultura foi mencionada como uma das categorias inves- tigadas pelos antropólogos, ou seja, como um dos objetos de estudo da antropologia. Antes de falarmos da identidade brasileira e de sua diversidade cultural, cabe aclarar o conceito de cultura. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira12 A cultura engloba o comportamento habitual e as crenças que são passadas por meio da enculturação. É baseada na capacidade humana de aprendiza- gem cultural e inclui regras de conduta internalizadas pelos seres humanos. Outros animais aprendem, mas somente os sereshumanos têm aprendizagem cultural, que depende de símbolos. Ela possui aspectos tangíveis (objetos e símbolos) e intangíveis (ideias e normas), e é uma das principais, se não a principal, característica da identidade de um povo (KOTTAK, 2013). Pode haver diferença entre as culturas? Sim, a diferença entre culturas se dá pelos elementos que a constituem e compõem o conceito de identidade cultural. A enculturação é o processo pelo qual uma criança aprende sua cultura. A enculturação informal vem da família e de amigos, en- quanto a enculturação formal vem da escola. A cultura é apreendida por meio dos processos de socialização, com agentes de socialização, e os processos primários são realizados pelas instituições: família, escola e instituição religiosa. Por sua vez, a endoculturação é um processo de aprendizagem no meio da cultura em que se vive, de modo que, consciente ou inconscientemente, o indivíduo (ou grupo social) apreende e incorpora os elementos culturais pertinentes (MARCONI, 2010). Compreendido o conceito de cultura e sua importância, cabe definir iden- tidade. Acerca da identidade, Barroso (2017a, p. 70–71, grifo nosso) afirma o seguinte: A identidade se refere a como você é identificado em uma determinada cultura, ou seja, apresenta suas características em termos do seu relacionamento no mundo. Deste modo, você é percebido pelos outros a partir dos elementos culturais que manifesta ao mundo, e, por isso, você é reconhecido. Assim, não é sempre que temos o controle sobre como as pessoas nos rotulam. Podemos dizer que esses rótulos são dados a partir de características as quais os outros reconhecem em nós. Muitos antropólogos brasileiros contribuíram para a compreensão e a caracterização da identidade brasileira, tanto para a forma como é compre- endida no Brasil quanto para a forma como é vista por estrangeiros. Seus estudos acabam, muitas vezes, por abordar a nossa identidade. Nesse sentido, destaca-se o estudo de Roberto DaMatta intitulado “O que faz o brasil, Brasil?” (1986). Nessa obra, DaMatta nos apresenta a nós mesmos e aos outros por meio de nossas festas populares, nossas manifestações religiosas, nossa literatura e arte, enfim: tudo aquilo que nos é próprio e capaz de definir nossa identidade nacional, apesar da absurda diversidade cultural do Brasil. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira 13 Vejamos um pequeno excerto de sua obra, em que menciona como sabe que é brasileiro, reunindo várias características de nosso povo e retratando nossa diversidade cultural (DAMATTA, 1986, p. 16): Sei, então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque gosto de comer feijoada e não hamburguer; porque sou menos receptivo a coisas de outros pa- íses, sobretudo costumes e ideias; porque tenho um agudo sentido de ridículo para roupas, gestos e relações sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova York; porque falo português e não inglês; porque, ouvindo música popular, sei distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque futebol para mim é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos; porque vou à praia para ver e conversar com os amigos, ver as mulheres e tomar sol, jamais para praticar um esporte; porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais; porque sei que não existe jamais um “não” diante de situações formais e que todas admitem um “jeitinho” pela relação pessoal e pela amizade; porque entendo que ficar malandramente “em cima do muro” é algo honesto, necessário e prático no caso do meu sistema; porque acredito em santos católicos e também nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no estudo, na instrução e no futuro do Brasil; porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações que não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como fazem meus amigos americanos, que sempre se veem e existem como indivíduos! Quando um índio utiliza elementos linguísticos e culturais de outra cultura para se expressar, por qual processo cultural podemos dizer que ele passou? Sem dúvida, é possível afirmar que ele passou por um processo de mudança cultural, que ocorre a partir da difusão (empréstimo) de traços entre culturas. Ela pode ser direta (espontânea) ou forçada, dependendo da situação. Esse processo é chamado, pelos antropólogos, de aculturação, e se trata do intercâmbio permanente de traços culturais entre grupos em contato contínuo. Cabe observar, porém, que os olhares dos antropólogos se voltaram para a sociedade brasileira muito antes de DaMatta. Uma das mais famosas obras de interpretação do Brasil é Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre (embora tenha sido responsável por disseminar a falsa ideia de que havia democracia racial no Brasil). Além desse livro, outras importantes obras publicadas foram Sobrados e mocambos (1936) e Ordem e progresso (1959), fora uma série de trabalhos paralelos. Entre os temas abordados em suas obras, estão a família patriarcal e o Nordeste. Sobre Casa grande e senzala e o mito da democracia racial, cabe ressaltar que: Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira14 Como o povo brasileiro era composto por povos oriundos de três origens distintas — indígenas, europeus e africanos —, muitos estrangeiros acessavam informações da relação entre esses povos a partir da produção da literatura brasileira sobre o assunto. E um dos livros de referência foi a obra Casa Grande e senzala, do sociólogo Gilberto Freyre. Ali, ele apresentou o negro escravizado desfrutando de certo conforto material, beneficiando-se de regalias e até sendo visto como pessoa de confiança dos senhores e das sinhás. Portanto, esse livro deixou de lado os horrores do trabalho compulsório e da relação de submissão dos escravizados, fazendo crer que houvesse uma miscigenação generalizada, tranquila e natural entre os índios, brancos e negros. Assim, foi interpretado que, no Brasil, havia uma democracia racial. ainda que o autor não tenha dito com essas palavras, como se as pessoas de diferentes origens fossem tratadas e percebidas da mesma forma (BARROSO, 2017a, p. 82). Segundo Melatti (1983, p. 12-13, grifo nosso), “[...] como interpretação do Brasil, também é de grande importância o pequeno livro de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil [...], de âmbito mais vasto e publicado original- mente em francês em 1960”. Ainda no que se refere à diversidade cultural do povo brasileiro, é ne- cessário mencionar que os processos culturais são vivenciados em todos os âmbitos sociais, são dinâmicos, possibilitam trocas sociais e podem ocorrer de modo concomitante. Sobre isso: O antropólogo Roberto Da Matta (1987) nos lembra que a sociedade brasileira é relacional, pois nela se concretiza a síntese de modelos advindos de diferentes sociedades. A tríade majoritária que compôs a base da sociedade brasileira — os indígenas, os europeus e os africanos — compartilhou, de forma mais tensa ou me- nos tensa, crenças, valores, hábitos, gostos, sentidos, pensamentos que resultaram em novas manifestações culturais. Um deles é o candomblé. Essa é uma religião que foi trazida com os negros escravizados no Brasil, e, sendo o país colonizado por portugueses católicos, as práticas religiosas do Candomblé eram reprimidas. Assim, seus praticantes, em seus ritos religiosos, disfarçavam a devoção aos seus deuses se direcionando aos santos da religião católica. Com o tempo, essa reli- gião foi contraindo características próprias e seus elementos rituais englobaram aspectos da cultura caipira e da cultura indígena (BARROSO et al., 2017b, p. 64). Portanto, no Brasil, a fé também ocupa um importante papel identitário. Assim, o processo descrito por Barroso et al. (2017b) é um processo cultural bastante comum em nosso País e que, em certa medida, acaba por nos definir como sociedade brasileira: o sincretismo, ou seja, a reunião de doutrinas diferentes,com a manutenção de traços perceptíveis das doutrinas origi- nais. Esse processo cultural se dá a partir do imbricamento de diferentes elementos culturais no âmbito religioso e se torna característico no Brasil, por sua diversidade cultural. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira 15 Referências BARROSO, P. F. Cultura e identidade brasileira. In: BARROSO, P. F.; BONETE, W. J.; QUEIROZ, R. Q. de M. Antropologia e cultura. Porto Alegre: Sagah, 2017a. p. 69–78. BARROSO, P. F.; BONETE, W. J.; QUEIROZ, R. Q. de M. Antropologia e cultura. Porto Alegre: Sagah, 2017b. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O que é isso que chamamos de antropologia brasileira? In: ________________. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro/Brasília: Tempo Brasileiro/CNPQ, 1988. p. 109–129. (Biblioteca Tempo Universidade, 83). CORRÊA, M. Traficantes do excêntrico. In: ___________. Traficantes do simbólico & outros ensaios sobre a história da antropologia. Campinas: Unicamp, 2013. p. 15–34. DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986. KOTTAK, C. P. Um espelho para a humanidade: uma introdução à antropologia cultural. 8. ed. Porto Alegre: AMGH, 2013. MARCONI, M. de A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010. MELATTI, J. C. A antropologia no Brasil: um roteiro. Brasília: UNB, 1983. (Série Antropologia). Leitura recomendada OLIVEIRA, M. M. de. Florestan Fernandes. Recife: Massangana, 2010. (Coleção Educadores). Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Antropologia no Brasil: construção da identidade brasileira16 ELLER, Jack David. Introdução à Antropologia da Religião. Mailson Fernandes Cabral de Souza Introdução Jack David Eller é professor adjunto de Antropologia na University of Northern Colorado. Doutorou-se em antropologia pela Universidade de Boston, tendo como seu trabalho de campo as mudanças religiosas e processos culturais entre o povo Warlpiri da Austrália Central. Seus estudos se concentram nas áreas de religião, violência e antropologia psicológica. Publicado originalmente em inglês em 2007, pela editora Routledge, o livro Uma introdução à antropologia da religião (Introducing anthropology of religion: culture to the ultimate), trata-se da primeira obra do autor traduzida para o português. O livro se encontra em sua segunda edição, revista e ampliada, publicada pela mesma editora em 2015, sendo esta a versão traduzida para o português. A obra é fruto do ensino e experiências de pesquisa de Eller e de sua busca por desenvolver uma série de temas determinantes não só para compreender a religião, mas também a abordagem antropológica do Fenômeno. A obra está organizada em seis temas: a) a diversidade das religiões, isto é, como elas variam entre elas ao redor do mundo sob múltiplas formas; b) a diversidade no interior das religiões, ou seja, como dentro de uma religião existe uma variedade de crenças e práticas distribuídas no tempo e espaço; c) a integração da religião com sua cultura circundante. Posto que todas as partes de uma cultura estejam interconectadas e se influenciam mutuamente, a religião tenderia a reproduzir um ethos de cada cultura e sociedade em que está inscrita. d) a Modularidade da religião, uma vez que esta última não é entendida como monolítica e única, mas um composto de muitos elementos, podendo ela ter seus cognatos não religiosos (política, economia gênero, etc.); e) a relatividade da linguagem. Os termos utilizados na análise antropológica da religião por vezes Podem estar carregados de uma concepção sobre a religião que tenha como o seu Horizonte o cristianismo, estabelecendo categorias que, quando aplicadas para Outras religiões, são incompatíveis para analisá-las; f) o caráter local e prático da Cultura e da religião. Visto que as religiões são multiformes internamente, uma Mesma religião poderá variar a depender do seu contexto. São esses temas que orientam o eixo expositivo do livro, dividido em doze Capítulos, e suas respectivas análises. A proposta da obra é fazer uma antropologia da religião comprometida em investigar as manifestações sociais contemporâneas e as formas com que elas se associam com a religião. Escopo da obra O primeiro capítulo apresenta as principais definições e teorias do campo antropológico. Para Eller, a melhor maneira de entender a antropologia seria concebendo-a como a ciência da diversidade dos seres humanos, em seus corpos e comportamentos. A antropologia da religião seria, portanto, a investigação científica da diversidade das religiões humanas. Nesse contexto, o conceito de cultura é central, posto que o estudo antropológico implica em olhar algo como comportamento humano aprendido e compartilhado. Essa orientação básica da antropologia levaria em consideração três aspectos da perspectiva antropológica. a) A antropologia procede através da descrição comparativa ou intercultural. Uma vez que o processo é seu o trabalho de campo, o método principal da antropologia é a observação participante. Seu produto é o estudo de caso ou etnografia e sua peculiaridade seria usar o particular para dizer algo sobre o geral; b) A antropologia adota uma posição de holismo. Parte-se da premissa que qualquer cultura é um todo mais ou menos integrado com partes que operam de maneiras específicas uma em relação à outra e que contribuem para o funcionamento do todo. As quatro áreas de atividade de todas as culturas (economia, parentesco, política e religião) se articulam nessa perspectiva, ligando se também às questões mais difusas de linguagem e gênero, refletindo-as e afetando-as mutuamente; c) A antropologia defende o princípio do relativismo cultural, posto que ela reflete o entendimento que cada cultura tem seus próprios padrões de compreensão e julgamento. Nesse sentido, o relativismo cultural seria um resultado do estudo intercultural e holístico. O segundo capítulo trata da crença religiosa e das entidades e conceitos a ela subjacentes. O autor afirma que qualquer religião contém certas ideias e concepções sobre tipos de coisas que existem no mundo, com que elas se parecem e o que elas fizeram. Isso poderia ser classificado como a ontologia que cada religião encarna, os existentes que ela postula: seres, forças e fatos da realidade religiosa. Esses elementos são chamados de crenças da religião. As crenças religiosas são um subconjunto das crenças em geral. Enquanto questão subjetiva ou psicológica, as crenças são adicional e necessariamente interpretadas como estados mentais dos indivíduos. Ou seja, se dissermos que uma pessoa crê em algo, fazemos uma afirmação a respeito das representações mentais dessa pessoa. Elas seriam o conjunto de ideias religiosas sobre seres e forças que fundamentariam um determinado sistema cultural. Esses seres podem ser seres religiosos, espíritos humanos e espíritos não humanos, ao passo que as forças religiosas podem designar um tipo de energia, destino ou sorte. A presença e a ênfase desses elementos irão depender de cada religião e seu respectivo contexto cultural. O terceiro capítulo trata do sentido e poder espiritual no mundo físico e social, isto é, os símbolos e os especialistas religiosos. Os símbolos não são meras representações de coisas, mas são coisas repletas de poder, inclusive podendo esse poder ser o seu sentido. O mesmo vale para os especialistas religiosos: apesar de não representarem seres e forças religiosas, eles podem substituir essas entidades, atuando como seus representantes ouintermediários no mundo humano. A religião, no olhar da antropologia, poderia ser considerada como um conjunto de símbolos, sendo a própria cultura um sistema simbólico, dos quais a religião é um filão, embora particularmente relevante. Seria tarefa da antropologia interpretar ou decodificar esses símbolos. A função dos símbolos consistiria em controlar o comportamento. Os símbolos religiosos significam algo, mas também são algo (objetos, palavras ou ações). Os símbolos podem, inclusive, ser coisas ou forças: espaços sagrados, ícones, talismãs, amuletos, relíquias, máscaras, textos; ou pessoas que eles representam, o corpo humano, textos, especialistas religiosos (xamã, sacerdote, oráculo, profeta, médium, asteca, monge, mendicante, feiticeiro, bruxo). O quarto capítulo examina a linguagem religiosa que, muitas vezes, é entendida como mito. Este último, na verdade, é uma forma extremamente comum e importante de discurso religioso, mas de modo algum seria a sua única forma, ao passo que a linguagem religiosa seria um espectro mais amplo em que se situam as diferentes formas do discurso religioso (oração, encantamentos, cantos, provérbios, literaturas sapiencial e litúrgica, etc.). O mito, dessa forma, é compreendido como uma linguagem religiosa “um tipo de história, especificamente uma história que envolve os feitos dos espíritos ou ancestrais humanos. Numa palavra, os mitos são narrativas a respeito das atividades e aventuras destes seres” (ELLER, 2018, p. 137). Ele representa uma aparição do sagrado no meio do profano. Alguns tipos e temas de mitos recorrentes nas culturas são os mitos de criação, dilúvio, matar um monstro, caso de incesto, rivalidade entre irmãos, castração e divindade andrógina. Em síntese, os mitos são repositórios de ideias culturais sobre temas como cosmologia e cosmogonia. O quinto capítulo tem por finalidade observar e examinar o sentido, a função, origem e variedade do ritual. Os rituais são compostos de diferentes atividades: oração, música, exercícios fisiológicos (automutilação, jejum, uso de drogas, etc.), exortação, mito, simulação, poder, tabus, festas, sacrifícios, congregação, inspiração, simbolismo e objetos religiosos. Eles têm funções técnicas e terapêuticas, assim como podem possuir caráter ideológico, acarretando muitos gêneros de ação, indo da linguagem a itens materiais, comidas e outros elementos. Mesmo sendo um fenômeno primariamente religioso, o ritual não exige a priori nenhuma crença sobrenatural. A tendência em ver o ritual como algo estritamente religioso, adverte Eller, distorce tanto a religião quanto o ritual. Em síntese, os rituais são entendidos como componente chave da religião. Toda interação social humana acontece sob um código de convívio que comenta, representa e leva a cabo essas interações. Em razão disso, as interações religiosas devem ser compreendidas como instâncias de um código comportamental e simbólico. Por conseguinte, o comportamento religioso também deve ser considerado ao menos parcialmente real, posto que os rituais não são meramente informativos, mas transformadores dessas interações. O sexto capítulo analisa a relação entre religião e moralidade, sendo esta última concebida como códigos ou padrões de comportamento individual atuando em conjunto com a ordem e as instituições da sociedade. O interesse é descobrir como esses sistemas contribuem para a sociedade e para a construção e transformação dos indivíduos. Embora a religião não seja a única fonte de sansões e normas, ela é potencialmente a mais segura. A antropologia analisa a moralidade levando em conta a diversidade, a construção social e a relatividade da linguagem. A moralidade é entendia como o acúmulo muito variado de moralidades – assim como a compreensão do conceito de religião segue o mesmo raciocínio. O autor constata que em muitos casos “os estudos da moralidade têm sido tentativas não tanto de descrever e explicar a moralidade quanto de propor uma – ou a – moralidade verdadeira ou melhor” (ELLER, 2018, p. 208). A moralidade seria uma consequência de viver num grupo social e ser sensível a ele, configurando-se como uma prática social. O sétimo capítulo examina a permanente construção da religião. O autor ressalta que mesmo as religiões mais tradicionais já foram dinâmicas e nenhuma fase específica delas foi a verdadeira ou a tradicional. Embora muitas tradições reivindiquem que se ocupam do passado, disso não se pode deduzir que esse passado seja necessariamente antigo ou sequer real. O autor ressalta que esse processo não é tão moderno quanto possa parecer: “a invenção da tradição não é exclusiva do mundo moderno. A tradicionalização de sociedades tradicionais tem sido mais difícil de ver e de aceitar” (ELLER, 2018, p. 247). Esses movimentos de mudança religiosa, por seu turno, também criam novos movimentos religiosos que “surgem como respostas, acomodações ou protestos contra circunstâncias sociais novas e insatisfatórias. Por isso, [...] explicá los é examinar as relações dinâmicas entre estes movimentos religiosos e a sociedade emergente na qual eles ocorrem” (ELLER, 2018, p. 251). Ou seja, eles surgem quando os indivíduos se encontram em circunstâncias de tensão social crônica, decorrente da combinação mal sucedida entre suas crenças e comportamentos atuais e o funcionamento do seu novo mundo social. O oitavo capítulo enfoca o fenômeno das religiões translocais (o islã e o cristianismo). O capítulo explora as categorias, desenvolvidas por Robert Redfield, de religiões locais e religiões translocais, isto é, pequenas e grandes tradições. O primeiro termo se refere às pequenas religiões que foram produtos de experiências de um tipo de sociedade pequena que, ao menos no seu início, eram autônomas e autossuficientes, sendo socialmente homogêneas e com forte senso desolidariedade de grupo. O segundo termo se refere às religiões que, situadas emcircunstâncias sociais e políticas em expansão, tiveram seu ethos de religião redefinido. As religiões translocais