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ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Sintetizar o processo evolutivo do ser humano e das sociedades. > Reconhecer a presença e a ausência da noção da transcendência no pensa- mento religioso e no pensamento científico. > Identificar as diversas fases da evolução: da colheita de frutas ao mundo moderno. Introdução A passos lentos, mas contínuos, o ser humano e as sociedades caminham em direção à dessacralização e à laicização, respectivamente. Os encontros e desen- contros desses polos opostos, primitivos e modernos, não significa, exatamente, uma ruptura, pois o processo ocorre pela assimilação do homo religiosus, que, por meio de experimentos, vai se reconstruindo e adaptando aos novos tempos, dessacralizados. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico Valter Borges dos Santos Como todo processo, ele não ocorre de forma abrupta, cartesiana: há vestígios antigos na modernidade que, na intersecção de mudanças, vão se preservando sob novas interpretações. Por isso, apesar do advento das novas tecnologias e da tentativa de substituir a divindade, o homem moderno ainda carrega aspectos do homo religiosus, que, latente, encontra dificuldades de se manifestar, pois há carência do impulso externo, das hierofanias, que é a ausência da percepção da divindade no cosmos, agora dessacralizado, opaco, vazio. Neste capítulo, falaremos do processo evolutivo do ser humano e das so- ciedades a partir do enfoque antropológico. Especificamente, explicaremos a presença e a ausência da noção de transcendência no pensamento religioso e no pensamento científico, bem como analisaremos as diversas fases da evolução: da colheita de frutas ao mundo moderno, em períodos étnicos. Da religião à ciência: caminhada evolutiva O pensamento evolucionista, que trata da evolução como explicação para a diversidade cultural, não está ancorado na célebre obra de Charles Darwin (1809–1882), A origem das espécies por meio da seleção natural, isto é, na evolução biológica. Essa ideia de Darwin, grandemente disseminada entre os europeus cultos, era, na verdade, pouco compreendida. A ideia de progresso evolutivo que pululava entre eles tinha como “[...] imagem mais comum uma ‘escada’ cujos degraus estão dispostos numa hierarquia linear” (CASTRO, 2005, p. 12). Esse pensamento linear progressivo era a ideia corrente, em meados de 1870, e, somado às descobertas arqueológicas na Inglaterra e na França, levou ao “[...] enorme alargamento do tempo histórico da espécie humana, para muito além dos cerca de cinco mil anos apontados pela tradição bíblica” (CASTRO, 2005, p. 12), e fez pensar que os seres humanos descendiam de uma espécie inferior, extinta há muito tempo. Evidentemente, Darwin influenciou teólogos, filósofos, políticos e antro- pólogos; porém, foi Herbert Spencer (1820–1903), filósofo inglês, que pro- vocou mais impacto entre os autores que estudavam o progresso humano, como Lewis Henry Morgan e Edward Burnett Tylor. Foi Spencer, de fato, quem popularizou o termo evolução, que Darwin somente usaria na 6ª edição de sua obra. Dessa forma, foi sob a influência de Spencer que uma única escala evolutiva ascendente, por meio de vários estágios, tornou-se a ideia central do evolucionismo na antropologia (ao contrário de Darwin, que não propu- nha qualquer direção em sua teoria, muito menos “progressos unilineares”) (CASTRO, 2005). A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico2 Longe de servir de base para ideias hierarquizadas, nas quais os antigos eram considerados inferiores, e os modernos, superiores, o evolucionismo não transforma a gigantesca diversidade cultural humana em uma lógica permeada pela sobrevivência dos mais fortes, mas na ideia de “[...] reduzir as diferenças culturais a estágios históricos de um mesmo caminho evolutivo” (CASTRO, 2005, p. 13). A ideia evolucionista, na antropologia, baseava-se no entendimento de que o desenvolvimento das sociedades humanas ocorreu em estágios su- cessivos. Segundo Castro, “[...] o postulado básico do evolucionismo em sua fase clássica era, portanto, que, em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e ascendente” (CASTRO, 2005, p. 14). Assim, a humanidade toda, obrigatoriamente, passava pelos mesmos estágios, se- guindo uma direção do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado. Morgan afirmava que a evolução era natural e necessária, argumentando que a humanidade teve um único início, que seus caminhos também foram