são desenraizadas de seu contexto socialprimário para se tornarem religiões itinerantes e, em muitos casos,missionárias/proselitistas. Elas também se caracterizam por serem movimentos de associação voluntária, tendem a ser individualistas e possuem uma elaboração da sua ortodoxia por escrito (um cânone), sendo o cristianismo e o islamismo as religiões translocais mais bem sucedidas em sua expansão. Ao pensar a antropologia do cristianismo, o autor ressalta que ela foi a última grande área da antropologia religiosa a ser examinada pela literatura etnográfica. Algumas das razões apontadas para isso são: os antropólogos avaliarem o cristianismo como uma presença intrusa em cosmologias locais; os significados do cristianismo serem óbvios para os antropólogos pelo fato de que quase a totalidade dos pesquisadores serem pertences a uma cultura cristianizada. Eller também destaca a importância da antropologia estudar o cristianismo oriental (ortodoxo e copta), ainda pouco investigado, sobretudo por ter diferenças muito pontuais em relação ao cristianismo ocidental. O nono capítulo examina como o fenômeno da religião centralizada, profissionalizada e padronizada leva a variações entre o que a religião oficial diz e o que as pessoas realmente praticam. A expressão religião vernácula designa a religião como ela é vivida, isto é, como as pessoas se encontram com ela, a entendem, interpretam e praticam. Em razão disso, as fronteiras entre religião oficial e vernácula são sempre borradas, da mesma forma como ficam borradas as fronteiras entre as diferentes religiões e entre religião e não religião. Na atualidade, uma das importantes formas de atualização da religião vernácula se dá por meio da TV e do cinema, assim como pelas novas tecnologias (internet, redes sociais, etc.). Outra forma de atualizaçãoocorre por meio da relação com os negócios e a economia. Num contexto de contra identificação ao capitalismo, há os movimentos de economias ocultas, que se caracterizam como respostas religiosas à conjuntura capitalista, contra suas formas de espoliação e injustiças e suas misteriosas normas e operações. O décimo capítulo faz uma análise das relações entre religião e violência. O autor argumenta que as compreensões sobre a relação entre religião e violência sofrem de três problemas: examinam um número muito limitado de religiões, em geral o cristianismo e o islamismo; consideram uma quantidade limitada de casos, terrorismo e guerra santa; tendem a culpar ou isentar a religião da violência. Uma compreensão mais precisa da violência da religião exigiria um exame de maior abrangência das religiões e considerar que a violência não é inerente ou inimiga da religião, mas um comportamento construído culturalmente, consequente de condições sociais específicas, que não são exclusivas da religião, mas que são comuns a ela. O autor lembra que existem diferentes formas de violência, e que tendemos a pensar somente grandes explosões de violência física (como ataques terroristas e guerras), mas também há violência estrutural, política, simbólica. Nesse sentido, a religião pode funcionar como explicação e justificação da violência. “A religião faz parte da cultura e a violência faz parte da cultura. É quase inevitável, portanto, que religião e violência acabem entrelaçadas. [...] a religião deve ajudar as pessoas a entender a violência empírica e inegável no mundo natural e social e pode também servir, ela própria, como razão da violência em certas situações contra certos alvos” (ELLER, 2018, p. 364-365). O décimo primeiro capítulo investiga as relações entre secularismo e irreligião. Umas das dificuldades, para os antropólogos, de se estudar o secularismo se deve ao fato de que ele não possui um topos, isto, é uma comunidade, não está delimitado em determinados locais para que se possa fazer um trabalho de campo. Por isso, o secularismo tende a ser interpretado, em muitos casos, como inexistente ou antinatural e antissocial em determinados grupos humanos. A teoria da secularização tem sido uma marca no campo da sociologia e da antropologia por mais de um século. Ela defende que com o advento da modernidade a religião tenderia a ser reduzida à esfera privada e que a sua força e representatividade no espaço público perderia força e representatividade. O conjunto desses processos produziu à progressiva automização dos setores sociais em relação ao domínio do sentido religioso e das instituições. Eller argumenta que uma antropologia do secularismo deve analisar o secularismo como uma doutrina social e política, e o secular como um conceito ou categoria social. O secularismo e o secular, da forma como são concebidos hoje, são produtos do pensar europeu ocidental, sendo toda essa discussão fruto da experiência ocidental na qual o cristianismo traçou a linha divisória entre religião e mundo, sagrado e profano, tendo as ciências sociais absorvido essas categorias. O uso de terminologias como secular, secularismo, irreligião ou ateísmo também estariam atravessados pelo mesmo problema. O décimo segundo capítulo analisa o fundamentalismo religioso. O fundamentalismo não é exclusivo da religião, mas é um estilo de civilização que pode ocorrer em qualquer área da cultura. Embora ele possa ser um fenômeno moderno, ou pelo menos certa forma de resposta aos desafios postos pela modernidade, é possível identificá-los também em contextos pré-modernos. O autor argumenta que dois pontos precisam ser considerados. a) O fundamentalismo religioso é para alguma coisa, isto é, promove aquilo que constitui a cosmovisão e a verdade para os seus praticantes; b) O fundamentalismo religioso é contra alguma coisa, estabelecendo uma atitude exclusivista, tensa e até militante. Da mesma forma que existem múltiplos modos de religiosidade, também existem diferentes modos de fundamentalismo, nem todos políticos e nem todos violentos. Portanto, o fundamentalismo não seria um fenômeno monolítico e a relação entre fundamentalistas e a sociedade circundante não assumiria uma única forma (conflituosa). Os fundamentalismos não são programas puramente negativos (oposicionistas de uma ordem), mas também a favor de determinadas causas. Os fundamentalismos são movimentos de revitalização religiosa que surgem em todas as sociedades durante períodos de perturbação e declínio social. Eles não representam a boa ou a má religião, mas uma das muitas variações que a religião pode assumir em determinadas circunstâncias históricas e sociais . Considerações finais A obra introduz o leitor em temas-chave do campo da antropologia, além de aplicar uma abordagem antropológica ao estudo da religião no mundo contemporâneo, trazendo diferentes relatos etnográficos ao longo dos capítulos. O autor examina também questões importantes como moralidade, violência, fundamentalismo, secularização e novos movimentos religiosos. No entanto, a obra carece de uma apresentação sobre o autor e lança o leitor direto ao texto. Não haveria problema nisso, não fosse o caso deste ser o primeiro livro de Jack David Eller traduzido para o português e o fato de seus trabalhos ainda serem pouco difundidos nos ciclos de estudos de religião no país. O que não se configura propriamente como um demérito do livro, mas talvez um descuido na apresentação da obra para a nossa língua. No que se refere ao conteúdo do livro, deve-se reconhecer o esforço do autor em produzir tamanha sistematização de temas da antropologia da religião e a bibliografia atualizada da qual ele se serve. Nesse sentido, a obra pode ser considerada um verdadeiro manual, introduzindo o leitor aos atuais debates que se travam no âmbito da antropologia, além de possuir uma linguagem acessível para quem está minimamente familiarizado com os conceitos e vocabulário antropológicos. O ponto negativo que pode ser apontado é a falta de um capítulo final que sintetizasse o percurso feito na obra. Embora ao término de cada capítulo sejam levantadas questões sobre os tópicos abordados, faltou ao autor levar a cabo algum tipo de encaminhamento geral das discussões suscitadas ao longo do seu trabalho, dada a extensão da obra e do conteúdo nela abordado, dificultando a produção de uma síntese do texto por parte do leitor. ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Analisar a diáspora africana no Brasil e a adaptação dos africanos ao con- texto brasileiro. > Identificar o processo da passagem da cosmovisão africana para a cosmo- visão afro-brasileira. > Explicar de que forma a matriz africana dialoga com a matriz cristã ao ponto de criar uma tradição: candomblé. Introdução Neste capítulo, veremos como aconteceu a adaptação dos africanos no Brasil. Sobretudo, contextualizaremos a diáspora africana no País, conceito que consiste no movimento de dispersão de um povo e de uma cultura em âmbito mundial. Amplamente utilizado para se referir ao povo judaico, nem sempre o conceito de diáspora está relacionado ao movimento migratório forçado. No que se refere ao povo africano e a sua diáspora, sabe-se, graças a uma atualização da história, que houve os dois aspectos do movimento. Houve tempos em que os africanos se estabeleceram fora da África em condições de soberania e liberdade, e tempos em que a diáspora ocorreu de forma forçada, sobretudo pelo processo de escravidão. Alguns autores consideram a diáspora a partir do período de comércio escravo e, depois, nos movimentos de emigração. Contudo, Estudo da cultura afro- -brasileira: religiões afro-brasileiras Adriane da Silva Machado Möbbs há aqueles que defendem que o momento primordial da diáspora ocorreu antes mesmo do início do calendário cristão. De qualquer forma, o período deescravidão e de exploração dos africanos não deve ser esquecido: merece análise, compreensão e aprofundado debate, para que possamos compreender as marcas que ainda acompanham seus descentes. Portanto, aqui, abordaremos a história do povo africano de forma ampla, desde os primórdios da humanidade, para que possamos compreender sua riqueza e sua contribuição à humanidade, por meio de sua cultura, que é muito rica e não deve ser reduzida ao período de exploração e de genocídio do povo negro. A diáspora africana no Brasil e a adaptação dos africanos ao contexto brasileiro O legado do povo africano começa muito antes do período de escravidão e de sua chegada no Brasil. Alguns estudos constataram que a origem de toda a humanidade está na origem do povo africano. Descobriu-se que a África é, na verdade, o berço de toda a humanidade. De fato, a África é o ponto de partida das populações de pele negra que povoaram o mundo, e tudo isso começou muito antes do período do comércio de escravos, por meio de várias ondas migratórias, iniciadas por diferentes motivos e contextos. É na África que encontramos a origem de alguns dos maiores avanços tecnológicos da humanidade, como a prática agrícola, a criação de gado, o comércio, a organização social e política, a mineração e a metalurgia (cobre, bronze, ferro, aço). Pode-se citar desde a agricultura do Saara até o se desen- volvimento do plantio, do saber, da sociedade e da criatividade em regiões próximas aos rios Nilo, Niger e Congo (NASCIMENTO, 2007). Infelizmente, porém, durante um longo período, toda a riqueza e a contribuição do povo africano foram abafadas pelo preconceito e pela própria história de escravidão e de exploração. No entanto, já há alguns anos, vem crescendo um movimento de “redescoberta” da África: Hoje, renovado interesse por parte dos descendentes de africanos nas Américas e inédita colaboração entre africanistas e especialistas nas populações negras nas Américas e em outros continentes apontam para uma “redescoberta” da África espalhada pelo mundo. O Brasil, tendo recebido aproximadamente um terço de todos os escravos trazidos para as Américas durante os três séculos de duração do tráfico atlântico, é terreno importante desta busca. (MAMIGO- NIAN, 2004, p. 33). Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras2 A mudança de perspectiva e de interesse na África a partir de novos olhares começou na década de 1990 se estende até hoje. Nesse contexto, compreender a experiência dos africanos na diáspora é o objeto central da investigação dos diferentes pesquisadores. Os primeiros estudos acerca dos africanos do Brasil são do campo da an- tropologia. O médico Raimundo Nina Rodrigues detalhou, no livro Os Africanos no Brasil (1932), publicado postumamente, sua experiência e sua pesquisa com os povos remanescentes da Bahia, realizadas no final do século XIX. Contudo, a obra traz a marca das teorias racistas da época, atribuindo à importação de escravos a responsabilidade pelos males e entraves do desen- volvimento. O médico elencou, ainda, os costumes indesejáveis dos africanos, pois acreditava-se que a partir dele fosse possível avaliar por quanto tempo sua influência marcaria negativamente a cultura brasileira (MAMIGONIAN, 2004). A esse respeito, Mamigonian (2004, p. 34) afirma o seguinte: O médico também abordou a presença de muçulmanos entre os escravos baianos e seu engajamento na resistência à escravidão nas célebres revoltas que culminaram em 1835 com o levante dos malês em Salvador. Nina Rodrigues atribuía aos africanos da Costa Ocidental — iorubás, jejes, tapas, haussás — superioridade cultural em relação aos bantos, provenientes da África Centro-Ocidental, que eram maioria no centro-sul do Brasil. Se os primeiros estudos pioneiros acerca da presença dos africanos no Brasil são da área da antropologia, a segunda geração de estudos é do campo das ciências sociais, que rejeitaram a visão da miscigenação apresentada pelos primeiros estudos e passaram a vê-la como elemento importante da identidade brasileira. Ao trazer, para o Brasil, o relativismo cultural americano, Gilberto Freyre colaborou para uma mudança de perspectiva acerca dos africanos e de sua contribuição no desenvolvimento do Brasil. Foi a partir de Gilberto Freyre que se passou a valorizar a “herança” africana e que criou-se, nos anos 1940–50, uma linha de pesquisa: estudos afro-brasileiros. Porém, a obra de Freyre acabou por deixar um legado equivocado a respeito das relações raciais no Brasil, difundindo, mesmo que não fosse esse seu propósito, a ideia de que havia “democracia racial” no País: Nas décadas de 1950 e 1960, pesquisa e intenso debate acerca das relações raciais no Brasil marcaram o ramo dos estudos afro-brasileiros: tratava-se de contestar a ideia difundida a partir da obra de Gilberto Freyre, de que o Brasil constituía uma “democracia racial”, porque a miscigenação teria prevenido o racismo à americana. Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras 3 Pesquisa sociológica rigorosa demonstrou os mecanismos sutis da discriminação racial no País e alimentou pesquisas históricas que procuravam dissipar as imagens de uma escravidão benevolente ao mostrar a violência envolvida na relação senhor- -escravo e na manutenção do sistema escravista. Foi através desta preocupação com as relações raciais e com o objetivo de explicar o funcionamento do sistema escravista que a experiência das populações de origem africana passou a ser explorada por historiadores no Brasil (MAMIGONIAN, 2004, p. 35). O principal eixo da segunda geração de estudos acerca dos povos africanos eram as práticas afro-brasileiras, das quais trataremos mais adiante neste capítulo. Após esse período, visando desmontar o mito da “democracia racial”, criado pela obra de Freyre, e mostrando a violência do sistema e a resistência escrava, o interesse se volta para o cotidiano dos escravos e suas relações den- tro do sistema escravista. Por meio de pesquisas empíricas, houve uma intensa busca em materiais antes inexplorados. Conforme Mamigonian (2004, p. 35): A nova perspectiva da escravidão se abre com pesquisa empírica intensiva em materiais manuscritos antes inexplorados, como inventários post-mortem, pro- cessos-crime, ações de liberdade, correspondência policial, além de uma leitura “a contrapelo” de relatos de viajantes e de documentos oficiais. Feitos esses esclarecimentos a respeito dos estudos dos povos africanos no Brasil e de suas abordagens, é fundamental observar que qualquer estudo acerca da diáspora brasileira requer um ponto de partida comum, que é a abordagem das rotas do tráfico escravo no Brasil. Cabe identificar de onde vinham os escravos que eram trazidos para cá nos séculos XVIII e XIX, e quais eram as condições de sua escravização, além de suas experiências e vivências durante a travessia do Atlântico e depois de estabelecidos no Brasil. Como não é possível abordar plenamente esse conteúdo em poucas páginas, faremos alguns recortes históricos da tentativa de captar o essencial sem reduzir o papel histórico do povo afro-brasileiro. Primeiramente, é preciso tratar do termo diáspora, que, como vimos na introdução deste capítulo, trata-se do movimento de dispersão de um povo e de uma cultura em âmbito mundial. Tony Martin (apud ALPERS, 2001, p. 3-4) defende que o termo seja rejeitado por completo, no que se refere à experiência africana. Nesse sentido, ele argumenta: [...] Porque o termo diáspora africana reforça uma tendência entre aqueles que escrevem nossa história para ver a história dos povos africanos sempre em termos de paralelos na história branca. Devemos acabar com a expressão da diáspora africana porque não somos judeus. Vamos usar outra terminologia. Falemos sobre a dispersão africana [...]. Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras4 A diáspora (ou, melhor, dispersão) não consiste, como vimos, apenas na imigração forçada;porém, no Brasil, ao se tratar dos povos negros, não é possível vê-la de forma diferente. Sabe-se que os povos africanos que aqui se estabeleceram chegaram por meio do comércio escravo nas cidades portuárias. Vamos ver isso em detalhes na seção a seguir. Os africanos no Brasil Os primeiros registros da chegada dos africanos no Brasil por meio do co- mércio escravo remontam a meados do século XVI. Os primeiros negros a chegarem no Brasil vieram de Angola e da Costa do Marfim (Figura 1). Figura 1. Gráfico do desembarque estimado dos escravos africanos no Brasil por procedência regional. Fonte: Adaptada de Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2007). Estudos como os de Pierre Verger apresentam uma relação comercial entre os portos de Salvador e os do Golfo do Benin, na Costa Ocidental africana, entre os séculos XVII e XIX. Sabe-se que, nesses portos, havia intenso tráfico de escravos e de mercadorias, e, por consequência, intercâmbio cultural, graças ao que Verger chamou de “refluxo” (MAMIGONIAN, 2004, p. 38). De acordo com Mamigonian (2004, p. 38): Tal relação comercial privilegiada foi favorecida pela proximidade geográfica das duas regiões e alimentada pelo estabelecimento de sociedades entre comerciantes e traficantes dos dois lados do Atlântico. A peculiaridade deste ramo do tráfico de Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras 5 escravos determinou a superioridade numérica dos africanos da Costa Ocidental — iorubás, tapas, haussás, jejes — na composição étnica da população africana da Bahia, principalmente no século XIX. Segundo estudos brasileiros e dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): [...] os chefes políticos e mercadores da África Centro-Ocidental (hoje região ocu- pada por Angola), forneceram a maior parte dos escravos utilizados em toda a América portuguesa. No século XVIII, o comércio do Rio de Janeiro, Recife e São Paulo era suprido por escravos que vinham da costa leste africana (oceano Índico), particularmente Moçambique. No comércio baiano, a partir de meados do século XVII, e até o fim do tráfico, os escravos eram oriundos da região do Golfo de Benin (sudoeste da atual Nigéria) (IBGE, 2007, p. 82). Acerca da diáspora africana no Brasil, Silva (2018, p. 63) afirma: [...] Estamos diante de uma comunidade que, na maioria das vezes, escolhia mu- lheres escravizadas como madrinhas, recriando laços e constituindo redes de reciprocidade entre semelhantes. Entendemos que a escravização não aniquilou povos e culturas, assim como entendemos que a diáspora não criou uma única identidade, mas identidades múltiplas que, como já foi dito, apropriaram-se desse contexto para unirem-se no que tinham em comum: a África. As diferentes classificações das regiões da África e das diferentes etnias africanas dificultam, sobremaneira, os estudos acerca da identidade e da cultura africanas. Os mercadores de escravos, muitas vezes por desconhe- cimento ou preconceito, desconsideravam as etnias desses povos, fazendo suas próprias classificações. Achille Mbembe (2014, p. 31) sugere a influência do capital sobre essas classificações, “[...] o princípio de raça e o tema com o mesmo nome foram instaurados sob o signo do capital [...]”. A necessidade da mão de obra escrava se deu a partir de 1534, segundo Paiva (2015), com a divisão do território nas capitanias hereditárias. Con- tudo, foi durante o século XVIII que aumentou consideravelmente a entrada de africanos escravizados no Brasil. Com o crescente número de escravos africanos, cresceram, também, os cativos nativos, frutos daqueles que já se encontravam no Brasil, e, com isso, as classificações aumentaram. Sobre essa questão, Mbembe (2014, p. 67) afirma que “Aquele a quem é atribuída uma raça não é passivo. Preso a uma silhueta, é separado de sua essência e, segundo Fanon, uma das razões de desgosto de sua vida será habitar essa separação como se fosse o seu verdadeiro ser [...]”. Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras6 O problema com relação às classificações é que elas também eram uma forma de dominação, uma forma de negar, aos africanos, suas ori- gens, negando-os sua etnia. Além disso, Silva (2018) destaca que houve uma tentativa de enquadrar os cativos e as cativas em um ambiente de limitações nas sociedades escravocratas. Nesse sentido, a autora (2018, p. 75) argumenta: A descaracterização étnica não gerou seres inativos e incapazes de criar laços familiares, pelo contrário, a partir daí surgiu a necessidade de buscar outras formas de conexão com outras pessoas, com outros costumes, outras crenças, outro idioma. Escravizados e escravizadas, ainda que de origens distintas, com diferenças culturais e linguísticas, buscaram uma unidade a partir daquilo que tinham em comum: sua condição. A partir desses novos vínculos e de novas significações, os africanos se estabeleceram no Brasil. Ainda que cativos, conseguiram, não sem certa resistência, manter algumas de suas práticas culturais e religiosas. A passagem da cosmovisão africana para a cosmovisão afro-brasileira Os povos africanos, como dito anteriormente, conseguiram manter algumas de suas práticas culturais e religiosas. Contudo, para preservar, em certa medida, suas crenças, foram necessárias uma ressignificação e uma adaptação ao contexto brasileiro. Assim, a cosmovisão africana passou pelo processo de ressignificação (ou sincretismo). Cosmovisão é uma interpretação do mundo cujo intuito é dar uma resposta às questões últimas do ser humano: sua origem e seu obje- tivo final. Fundamenta e revela, assim, a compreensão de um eu, de um sujeito individual e coletivo. Uma cosmovisão abrange o conjunto de valores, de ideias e de escolhas práticas, por meio dos quais uma pessoa ou coletividade se firmam, não necessariamente de modo consciente (ADÃO, 2002). A cosmovisão africana veio para o Brasil com os povos africanos e, ape- sar da dominação, resistiu, em certa medida, às contingências históricas e contextuais por meio do culto aos orixás, o qual fundamenta e estrutura as religiões afro-brasileiras (ADÃO, 2002). Também conhecida como cosmovisão Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras 7 africano-tradicional, a cosmovisão africana, ainda presente nas culturas Banto e Nagô, pode ser compreendida como a comunicação por meio dos cultos e das religiões afro-brasileiras. Como afirma Adão (2011, p. 57-58): Através desta ressignificação da cosmovisão africana, surgem novas religiões de matriz africana, mas agora ressignificadas. Hoje, no Brasil, existem fundamental- mente três tipos dessas Religiões. A primeira, em ordem histórica, é a que cultua os orixás e, mesmo recebendo nomes diferentes de região para região, tendo algumas especificidades, trata-se do mesmo culto: Batuque ou Nação, no Rio Grande do Sul; Candomblé, na Bahia e centro do País; Xangô de Mina, em Pernambuco, entre outros. O culto aos orixás é a única religião propriamente africana: seus orixás, rezas e fundamentos, possuem referência só na África. A família, a vida comunitária e a religiosidade são características das culturas e das cosmovisões africanas (Banto e Yorùbá). Para o povo Banto, a centralidade está na sacralidade, e a família, por sua vez, é o centro de todas as coisas. O homem e a mulher, para os Yorùbá, foram criados ao mesmo tempo por Olorun (considerado o Senhor do Céu e da Terra). Nas culturas africanas, assim como na maioria das culturas, o mito e o símbolo ocupam papeis fundamentais. Segundo afirma Rehbein (1985, p. 25 apud ADÃO, 2002, p. 39): Existe toda uma simbologia que embasa e dá sentido aos ritos e cultos que constituem grande parte da vida religiosa africana. Toda oferenda, todo sacrifício, os ritos de inicia- ção e consagração implicam a transmissão, revitalização, restituição do axé, da força vital. Nesta cosmovisão há uma unidade fundamental de todas as coisas. O todo está dentro de cadaparte, assim como cada parte está no todo. É uma conjuntura existencial que liga todos os seres e os tornam interdependentes, em todos os níveis do cosmos. É importante ressaltar que, como destaca Favero (2010, p. 4), “[...] o caso das religiões africanas no Brasil oferece uma gama de modelos, valores, ideais ou ideias, uma rica simbologia segundo certa visão mística do mundo em correlação com o universo mítico e ritualístico”. Embora os povos africanos tenham encontrado formas de resistência e de manutenção de alguns traços de sua cultura e de suas práticas religiosas, sabe-se que, por meio dos processos de aculturação (processo pelo qual os sujeitos adquirem traços ou se adaptam a outras culturas com as quais têm contato), houve o que poderíamos chamar de imbricamento entre as diferentes culturas e religiões. Em alguns casos, o sincretismo ocorreu de forma espontânea; em outros casos, por conta da dominação e da imposição dos colonizadores e dos senhores de escravos. Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras8 Ainda sobre a cosmovisão africana, Adão (2011, p. 58) afirma que: A cosmovisão africano-tradicional, presente nas culturas banto e nagô, foi pre- servada, comunicada, em especial, através dos Cultos e Religiões Afro-Brasileiras. Hoje, no Brasil, existem fundamentalmente três tipos dessas Religiões. A primeira, em ordem histórica, é a que cultua os orixás e, mesmo recebendo nomes dife- rentes de região para região, tendo algumas especificidades, trata-se do mesmo culto: Batuque ou Nação, no Rio Grande do Sul; Candomblé, na Bahia e centro do País; Xangô de Mina, em Pernambuco, entre outros. O culto aos orixás é a única religião propriamente africana: seus orixás, rezas e fundamentos, possuem re- ferência só na África. Em segundo lugar, está a Umbanda, que surge no Brasil no início do século XX, reunindo elementos do cristianismo, pajeísmo, kardecismo e africanismo. A Quimbanda ou Macumba constitui-se no terceiro tipo de reli- gião de matriz africana. Não obstante, muitos pesquisadores a colocaram como parte da Umbanda, que pratica o mal. Atualmente, ela está sempre mais sendo praticada como um culto separado, independente da Umbanda. A Quimbanda ou Macumba cultua os Exus e Pomba-Giras (Exu feminino), classificados como Exus Pagãos pelos umbandistas. Assim, também houve a aculturação religiosa, por meio da qual as reli- giões de matriz indígena e africana adquiriram traços das outras religiões. Sabe-se que, no processo de colonização do Brasil, também ocorreu o etnocentrismo. A história dos povos africanos é marcada pela resistência, que se deu de várias formas, a exemplo dos vissungos, cantos com funções sociais entoados pelos escravos mineradores de Minas Gerais do século XVII. Digite “Vissungo, fragmentos da tradição oral” em seu motor de busca preferido para ter acesso a documentário de mesmo nome, que conta a história desses cantos e desse povo anônimo que, com sua cultura, escreveu uma história do Brasil que permanece esquecida. Como a matriz africana dialoga com a matriz cristã Durante o período escravocrata no Brasil, não apenas a liberdade e a dignidade dos povos africanos lhes foram negadas, mas também sua identidade e suas raízes. Como se sabe, muitas foram as formas de resistência encontradas por esses povos. A cultura portuguesa, dos colonizadores e dos senhores, lhes foi imposta, assim como suas crenças e práticas religiosas. Do imbricamento entre as matrizes africana e cristã, nasceu uma nova tradição, muito mais Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras 9 devido à imposição da religião cristã e à intolerância com as religiões e as práticas religiosas de matriz africana do que por qualquer outro motivo. Essa nova tradição foi chamada de candomblé. Embora muitos atribuam o nascimento do candomblé ao sincretismo, há estudos recentes que tentam refutar essa tese. Nesse sentido, destaca-se a obra A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia (2006), de autoria de Luis Nicolau Parés. Acerca da tese de Parés, Bonciani (2008, p. 313) afirma: Parés retoma a tese que rompe com a ideia de invenção local do candomblé e entende que os cultos de vodum na África deram origem ao modelo organizacional que foi replicado para os outros grupos étnicos e suas divindades particulares. Segundo o autor, a justaposição de várias divindades num mesmo templo e a or- ganização seriada do ritual, que caracterizam o candomblé contemporâneo, vêm da tradição vodum da área gbe desde pelo menos o século XVIII. Ao mesmo tempo, a diversidade local das divindades, de seus atributos, gênero e funções levam ao questionamento da própria ideia de um panteão, ou panteões jejes. Acerca dessa variação e da liturgia presente no candomblé, Parés (2006, p. 355) afirma: [...] A diferente origem étnica e a afiliação religiosa dos agentes sociais responsáveis pela transferência transatlântica estaria na base de certas variações regionais brasileiras. Esse fato vem salientar que, mesmo dentro da tradição jeje, havia já uma heterogeneidade de práticas religiosas, até agora pouco conhecida. Sabe-se que o candomblé foi fundado por Francisca da Silva, como afirma Parés (2006): Um aspecto fundamental dessa pesquisa foi identificar, de forma inequívoca, Francisca da Silva com a lendária Iyá Nassô ou mãe Nassô, título honorífico, na corte de Oyó, da sacerdotisa do orixá do trovão Xangô. Ela foi uma das fundadoras do candomblé Ilê Iyá Nassô, também conhecido como terreiro do Engenho Velho ou Casa Branca, o primeiro no Brasil a ser tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Outro aspecto inovador da pesquisa foi a confirmação do mito de fundação desse candomblé, cuja memória oral evoca uma viagem à África de Iyá Nassô, junto com sua filha de santo Marcelina da Silva (Obatossi), que iria lhe suceder na liderança da comunidade religiosa. Segundo Parés (2019), a descoberta de uma carta de 1841, na época con- fiscada por oficiais ingleses, mostra que a missiva à África não teve como único objetivo a fundação do candomblé no Brasil. Acerca da missiva à África, Parés (2019, p. 31) afirma: Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras10 A provável reunião com sua madrinha Roza e a reorganização do grupo religioso que viria a ser o candomblé da Casa Branca sinalizariam uma estratégia de coo- peração mais ampla que não podia renunciar aos que ficaram para trás. Por outro lado, o potencial da troca comercial atlântica, de dendê, cola e outras mercadorias foi o complemento material da colaboração religiosa e teria entrado nos cálculos de José Pedro e Francisca, prévios à sua viagem de retorno. Em definitivo, nos anos posteriores à Independência do Brasil, a minoria negra mais próspera da Bahia, já arraigada havia décadas, após conseguir ascender econômica, mas não politicamente, experimentava sua frágil liberdade com novos projetos e desafios atlânticos, em que a autoridade religiosa, o sucesso comercial e o controle social da comunidade negra se emaranhavam de forma indissociável. Porém, mesmo que o candomblé não fosse o único motivo da missiva à África e que dúvidas fossem levantadas sobre o fato de ele ser ou não fruto do sincretismo religioso ou do contato entre as duas matrizes religiosas, cristã e africana, certamente o candomblé brasileiro, ou à brasileira, possui relações com divindades e litúrgicas. Independentemente da vertente teórica, o candomblé pode ser interpre- tado como um processo cultural que se dá a partir do imbricamento de diferentes elementos culturais no âmbito religioso. Como exemplo disso, podemos citar o fato de a celebração de Oxum ser no mesmo dia que se celebra Nossa Senhora do Carmo, e do dia da Nossa Senhora dos Navegantes ser o mesmo de Iemanjá. Como afirma Hofbauer (2011, p. 50-51, grifo nosso): Não há dúvida de que a origem do fenômeno sociocultural do candomblé está diretamente ligadaàs complexas relações, bem como à convivência conflituosa, dos escravos e de seus descendentes com o mundo dos senhores e, particular- mente, com o catolicismo. A história do candomblé é profundamente marcada por processos ligados à exploração escrava e à discriminação racial que, de certa maneira, impunham o quadro de condições e relações sociais dentro do qual o jogo dos posicionamentos se desenrolou. As disputas em torno do incluir e do excluir, sobretudo em torno daquilo que adeptos e não adeptos entendem como ne- gro e branco (como raça, cultura, religião e/ou identidade negra e branca — ou, ainda, como “misturado”/“sincrético”), podem ser vistas como parte intrínseca da formação e da transformação do fenômeno do candomblé. [...] Ao mesmo tempo, é inegável que no candomblé articulam-se signos e significados que podem ser relacionados com uma proveniência africana. Estudos históricos e antropológicos, como a importante obra de Luis Nicolau Parés (A formação do candomblé, 2006), vinculam a fundação das primeiras casas de candomblé na Bahia ao calundu [...], que, por sua vez, é relacionado com práticas culturais da África Centro-Ocidental. E há também quem defenda a ideia de que existe uma espécie de substrato de religiosidade/cultura afro-(luso)-brasileira que teria começado a se formar já no início da colonização ou até já na própria África. Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras 11 Sabe-se que, houve, em certa medida, uma fusão entre as duas matrizes, embora não se saiba exatamente se forçada ou espontânea e se foi realizada no Brasil ou na África. Acerca disso, afirma Hofbauer (2011, p. 51): [...] Com a introdução do termo “catolicismo africano”, Thornton (2002) salientou, de forma semelhante, processos de fusão que teriam ocorrido no reino do Congo. Ele mostra como a elite congolesa se empenhou pessoalmente na divulgação da fé cristã, motivada pelo anseio em se aproximar da Coroa portuguesa e da Igreja Católica, buscando estabelecer uma poderosa aliança que permitisse fortalecer a sua posição na região. [...] Thornton entende que, em pouco tempo, grande parte dos congoleses começava a se ver, de fato, como cristã, e o Congo se tornava um centro de expansão da fé cristã na região. Documentos históricos apresentados por Parés (2006 apud HOFBAUER, 2011, p. 59-60) denotam que: A irmandade negra era vista pelos senhores e pela Igreja como um prático instru- mento de catequese que deveria, inclusive, contribuir para o disciplinamento social dos africanos e de seus descendentes no Brasil. Ao mesmo tempo, constituía a única instituição legalizada na qual a população negra podia — mesmo sob a tutela da Igreja — organizar-se, (re)criando e fortalecendo sentimentos de comunalismo. Destaca-se, ainda, o fato de que, de acordo com Parés (2006, p. 272), como cita Hofbauer (2011, p. 60), há, sem dúvida: [...] uma tendência particular dos jejes (desconhecida entre outros grupos, como p. ex. os iorubas), que seria a de incluir, assimilar e agregar novas divindades e, dessa forma, criar um panteão de deuses, uma das características mais notáveis do candomblé. Assim, Hofbauer (2011) nos fornece importantes elementos para com- preender a relação entre cristianismo e candomblé ao citar os estudos de J. Lorandy Matory, sobretudo a obra Religião do Atlântico Negro: tradição, transnacionalismo e matriarcado no candomblé afro-brasileiro (2005). Nesse contexto, Matory chama a atenção para o fluxo de viajantes negros que existiu entre a Bahia e o litoral ocidental da África (Nigéria e Benin atuais). Não somente objetos religiosos e notícias circulavam. Matory cita vários líderes religiosos im- portantes que viajavam. Assim, p. ex., Martiniano Eliseu do Bonfim, filho de libertos africanos, passou onze anos (1875–1886) em Lagos, onde não somente frequentou uma escola presbiteriana, mas foi também iniciado no sacerdócio de Ifá. De volta à Bahia, introduziu elementos ritualísticos que conheceu na África (12 obás de Xangô) no Ilê Axé Opô Afonjá, ao qual estava ligado. Teria, portanto, importante influência sobre as práticas religiosas nessa prestigiosa casa e tornar-se-ia ainda informante principal do “pai” dos estudos afro-brasileiros, Nina Rodrigues. (HOFBAUER, 2011, p. 61). Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras12 Diante de tantas diferentes perspectivas, destacam-se, portanto, três teses, entre antropólogos e sociólogos, sobre a origem do candomblé e suas relações com a matriz cristã: 1. as religiões africanas são formas de resistência e de sobrevivência dos povos africanos, e o sincretismo encontrado no candomblé foi a forma de manter as práticas religiosas africanas; 2. há uma “pureza nagô” nessas religiões, ou seja, o sincretismo en- contrado no candomblé, por exemplo, é fruto de uma característica puramente jeje, que diz respeito à inclusão de outras divindades e liturgias às suas; 3. o candomblé é fruto do sincretismo ou do imbricamento das duas matrizes: africana e cristã. Contudo, é fato que, no candomblé, há um panteão; nele, é possível encontrar divindades e/ou santos de matriz cristã. Acerca das práticas religiosas dos candomblés, Hofbauer (2011, p. 63) afirma: No centro das práticas religiosas dos candomblés se encontrava a invocação das divindades africanas. Dependendo das “nações” (ketu, jeje, angola), cultiva(va) m-se orixás, voduns ou inquices. Ao mesmo tempo, ocorreram adaptações de diferentes ordens, como, p. ex., a adaptação ao calendário católico. Há diversos orixás que são até hoje celebrados em dias em que a Igreja Católica festeja um “santo correspondente”. Ocorreram “aproximações” tanto entre histórias míticas cristãs e africanas quanto entre santos católicos e orixás, como, p. ex., entre São Jorge e Ogum, sendo o primeiro lembrado na tradição ocidental como soldado romano e, ainda mais frequentemente, como matador de dragões e padroeiro dos ferreiros, enquanto o segundo, Ogum, é lembrado como divindade do ferro e da guerra. Além disso, tornou-se costume em vários terreiros levar o/a recém- -iniciado/a (iaô) a uma igreja para assistir a missa e entregar os mortos à religião hegemônica, o catolicismo. Contudo, Hofbauer (2011, p. 64) faz questão de frisar que, à luz do que afirma Palmié (1995): Até que ponto a relação entre santos católicos e orixás representa uma corres- pondência analógica, uma sobreposição (disfarce) ou mesmo uma fusão é uma questão que faz parte intrínseca dos processos de construção e desconstrução de diferenças e significados. Palmié, p. ex., tem argumentado (nas suas análises sobre a regla ocha/santería) que, mesmo que haja semelhanças entre orixás e santos católicos, nenhum “santero” sacrificaria um animal para a imagem do santo. É o “assentamento” que propicia o acesso ao orixá, enquanto a imagem do santo católico simbolizaria “somente” seus atributos. Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras 13 Em resumo e por fim, vemos que o candomblé se constitui a partir do imbricamento das duas matrizes: a africana e a cristã. O entrecruzamento dessas matrizes, aqui no Brasil ou na África, de forma espontânea ou como forma de resistência, está, portanto, presente no candomblé, motivo pelo qual nele se encontram divindades e liturgias de matriz cristã. Referências ADÃO, J. M. Características da cultura e cosmovisão africanas e centralidade do culto aos orixás no Brasil. Educação, Ciência e Cultura, Canoas, v. 16, nº 1, p. 57-70, jan./jun. 2011. ADÃO, J. M. O negro e a educação: movimento e política no Estado do Rio Grande do Sul (1987-2001). 2002. 163 f. Dissertação (Mestrado em Educação) — Programa de Pós- -Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002. ALPERS, E. A. Defining the African Diaspora. 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Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Estudo da cultura afro-brasileira: religiões afro-brasileiras 15 ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO Alisson de Souza OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Definir antropologia da religião e como ocorreu seu desenvolvimento. > Reconhecer a íntima relação entre antropologia e religião. > Descrever o processo de construção das características específicas da antropologia e da religião. Introdução A antropologia da religião é uma ciência que busca compreender o ser humano a partir dos fenômenos religiosos por ele produzidos ou a ele relacionados. Para isso, o estudo antropológico da religião utiliza as mais diferentes óticas para compreender os fatos e a pessoa em sua plenitude. Levantamentos e dados históricos e científicos sobre o desenvolvimento do humano em meio à religiosidade possibilitam observar questões étnico-raciais, regionais e culturais, por exemplo. Neste capítulo, falaremos sobre o percurso histórico percorrido por essa ciência. Além disso, analisaremos a íntima relação entre a antropologia e a religião, e delas com outras ciências, a fim de compreender como a antropologia desenvolveu sua própria linha de pensamento. Introdução à antropologia da religião Alisson de Souza Religião e antropologia O intuito da antropologia da religião é compreender e (re)definir de que forma as instituições religiosas se relacionam com as diversas culturas presentes na sociedade. Para obter dados e informações verossímeis e relevantes, ela utiliza as práticas e as crenças religiosas como objeto de estudo. A seguir, definiremos e distinguiremos antropologia e religião, analisando como elas se fundiram em uma única ciência, a qual se diferencia dos demais estudos sobre a religiosidade. Religião A religião é um sistema formado por práticas e por crenças. Essas práticas e crenças sempre olham para um sagrado, em uma busca constante por uma aprovação, uma benção, uma ação ou um olhar divino. Ela seria um sistema solidário, ou seja, formado pela concordância e pela harmonia entre seus membros e adeptos. Quando se frequenta, adere-se e participa de uma religião, busca-se conviver de maneira harmoniosa com os demais fiéis da mesma crença. Assim, é mantida a fé conjunta, a qual caminha em uma mesma direção, sem que existam conflitos que venham a denegrir essa comunidade religiosa, denominada Igreja. Ou seja, quem adere à essa fé não prejudica nem afeta a presença dos demais (DURKHEIM, 1996). Toda essa fé comunitária, como dissemos, é ligada a um sagrado. Segundo Croatto (2010), o sagrado é o ato ou o símbolo humano que busca encontrar o divino. Ou seja, quando se fala em sagrado, não se fala de Deus, mas da expressão que se usa para Dele lembrar ou a Ele chegar ou atingir. Por exemplo, o sagrado não seria Deus, mas o ato de orar, de rezar, de acender uma vela. Com isso, “[...] pode-se afirmar que o sagrado não é a meta da atitude ou da experiência religiosa. Esse fim seria o próprio transcendente” (CROATTO, 2010, p. 61). Quando se fala do próprio Deus, o termo a ser utilizado, segundo Croatto (2010), é transcendente, representando que é um Ser acima da Criação. Ele pertence ao plano transcendental, não ao terreno. Portanto, o sagrado é o ato, enquanto o transcendente é o Ser final. Quando o sentido humano de um ato é ultrapassado, o sagrado é evidenciado (MENDONÇA, 1999). Utiliza-se, portanto, um sagrado repleto de simbolismo para se atingir o transcendente. E o contrário? Enquanto o sagrado define uma comunicação do ser humano com Deus, a hierofania define a caminhada contrária. A hierofania trata do “Deus que fala com o homem”: é a manifestação do transcendente para com o profano, o humano (ELIADE, 1992, p. 13). Introdução à antropologia da religião2 Antropologia Para entender a antropologia religiosa, é fundamental compreender, antes de mais nada, o que é, de fato, a antropologia por si só. A antropologia é estudo que busca compreender o ser humano a partir de sua totalidade, utilizando observações e levantamentos de cunho científico. Para isso, ela utiliza três ciências (MARCONI; PRESOTTO, 2015): 1. asocial, que é o fato de conhecer o homem como integrante de algum grupo ou de uma sociedade; 2. a humana, a qual é voltada para a compreensão do que forma a totalidade de um ser humano, como sua história, suas crenças e sua linguagem; 3. a natural, que se interessa pela evolução e pelo conhecimento psicossomá- tico, uma percepção daquilo que é simultaneamente orgânico e psicológico. Portanto, a antropologia aborda o ser humano e sua cultura, tendo por objeto de estudo aspectos como questões presentes nas mais diversas expressões a partir de seu comportamento, seu corpo e sua formação como pessoa. Com vista a todas essas questões que podem ser estudadas, a discus- são antropológica pode ser dimensionada em física, sociocultural, filosófica e religiosa, por exemplo (MARCONI; PRESOTTO, 2015). A abordagem antropológica exige que se rompa com os conhecimen- tos abstratos e especulativos. Sua missão é estudar diretamente os comportamentos sociais a partir das relações humanas destacadas em âmbito social, a partir de evidências e de relatos sinceros e espontâneos daqueles que são alvo desse estudo (LAPLANTINE, 2007). Por fim, é importante evidenciar que a investigação antropológica utiliza métodos comparativos para que se obtenham dados e informações impor- tantes e relevantes e descubram-se semelhanças ou diferenças a partir de aspectos físicos, psíquicos, sociais, culturais e religiosos. Tem por objetivo, assim, compreender a humanidade como um todo, a partir de uma observação global (MARCONI; PRESOTTO, 2015). Percurso histórico da antropologia A história da antropologia teria se iniciado na antiga Grécia, a partir de Heró- doto (485–425 a.C.). Ele observava as diferenças culturais existentes entre os Introdução à antropologia da religião 3 gregos e os estrangeiros com quem eles tinham contato, fosse por questões bélicas ou comerciais. O romano Tácito (56–120 d.C.) descrevia os costumes, o ambiente e o caráter dos povos germânicos, visando alertar Roma sobre a força física e espiritual deles. Não os considerava corruptos, ao contrário de outros povos bárbaros com que Roma tinha contato. Lembrando que esse mesmo povo esteve fortemente envolvido com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C. Santo Agostinho (354–430 d.C.) também tratou sobre questões lógicas e metafísicas da vida a partir do comportamento humano (PELTO, 1975). A metafísica é “[...] é o estudo ou o conhecimento da essência das coisas ou do Ser real e verdadeiro das coisas, daquilo que elas são em si mesmas, apesar das aparências que possam ter e das mudanças que possam sofrer” (CHAUÍ, 2015, p. 230). Na Idade Média, a partir do século XIII, a compreensão sobre o ser humano passou a ser realizada de maneira mais ampla, auxiliando na busca por conhe- cimentos sobre os povos e seus respectivos costumes. Marco Polo (1254–1324 ) desbravou territórios asiáticos, especialmente a China, e pesquisou sobre seus conhecimentos e culturas. O viajante árabe Ibn Batuta (1304–1378) percorreu, ao todo, 120 mil quilômetros e trouxe a realidade sobre povos do Ocidente africano, da Rússia, da China, do Camboja e da Sumatra, a partir de aspectos políticos, culturais e religiosos (PELTO, 1975). No século XIX, houve uma virada científica no que diz respeito aos estudos sobre o ser humano, contribuindo de maneira decisiva para o surgimento da antropologia: passou-se a analisar, a identificar e a catalogar características e padrões humanos. Émile Durkheim (1858–1917) e Marcel Mauss (1872–1950) foram dois dos grandes nomes da Antropologia que guiaram o início da orga- nização e da metodologia do pensamento antropológico (LAPLANTINE, 2007). Durkheim propõe que os fatos humanos sejam analisados de maneira separada de outras ciências. Para ele, as abordagens socioantropológicas não competem a estudos que analisam questões afetivas e psicológicas desses fatos. Portanto, os fatos sociais são objetos de estudo específicos de uma ciência própria, uma vez esses fatos geram reflexos, que também podem ser fatos. Ou seja, a ação gera uma reação, a qual não pode ser analisada por outra ciência que não seja a abordagem socioantropológica. É importante lembrar que Durkheim não emancipava, separava, a antropologia da sociologia (LAPLANTINE, 2007). Mauss, por sua vez, buscava a emancipação da antropologia, a fim de que fosse reconhecida como uma ciência autônoma, separada da sociologia. Ele entendia que, para se compreender um fato social, é Introdução à antropologia da religião4 preciso observá-lo de maneira ampla, a partir de aspectos antropoló- gicos, sociológicos, fisiológicos e psicológicos. Para ele, os eventos da humanidade precisam ser observados em todas as dimensões possíveis, em especial a sociológica, a histórica e a psicofisiológica. Ele entende que a totalidade humana possui diversos aspectos e planos que são estudados de maneira isolada, mas que exigem a compreensão do todo. É o geral que se entende a partir do particular. O fenômeno social se entende de dentro para fora e de fora para dentro. Ou seja, em toda sua complexidade, observa-se a realidade de fora dela, mas se colocando na própria realidade (LAPLANTINE, 2007). A relação entre religião e antropologia: entendendo a antropologia da religião Tratando-se da antropologia da religião, pode-se afirmar que ela é um estudo próprio da visão antropológica, a qual considera o ser humano a partir de conceitos religiosos. Seu surgimento ocorreu no século XIX, assim com a própria antropologia, ligado diretamente às questões ideológicas e a uma valorização das religiões (PEREIRA, 2016). Com o fortalecimento do pensamento e dos efeitos causados pela laici- dade, provenientes da Revolução Francesa, em 1789, e do crescimento dos movimentos iluministas, houve um grande movimento ligado à negação das religiões. Surgiram vários novos pensamentos, como os de Ludwig Feuerbach, que discutia a consciência de Deus como sendo a própria cons- ciência humana, e os de Friedrich Nietzsche, que argumentava que Deus já estava morto. Eles vão ao encontro de um distanciamento de Deus e, por consequência, de um afastamento das instituições religiosa dominantes (PEREIRA, 2016, p. 265): Contudo, no século XIX, o cristianismo continuou a ser dominante na Europa e, frequentemente, à boleia dos impérios coloniais desenvolveram-se movimentos de revitalização que expandiram o cristianismo para além das fronteiras deste continente. Neste século, associando burocracias eficazes e um elevado finan- ciamento, as sociedades missionárias protestantes estenderam o cristianismo protestante à maior parte do mundo não ocidental. Assim, forma-se a antropologia da religião, que se posiciona de modo a estudar as religiões e tudo aquilo que as envolve. Parte-se da premissa de que a fé e a espiritualidade guiam as experiências humanas. Enquanto a religião se baseia em uma ação coletiva, a espiritualidade possui um caráter individual, Introdução à antropologia da religião 5 podendo, inclusive, afastar-se de formatos, de organizações coletivas e de instituições tradicionais. Ambas são indicadores para compreender e tipificar essa experiência (HAVILAND et al., 2011, p. 382): Uma vez que nenhuma cultura conhecida, incluindo as das sociedades industriais modernas, conseguiu controlar de modo absoluto as condições e as circunstân- cias existentes ou futuras a espiritualidade e/ou a religião são importantes para todas as culturas conhecidas. Apresentam, contudo, uma considerável variedade. As diferentes vivências de fé intrínsecas dos diferentes povos e períodos históricos formam uma característica importante, a qual sempre deve ser considerada. Por exemplo, povos coletores, ligados diretamente ao contato e à extração de recursos naturais, possuíam uma visão de mundo naturalista, a qual se conecta diretamente a uma religião presente em seu cotidiano. Em contrapartida, a civilização ocidental possui uma religiosidade conectada a momentos específicose próprios, uma vez que a complexidade social e a sofisticação tecnológica não fazem, da religião, algo presente em seu cotidiano (HAVILAND et al., 2011). Além disso, é importante lembrar que as religiões são constituídas por uma crença, que é formada por narrativas próprias. Essas crenças são cons- tituídas por diversos aspectos específicos dentro de cada religiosidade. Por exemplo, os membros de uma religião compartilham narrativas sagradas, as quais explicam fundamentos da existência humana. A isso, dá-se o nome de mito. O mito também é capaz de fornecer bases racionais para as crenças e as práticas religiosas, estabelecendo padrões de comportamento e orientações de fé. Desses mitos, podem surgir narrativas literárias, textos e livros que abordam essa temática mitológica (HAVILAND et al., 2011). Outro fator relevante a ser destacado quanto à constituição das crenças é a existência e a presença de seres e de poderes sobrenaturais. “Para tentar controlar por meios religiosos o que não pode ser controlado de outras formas, os seres humanos fazem orações, sacrifícios e outros rituais religiosos ou espirituais [recorde-se dos conceitos de sagrado e transcendência, propos- tos anteriormente]” (HAVILAND et al., 2011, p. 385, acréscimo nosso). Assim, pressupõe-se a existência de seres que se relacionam com o ser humano a partir de atos que reavivem e glorifiquem sua memória. É preciso ressaltar que a presença de seres sobrenaturais também pode ser sentida por meio de objetos naturais considerados sagrados, como um monte, um lago ou uma rocha extraordinária (HAVILAND et al., 2011). Segundo Pereira (2016), as análises antropológicas realizadas a respeito desses objetos de estudo, apresentados anteriormente, e de tantos outros possíveis, Introdução à antropologia da religião6 permitem dar um caráter científico a uma ciência tão complexa. Por mais que se- jam teóricos ou ilusórios, como afirma o autor, a antropologia religiosa é baseada nos dados criados e apresentados pelos fenômenos religiosos. Explicar a religião não é o objetivo dessa abordagem, mas, sim, entender as relações humanas com as religiosidades com que o homem permeia. Para isso, a antropologia precisa de percepções provenientes de outras ciências, de forma que possa analisar e compreender os mais diversos fatos religiosos presentes na atualidade como as novas religiosidades, a secularização e a mobilidade religiosa. A antropologia é uma ciência que estuda o ser humano a partir dos mais diversos aspectos que envolvem a fenomenologia. Por isso, a antropologia da religião apresenta respostas frente aos comportamentos humanos que possuem caráter religioso. Assim, pode-se produzir conteúdo de cunho religioso para questões puramente humana. Por exemplo, há vida após a morte? Se Deus é bom, por que existem pessoas más? Se o ser humano possui o pecado original em si, como ele pode ir para o céu? Antropologia da religião versus outras ciências religiosas A antropologia da religião busca compreender a humanidade a partir de aspectos puramente religiosos. Contudo, para atingir seus objetivos, não é incomum que os estudos antropológicos façam o uso de observações próprias de outras ciências. Enquanto abordagens científicas como história, psicologia ou sociologia possuem uma visão que se limita à sua área de estudo, a an- tropologia é capaz de buscar aspectos de cada uma delas para destrinchar a complexidade proposta pela existência e pela convivência humanas. Sendo a antropologia uma das ciências mais jovens a serem formadas, sabe-se que seu desenvolvimento foi priorizado apenas após o surgimento da geologia, da genética, da biologia e da própria sociologia. “Pode-se afirmar que, somente após os conhecimentos da célula e da evolução terem sido formulados e aplicados ao homem, é que a Antropologia se sistematizou e progrediu como ciência do homem” (MARCONI; PRESOTTO, 2015, p. 8). Quando se trata do surgimento da antropologia da religião, entende-se que sua distância teórica e cronológica de nascimento não é tardia, em comparação com os estudos antropológicos. Contudo, assim como ocorreu com a antropo- logia propriamente dita, ela surge tardiamente, apenas no século XIX. Outras abordagens científicas sobre a religião já haviam se formado e amadurecido. Introdução à antropologia da religião 7 Lembre-se de que a antropologia da religião é uma ciência que busca es- tudar o ser humano a partir de sua relação com a fé. Para isso, ela observa os fenômenos religiosos a fim de compreender característica humanas que são evidenciadas. Qual é a relação entre o ser humano a fé? Como a fé cria fenô- menos sociais e religiosos em meio a sociedade? Como a fé se fez presente em fatos históricos? Para cada uma dessas perguntas, a antropologia da religião busca respostas, podendo, inclusive, utilizar argumentos de outras ciências. Mas quais são as diferenças entre a antropologia e outros estudos científicos? A filosofia da religião Segundo Sweetman (2013, p. 16), "[...] a filosofia da religião pode ser definida como a tentativa feita por filósofos de investigar a racionalidade das afir- mações religiosas básicas”. Observe as diferenças entre os pensamentos antropológico e filosófico sobre a religião. A filosofia da religião é um exem- plo de estudo que busca discutir sobre questões que envolvem o ambiente religioso. Para Sweetman (2013, p. 16), “[...] a Filosofia da Religião pode ser definida como a tentativa feita por filósofos de investigar a racionalidade das afirmações religiosas básicas”. Ela não prevê que aquele que pensa a respeito de uma religiosidade seja um crente. O filósofo da religião não necessita de determinada crença, nem precisa ter uma crença. Dessa forma, para se compreender esse ramo da Filosofia, é necessário que se afastar de um estudo de uma crença pura, a qual deposita total con- fiança na existência e na ação de Deus. Para se entender a religiosidade a partir dessa ciência, parte-se de experimentos e fenômenos sensíveis aos sentidos. Assim, permite-se a discussão e o encontro de provas racionais que sustentam essa ciência (SWEETMAN, 2013). Com isso, ela se diferencia da antropologia da religião, uma vez que sua busca se dá por conceituações racionais sobre os fenômenos, não necessa- riamente considerando os aspectos humanos. Sua função é discutir racio- nalmente os fenômenos religiosos, enquanto o estudo antropológico visa observar de maneira ampla a humanidade presente em cada fato. A sociologia da religião A sociologia da religião, como disciplina científica, desenvolveu-se como um meio de abordar teórica e empiricamente os fenômenos religiosos. É preciso lembrar que Durkheim defendeu que a antropologia da religião permane- Introdução à antropologia da religião8 cesse um ramo dos estudos sociológicos, enquanto Marcel Mauss propôs a emancipação da abordagem antropológica da sociológica. Portanto, ambas se encontram próximas histórica e teoricamente. Na atualidade, a sociologia da religião busca compreender de maneira aprofundada fenômenos como o embate entre secularização e dessecularização, a mercantilização e a privati- zação da religião frente a uma “revanche divina” contra esses movimentos, e o fenômeno da explosão de movimentos religiosos que nascem mundialmente. Portanto, ela busca explicar as relações entre a religião e a sociedade a partir de evidências empíricas, observando e dimensionando aspectos sociais da religião e religiosos da sociedade (CIPRIANI, 2007). É possível perceber que a sociologia e a antropologia trabalham conjunta- mente em vista de um mesmo objeto: o ser humano. Contudo, considerando a separação proposta por Mauss, percebe-se que o estudo sociológico da religião se preocupa com as questões coletivas a respeito das religiões. Enquanto isso, a abordagem antropológica da religião busca compreender a comunidade a partir de uma pessoa, e uma pessoa a partir de sua comunidade, conforme propõe o próprio Mauss. Com baseno que foi discutido neste capítulo, podemos ver que a an- tropologia da religião é um estudo amplo, que aborda toda a complexidade comportada no ser humano. Por isso, ela utiliza estudos diversos sobre o ser humano, como a filosofia e a sociologia da religião, elucidadas anteriormente, e, também, a história da religião (que busca compreender os fatos histórico que envolvem a formação e a consolidação das crenças, dos rituais e das religiões) e a psicologia da religião (que traz uma abordagem psicológica sobre as crenças e as experiências religiosas de um indivíduo). Além disso, seu estudo também se distancia de uma explicação propriamente religiosa, como propõem a teologia (que busca observar criticamente a formação, a estrutura e as práticas próprias de uma religiosidade) e a ciência da religião (que busca compreender a história das religiões, investigando-as de maneira sistemática). Referências CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000. CIPRIANI, R. Manual de sociologia da religião. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2007. CROATTO, J. S. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2010. DURKHEIM, É. As formas elementares da vida religiosa. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Introdução à antropologia da religião 9 ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. HAVILAND, W. et al. Princípios de antropologia. Tradução Elisete Paes e Lima. São Paulo: Cengage Learning, 2011. LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. Tradução Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2007. MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015. MENDONÇA, A. G. Fenomenologia da experiência religiosa. Numen, Juiz de Fora, v. 2, nº 2, 1999. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/21737. Acesso em: 24 out. 2020. PELTO, P. J. Iniciação ao estudo da antropologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. PEREIRA, P. Uma viagem retrospectiva à antropologia da religião. Antropología Ex- perimental, Jaén, nº 16, p. 263-284, 2016. Disponível em: https://revistaselectronicas. ujaen.es/index.php/rae/article/view/2441. Acesso em: 24 out. 2020. SWEETMAN, B. Religião: conceitos-chave em filosofia. Tradução Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Penso, 2013. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Introdução à antropologia da religião10 Resenha DOI – 10.5752/P.2175-5841.2019v17n52p543 Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 543 ELLER, Jack David. Introdução à Antropologia da Religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. 