únicos, por meios diferentes, mas uniformes, em todos os continentes, e muito semelhantes em todas as tribos e nações da humanidade, que se encontram no mesmo status de desenvolvimento (CASTRO, 2005). Nas palavras de Castro, uma “[...] unidade psíquica de toda a espécie humana, a uniformidade de seu pensamento” (CASTRO, 2005, p. 14). Essa definição era um contraponto a uma ideia anterior da antropologia, a de que havia origens diferentes e, portanto, uma hierarquia entre os humanos. Tylor refutava a ideia poligenista das múltiplas origens e a hierarquização entre as sociedades humanas e entendia ser “[...] tanto possível, quanto dese- jável, eliminar considerações de variedades hereditárias, ou raças humanas, e tratar a humanidade como homogênea em natureza, embora situada em diferentes graus de civilização” (CASTRO, 2005, p. 14). Apesar disso, quanto ao monogenismo, os autores tinham dificuldades de tratar sobre questões das múltiplas diferenças entre os humanos, e acabavam se contradizendo. Poligenismo é a concepção antropológica que entende que o ser humano tem sua origem em várias linhagens. Monogenismo, por sua vez, defende a ideia de que a origem do ser humano descende de um ancestral comum. Houve debates intensos sobre esses conceitos entre os antropólogos clássicos. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 3 O caminho evolutivo adotado pela antropologia clássica de Morgan, Tylor e Frazer oferecia uma visão museológica dos povos considerados exóticos, ou não ocidentais. Eles seriam “[...] representantes de etapas anteriores da trajetória universal do homem rumo à condição dos povos mais ‘avançados’; como exemplos vivos daquilo ‘que já fomos um dia’” (CASTRO, 2005, p. 14). Frazer, metaforicamente, entendia o selvagem como um tipo de “documento humano”, enquanto Morgan entendia que o cerne dos comportamentos hu- manos dos selvagens, especialmente da família humana, ainda se encontrava nos humanos considerados evoluídos, apesar dos estágios de evolução pelas quais a humanidade atravessou (CASTRO, 2005). Com a carência do desenvolvimento da arqueologia para elucidar dúvidas ou confirmar pressupostos, nessa época os estudos das sociedades avan- çavam de modo a permitir reconstruir a trajetória evolutiva da humanidade, por etapas, com base no estudo das sociedades menos desenvolvidas, como a dos aborígenes australianos. Isso permitia associar o comportamento dessas sociedades exóticas com as antigas, de modo a complementar os relatos greco-romanos. Frazer sintetizou esse pensamento quando relacionou as sociedades primitivas às contemporâneas, como em uma comparação entre crianças e adultos. Assim, nas palavras de Frazer, “[...] exatamente como o crescimento gradual da inteligência de uma criança corresponde ao crescimento gradual da inteligência da espécie [...] assim também um estudo da sociedade sel- vagem em vários estágios de evolução” (CASTRO, 2005, p. 15). Frazer admite a possibilidade de compreender o homem primitivo ao analisar o homem exótico de hoje. Dessa forma, para Frazer, a selvageria é a condição primitiva da humanidade (CASTRO, 2005). A antropologia evolucionista, portanto, apropria-se do método compara- tivo (já empregado na anatomia e na linguística) para contrastar as sociedades exóticas atuaise preencher as lacunas evolutivas da cultura humana, a fim de compreender as sociedades primitivas. Usando o método comparativo, portanto, foi possível considerar a variedade dos grupos humanos a partir das condições externas que fizeram o ritmo de evolução dos grupos humanos ser diferente (CASTRO, 2005). Para Tylor, nessa análise comparativa, primeiramente é necessário de- talhar e classificar as civilizações estudadas e estabelecer sua distribuição geográfica e histórica, verificando a relação entre elas. A ideia de progresso está profundamente enraizada em nossas mentes, a ponto de Tylor considerar A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico4 que “[...] reconstruímos, sem escrúpulos, a história perdida, confiando no conhecimento geral dos princípios do pensamento e da ação humana como um guia para pôr os fatos em sua ordem apropriada” (CASTRO, 2005, p. 15). Castro nos informa que há, ainda, outro elemento importante na concepção do evolucionismo das culturas: trata-se do conceito de sobrevivência. Tylor entende esse conceito como aspectos mentais que sobrevivem em novos formatos nas sociedades atuais em relação às sociedades antigas, ou seja, aspectos que evoluíram. São “[...] processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que, por força do hábito, continuaram a existir” (CASTRO, 2005, p. 15). Frazer diz que são lembranças de práticas materiais e mentais que ficam como fósseis nas culturas atuais: O estudo científico das “sobrevivências” autorizava o antropólogo a recorrer, portanto, não apenas às sociedades “selvagens”, como também à sua própria sociedade. Tal procedimento ampliava enormemente o campo de investigação, permitindo que se incorporasse à antropologia aquilo que se costumava designar como “folclore” (CASTRO, 2005, p. 16). De forma universalista, a antropologia evolucionista se pautava no chamado teste de recorrência, no qual, segundo Tylor, não se poderia atribuir ao acaso diversos relatos encontrados em várias sociedades geográfica e historicamente diferentes (CASTRO, 2005). Academicamente, havia críticas sobre as pesquisas feitas, quase exclusi- vamente em gabinetes, embora Morgan fizesse viagens etnográficas. A an- tropologia evolucionista acabou estigmatizada como armchair anthropology. Sem o mesmo prestígio que alcançou na segunda metade do século XVII, a antropologia evolucionista, nas letras de Morgan, ainda aparece, embora reformulada e adotando interpretações multilineares, com base das ideias de Marx, Engels, Leslie White, Julian Steward e do brasileiro Darcy Ribeiro. Embora reconhecendo sua importância para a compreensão da evolução do pensamento, tratando-se de uma natureza psicológica (portanto, também do imaginário), para Morgan, a religião traz dificuldades imensas. Para ele, “[...] as religiões primitivas são grotescas e, numa certa medida, ininteligíveis” (CASTRO, 2005, p. 24). Eliade fornece elementos esclarecedores sobre isso no livro O sagrado e o profano: a essência das religiões. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 5 Segundo Mircea Eliade, para o homem moderno, é difícil compreender o pensamento do homo religiosus, por conta de sua limitada compreensão das religiões exóticas, primitivas, mitológicas, antigas. A compreensão religiosa do homem moderno se restringe ao cristianismo, às conhecidas religiões mun- diais como hinduísmo, judaísmo, budismo e islamismo, em suas concepções contemporâneas. Essa restrição o impede de compreender as recorrências e sobrevivências do universo mental do homo religiosus. Embora a percepção existencial do homo religiosus não se restrinja aos livros sagrados, a pesquisa etnográfica permite conhecer o folclore de comportamentos de situações variadas de regiões europeias diferentes, recuperando a compreensão, ainda hoje, que denotaria “[...] um estado de cultura mais arcaico do que aquele testemunhado pela mitologia da Grécia clássica” (ELIADE, 1992, p. 79). É necessário compreender a situação existencial do mundo primitivo “[...] dos caçadores totemistas, das populações ainda no estágio da caça miúda e da colheita” (ELIADE, 1992, p. 80), ou seja, do homem imerso na sociedade primitiva, que caracteriza o homo religiosus. Vejamos, portanto, como Eliade percebe as sobrevivências e recorrências entre o homem primitivo e o homem contemporâneo, a partir da evolução do pensamento religioso ao pensamento científico. Eliade (1992) demonstra que essas duas cosmovisões estão presentes no homem contemporâneo, em que sagrado e profano se articulam como elemento psíquico que traz lembranças transcendentais, mesmo na modernidade da sociedade laica e do pensamento dessacralizado. As recorrências e sobrevivências entre o ser humano primitivo (reli- gioso) e o ser humano moderno (a-religioso) se entrecruzam, tendo o pensamento religioso como característica marcante das sociedades primitivas e como o pensamento inicial, que evolui para o pensamento científico. Essa evolução não substitui o pensamento religioso, mas o adapta conforme avança o processo de dessacralização na história. Assim, o caráter do pensamento científico está repleto de sugestões que revelam princípios, pistas, éticas e lógicas religiosas, em uma combinação não excludente, mas complementar, adaptativa. Embora se entenda que, no homem contemporâneo, haja choque entre as duas formas de pensar, há mais aproximações do que distanciamentos. Na próxima seção, veremos como a experiência religiosa demarcou o pensamento e o comportamento dos primitivos, imersos na cosmovisão do sagrado, isto é, na sacralização, a fim de entender sua evolução e sua adequação ao homem contemporâneo, dessacralizado. Nosso fio condutor serão os conceitos de recorrências e sobrevivências. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico6 Transcendência: entre o religioso e o científico A experiência religiosa, tema tratado por Rudolf Otto na obra Das Heilige (1917), é o escopo da análise de Mircea Eliade, da qual emprestamos o debate sobre a presença e a ausência da noção de transcendência no pensamento religioso e no pensamento científico. Eliade esclarece que o sagrado “[...] não era o Deus dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma ideia, uma noção abstrata, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestado na ‘cólera’ divina” (ELIADE, 1992, p. 12). O mysterium tremendum gera um sentimento de pavor e de temor diante do mysterium fascinans. Essas experiências são consideradas numinosas, porque são provocadas pela revelação de um as- pecto do poder divino. Diante do “totalmente outro”, o ser humano vê sua limitação, ao ponto da nulidade, em razão da grandiosidade da experiência da relação com o sagrado. Eliade identifica que a “[...] primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano” (ELIADE, 1992, p. 13). Dessa forma, a ideia de sagrado será sempre apresentada, como fez Eliade, em dualidade oposta com o profano. Para ilustrar a ideia de como o sagrado se mostra e manifesta, Eliade (1992) propõe o termo hierofania, que exprime que algo de sagrado se revela. Os múltiplos fenômenos religiosos, portanto, revelam as múltiplas hierofanias que ocorreram, e ocorrem, na história humana. Essas hierofanias, segundo Eliade (1992), podem ser interpretadas, pelos seres humanos primitivos, diferente- mente de como o ser humano moderno as interpreta, e de modo distinto, ainda, entre os primitivos e modernos de regiões diferentes de uma mesma época. Dessa forma, “[...] a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore — e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade” (ELIADE, 1992, p. 13). Quando os primitivos percebiam a manifestação do sagrado em pedras, por exemplo, não significava uma adoração/veneração à pedra: “[...] são hierofanias, porque‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere” (ELIADE, 1992, p. 13). Eliade (1992) esclarece que a manifestação do sagrado em objetos os sacraliza, de forma que se tornam um meio de contato com o sagrado, não o próprio, sem, contudo, mudar sua substância. Assim, para quem tem uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 7 Nesse sentido, diante do desejo de estar no cosmos em oposição ao caos, os primitivos buscavam viver o mais próximo possível do sagrado e dos objetos sagrados. Assim, sagrado e profano podem ser identificados como real e irreal para o primitivo, respectivamente. A busca, portanto, do primitivo está em “[...] participar da realidade, saturar-se de poder” (ELIADE, 1992, p. 14). Para ele, a realidade é transcendental. Analisar o pensamento do homem primitivo (homo religiosus) é compre- ender como ele se esforça para se manter o máximo de tempo possível em um universo sagrado. Mas não só. A comparação com seu contrário, o homem dessacralizado, permite identificar “[...] como se apresenta sua experiência total da vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive, ou deseja viver, num mundo dessacralizado” (ELIADE, 1992, p. 14). Dessa forma, é possível reconhecer a presença e a ausên- cia da noção da transcendência no pensamento religioso e no pensamento científico. Mircea Eliade (1992) apresenta dois mundos de pensamentos distintos: 1. o pensamento religioso, que se pauta naquele mundo cujo princípio se circunscreve na completude, na perfeição, conduzindo o homo religiosus a comportamentos que suprem a necessidade de voltar àquele tempo mítico; 2. o pensamento científico, que considera que a perfeição não está nos mitos, nas arquês, mas no futuro, e que a evolução se encontra nessa direção específica. A relação do ser humano com o cosmo, em sua totalidade, sempre foi o espaço privilegiado do sagrado, na maior parte da história humana, enquanto “[...] o mundo profano na sua totalidade, o cosmos totalmente dessacralizado, é uma descoberta recente na história do espírito humano” (ELIADE, 1992, p. 14, grifo nosso). Assim, no contraste, percebemos como o pensamento religioso evolui para o pensamento científico: a partir da dessacralização, ou afastamento do sagrado do cotidiano e do pensamento humano. Eliade (1992) caracteriza que o “fosso” oposto entre as dimensões do sagrado e do profano é enorme. Isso é perceptível em várias dimensões: no espaço sagrado, na construção ritual das casas, nas experiências no templo, nas relações do homem