544p. ISBN: 978-85-326-5680-3 Mailson Fernandes Cabral de Souza Introdução Jack David Eller é professor adjunto de Antropologia na University of Northern Colorado. Doutorou-se em antropologia pela Universidade de Boston, tendo como seu trabalho de campo as mudanças religiosas e processos culturais entre o povo Warlpiri da Austrália Central. Seus estudos se concentram nas áreas de religião, violência e antropologia psicológica. Publicado originalmente em inglês em 2007, pela editora Routledge, o livro Uma introdução à antropologia da religião (Introducing anthropology of religion: culture to the ultimate), trata-se da primeira obra do autor traduzida para o português. O livro se encontra em sua segunda edição, revista e ampliada, publicada pela mesma editora em 2015, sendo esta a versão traduzida para o português. A obra é fruto do ensino e experiências de pesquisa de Eller e de sua busca por desenvolver uma série de temas determinantes não só para compreender a religião, mas também a abordagem antropológica do fenômeno. A obra está organizada em seis temas: a) a diversidade das religiões, isto é, como elas variam entre elas ao redor do mundo sob múltiplas formas; b) a diversidade no interior das religiões, ou seja, como dentro de uma religião existe Resenha recebida em 21 de janeiro de 2019 e aprovada em 26 de abril de 2019. Mestre e Doutorando em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). País de origem: Brasil. E-mail: mailsoncabral@yahoo.com.br Mailson Fernandes Cabral de Souza Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 544 uma variedade de crenças e práticas distribuídas no tempo e espaço; c) a integração da religião com sua cultura circundante. Posto que todas as partes de uma cultura estejam interconectadas e se influenciam mutuamente, a religião tenderia a reproduzir um ethos de cada cultura e sociedade em que está inscrita. d) a modularidade da religião, uma vez que esta última não é entendida como monolítica e única, mas um composto de muitos elementos, podendo ela ter seus cognatos não religiosos (política, economia gênero, etc.); e) a relatividade da linguagem. Os termos utilizados na análise antropológica da religião por vezes podem estar carregados de uma concepção sobre a religião que tenha como o seu horizonte o cristianismo, estabelecendo categorias que, quando aplicadas para outras religiões, são incompatíveis para analisá-las; f) o caráter local e prático da cultura e da religião. Visto que as religiões são multiformes internamente, uma mesma religião poderá variar a depender do seu contexto. São esses temas que orientam o eixo expositivo do livro, dividido em doze capítulos, e suas respectivas análises. A proposta da obra é fazer uma antropologia da religião comprometida em investigar as manifestações sociais contemporâneas e as formas com que elas se associam com a religião. Escopo da obra O primeiro capítulo apresenta as principais definições e teorias do campo antropológico. Para Eller, a melhor maneira de entender a antropologia seria concebendo-a como a ciência da diversidade dos seres humanos, em seus corpos e comportamentos. A antropologia da religião seria, portanto, a investigação científica da diversidade das religiões humanas. Nesse contexto, o conceito de cultura é central, posto que o estudo antropológico implica em olhar algo como comportamento humano aprendido e compartilhado. Essa orientação básica da antropologia levaria em consideração três aspectos da perspectiva antropológica. a) A antropologia procede através da descrição comparativa ou intercultural. Uma vez que o processo é seu o trabalho de campo, o Resenha: Introdução à Antropologia da Religião Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 545 método principal da antropologia é a observação participante. Seu produto é o estudo de caso ou etnografia e sua peculiaridade seria usar o particular para dizer algo sobre o geral; b) A antropologia adota uma posição de holismo. Parte-se da premissa que qualquer cultura é um todo mais ou menos integrado com partes que operam de maneiras específicas uma em relação à outra e que contribuem para o funcionamento do todo. As quatro áreas de atividade de todas as culturas (economia, parentesco, política e religião) se articulam nessa perspectiva, ligando- se também às questões mais difusas de linguagem e gênero, refletindo-as e afetando-as mutuamente; c) A antropologia defende o princípio do relativismo cultural, posto que ela reflete o entendimento que cada cultura tem seus próprios padrões de compreensão e julgamento. Nesse sentido,o relativismo cultural seria um resultado do estudo intercultural e holístico. O segundo capítulo trata da crença religiosa e das entidades e conceitos a ela subjacentes. O autor afirma que qualquer religião contém certas ideias e concepções sobre tipos de coisas que existem no mundo, com que elas se parecem e o que elas fizeram. Isso poderia ser classificado como a ontologia que cada religião encarna, os existentes que ela postula: seres, forças e fatos da realidade religiosa. Esses elementos são chamados de crenças da religião. As crenças religiosas são um subconjunto das crenças em geral. Enquanto questão subjetiva ou psicológica, as crenças são adicional e necessariamente interpretadas como estados mentais dos indivíduos. Ou seja, se dissermos que uma pessoa crê em algo, fazemos uma afirmação a respeito das representações mentais dessa pessoa. Elas seriam o conjunto de ideias religiosas sobre seres e forças que fundamentariam um determinado sistema cultural. Esses seres podem ser seres religiosos, espíritos humanos e espíritos não humanos, ao passo que as forças religiosas podem designar um tipo de energia, destino ou sorte. A presença e a ênfase desses elementos irão depender de cada religião e seu respectivo contexto cultural. Mailson Fernandes Cabral de Souza Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 546 O terceiro capítulo trata do sentido e poder espiritual no mundo físico e social, isto é, os símbolos e os especialistas religiosos. Os símbolos não são meras representações de coisas, mas são coisas repletas de poder, inclusive podendo esse poder ser o seu sentido. O mesmo vale para os especialistas religiosos: apesar de não representarem seres e forças religiosas, eles podem substituir essas entidades, atuando como seus representantes ou intermediários no mundo humano. A religião, no olhar da antropologia, poderia ser considerada como um conjunto de símbolos, sendo a própria cultura um sistema simbólico, dos quais a religião é um filão, embora particularmente relevante. Seria tarefa da antropologia interpretar ou decodificar esses símbolos. A função dos símbolos consistiria em controlar o comportamento. Os símbolos religiosos significam algo, mas também são algo (objetos, palavras ou ações). Os símbolos podem, inclusive, ser coisas ou forças: espaços sagrados, ícones, talismãs, amuletos, relíquias, máscaras, textos; ou pessoas que eles representam, o corpo humano, textos, especialistas religiosos (xamã, sacerdote, oráculo, profeta, médium, asteca, monge, mendicante, feiticeiro, bruxo). O quarto capítulo examina a linguagem religiosa que, muitas vezes, é entendida como mito. Este último, na verdade, é uma forma extremamente comum e importante de discurso religioso, mas de modo algum seria a sua única forma, ao passo que a linguagem religiosa seria um espectro mais amplo em que se situam as diferentes formas do discurso religioso (oração, encantamentos, cantos, provérbios, literaturas sapiencial e litúrgica, etc.). O mito, dessa forma, é compreendido como uma linguagem religiosa “um tipo de história, especificamente uma história que envolve os feitos dos espíritos ou ancestrais humanos. Numa palavra, os mitos são narrativas a respeito das atividades e aventuras destes seres” (ELLER, 2018, p. 137). Ele representa uma aparição do sagrado no meio do profano. Alguns tipos e temas de mitos recorrentes nas culturas são os mitos de criação, dilúvio, matar um monstro, caso de incesto, rivalidade entre irmãos, castração e divindade andrógina. Em síntese, os mitos são repositórios de ideias culturais sobre temas como cosmologia e cosmogonia. Resenha: Introdução à Antropologia da Religião Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 547 O quinto capítulo tem por finalidade observar e examinar o sentido, a função, origem e variedade do ritual. Os rituais são compostos de diferentes atividades: oração, música, exercícios fisiológicos (automutilação, jejum, uso de drogas, etc.), exortação, mito, simulação, poder, tabus, festas, sacrifícios, congregação, inspiração, simbolismo e objetos religiosos. Eles têm funções técnicas e terapêuticas, assim como podem possuir caráter ideológico, acarretando muitos gêneros de ação, indo da linguagem a itens materiais, comidas e outros elementos. Mesmo sendo um fenômeno primariamente religioso, o ritual não exige a priori nenhuma crença sobrenatural. A tendência em ver o ritual como algo estritamente religioso, adverte Eller, distorce tanto a religião quanto o ritual. Em síntese, os rituais são entendidos como componente chave da religião. Toda interação social humana acontece sob um código de convívio que comenta, representa e leva a cabo essas interações. Em razão disso, as interações religiosas devem ser compreendidas como instâncias de um código comportamental e simbólico. Por conseguinte, o comportamento religioso também deve ser considerado ao menos parcialmente real, posto que os rituais não são meramente informativos, mas transformadores dessas interações. O sexto capítulo analisa a relação entre religião e moralidade, sendo esta última concebida como códigos ou padrões de comportamento individual atuando em conjunto com a ordem e as instituições da sociedade. O interesse é descobrir como esses sistemas contribuem para a sociedade e para a construção e transformação dos indivíduos. Embora a religião não seja a única fonte de sansões e normas, ela é potencialmente a mais segura. A antropologia analisa a moralidade levando em conta a diversidade, a construção social e a relatividade da linguagem. A moralidade é entendia como o acúmulo muito variado de moralidades – assim como a compreensão do conceito de religião segue o mesmo raciocínio. O autor constata que em muitos casos “os estudos da moralidade têm sido tentativas não tanto de descrever e explicar a moralidade quanto de propor uma – ou a – moralidade verdadeira ou melhor” Mailson Fernandes Cabral de Souza Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 548 (ELLER, 2018, p. 208). A moralidade seria uma consequência de viver num grupo social e ser sensível a ele, configurando-se como uma prática social. O sétimo capítulo examina a permanente construção da religião. O autor ressalta que mesmo as religiões mais tradicionais já foram dinâmicas e nenhuma fase específica delas foi a verdadeira ou a tradicional. Embora muitas tradições reivindiquem que se ocupam do passado, disso não se pode deduzir que esse passado seja necessariamente antigo ou sequer real. O autor ressalta que esse processo não é tão moderno quanto possa parecer: “a invenção da tradição não é exclusiva do mundo moderno. A tradicionalização de sociedades tradicionais tem sido mais difícil de ver e de aceitar” (ELLER, 2018, p. 247). Esses movimentos de mudança religiosa, por seu turno, também criam novos movimentos religiosos que “surgem como respostas, acomodações ou protestos contra circunstâncias sociais novas e insatisfatórias. Por isso, [...] explicá- los é examinar as relações dinâmicas entre estes movimentos religiosos e a sociedade emergente na qual eles ocorrem” (ELLER, 2018, p. 251). Ou seja, eles surgem quando os indivíduos se encontram em circunstâncias de tensão social crônica, decorrente da combinação mal sucedida entre suas crenças e comportamentos atuais e o funcionamento do seu novo mundo social. O oitavo capítulo enfoca o fenômeno das religiões translocais (o islã e o cristianismo). O capítulo explora as categorias, desenvolvidas por Robert Redfield, de religiões locais e religiões translocais, isto é, pequenas e grandes tradições. O primeiro termo se refere às pequenas religiões que foram produtos de experiências de um tipo de sociedade pequena que, ao menos no seu início,eram autônomas e autossuficientes, sendo socialmente homogêneas e com forte senso de solidariedade de grupo. O segundo termo se refere às religiões que, situadas em circunstâncias sociais e políticas em expansão, tiveram seu ethos de religião redefinido. As religiões translocais são desenraizadas de seu contexto social primário para se tornarem religiões itinerantes e, em muitos casos, missionárias/proselitistas. Elas também se caracterizam por serem movimentos de Resenha: Introdução à Antropologia da Religião Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 549 associação voluntária, tendem a ser individualistas e possuem uma elaboração da sua ortodoxia por escrito (um cânone), sendo o cristianismo e o islamismo as religiões translocais mais bem sucedidas em sua expansão. Ao pensar a antropologia do cristianismo, o autor ressalta que ela foi a última grande área da antropologia religiosa a ser examinada pela literatura etnográfica. Algumas das razões apontadas para isso são: os antropólogos avaliarem o cristianismo como uma presença intrusa em cosmologias locais; os significados do cristianismo serem óbvios para os antropólogos pelo fato de que quase a totalidade dos pesquisadores serem pertences a uma cultura cristianizada. Eller também destaca a importância da antropologia estudar o cristianismo oriental (ortodoxo e copta), ainda pouco investigado, sobretudo por ter diferenças muito pontuais em relação ao cristianismo ocidental. O nono capítulo examina como o fenômeno da religião centralizada, profissionalizada e padronizada leva a variações entre o que a religião oficial diz e o que as pessoas realmente praticam. A expressão religião vernácula designa a religião como ela é vivida, isto é, como as pessoas se encontram com ela, a entendem, interpretam e praticam. Em razão disso, as fronteiras entre religião oficial e vernácula são sempre borradas, da mesma forma como ficam borradas as fronteiras entre as diferentes religiões e entre religião e não religião. Na atualidade, uma das importantes formas de atualização da religião vernácula se dá por meio da TV e do cinema, assim como pelas novas tecnologias (internet, redes sociais, etc.). Outra forma de atualização ocorre por meio da relação com os negócios e a economia. Num contexto de contra identificação ao capitalismo, há os movimentos de economias ocultas, que se caracterizam como respostas religiosas à conjuntura capitalista, contra suas formas de espoliação e injustiças e suas misteriosas normas e operações. O décimo capítulo faz uma análise das relações entre religião e violência. O autor argumenta que as compreensões sobre a relação entre religião e violência sofrem de três problemas: examinam um número muito limitado de religiões, em Mailson Fernandes Cabral de Souza Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 550 geral o cristianismo e o islamismo; consideram uma quantidade limitada de casos, terrorismo e guerra santa; tendem a culpar ou isentar a religião da violência. Uma compreensão mais precisa da violência da religião exigiria um exame de maior abrangência das religiões e considerar que a violência não é inerente ou inimiga da religião, mas um comportamento construído culturalmente, consequente de condições sociais específicas, que não são exclusivas da religião, mas que são comuns a ela. O autor lembra que existem diferentes formas de violência, e que tendemos a pensar somente grandes explosões de violência física (como ataques terroristas e guerras), mas também há violência estrutural, política, simbólica. Nesse sentido, a religião pode funcionar como explicação e justificação da violência. “A religião faz parte da cultura e a violência faz parte da cultura. É quase inevitável, portanto, que religião e violência acabem entrelaçadas. [...] a religião deve ajudar as pessoas a entender a violência empírica e inegável no mundo natural e social e pode também servir, ela própria, como razão da violência em certas situações contra certos alvos” (ELLER, 2018, p. 364-365). O décimo primeiro capítulo investiga as relações entre secularismo e irreligião. Umas das dificuldades, para os antropólogos, de se estudar o secularismo se deve ao fato de que ele não possui um topos, isto, é uma comunidade, não está delimitado em determinados locais para que se possa fazer um trabalho de campo. Por isso, o secularismo tende a ser interpretado, em muitos casos, como inexistente ou antinatural e antissocial em determinados grupos humanos. A teoria da secularização tem sido uma marca no campo da sociologia e da antropologia por mais de um século. Ela defende que com o advento da modernidade a religião tenderia a ser reduzida à esfera privada e que a sua força e representatividade no espaço público perderia força e representatividade. O conjunto desses processos produziu à progressiva automização dos setores sociais em relação ao domínio do sentido religioso e das instituições. Eller argumenta que uma antropologia do secularismo deve analisar o secularismo como uma doutrina Resenha: Introdução à Antropologia da Religião Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 551 social e política, e o secular como um conceito ou categoria social. O secularismo e o secular, da forma como são concebidos hoje, são produtos do pensar europeu ocidental, sendo toda essa discussão fruto da experiência ocidental na qual o cristianismo traçou a linha divisória entre religião e mundo, sagrado e profano, tendo as ciências sociais absorvido essas categorias. O uso de terminologias como secular, secularismo, irreligião ou ateísmo também estariam atravessados pelo mesmo problema. O décimo segundo capítulo analisa o fundamentalismo religioso. O fundamentalismo não é exclusivo da religião, mas é um estilo de civilização que pode ocorrer em qualquer área da cultura. Embora ele possa ser um fenômeno moderno, ou pelo menos certa forma de resposta aos desafios postos pela modernidade, é possível identificá-los também em contextos pré-modernos. O autor argumenta que dois pontos precisam ser considerados. a) O fundamentalismo religioso é para alguma coisa, isto é, promove aquilo que constitui a cosmovisão e a verdade para os seus praticantes; b) O fundamentalismo religioso é contra alguma coisa, estabelecendo uma atitude exclusivista, tensa e até militante. Da mesma forma que existem múltiplos modos de religiosidade, também existem diferentes modos de fundamentalismo, nem todos políticos e nem todos violentos. Portanto, o fundamentalismo não seria um fenômeno monolítico e a relação entre fundamentalistas e a sociedade circundante não assumiria uma única forma (conflituosa). Os fundamentalismos não são programas puramente negativos (oposicionistas de uma ordem), mas também a favor de determinadas causas. Os fundamentalismos são movimentos de revitalização religiosa que surgem em todas as sociedades durante períodos de perturbação e declínio social. Eles não representam a boa ou a má religião, mas uma das muitas variações que a religião pode assumir em determinadas circunstâncias históricas e sociais. Mailson Fernandes Cabral de Souza Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 52, p. 543-552, jan./abr. 2019 – ISSN 2175-5841 552 Considerações finais A obra introduz o leitor em temas-chave do campo da antropologia, além de aplicar uma abordagem antropológica ao estudo da religião no mundo contemporâneo, trazendo diferentes relatos etnográficos ao longo dos capítulos. O autor examina também questões importantes como moralidade, violência, fundamentalismo, secularização e novos movimentos religiosos. No entanto, a obra carece de uma apresentação sobre o autor e lança o leitor direto ao texto. Não haveria problema nisso, não fosse o caso desteser o primeiro livro de Jack David Eller traduzido para o português e o fato de seus trabalhos ainda serem pouco difundidos nos ciclos de estudos de religião no país. O que não se configura propriamente como um demérito do livro, mas talvez um descuido na apresentação da obra para a nossa língua. No que se refere ao conteúdo do livro, deve-se reconhecer o esforço do autor em produzir tamanha sistematização de temas da antropologia da religião e a bibliografia atualizada da qual ele se serve. Nesse sentido, a obra pode ser considerada um verdadeiro manual, introduzindo o leitor aos atuais debates que se travam no âmbito da antropologia, além de possuir uma linguagem acessível para quem está minimamente familiarizado com os conceitos e vocabulário antropológicos. O ponto negativo que pode ser apontado é a falta de um capítulo final que sintetizasse o percurso feito na obra. Embora ao término de cada capítulo sejam levantadas questões sobre os tópicos abordados, faltou ao autor levar a cabo algum tipo de encaminhamento geral das discussões suscitadas ao longo do seu trabalho, dada a extensão da obra e do conteúdo nela abordado, dificultando a produção de uma síntese do texto por parte do leitor. O EVOLUCIONISMO ANTROPOLÓGICO NA OBRA DE DARCY RIBE IRO Anizio José do Carmo Júnior (UFG, Mestrando em História, aniziojose2@yahoo.com.br) Resumo: procuramos fazer uma análise comparativa de autores do “evolucionismo antropológico clássico”, Lewis Henry Morgan (1877), Edward Burnett Tylor (1871) e James George Frazer (1908), bem como fazer possíveis aproximações desses autores com a obra antropológica de Darcy Ribeiro, representada por seu O processo civilizatório. Palavras-chave: evolucionismo antropológico clássico, Darcy Ribeiro, O processo civilizatório. INTRODUÇÃO O alicerce do pensamento antropológico de Darcy está presente em seus Estudos de Antropologia da Civilização1, cujo objetivo central é analisar a configuração das sociedades humanas de acordo com suas habilidades de prover e explicar suas existências no tempo e no espaço. Por meio desta série analítica, Darcy centraliza sua abordagem na formação latino-americana – incluindo a brasileira –, comparando-a com diversas sociedades e suas constituições culturais, econômicas, sociais e políticas, buscando elaborar uma explicação sensível às características históricas próprias de cada formação sociocultural, referentes a sequências de revoluções tecnológicas e processos civilizatórios. Na perspectiva teórico-antropológica darciana, destacam-se duas de suas matrizes principais: o “evolucionismo antropológico clássico” e a “dialética marxista”, articulando-as como campos do conhecimento científico. Pretendemos discutir, neste breve trabalho, certos aspectos presentes no que Celso Castro (2005) nomeou de “estudos clássicos de antropologia”, que, apesar de apresentarem distinções analíticas, são estudos 1 Série publicada em todo o período de seu exílio (1964-1976), é composta de O Processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural (1968, 1ª edição brasileira), As Américas e a civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos (1969, edição argentina; 1970, 1ª edição brasileira), Os Brasileiros: Teoria do Brasil (1969, edição uruguaia; 1972, 1ª edição brasileira), Os Índios e a Civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno (1970, 1ª edição brasileira) e O Dilema da América Latina: estruturas de poder e forças insurgentes (1971, edição mexicana; 1978, 1ª edição brasileira). que trazem uma visão de evolução sociocultural das sociedades humanas, baseada em observação comparativa de diversas sociedades em determinado contexto de tempo e espaço, bem como na trajetória cronológica percorrida por cada povo em sua existência. Deste ramo da antropologia clássica, Castro (2005) apresenta e discute as obras de Lewis Henry Morgan (1877), Edward Burnett Tylor (1871) e James George Frazer (1908), que revisitaremos pontualmente, com a finalidade de estabelecer e demarcar de forma breve as recepções e interpretações, aproximações e distanciamentos de suas propostas relativas ao que denominamos de “evolucionismo antropológico na obra de Darcy Ribeiro”. Castro afirma que é necessário ressaltar primeiro os matizes teóricos de cada autor, antes de “reduzir as obras desses autores ao rótulo [estéril e pouco explicativo] de ‘evolucionista’, embora os três tenham de fato sido expoentes dessa corrente de idéias” (CASTRO, 2005: 7). Isso vale para evitamos deixar escapar as contribuições antropológicas em suas especificidades, como também para o trabalho de análise da perspectiva de Darcy desde seus fundamentos teóricos, sem, entretanto, assinalar quaisquer conexões do pensamento darciano com este ou aquele autor do “evolucionismo antropológico clássico”. O objetivo principal de nosso trabalho é destacar certos elementos da perspectiva evolucionista de Darcy Ribeiro, presente em O Processo Civilizatório: etapas da evolução sociocultural (1975a), seguindo os apontamentos de Celso Castro (2005), que assinalando os prováveis desdobramentos do evolucionismo antropológico como matriz de pensamento, coloca a obra de Darcy Ribeiro pari passu às de Leslie White e Julian Steward, observando que Darcy, “em O Processo Civilizatório (1968), retraça sua linhagem intelectual, passando por esses autores, até Morgan.” (CASTRO, 2005: 38). Assim, procuramos trazer, como autores clássicos, Morgan, Tylor e Frazer, ponderando sobre pontos de suas propostas que, de certa forma, foram reinterpretadas por Darcy Ribeiro (1975a), como por exemplo: (1) a conexão entre escalas de tempo e percepções acerca da história humana; (2) a utilização de um método comparativo de análise que almeja mapear a trajetória evolutiva das sociedades; e (3) a articulação – ou tensão – entre “cultura” e “civilização”, ou “cultura” como “civilização”, como um processo de aprimoramento dos conteúdos culturais por meio de um ideal de progresso humano. Estes aspectos permeiam tanto as perspectivas clássicas da antropologia, quanto o debate sobre a evolução cultural humana em Darcy Ribeiro. Outro objetivo nosso é justamente combater certos mal-entendidos, como o de reduzir os autores dos “estudos clássicos de antropologia” ao simples rótulo de “evolucionistas”, desconsiderando suas contribuições à antropologia, bem como analisar a obra de Darcy Ribeiro em suas especificidades, sem fazer uma conexão com este ou aquele autor. 