primitivo com a natureza, no universo dos utensílios, na consagração da vida e na própria sacralidade, que se desdobra em atribui- ções da própria vida como o trabalho, a alimentação e a sexualidade. Tudo isso, para o homem religioso, reveste-se de sacralidade, um sacramento, uma A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico8 forma de comunhão com o sagrado. Para o homem contemporâneo, trata-se de “um ato fisiológico — a alimentação, a sexualidade etc. — não é, em suma, mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus que ainda o envolva” (ELIADE, 1992, p. 14). Percebe-se, sensivelmente, que há dois “centros” que denunciam formas diferentes de se relacionar com a realidade. O conhecimento de cada um deles capacita o ser humano, conectado nessa trama, a lidar com a realidade, de modo que gravitam, em torno desses centros, modos específicos de pensar, agir, falar, etc., com todos os aspectos da vida que interagem com o ambiente envolvente. Nas palavras de Eliade (1992, p. 15), “[...] o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história”. Dessa forma, as dimensões existenciais do ser humano, isto é, o modo de pensar, o modo de ser — seja sagrado ou profano — dependem das diferentes posições que o homem conquistou no cosmos. Embora o homo religiosus tenha, como centro, o sagrado, seus compor- tamentos estão na mesma base do homem contemporâneo dessacralizado — ou seja, há um padrão de comportamento do ser humano que se aproxima, independentemente do tempo e do espaço em que vivem/viveram. Mesmo diante de suas condicionantes culturais, de obstáculos e de tabus, criam-se os pensamentos que lhe são verdadeiros: sagrado ou profano (ELIADE, 1992). Objetivando diferenciar a dimensão religiosa da profana, Eliade (1992) pro- põe renunciar, momentaneamente, às condicionantes culturais, econômicas e de organização social, para focar em uma dimensão de aproximações entre essas duas cosmovisões. “[E]ntre os caçadores nômades e os agricultores sedentários, há uma similitude de comportamento que nos parece infinita- mente mais importante do que suas diferenças” (ELIADE, 1992, p. 16), uma vez que vivem em uma mesma dimensão: o mundo sacralizado. Assim, segundo Eliade (1992, p. 16), “[...] do mesmo modo, damo-nos conta da validade das comparações entre fatos religiosos pertencentes a diferentes culturas: todos esses fatos partem de um mesmo comportamento, que é o do homo religiosus”. O entendimento dos primitivos era de que o mundo fora criado pelos deuses e de que “[...] a própria vida do cosmos é uma prova de sua santidade, pois ele foi criado pelos deuses e os deuses mostram-se aos homens por meio da vida cósmica” (ELIADE, 1992, p. 80). O homem, ao se ver como micro- cosmos, reencontra, em si, a santidade que reconhece no cosmos, e sua vida se pauta por essa realidade cósmica. Eliade (1992) denota essa experiência como transumana, portanto, cósmica, ou, ainda, “existência aberta”. O homo A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 9 religiosus, então, tem sua existência “aberta” ao mundo, que percebe parte do cosmo vivendo nele, em seu interior. Essa vida aberta não se dá de forma inconsciente, mas “[...] permite ao homem religioso conhecer-se, conhecendo o mundo — e esse conhecimento é precioso para ele porque é um conhecimento religioso, refere se ao ser” (ELIADE, 1992, p. 81). Uma vez que a vida, para o primitivo, é uma vida santificada, ela se des- dobra de forma dupla: “[...] como existência humana e, ao mesmo tempo, participa de uma vida transumana, a do cosmos ou dos deuses” (ELIADE, 1992, p. 81). Dessa forma, tudo que o homem faz tem conotação religiosa, inclusive as principais funções fisiológicas. Ao homem dessacralizado, por sua vez, “[...] todas as experiências vitais — tanto a sexualidade como a ali- mentação, o trabalho como o jogo — foram [...] desprovidas de significado espiritual” (ELIADE, 1992, p. 81). Para o homo religiosus, porém, não só aos atos fisiológicos, mas também a regiões e a fenômenos cósmicos são atribuídos significados religiosos. O ato de comer se torna um sacramento e a prática sexual é ritualizada, assimilada aos fenômenos cósmicos (chuvas, semeadura) e aos atos divinos (hierogamia, Céu, Terra). Essas correspondências antropocósmicas são encontradas, também, nas religiões mais evoluídas, demonstrando a sacramentalização da vida fisiológica. Viver em dois planos, para o homo religiosus, significa transpor a vida da experiência humana para o transcendente, cósmico, transumano. Igualmente, a