1. Os estudos clássicos de antropologia e sua perspec tiva evolucionista Ao analisarmos os estudos clássicos de antropologia, devemos situar nossa análise no âmbito da constituição da antropologia como uma disciplina científica específica, num processo de definição temática e de distinção do objeto de investigação em relação à sociologia. Vale destacar o diálogo intenso e até mesmo o cruzamento da nascente perspectiva antropológica com os campos da filosofia, da história, ou da biologia.2 Segundo Castro (2005), os “pais fundadores da antropologia” buscaram realizar o diálogo entre diferentes campos do saber, em empreendimentos que distinguiam o esforço de ajustamento da antropologia como ciência, da separação do conhecimento científico3. O objetivo que une as perspectivas de Morgan, Tylor e Frazer é a busca por esclarecer a forma que as sociedades humanas promovem e explicam suas existências no tempo e no espaço, preocupação fundamental que tematiza o desenvolvimento das sociedades, a partir do processo pelo qual elas passaram a existir. O estudo sobre a humanidade, formulado pelo pensamento científico dos autores acima, lança para o “passado” o lugar das respostas do “presente”, e das idéias que direcionam o “futuro”. Aqui está o2 Sobre o “equívoco bastante comum” que associa “evolução biológica” a “evolução cultural”, cf. CASTRO, 2005: 26. 3 Cf. ERIKSEN; NIELSEN, 2007: 27-39 primeiro ponto: há, nas análises de Morgan, Tylor e Frazer, de diferentes modos e graus, uma relação entre: (1) a história da humanidade, entendida como única; e (2) representações analíticas sobre o tempo, por estágios, períodos ou etapas da evolução humana, que se sucedem e se explicam4. Em seu estudo sobre o processo de desenvolvimento da humanidade, Morgan busca abandonar qualquer medida limitada de tempo, pois “como a provável extensão da carreira da humanidade está ligada a períodos geológicos (...) cem ou duzentos mil anos não seriam uma estimativa excessiva do tempo transcorrido desde o desaparecimento das geleiras no hemisfério norte até o presente.” (MORGAN, 2005: 43). Tal concepção de Morgan expande, analiticamente, as escalas de tempo, mediante classificações de períodos ou etapas da humanidade referentes à sua história, em termos de seqüências ou séries do progresso humano5. A conexão que Morgan realiza entre “tempo” e “história”, parte da noção de uma filosofia da história como devir, como uma fonte de significação concreta e objetiva – “única” – dos processos e desenvolvimentos da humanidade. “A história da raça humana é uma só – na fonte, na experiência, no progresso.” (MORGAN, 2005: 44). Morgan apresenta sua perspectiva evolucionista como uma concepção unilinear da história, identificando um caminho ascendente do estágio humano “desde a selvageria, através da barbárie, até a civilização”, esta como a última etapa da história humana. Mesmo lançando mão de um esquema, um recurso analítico com aspirações de totalizações explicativas, Morgan não descarta a existência de diferentes graus de desenvolvimento humano correspondente a uma mesma escala de tempo. “Como a humanidade foi uma só na origem, sua trajetória tem sido essencialmente uma, seguindo por canais diferentes, mas uniformes” (MORGAN, 2005: 46). A conexão “tempo-história” também aparece em Tylor, em seu estudo sobre a origem e o desenvolvimento primitivo da civilização, na qual há a existência de uma filosofia da história “como um todo, explicando o passado e predizendo os futuros fenômenos da vida do homem com referências a leis gerais” (TYLOR, 2005: 74). Tylor pretende delinear, com base em 4 Cf. CASTRO, 2005: 27-28. 5 Cf. MORGAN, 2005: 43-44. classificações do tempo, os fenômenos da cultura de acordo com seus estágios ou etapas de desenvolvimento, relativos à história humana. Há, na perspectiva evolucionista tyloriana, a idéia da “compreensão do presente e a modelagem do futuro” (TYLOR, 2005: 97), como uma forma de investigação antropológica essencial na observação de diversos estágios de evolução humana experimentados por diversas sociedades no mesmo percurso histórico. Assim, Tylor admite um provável esquema de evolução multilinear da civilização humana, “ao longo de suas muitas linhas” (TYLOR, 2005: 93). Para James Frazer (1908), a tarefa da antropologia apresenta semelhanças com as propostas de Morgan e Tylor, pois “visa descobrir as leis gerais que regulavam a história humana no passado e que, se a natureza for realmente uniforme, é de se esperar que a regulem no futuro” (FRAZER, 2005: 104). A perspectiva evolucionista de Frazer se baseia no “método comparativo” (FRAZER, 2005: 120), numa análise comparada no tempo, que verifica a relação de causalidade entre os estágios passados e os estágios presentes da vida humana, entre “o que era” e o “que é”, dos chamados “primórdios” até “os dias atuais” (FRAZER, 2005: 103), sendo que a semelhança com Morgan está na indicação da evolução da civilização a partir do estágio de selvageria: “está implícito que os ancestrais das nações civilizadas um dia foram selvagens” (FRAZER, 2005: 107). Semelhante a Tylor, a proposta de Frazer, sua perspectiva evolucionista, possui caráter multilinear: “A humanidade (...) avança em escalões, isto é, as colunas marcham não uma ao lado da outra, mas em linhas dispersas, cada uma num grau diferente de atraso com relação ao líder.” (FRAZER, 2005: 116) Para os três autores, o estágio de “avanço” ou “atraso” de uma certa sociedade em seus percursos evolutivos, configura um problema essencial. A análise comparada estabelece o grau “avançado” ou “atrasado” de uma sociedade, ou seja, uma sociedade é “avançada” ou “atrasada” em relação a uma outra sociedade, à “líder”, nas palavras de Frazer. Este é o segundo ponto essencial das perspectivas dos autores: a utilização do método comparativo de análise6. A comparação entre sociedades é justificada pela noção de que certas causas e condicionantes operam uniformemente por toda a humanidade: 6 Cf. CASTRO, 2005: 30. por exemplo, a necessidade humana de subsistência material mediante adaptação a determinadas “condições externas (isolamento geográfico e influências ambientais)” (CASTRO, 2005: 30-31); ou a idéia de “unidade psíquica [ou moral] de toda a espécie humana, a uniformidade de seu pensamento” (CASTRO, 2005: 28). Morgan, em sua perspectiva, ressalta que o progresso humano ocorre mediante um caminho seqüencial; um sucessivo aprimoramento das sociedades existentes em vários meios, através de “invenções” e “descobertas”7, nos quais os resultados de uma experiência de subsistência acumulada e aperfeiçoada colaboram para o conseqüente desenvolvimento humano adaptado. É importante observar que, para o autor, “invenções” e “descobertas” fazem parte de sua linha de investigação científica, permitindo o estudo das instituições primitivas da vida social. Assim, o problema essencial para Morgan é a análise das causas do desenvolvimento desigual dos povos, que partiram de condições gerais, relativas a toda a humanidade: o autor questiona sobre as razões do “atraso” de algumas sociedades em relação a outras, ou “por que outras tribos e nações foram deixadas para trás na corrida para o progresso – algumas na civilização, algumas na barbárie e outras na selvageria.” (MORGAN, 2005: 44). Tylor, em sua preocupação analítica, também focaliza o descompasso entre configurações culturais “avançadas” e “atrasadas”, que convivem numa mesma sociedade, dentro de uma linha de continuidade do processo de civilização. O autor apresenta esse descompasso como “sobrevivências”, antigos conteúdos culturais que continuam a existir num estágio temporal avançado em relação a sua origem. Tylor explica o conceito de “sobrevivências”: Trata-se de processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que por força do hábito, continuavam a existir num novo estado de sociedade diferente daquele no qual tiveram a sua origem, e então permanecem como e exemplos de uma condição mais antiga de cultura que evoluiu em uma mais recente. (TYLOR, 2005: 87) Para Tylor, essas “sobrevivências” são resíduos histórico-culturais de um tempo já vivido por uma sociedade, que por motivos desconhecidos para o autor, aparecem como algo deslocado, referentes à própria multiplicidade de 7 Sobre as “invenções” e “descobertas”, cf. MORGAN, 2005: 60. modos possíveis para o desenvolvimento das sociedades. São provas históricas de um estágio humano que não existiria de forma homogênea, possibilitando ao pesquisador ou “etnógrafo” “(...) traçar o curso do desenvolvimento histórico.” (TYLOR, 2005: 88). Para explicar as continuidades e descontinuidades, mudanças e permanências no processo de evolução cultural humana, Tylor adota uma análise comparativa composta por: (1) uma visão sincrônica que considera os distanciamentos relativos a cada sociedade em seus percursos, numa mesma escala de tempo; e (2) uma visão diacrônica que consideraas diferenciações evolutivas de uma mesma sociedade numa seqüência cronológica (Cf. TYLOR, 2005: 91-93). Frazer (1908), ao considerar a história do pensamento e as instituições humanas como esferas interdependentes, indica o método comparativo como um mecanismo de estudo de tais esferas. Frazer, assim como Tylor, examina o que denomina de “vida selvagem”, de modo comparado no tempo, demonstrando os aspectos evolutivos que mostrariam que “um selvagem está para um homem civilizado assim como uma criança está para um adulto (...)” (FRAZER, 2005: 107). Próxima à intenção de Tylor, a intenção de Frazer é realizar um estudo comparativo que considere duas fases: (1) “estudo da selvageria”, que examina “os costumes e crenças dos selvagens”; e (2) “estudo do folclore”, que abrange “aquelas relíquias e crenças tal como sobreviveram no pensamento e nas instituições de povos cultos”, ou “as sobrevivências de idéias e práticas mais primitivas entre povos que, em outros aspectos, ascenderam a planos mais elevados da cultura” (FRAZER, 2005: 112). Para Frazer, as “superstições” são elementos da cultura que criam obstáculos ao processo de civilização em sua uniformidade, contudo admite que tais permanências se justificam por uma “natural, universal e inerradicável desigualdade dos homens” (FRAZER, 2005: 113). Para Frazer essas desigualdades são, no entanto, quantitativas e não qualitativas, o que fundamenta o princípio metodológico comparativo para o autor, de acordo com a “bem estabelecida similaridade do funcionamento da mente humana em todas as raças de homens” (FRAZER, 2005: 120). Assim, chegamos ao terceiro ponto que aproxima as perspectivas dos três autores citados, que é o enfoque sobre o conceito de “cultura” como elemento derivado de uma homogeneidade qualitativa, histórica, mental, e moral da humanidade, que pode variar em diversos estágios, mas, ao que parece, se configura de modo universal para estes autores.8 O que reúne as concepções de “cultura” em Morgan, Tylor e Frazer, é a idéia que liga a produção de “cultura” de uma determinada sociedade às suas condições históricas, mentais, geográficas (Cf. CASTRO, 2005: 30-31, 35). “Cultura” aparece em Morgan, num sentido estrito e não sistematizado, como uma noção vinculada com a primeira idéia de subsistência, pela qual os povos sobrevivem, num dado contexto de tempo e espaço, a determinadas condições. Para o autor, a noção de “cultura” se refere à forma pela qual as sociedades provêm e explicam suas existências, na “prolongada luta com os obstáculos que encontrava em sua marcha a caminho da civilização” (MORGAN, 2005: 50). O conceito de “cultura” ou “civilização” é definido por Tylor como “aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade” (TYLOR, 2005: 69). Celso Castro mostra que Tylor definiu pela primeira vez o conceito de “cultura” como sinônimo de “civilização”, comportando um sentido de processo, de um construto em vias de aperfeiçoamento: “Tylor fala de cultura ou civilização (...) [de forma] essencialmente hierarquizada em ‘estágios’” (CASTRO, 2005, 17). Já em Frazer (1908), o conceito de “cultura” não apresenta sistematização, mas fornece subsídios para o estudo das “crenças e costumes dos selvagens (...) e as relíquias dessas crenças e costumes que sobreviveram como fósseis entre povos de cultura mais elevada”. (FRAZER, 2005: 106). Estes aspectos que aproximam e distanciam as obras de Morgan, Tylor e Frazer indicam elementos teórico-metodológicos para o estudo da perspectiva evolucionista em Darcy Ribeiro, como uma contribuição que parte dos estudos clássicos de antropologia, com pretensões de revisão e 8 Segundo Castro (2005), esse ponto constitui a crítica de Franz Boas (1896) ao método comparativo. “Para ele, antes de supor, sem provas cabais, como fazem os evolucionistas, que fenômenos aparentemente semelhantes pudessem ser atribuídos às mesmas causas, era preciso perguntar, para cada caso, se eles não teriam sido transmitidos por difusão de um povo a outro. Ao contrário dos autores evolucionistas, que usavam as palavras cultura e sociedade humana no singular, Boas passou a usar cultura no plural.” (CASTRO, 2005: 35. Grifos do autor). sistematização das teorias da evolução sócio-cultural em busca de uma teoria geral da evolução humana, que aqui será revisitada através de O Processo Civilizatório: etapas da evolução sociocultural (1975a), que discuto a seguir. 2. A perspectiva evolucionista em O Processo Civilizatório de Darcy Ribeiro Betty J. Meggers, no prefácio à edição norte-americana (1968) de O Processo Civilizatório (1975a), considera a crítica recorrente ao evolucionismo cultural no que concerne a uma postura eurocêntrica de análise, que projetaria um ideal de sociedade como etapa final do percurso evolutivo humano, baseado na experiência civilizatória européia.9 A autora afirma que apesar de representar a escola evolucionista de antropologia, e oferecer uma abordagem sobre o processo civilizatório, Darcy Ribeiro seria “um cidadão do chamado ‘Terceiro Mundo’. Como tal, encara o desenvolvimento cultural sob um prisma distinto e percebe nuances que não [no caso de Meggers, os norte-americanos] permanecem encobertas” (MEGGERS, 1975a: 11). Darcy Ribeiro (1975a) pretende usar o esquema conceitual disposto pelos “estudos clássicos de antropologia” mediante uma revisão crítica das teorias de alto alcance histórico10, a fim de propor um novo esquema sobre o desenvolvimento humano. Este é o objetivo geral de O Processo Civilizatório (1975a), que sendo o primeiro dos Estudos de Antropologia da Civilização, é a obra de maior densidade analítica, onde o autor busca retomar a perspectiva evolucionista de modo a reformulá-la para a explicação posterior das particularidades histórico-culturais dos povos americanos.11 9 Meggers demonstra a tradição de pensamento de seu país, indicando que: “Nos Estados Unidos, herdamos a tradição da civilização ocidental européia por nós considerada como a corrente principal ou central da evolução humana. Em conseqüência, medimos todos os demais povos segundo nossa medida e os consideramos carentes (...) Acresce ainda que os melhores estudos sobre a evolução cultural foram elaborados por estudiosos europeus ou norte-americanos e, em virtude disso, corroboram, implícita ou explicitamente, esse ponto de vista.” (MEGGERS, 1975a: 11) 10 Dessas teorias, Darcy indica os estudos clássicos de antropologia de Morgan (1877) e Tylor (1871), as obras de Augusto Comte (1840) e Herbert Spencer (1897), e os estudos modernos de antropologia de perspectiva evolucionista como os de Gordon Childe (1934, 1937, 1944, 1946 e 1951), Leslie White (1949 e 1959) e Julian Steward (1955). Cf. RIBEIRO, 2000: 220- 221. 11 O esquema conceitual trabalhado por Darcy em O Processo Civilizatório servirá de base O empreendimento darciano, em O Processo Civilizatório, almeja uma definição precisa de “conceitos faseológicos”, como “civilização” ou “revolução”, que segundo Darcy aparecem não só na antropologia, mas também em estudos históricos, como um arcabouço teórico-conceitual pressuposto e não tematizado. O autor, pensando a partir dos cânones do evolucionismo cultural, ou seja, transitando no mesmo horizonte teórico clássico, procura contribuir para a ampliação do quadro de categorias que, segundo ele, só explicaria a história européia, fazendo-o repensar a própria perspectiva de evolução das sociedades, como presente em Morgan, por exemplo, à luz da experiência dos povos extra-europeus. O que Darcy explicita é a dificuldade de transplantar idéias e conceitos que têm como base a realidade de umadeterminada história, a européia, para outra conjuntura que se relaciona a ela em seu percurso, mas que contém características formativas como configuração histórico-cultural singular referente ao seu desenvolvimento: a latino-americana. Para Darcy Ribeiro, conceito de “evolução sociocultural” corresponde ao (...) movimento histórico de mudança dos modos de ser e de viver dos grupos humanos, desencadeado pelo impacto de sucessivas revoluções tecnológicas (...) sobre sociedades concretas, tendentes a conduzi-las à transição de uma etapa a outra, ou de uma a outra formação sociocultural (RIBEIRO, 1975a: 15). Ao se aproximar de Morgan, que a seu ver teria estabelecido o “primeiro esquema geral da evolução humana” (RIBEIRO, 1975a: 220), Darcy toma a história como encadeamentos sucessivos de etapas evolutivas, as quais representam o processo histórico da formação sociocultural de cada sociedade, em termos do desenvolvimento acumulado de suas potencialidades produtivas, no provimento material de suas existências. Mesmo ressaltando a validade explicativa e a atualidade antropológica da proposta de Morgan, Darcy não enxerga um único modelo civilizatório no que diz respeito a uma relativa experiência histórica concreta, como um movimento ascendente cadenciado por condições objetivas, as quais operam como fatores exógenos em cada momento histórico. Darcy analisa a para seu estudo da formação sociocultural das Américas, fundamentalmente em As Américas e a Civilização (1969) e em O Dilema da América Latina (1971). perspectiva unilinear de Morgan, antes como um recurso de abstração da realidade, e que pode ser trabalhado nas suas aproximações com diversas experiências. Segundo Darcy: Só em condições excepcionais as sociedades têm oportunidade de experimentar processos evolutivos contínuos puramente ascendentes que as conduzam a viver sucessivamente diversas etapas da evolução. Via de regra, são interrompidas por várias causas conducentes à estagnação e à regressão cultural ou a desenvolvimentos cíclicos de ascensão e decadência. (RIBEIRO, 1975a: 33). Por observar e partilhar com Morgan a noção de uma “filosofia da história” que sustenta o significado das modificações em cada sociedade, é que Darcy considera o movimento de evolução sociocultural como um processo complexo de civilização, marcado por “mudanças” e “permanências” no que se aproxima de Edward Sapir12 (1924), por progressos e regressos, no que se aproxima de Gordon Childe (1966). Darcy recebe os conceitos de “progressos” e “regressos” de Childe, como dois mecanismos de configuração histórica que representam o avanço ou retrocesso dos aspectos produtivos, sociais e culturais de uma determinada sociedade em seu percurso evolutivo relativo a outras sociedades. Darcy demonstra que o desenvolvimento das sociedades humanas no tempo e no espaço é produto de um desenrolar contraditório da constituição interna de uma formação sociocultural, como modo de adaptação a seu meio, em relação a sua interação com outras formações. É neste sentido que Darcy busca na análise comparativa, na acepção substantivada pelos “estudos