habitação, para o homo religiosus, é um microcosmos, mas não só: seu corpo é um microcosmos. Essas ideias são reinterpretadas pelas religiões e pelas filosofias evoluídas no decorrer da história, chegando à modernidade, a exemplo do pensamento religioso indiano, cujo religioso “cosmiza” o universo, bem como sua casa, que são tratados como corpo humano. Nessa compreensão, há um canal de trânsito para o outro mundo, o dos deuses, na parte superior, onde, por ocasião da morte, há correspondências de que a “[...] a alma do morto sai pela chaminé” (ELIADE, 1992, p. 84). Essas ideiasreligiosas são inconcebíveis ao homem dessacralizado por dois motivos: não vive em um mundo sacralizado, e, portanto, a morte foi dessacralizada. Ele já não se dá conta de que ter um corpo e instalar-se em uma casa equivale a assumir uma situação existencial. Para o homem a-religioso, nada disso tem significado. Seus valores não correspondem àqueles da cultura primitiva no que concerne “[...] a seu corpo, sua casa e seu universo” (ELIADE, 1992, p. 86). A casa e o corpo do homem moderno perderam os valores religiosos, cosmológicos. Eliade (1992, p. 86) é taxativo: “[...] para os modernos desprovidos de religiosidade, o cosmos se tornou opaco, inerte, mudo: não transmite nenhuma mensagem, não carrega nenhuma ‘cifra’”. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico10 Na Contemporaneidade, há, entretanto, sentimentos religiosos, no ho- mem a-religioso, que ainda persistem, exclusivamente na zona rural. Ali, as populações ainda “respiram” uma religiosidade pautada no sentimento de santidade. Na sociedade urbana, industrializada, o cristianismo perdeu seus valores cósmicos. Sua experiência religiosa agora aflora no âmbito es- tritamente privado, não mais acessível ao cosmos. O mundo já não é sentido como obra de Deus. Ao contrário, ele é o caos, não deve ser habitado por não ser mais cosmizado. A relação corpo-casa, vista como imago mundi, tem papel importante nas mitologias e nos ritos arcaicos. Os formatos das urnas funerárias de cultu- ras arcaicas se assemelham a casas e possuem uma abertura superior que permite, à alma, entrar e sair. Esse pensamento encontra correspondência na estrutura cósmica, na ideia de passagem: das trevas para a luz, da vida para a morte. Assim, torna-se, por correspondência, a passagem para outro mundo, do devir, da renovação, e repetição da cosmogonia. Essa ideia de passagem se antropocosmiza fisiologicamente na exis- tência humana. Exprime que, uma vez nascido, deve renascer, dessa vez espiritualmente. Nesse processo, chega à plenitude, pelos ritos de passagem, ou iniciações consecutivas. O simbolismo de passagem também é visto na configuração dos caminhos das casas e dos locais de trabalho, nos caminhos, nas pontes, nas ruas estreitas, na passagem perigosa e de difícil travessia. A dificuldade dessas passagens assume, na mitologia e nos rituais, a ideia de dificuldade de transição e, portanto, o rito de passagem se reveste de uma importância religiosa de grande significância para o homo religiosus. Seja a “porta estreita” de acesso ao Pai, no cristianismo, seja nas lendas medievais ou, ainda, nos escritos místicos árabes, a dificuldade de transição se acentua. Nessa mesma lógica, elementos, que, no mundo dessacralizados, revestem-se de pouca significância, para o homo religiosus, têm caráter cósmico, religioso. Sendo uma representação antropocósmica, os ritos de passagem possibi- litam a integração do recém-nascido à comunidade e ajudam o jovem, quando da puberdade, a superar a fase infantil e o solteiro (celibatário) a passar para o grupo dos casados (chefes de famílias). Essas passagens são difíceis, geram crise e, portanto, exigem ritos. Na morte, os ritos são ainda mais complexos, pois sua passagem exige abandono do corpo e aceitação de sua alma no mundo dos mortos. Por sua vez, no mundo profano, há uma dessacralização completa, tanto da morte quanto do nascimento e do casamento. Mas, em tudo isso, o homo religiosus identifica sua incompletude, sendo necessário morrer e renascer em outro nível, religioso e cultural (ELIADE, 1992). A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 11 Nesse sentido, os conceitos de completude e de ritos estabelecem o ideal de humanidade em seu nível mais elevado, cósmico, religioso: “O homem primitivo esforça-se por atingir um ideal religioso de humanidade, e nesse esforço encontram-se já os germes de todas as éticas elaboradas mais tarde nas sociedades evoluídas” (ELIADE, 1992, p. 