clássicos de antropologia”, o recurso metodológico utilizável no estudo do processo civilizatório geral que concebe as modificações estruturais em cada sociedade, visto que “não é a invenção original ou reiterada de uma inovação que gera conseqüências, mas sua propagação sobre diversos contextos socioculturais e sua aplicação a diferentes setores produtivos” (RIBEIRO, 1975a: 36). Próximo a uma perspectiva multilinear da evolução sociocultural, que o próprio declara para sua obra (Cf. RIBEIRO, 1975a: 13), Darcy apresenta uma concepção do método comparativo semelhante àquela exposta por Tylor e Frazer – embora não se remeta a este último em sua proposta –, em virtude de 12 Cf. SAPIR, 1924. In: PIERSON, 1970. que o “atraso” ou “avanço” de uma sociedade é sempre relativo a uma outra fase ou grau e não ao tipo de desenvolvimento alcançado por uma sociedade em relação à outra, e para Darcy, devido ao modo pelo qual cada uma se apresenta, numa conjuntura de interação externa. Darcy adverte que o grau de autonomia de um povo, de acordo com sua formação sociocultural, influencia o modo pelo qual ocorre, ou não, a transição de uma etapa a outra da evolução humana. Para tanto, o autor conceitua duas vias pelas quais operam o processo civilizatório, num movimento simultâneo de homogeneização e diversificação das características formativas das sociedades: são os processos de “aceleração evolutiva” e “atualização histórica”. Por “aceleração evolutiva”, Darcy entende “os processos de desenvolvimento de sociedades que renovam autonomamente seu sistema produtivo e reformam suas instituições sociais no sentido da transição de um a outro modelo de formação sociocultural, como povos que existem para si mesmo” (RIBEIRO, 1975a: 44). Já o conceito de “atualização histórica” é referenciado pelos “procedimentos pelos quais esses povos atrasados na história são engajados compulsoriamente em sistemas mais evoluídos tecnologicamente, com perda de sua autonomia ou mesmo com sua destruição como entidade étnica” (RIBEIRO, 1975a: 45). Sem querer sistematizar o conceito de “cultura” nesta obra, esforço empreendido em Os Brasileiros: Teoria do Brasil (1975b), Darcy Ribeiro destaca que a cultura de uma sociedade, moldada pela interdependência de ordens tecnológicas, sociais e ideológicas, se transforma, mesmo sem a transição de uma formação a outra, no contato com outras culturas, revelado em um processo de traumatização cultural, o qual atua como um condicionante que interliga fatores endógenos e fatores exógenos, na explicação de quadros de autonomia simbolizados pela via da “aceleração evolutiva”, e dependência e atraso históricos cristalizados na via da “atualização histórica”. Vale assinalar que é desta maneira que Darcy parece articular o conceito de “cultura” ao próprio “processo civilizatório” em estudo, observando que o plano da cultura se molda, sobretudo, pelo fato de que é referenciado pela dimensão processual-seqüencial da evolução sociocultural; na medida em que a cultura absorve os impactos do processo em questão, na interação que o contato intercultural promove, que pode ser marcado por uma atmosfera de dominação ou não, dependendo do grau de autonomia de uma sociedade face às outras, ao mesmo tempo em que é no domínio da cultura que cada sociedade pode explicar e facultar novos caminhos de sua experiência, se diferenciando das demais. Darcy concebe “cultura” no próprio seio do processo de civilização (RIBEIRO, 1975a: 41), aproximando-se da tensão entre “cultura” e “civilização” indicada por Tylor (TYLOR, 2005: 69). Darcy interpreta o conceito de “civilização” pelo sentido oferecido por Sapir (1924), que a ressalta, de fato, enquanto resultado de um processo lento, e que Darcy explica como “cristalizações de processos civilizatórios singulares que nelas se realizam como um complexo sociocultural historicamente individualizável” (RIBEIRO, 1975a: 41). Darcy se distancia, neste ponto, da abordagem sobre o conceito de “civilização”, do esquema proposto por Morgan, visto que para este autor, a dimensão da “civilização” corresponde a uma etapa final da evolução humana, enquanto para Darcy tal conceito nada mais representa do que resultados de um processo em vigor que podem ser desdobrados de acordo com determinadas especificidades históricas. Darcy Ribeiro, em sua descrição e análise das etapas da evolução sociocultural13, utiliza uma perspectiva sobre os tempos passados, pelos quais as sociedades humanas realizaram percursos evolutivos que seencontram e se afastam, que progridem e que regridem, devido às suas condições formativas marcadas por fatores endógenos e exógenos. Este recurso se apresenta como uma reinterpretação do modo de análise cronológica que funda de maneira geral os “estudos clássicos de antropologia”, e que segundo o autor: (...) permite apreciar como diversas tradições culturais particulares, desenvolvidas por diferentes povos em épocas e lugares distintos, se concatenaram umas com as outras, interfecundando-se ou destruindo-se reciprocamente, mas conduzindo sempre adiante uma grande tradição cultural e contribuindo, assim, para conformar a civilização humana comum que começa a plasmar-se no mundo de nossos dias (RIBEIRO, 1975a: 40). Assim, Darcy reúne dois elementos essenciais encontrados na “perspectiva evolucionista clássica” aqui abordada, sejam eles: (1) a noção e classificação de escalas de tempo, através de conceitos faseológicos, que pretendem reconstituir analiticamente a história da humanidade; e (2) a 13 Cf. RIBEIRO, 1975a: 38. concepção de uma filosofia da história que prescreve as condições do próprio desenvolvimento das sociedades. Segundo Darcy Ribeiro, as etapas da evolução sociocultural representam, em última instância, o esforço científico antropológico de conhecimento e ordenamento da realidade histórica de acordo com critérios com pretensões de objetividade e generalidade, justificando assim para o autor, “o apelo a estudos clássicos sobre a evolução sociocultural que abordam o problema globalmente, muitos dos quais têm, ainda hoje, um flagrante valor de atualidade” (RIBEIRO, 1975a: 14). Semelhante a Tylor, Darcy projeta uma visão sincrônica da evolução sociocultural, representada nos “processos civilizatórios singulares”, como uma análise de diversas sociedades em suas formações relativas num dado período de tempo, como “movimentos históricos concretos de expansão, que vitalizam amplas áreas, cristalizando-se em diversas civilizações” (RIBEIRO, 1975a: 42). Por outro lado, Darcy empreende uma visão diacrônica que procura situar todas as sociedades humanas no continuum de seus percursos evolutivos, através de “processos civilizatórios gerais” que significa a própria evolução sociocultural “que tem um caráter progressivo que se evidencia no movimento que conduziu o homem da condição tribal às macro-sociedades nacionais modernas” (RIBEIRO, 1975a: 42). A chave explicativa “tempo-história” é um dos aspectos mais pertinazes da recepção e interpretação de Darcy Ribeiro sobre a “perspectiva evolucionista clássica”, objetivando realizar a ponte entre o plano contra- factual, imbricado nas representações e classificações sobre tempos distintos – passado, presente e futuro –, mas interconectados, e o plano factual, histórico, da investigação antropológica que consiste na tentativa de esboçar posteriormente uma “antropologia dialética”14. CONCLUSÃO Nos empenhamos em analisar possíveis desdobramentos do evolucionismo antropológico, enquanto matriz de pensamento, presente na obra de Darcy Ribeiro, bem como suas conexões com os autores dos “estudos 14 Sobre a proposta de “Antropologia Dialética” de Darcy Ribeiro, cf. RIBEIRO, 1975b: 18. clássicos de antropologia”, Tylor, Morgan e Frazer. Em relação aos “estudos clássicos de antropologia”, Darcy Ribeiro apresenta tanto afinidades teórico- metodológicas quanto discrepâncias analíticas, que só podem ser observadas por meio de uma tentativa de comparação de suas perspectivas, no que se refere à atenção sobre a recepção e interpretação de Darcy sobre as obras de Morgan, Tylor e Frazer. Essa tentativa de comparação revela suas proximidades e distanciamentos, ressalta as sutilezas e detalhes que muitas vezes são obscurecidas pelos rótulos de “evolucionistas”. A comparação entre o “pensamento antropológico clássico” e o pensamento darciano permite verificar a dificuldade de simplesmente rotularmos Darcy Ribeiro de “neo- evolucionista”, como se este autor correspondesse num contexto posterior de produção intelectual, à mesma tradição de pensamento dos evolucionistas. Discutimos que as perspectivas de Morgan, Tylor e Frazer possuem semelhanças referentes à vinculação entre escalas de tempo representadas e classificadas como estágios e a noção de uma filosofia da história, a adoção de um método comparativo de análise, e a interpretação da “cultura” como um fenômeno universal e ligado substantivamente ao processo civilizatório. Mas também apresentam diferenciações analíticas quanto ao escopo de suas propostas, na argumentação sobre os percursos evolutivos da história humana como um movimento mais ou menos uniforme, ou mesmo na própria sistematização de conceitos e noções acerca da evolução sociocultural. Ao analisar estas obras, Darcy Ribeiro parece problematizar a história da humanidade em seus tempos passados, que explicariam o presente, e contribuiria na projeção de um futuro, de uma “civilização humana”, que compreenda formações socioculturais específicas em seus percursos evolutivos relativos a constituição de suas culturas, como caminhos possíveis, que se aceleram ou se retardam, que vão e vêm, segundo as particularidades históricas de cada povo, como um ente que exista para si mesmo. BIBLIOGRAFIA CASTRO, Celso. Apresentação. In: ______. Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, pp.7-40. CHILDE, V. Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da antropologia. Petrópolis: Vozes, 2007. FRAZER, James George. O escopo da antropologia social. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, pp.101-127 MEGGERS, Betty J. Prefácio à edição norte-americana. In: RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatório: etapas da evolução sociocultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975a, p.9-15. MORGAN, Lewis Henry. A sociedade antiga. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.41-65. RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatório: etapas da evolução sociocultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975a. ______ . Os Brasileiros: Teoria do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975b. SAPIR, Edward. Cultura autêntica e espúria. In: PIERSON, Donald. (Org.). Estudos de Organização Social. São Paulo: Martins, 1970. TYLOR, Edward Burnett. A ciência da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, pp.67-99. ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Reconhecer o fenômeno religioso como universal, intrínseco a toda cultura e a todo povo. > Descrever como os fenômenos religiosos são investigados pelas ciências, especificamente pela antropologia. > Identificar as divergências e a complementaridade do fenômeno religioso entre as religiões desérticas e agrárias. Introdução A crença em poderes sobrenaturais é intrínseca à humanidade. Os seres humanos são seres religiosos — independentemente dos porquês, a busca para além de si manifesta-se nas inúmeras expressões religiosas do mundo todo. Tanto no passado remoto quanto no presente futurista, existem características que demonstram o caráter da busca transcendental (ou imanente) e de suas complexas manifesta- ções religiosas. Essa complexidade é vista tanto nos rituais antropofágicos e nos sacrifícios de animais quanto nas cerimônias religiosas simbólicas. O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa Valter Borges dos Santos Na obra O ramo de ouro, Sir James George Frazer, autor clássico daantropologia da religião, demonstrou as múltiplas manifestações religiosas e as caracterizou de forma a enfatizar o fio condutor que interliga, no tempo e no espaço, um fenômeno permanente e constante (FRAZER, 1982). Independentemente da forma manifesta e da evolução das manifestações desse fenômeno, essas múltiplas expressões religiosas revelam a atualidade das lendas e dos mitos antigos, bem como a bru- talidade atual de rituais arcaicos, sugerindo que religião e magia acompanham a humanidade em seu trajeto histórico, desde suas origens, quando os homens se distanciaram dos animais na busca pela consciência de si mesmos. Neste capítulo, falaremos sobre a universalidade do fenômeno religioso, expli- cando como se dá a investigação do fenômeno religioso. Além disso, trataremos do fenômeno religioso nas religiões desérticas e agrárias. A universalidade do fenômeno religioso Logo no início da obra Magia, ciência e religião, Bronislaw Kasper Malinowski afirma que “[...] não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião nem magia” (1984, p. 19). Ao seu encontro, segundo Jorge (1998, p. 11), o filósofo Henri Bergson afirmava que “[...] nunca existiu sociedade sem religião”. Seja nas sociedades primitivas, seja na contemporaneidade, as manifestações religiosas são permanentes. “No decorrer dos séculos, desde as épocas líticas até a presente era da informática, o homem pôde conhecer e vivenciar, há um que, por sua universalidade e permanência histórica, se sobrepõe: fenômeno religioso” (JORGE, 1998, p. 7). O fenômeno religioso se mostra, “[...] marca sua presença, de modo uni- versal e constante” (JORGE, 1998, p. 11). Há estudos e pesquisas sobre o fenô- meno religioso em Frazer, Durkheim, Marrett, Hubert, Mauss, Spencer, Lowie, Malinowski, Radcliffe-Brown, Lévi-Strauss, Firth, Evans-Pritchard, para citar apenas alguns. Em suma, “[...] os antropólogos, em geral, concordam que a religião é formada por um sistema de crenças e práticas e que todas as socie- dades possuem a sua ‘visão do universo’” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 151). Para compreender as possíveis causas do fenômeno religioso, Malinowski (1984) argumenta que, nas sociedades primitivas, existiam dois componentes inseparáveis, mas perfeitamente distintos, como possíveis explicações que conduzem ao fenômeno religioso: o sagrado e o profano, ou o domínio da magia e da religião e o da ciência. Há uma associação intrínseca entre o fenômeno social que mobilizava as sociedades primitivas para o fenômeno religioso. Segundo, Malinowski (1984, p. 19, acréscimo nosso), é no domínio do sagrado que se encontra o fenômeno religioso: “[d]e um lado, encontram- O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa2 -se os atos e as práticas tradicionais, que os nativos consideram sagrados... associados a crenças em formas sobrenaturais”; de outro lado, está a ciência rudimentar, ou o profano. No domínio do sagrado, encontramos o fenômeno religioso. Marconi e Presotto (2001, p. 151, acréscimo nosso) ressaltam que: [...] são dois os elementos constitutivos da religião: crença e ritual [...] somente a crença não basta para formar uma religião, deve estar associada à prática. [...] [O entendimento de crença, ou fé,] consiste em um sentimento de respeito, submissão, reverência, confiança e até de medo em relação ao sobrenatural, ao desconhecido. [...] [Sobre o ritual, ou a prática,] trata-se da manifestação dos sentimentos por um ou vários indivíduos, em qualquer meio, através da ação [...] de caráter religioso ou mágico. De fato, o que move as manifestações religiosas é o sobrenatural. Ele é o princípio ativo que mobiliza os seres humanos como reação a “[...] tudo aquilo que escapa aos sentidos do homem, que foge à compreensão humana, a observação e ao entendimento” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 152). Está além da dimensão humana e é “[...] considerado o cerne da religião, a base dos sistemas religiosos” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 152). Eles podem ser imaginados pelo ser humano como seres, entidades, forças e alma dos mortos na forma de anjos, santos, demônios, fadas, espíritos, almas, mana ou espectros. Os seres residem em lugares diferentes; as forças, no universo, e as almas dos mortos ou espectros continuam membros da sociedade. Em todas as expressões religiosas, encontramos os cultos com variações estruturais, organizacionais e de realização em todas as épocas e os lugares. De acordo com Marconi e Presotto (2001, p. 153), os objetos sagrados que compõem o culto são “[...] adorados, venerados ou utilizados nos rituais... compreende imagens, objetos rituais, máscaras etc.”. A representação dos deuses egípcios ou dos orixás do candomblé são exemplos de imagens usados no culto. Já os atabaques e colares nas religiões africanas são exemplos de objetos rituais. As máscaras “[...] simbolizam autoridade, prestígio ou tem efeitos medicinais” e são “usadas como disfarce nos mais diversos rituais” como a Diablada no Peru e as máscaras tradicionais em algumas religiões africanas (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 153). No geral, as formas de ritual possuem variações conforme a organização e o tipo de culto, “[...] consistem em atos religiosos como rezar, cantar, dançar aos deuses, ofertar coisas, fazer sacrifícios” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 153). O autores realçam três formas principais de ritual: as orações, as oferendas O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa 3 e as manifestações. Há rituais com cânticos e danças nos rituais para chover, para plantio, colheita, contra epidemias, etc. Nos rituais, também há, pan- tomimas, rogações e atos de magia. Outro tipo de rito comum entre muitas manifestações do fenômeno religioso são os ritos de passagem (ou transição). Esses ritos aparecem “[...] quando ocorrem importantes modificações no status social” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 153), como por ocasião do nascimento, da puberdade, do matrimônio e da morte. Nas religiões, nenhum ritual, culto, rito e cerimônia pode ser realizado sem levar em conta os oficiantes, pessoas preparadas e consagradas, muitas vezes, desde tenra idade para ocupar esses cargos. Podem ser sacerdotes, como os sacerdotes brâmanes, na Índia; reis divinos, como o Dalai-Lama, que é rei-sacerdote do Tibete; chefes ou ministros religiosos, como ou pajé e o pai de santo no Candomblé; especialistas, como os xamãs entre os Trobriandeses; e Oráculos, como Oráculo de Delphos. Os locais de realização das celebrações cúlticas, ritualísticas e cerimonias são chamados de santuário. Consideradas sagradas, essas construções é onde se queimam incensos, acendem velas e são realizadas orações. De acordo com Marconi, Presotto (2001, p. 158, acréscimo nosso): [P]odem estar vazios, abrigar objetos de culto ou se constituir na morada fixa ou temporária de deuses e espíritos. Templos, casas, cidades, sepulturas, estábulos, árvores, objetos, pedras, animais e até cacos de cerâmica podem ser considerados santuários. [...] [Além do santuário, existem] locais e acidentes geográficos que constituem a morada definitiva ou temporária de espíritos ou deuses. [...] [São os lugares sagrados.] Montes, picos de montanhas, rochas, bosques, árvores, rios, lagos podem ser considerados sagrados, e, às vezes, até o caminho por onde passou um rei divino (Tibete). Entre os dois domínios que habitam as sociedades primitivas, o sagrado e o profano, Marconi e Presotto (2001, p. 164, grifos e acréscimos nossos) alertam que não pode haver confusão entre religião e magia, uma vez que “[...] a religião implica a crença em seres espirituais, deuses, o sobrenatural, sendo a oração a técnica usada pelos adeptos para relacionar-se com eles [...] [enquanto] a magia não recorre aos seres espirituais, [mas vale-se] de técnicas para controlar os poderes sobrenaturais”. Outra diferenciação é o caráter das atitudes, enquanto “[...] a atitude religiosa é de humildade, submissão, reverência e adoração [...] [a atitude do mestre da magia]é de arrogância e autoconfiança, de compulsão, ou seja, coação sobre as forças da natureza (animismo, animatismo)” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 164, acréscimo nosso). O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa4 Para Marconi e Presotto (2001, p. 162) “[...] a magia, da mesma forma que a religião, deriva da crença na existência de poderes sobrenaturais, só que faz apelos aos espíritos”. As ideias de métodos e influência, em Kessing, de controle do sobrenatural, em Hoebel e Frost, e de conjunto, em Mauss, caracterizam a magia como “[...] tipo de técnica para controlar a natureza, a fim de obter coisas ou precaver-se contra forças misteriosas [...] praticada por alguns indivíduos, com objetivo específico” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 162). As manipulações do feiticeiro, ou mago, sobre os poderes sobrena- turais são feitas por meio de “[...] ações, objetos mágicos e fórmulas verbais apropriadas (encantamentos), os quais têm poderes intrínsecos ou estes lhes são atribuídos pelo mágico” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 162). Existem vários tipos de magia: a magia analógica (ou imitativa), a magia contagiosa e a magia simpática. Essas três formas são as mais comuns. Seja na crença em produzir um efeito sobre o ser humano ao simular, em um objeto, o que se queira que ocorra com a pessoa (magia analógica); seja na crença de contágio no ser humano quando em contato com as coisas, em que o dono é atingido pelo objeto (magia contagiosa); seja no exercício de influência sobre o outro por meio do poder mágico (simpatia), a magia está presente em vários fenômenos religiosos no mundo. Outra característica importante da magia é a possibilidade de “[...] ser empregada com a finalidade de proteger o indivíduo ou grupo, em determi- nadas circunstâncias: na guerra, na caça, em viagem, nas plantações, nos negócios, no amor etc.” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 163). Com relação às designações de magia branca e negra associando-as aos adjetivos benéficas e maléficas, respectivamente, para além dos preconceitos associadas à cor, é importante observar que “[...] nem sempre há muita diferença entre elas” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 163), podendo ser simultaneamente maléficas e benéficas. O reconhecimento da universalidade do fenômeno religioso no tempo e no espaço denota o quão importante são as formas de olhar para a diver- sidades das múltiplas manifestações religiosas. Todas elas têm mais em comum entre si do que se supunha. Portanto, distanciar-se de concepções com pretensões à hierarquização dos fenômenos religiosos contribui para a superação da intolerância religiosa e para o desenvolvimento de uma cultura de diálogo inter-religioso, principalmente em uma sociedade com a presença do pluralismo de religiões. O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa 5 Investigação antropológica do fenômeno religioso Agora, vamos nos aprofundar nas teorias que abordam o fenômeno religioso a partir de um fio condutor: as causas de suas origens. As teorias psicológicas e sociológicas foram largamente utilizadas para explicar o surgimento da vida religiosa. Porém, há várias outras teorias formuladas pelos antropólogos e cientistas de outras áreas do conhecimento que também se debruçaram no estudo do fenômeno religioso. Há, segundo Ribeiro (2019), cinco campos de interesse dos estudos da religião. As teorias são de orientações humanistas, psicológicas, sociológicas, político-econômicas e antropológicas. Elas também podem ser classificadas como teorias reducionistas e teorias não reducionistas. As teorias reducio- nistas são divididas em (RIBEIRO, 2019): � a religião como projeção subjetiva, em Feuerbach; � a religião como alienação, em Karl Marx; � a religião como neurose, em Freud; � a religião como sistema de controle social, em Voltaire; � a religião como projeção social, em Durkheim; � a religião como sistema sociocultural, em Weber (sistema cultural) e em Geertz (funções social e psicológica); � a religião como violência; � a religião como texto. Por sua vez, as teorias não reducionistas da religião são classificadas, por Mircea Eliade, em duas categorias: a primeira como “a obsessão das origens”, ligada às ideias de origem e de constituição da religião; e, a segunda, como “eliadiana” (RIBEIRO, 2019). As teorias que investigam o fenômeno religioso a partir de suas origens são as teorias psicológicas e teorias sociológicas. As teorias psicológicas tentam “[...] explicar a religião tomando por base os sentimentos, uma vez que ela impregna o pensamento e as emoções das pessoas” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 160). Entre as teorias psicológicas, temos: � mito natural; � animismo (alma); � animatismo; O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa6 � manismo; � magia; � totemismo. Diferentes e divergentes das teorias psicológicas, as teorias sociológicas da religião entendem a religião como fenômeno social, coletivo. Dukheim, Fustel de Coulange, R. Smith, Marcel Mauss e Radcliffe-Brown são seus prin- cipais teóricos. A teoria sobre o sagrado e profano, elaboradas por R. Smith e Durkheim, é a principal teoria sociológica da religião. O sagrado e o profano Segundo Malinowski (1984, p. 19), no estudo das sociedades primitivas, foram identificados “[...] dois domínios perfeitamente distintos, o sagrado e profano; por outras palavras, o domínio da magia e da religião e o da ciência”. Tudo aquilo, na vida prática, ligado ao sagrado era feito com “[...] reverência e temor, rodeados de proibições e normas especiais de comportamento” (MALINOWSKI, 1984, p. 19). Era o campo da vida ligado ao sobrenatural, com destaque para a magia. Por outro lado, no campo do profano, há a observação sistemática, que conduziu, mesmo entre os primitivos, à produção de conhecimento, ainda que rudimentar e arcaico, de arte ou ofício, em que a capacidade racional e o discernimento promoveram acúmulo de saberes cuja regularidade nos ajudou no suprimento da vida. Na busca por uma teoria central no estudo do fenômeno religioso, há, atualmente, entre os antropólogos, a utilização das teorias psicológi- cas e sociológicas, como Malinowski demonstra na obra Magia, ciência e religião (1984). Nessa obra, o antropólogo apresenta como se deu, cronologicamente, o desenvolvimento das bases teóricas do estudo antropológico da religião. Animismo Quando fundamenta que o começo da vida religiosa tem uma estrutura fundada no animismo, Malinowski (1984, p. 20) cita que foi Edward Tylor quem estabeleceu “[...] as bases do estudo antropológico da religião”. Nessa crença, os homens primitivos tiveram de se deter em temas importantes, como a O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa 7 separação entre corpo e alma e a imortalidade da alma e seu poder sobre os seres vivos após a morte. Além disso, associavam a existência da alma aos seres e objetos animados. Essa teoria foi criticada por estudos etnográficos que demonstraram que “[...] o selvagem estava mais interessado no que pescava e no que cultivava [...] do que matutar em sonhos e visões” (MALINOWSKI, 1984, p. 20). Foi de Sir James Frazer (1982) a formulação de uma concepção mais ampla no estudo antropológico do começo da vida religiosa. Ele formulou três problemas principais: 1. a magia e sua relação com a religião e a ciência; 2. o totemismo e o aspecto sociológico da fé primitiva; 3. os cultos de fertilidade e vegetação. Animatismo Em O ramo de ouro, Frazer (1982) assevera que o homem primitivo, percebendo a impossibilidade do uso da mágica no controle direto sobre os fenômenos da natureza, passou a pedir ajuda para seres sobrenaturais, diferenciando magia (controle direto da natureza) de religião (controle indireto da natureza), por meio dos seres superiores (MALINOWSKI, 1984). A diferenciação entre magia e ciência foi a teoria na qual se assentaram os estudos antropológicos modernos da religião, cujos expoentes foram Preuss, Marret e Hubert e Mauss,que, na formulação de suas teorias, ora refutavam Frazer, ora concordavam com suas proposituras na aproximação que fez entre magia e ciência. Ao demonstrar as divergências conceituais entre magia e ciência, os pensadores mencionados demonstraram que a ciência: [...] nasce da experiência [...] é norteada pela razão e corrigida pela observação [e se] assenta na de forças naturais [...] [ao passo que a magia] é construída através da tradição [...] é oculta, ensinada através de misteriosas iniciações [...] transmi- tidas hereditariamente [...] desponta na ideia de um determinado poder místico e impessoal, em que a maior parte dos povos crê (MALINOWSKI, 1984, p. 21–22, acréscimo nosso). Malinowski (1984, p. 22) afirma que tanto entre os aungquiltha quanto entre os wakan, orenda manitu, esse poder é denominado mana. Essa ideia é tratada por eles como “[...] quase universal, detectável onde quer que a magia prospere [...] uma crença numa força sobrenatural e impessoal [...] originam toda a série de acontecimentos realmente importantes no domínio O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa8 do sagrado”. Assim, a essência da religião pré-anímica foi o mana. A explicação do conceito de mana se dá a partir do enfoque das teorias sociológicas, em que Durkheim (1965) associa mana com o totemismo. Totemismo A relação entre pessoas aparentadas e que fazem parte de um mesmo grupo com objetos naturais ou artificiais foi uma teoria construída por Frazer para demonstrar as práticas realizadas por determinados grupos e seus respec- tivos e específicos sistemas de sentidos religiosos. O totemismo associa o interesse pela natureza e o desejo de controlá-la, de maneira menos intensa, o desejo de controlar objetos inanimados e aqueles fabricados pelos homens. Eles queriam exercer controle, especificamente, segundo Malinowski (1984, p. 22–23, acréscimo nosso), sobre: [...] espécies de animais e plantas utilizadas como principal alimento ou de qualquer modo comestíveis ou como animais ornamentais, é atribuída uma forma especial de “reverência totémica”. [...] [Socialmente, o totemismo] consiste na subdivisão da tribo em unidades menores, que em antropologia se designam por clãs, tribos, sibs ou fratrias. Dessa forma, não se trata do filosofar sobre sonhos e alucinações, mas, sim, do “[...] misto de ansiedade de caráter utilitário em relação aos objetos mais necessários” (MALINOWSKI, 1984, p. 23) à sua sobrevivência enquanto grupo. Nessa atitude totêmica, compreende-se que “[...] a religião primitiva estaria mais próxima da realidade e dos interesses imediatos da vida prática dos selvagens do que parecia na faceta ‘anímica’” (MALINOWSKI, 1984, p. 23). Assim, os primitivos, ao se associarem em clãs, revelaram a notabilidade do “[...] aspecto sociológico em todas as formas primitivas de culto [...] o selvagem encontra-se na dependência do grupo [...] tanto no que se refere à cooperação prática como à solidariedade mental” (MALINOWSKI, 1984, p. 23). Com isso, Malinowski (1984) demonstra a relação próxima entre cultos e rituais primitivos com os anseios práticos da manutenção da sobrevivência, bem como com a satisfação de necessidades mentais. Religioso e social Essa linha de pensamento era a mesma que Robertson Smith, pioneiro da antropologia da religião, já desenvolvia na elaboração de suas teorias. Mali- nowski (1984, p. 23) informa que o princípio que R. Smith seguia era o de “[...] O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa 9 que a religião primitiva ‘era essencialmente uma questão da comunidade e não dos indivíduos’ e se tornou um Leitmotiv da investigação moderna”. Durkheim (1965) constata que o religioso é convergente (igual) ao social. Da mesma forma, entende que o princípio totêmico é convergente com o mana e as divindades do clã. Esse pensamento teve influência nos teóricos Jane Harrison e Cornford. Cultos de vegetação e fertilidade Nos estudos da religião, ainda nos falta abordar os cultos de vegetação e fertilidade na contribuição de Frazer. Conforme Malinowski (1984, p. 24), a partir do ritual do bosque de Nemi na obra O ramo de ouro, Frazer demonstra a variedade de cultos mágicos e religiosos idealizado pelos homens com a finalidade de: [...] controlar o trabalho de fertilização dos céus e da terra; do sol e da chuva, deixando-nos a impressão de que a religião primitiva pulula de forças da vida selvagem, com a sua beleza e crueza, com sua exuberância e um vigor tão violentos que de vez em quando originam atos suicidas de autoimolação. Experiências da morte nas sociedades primitivas A morte tem uma importância especial entre os primitivos, uma vez que é “[...] um passo para a ressurreição” (MALINOWSKI, 1984, p. 24). Essa relação morte- -ressurreição, decadência-renascimento, é denominada perspectiva vitalista da religião. Crawley, Van Gennep e Jane Harrison evidenciaram que “[...] a fé e o culto emergem das crises da existência humana” (MALINOWSKI, 1984, p. 24). A vida, em sua especificidade, que compreende concepção, nascimento, adolescência, casamento e morte, tem reverberação na religião, uma vez que a religião se ocupa da sacralização desses aspectos da vida. A aflição da escassez involuntária e as fortes experiências afetivas movimentam-se em direção ao culto e à crença. É o desejo irrealizado que está na origem da arte e da religião, segundo Harrison (apud MALINOWSKI, 1984). Conhecimento e magia primitivos Ao tratar do problema do conhecimento primitivo, conforme indica Mali- nowski (1984), há inúmeros autores, com destaque para as inferências de Lévy-Bruhl, que afirmaram que os nativos primitivos estavam integralmente mergulhados em um estado de espírito místico, sem capacidade de abstração O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa10 nem de raciocínio. Discordando radicalmente deles, aparece J. L. Myres, que apresenta o aspecto racional aplicado pelo primitivo ao seu cotidiano como independente do sagrado. Exemplo disso seriam as “[...] tribos melanésias e papua-melanésias da Nova Guiné Oriental e arquipélagos circundantes” (MALINOWSKI, 1984, p. 29), que demonstram que há atividades econômicas e de produção. Os melanésios não são dominados pela magia, mas detêm e utilizam conhecimento empírico e racional. Eles conseguem produzir colheitas suficientes e, ainda, armazenar reservas. Junto a isso, temos a magia: “[...] uma série de ritos executados anualmente nas hortas, em estreita observância da sequência e da ordem” (MALINOWSKI, 1984, p. 29). A liderança do trabalho hortícola está nas mãos do feiticeiro. A magia é indispensável para o êxito nas atividades agrícolas. O nativo sabe da importância do conhecimento racional e previsível, mas também conhece os agentes e as forças que são imprevisíveis e fora de sua governabilidade, causas externas incontroláveis pela ação humana. Para controlá-los, recorre à magia. Os primitivos se viam, ao mesmo tempo, em duas situações inusitadas e cartesianamente delineadas: a possibilidade do controle (pela via racional) e a incapacidade sobre o incontrolável (apelo à magia). Daí encontramos as conotações sociais do trabalho e as conotações sociais do ritual, ambas na função do feiticeiro. Tanto os sujeitos pré-lógicos quanto os lógicos não se despojam de seu conhecimento ou de sua razão para se apegar à segurança e ao conforto da magia. Porém, a magia está presente, mesmo que haja co- nhecimento e domínio das técnicas do trabalho, nos locais ou nas situações que representem perigos e incertezas, justamente para garantir segurança e bons resultados. Tudo a “[...] fim de dominarem os elementos do acaso e da sorte” (MALINOWSKI, 1984, p. 32), cujas fronteiras da dualidade de causas (naturais e sobrenaturais) é tênue. Saúde e patologias A saúde é o estado natural para os melanésios, conforme Malinowski (1984), e a morte natural faz parte da vida; porém, entendem que as mortes não naturais se devem à feitiçaria, e o destino dasalmas dos falecidos percorrem direções diferentes. Para eles, as doenças podem ser tratadas, mas a morte é considerada um fenômeno incontrolável, então sujeito à destruição do corpo, como a morte por velhice, por exemplo. Estamos, de novo, na esfera do controlável e do incontrolável como ori- gem do fenômeno religioso. Além da causa natural do padecimento menor e maior, “[...] há o domínio da feitiçaria na qual é-lhe atribuída a maior parte dos O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa 11 casos de doença e morte” (MALINOWSKI, 1984, p. 33). Porém, havia um filtro segundo o qual os primitivos designavam o que era feitiçaria ou causa natural (a perspectiva pessoal) como tendência afetiva daquele que é diretamente afetado pela saúde e morte. De qualquer forma, dos “selvagens” primitivos ao mais racional dos homens civilizados, “[...] a saúde, a doença, a ameaça de morte pairam numa neblina emocional incerta” (MALINOWSKI, 1984, p. 34), e todos se beneficiam ora do conhecimento, ora da magia. Agarram-se, porém, a última sempre que têm de reconhecer a impotência de seu conhecimento e de sua técnica racional, caracterizando uma validade universal. A lógica dos primitivos pode ser assentada nas dualidades substância e atributo, causa e efeito, fundamental e secundário. “Tudo isso levaria exatamente à mesma conclusão: o homem primitivo é capaz de observar e pensar, e possui, integrados na sua linguagem, sistemas de conhecimento metódicos, só que rudimentares” (MALINOWSKI, 1984, p. 35). Malinowski (1984) conclui que existem, nas comunidades primitivas, os princípios da ciência, mesmo que rudimentares. Fenômeno religioso no domínio do sagrado Ao tratar do domínio do sagrado, Malinowski (1984) afirma que ele não é exclu- sivamente “veneração do espírito” nem “culto dos antepassado”, nem “culto da natureza”. Embora possua elementos do animismo, animatismo, totemismo e fetichismo, de acordo com Malinowski (1984, p. 39), não é exclusivamente nenhum desses ismos: “A religião não se prende a qualquer objeto ou classe de objetos, embora ocasionalmente possa tocar ou venerar todos”. Malinowski (1984), ao tratar dos atos criadores da religião, demonstra que ela está relacionada com fases fisiológicas da vida humana. Mas, não só isso, inclui também “[...] suas crises, como a concepção, a gravidez, o casamento e a morte, [que] constituem o núcleo de inúmeros ritos e crenças” (MALINOWSKI, 1984, p. 40, acréscimo nosso). O formalismo e o ritualismo são estabelecidos no início da vida a partir de complicados entrelaçamentos entre crenças e ritos. Na concepção, há ritos cuja finalidade é em favor da vida no parto, evitando a morte. Já na cerimônia sobre o nascimento, o ato da apresentação não tem finalidade específica, apenas o ato em si, o fim em si, então a comemoração, apenas, uma espécie de ação de graças. O rito na concepção e a celebração no nascimento permite- -nos distinguir magia de religião: “[...] enquanto no ato mágico a ideia e o objetivo subjacentes são sempre claros, evidentes e definidos, na cerimônia religiosa não existe qualquer objetivo vocacionado para um determinado acontecimento subjacente” (MALINOWSKI, 1984, p. 41). O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa12 Cerimônias de iniciação As cerimônias de iniciação permitem compreender a lógica na religião pri- mitiva. Após passar por um período logo de (1) reclusão para a preparação, inicia-se (2) a iniciação propriamente dita, com várias provas; em seguida, passa pelo processo do (3) ato de mutilação do corpo. Segundo Malinowski (1984, p. 41), “A prova está normalmente associada à ideia de morte e renas- cimento do iniciado, que por vezes tem de desempenhar uma representação mimética”. No segundo momento, há “[...] a instrução do jovem no mito e tradição sagrados” (MALINOWSKI, 1984, p. 41). Conforme o autor, para além da prova e do ensino da tradição, esse é um rito de passagem para o estado adulto, no qual: [...] o jovem toma conhecimento das tradições sagradas sob condições de preparação e provação extraordinariamente impressionantes, e, à mercê do poder sancionatório de seres sobrenaturais — a luz da revelação tribal projeta-se sobre ele, afastando as sombras do medo, da privação e da dor física (MALINOWSKI, 1984, p. 42). A naturalização desses procedimentos na tradição fortalece a coesão do grupo, afastando o risco de desagregação e desaparecimento existencial. Para Malinowski (1984, p. 43), “[...] a fidelização à tradição é a mais importante, e uma sociedade que torna sagrada a sua tradição conseguiu uma incalculável superioridade de poder e continuidade”. A sacralização das crenças e práticas e sua consequente rotulação sob a insígnia do sobrenatural se tornam “[...] um ‘valor de sobrevivência’ para o tipo de civilização em que se tenham de- senvolvido [...] serve para imprimir nas mentes de cada geração esse poder e esse valor” (MALINOWSKI, 1984, p. 43), mantendo a tradição que permite a coesão social da tribo. A religião faz a “sagração de uma crise da vida” e, mais que isso, ao associar um dos aspectos naturais de maturidade de um indivíduo, demarcando no tempo, à transposição da transição de um fato fisiológico individual para uma transição social: [...] acrescenta à maturidade física a vasta concepção de entrada na idade adulta, com seus deveres, privilégios, responsabilidades, acima de tudo, com o seu conhe- cimento da tradição e a comunhão com coisas e seres sagrados. [...] [Há, nesses ritos religiosos, um processo criativo, que] determina não só um acontecimento social na vida do indivíduo, mas também uma metamorfose espiritual, ambos associa- dos ao fenômeno biológico, mas transcendendo-o em importância e significado (MALINOWSKI, 1984, p. 43, acréscimo nosso). O fenômeno religioso e o surgimento da vida religiosa 13 Propagação e nutrição Malinowski (1984) elenca, ainda, a propagação e a nutrição entre as preocu- pações vitais do homem. O ato sexual é considerado uma das principais fonte da religião, pois a continuidade desse ato, uma vez sacralizado, proporciona continuidade e preservação do grupo. Dessa forma, as celebrações cúlticas sexuais “[...] exprimem uma atitude de reverência para com as forças da geração e da fertilidade no homem e na natureza” (MALINOWSKI, 1984, p. 44–45). Além disso, permite o ideal de castidade e a santificação da ascese. A nutrição, por sua vez é um “[...] ato rodeado de etiqueta, de prescrições e proibições especiais e de uma tensão emocional geral” (MALINOWSKI, 1984, p. 45). O aspecto religioso em torno dos alimentos, que ultrapassa a aquisição, a mul- tiplicação e o armazenamento deles, é repleto de cerimônias. As comunidades expressam alegria na Providência, e, pela religião, estabelecem reverência ao valor do alimento, que ultrapassa suas características alimentares. É pelos alimentos que o homem primitivo percebe o ambiente que lhe rodeia e que lhe fornece, providencialmente, condições de sobrevivência. É o germe que, nas religiões mais evoluídas, “[...] dará origem à sensação de dependência da Providência, de gratidão e de confiança nela” (MALINOWSKI, 1984, p. 45). As atitudes de reverência feitas por meio do sacrifício e da comunhão providenciam a distribuição de alimentos. Totemismo como coesão Em continuidade ao tema da nutrição, a seletividade na escolha de alimentos pelo selvagem demonstra os interesses, os impulsos e as emoções de uma tribo, que se desdobram em um sentimento de natureza social (MALINOWSKI, 1984). O anseio para controlar as espécies perigosas levam à fé no poder sobre elas. É “[...] na espécie, na afinidade com ela, numa essência comum entre homem e animal ou planta” (MALINOWSKI, 1984, p. 48–49). Para Malinowski (1984, p. 49), o totemismo “[...] consiste num sistema de cooperação mágica, numa série de cultos práticos, cada qual com a sua base social, mas tendo todos um fim comum: proporcionar abundância à tribo”. O caráter compensatório do totemismo