90). Eliade (1992) observa que, dessacralizados, os padrões de iniciação e de passagem permanecem sendo a raiz da ideia oriunda da cosmovisão do homo religiosus, que se reproduz, de forma dessacralizada, pelo homem a-religioso, no mundo contemporâneo. A vida existencial dos primitivos, envelhecidos pela história, com sua correspondente dessacralização, não desaparece por completo, sem deixar rastros. Ao contrário, está presente, em formatos e interpretações diferenciadas, e foi aperfeiçoada ao padrão do mundo a-religioso. Somos seres humanos religiosos cuja dessacralização foi incompleta, por isso há vestígios do pensamento religioso no pensamento científico. Do transcendente no imanente. O homem a-religioso nega a transcendência, aceita a relatividade da “re- alidade” e chega, até, a duvidar do sentido da existência. O dessacralizado se torna autossuficiente, reconhece-se como único sujeito e agente da história e rejeita todo apelo à transcendência, toda forma de vida fora da existência histórica. Ao contrário do homo religiosus, “[...] o homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo” (ELIADE, 1992, p. 98). Ao se desmitificar, ele se torna ele próprio, liberto dos deuses, em última instância quando matar Deus, que é visto como obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem profano, segundo Eliade (1992), conserva os vestígios do com- portamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Sendo produto do passado, não o pode abolir, pois é herdeiro do homo religiosus primitivo, tem natureza religiosa, mesmo esvaziado de sentido cósmico. No esforço de dessacralizar, os impulsos religiosos permanecem e buscam reatualizar ao estado religioso: “[...] a maioria dos ‘semrreligião’ ainda se comporta religiosamente” (ELIADE, 1992, p. 98). Comemorações re- ligiosas, como a passagem de ano novo, mesmo dessacralizada, são um ritual de iniciação; os casamentos continuam. Nos espetáculos, nos livros, nos cinemas, há a reprodução dos mitos, das mitologias e das religiosidades, que promovem êxtase. É certo que os “semrreligião” ainda reproduzem comportamentos religio- sos, tanto dos mitos quanto das teologias, e “[...] estão às vezes entulhados por todo um amontoado mágico religioso, mas degradado até a caricatura e, A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico12 por esta razão, dificilmente reconhecível” (ELIADE, 1992, p. 99). Exemplos são abundantes. A estrutura da constituição da concepção do comunismo cientí- fico tem-na em uma base mitológica e escatológica. O homem a-religioso, de acordo com Marx, faz valer “[...] um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático mediterrânico, a saber, o papel redentor do justo [...] cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo” (ELIADE, 1992, p. 99). Marx, ao resgatar a esperança escatológica, a vincula ao proletariado, que é chamado para sua própria salvação, mudando as estruturas do mundo, e esse político-econômico vê-se, no desejo, de volta ao estado puro do paraíso edênico, manifestado nos movimentos de nudismo e de liberdade sexual. A própria ciência da antropologia da religião, por sua base científica, é dessacralizada. Mesmo objetivando conhecer o fenômeno religioso, usa termos e utiliza teorias científicas para explicar o cosmos sacralizado. Será que dá conta? Comportamentos religiosos são verificados nas ações e nos gestos do homem dessacralizado, como na iniciação do soldado com “provas” para o combate. No trato do paciente, pela psicologia, quando da reflexão sobre si na volta às origens, temos reflexos às descidas iniciáticas aos locais habitados por seres espirituais. Termos como “luta pela vida”, “sofrimentos” e “torturas morais” são associados aos ritos de passagem para a vida adulta. “É por isso que, num horizonte religioso, a existência é fundada pela iniciação; quase se poderia dizer que, na medida emque se realiza, a pró- pria existência humana é uma iniciação” (ELIADE, 1992, p. 100). Dessa forma, entende-se que o homem profano, sendo descendente do homo religiosus, traz, em seu bojo, elementos comportamentais de seus antepassados reli- giosos, que o constituíram como ele é hoje. As crises existenciais acionam a aura religiosa do inconsciente, indagam sobre o sentido da vida, do passado, do futuro e da existência, pois esta, vazia de sacralidade, da percepção do cosmos e de si, cria um vácuo existencial, que, ao final, é uma crise religiosa. Nas palavras de Eliade (1992, p. 101): [...] na medida em que o inconsciente é o resultado de inúmeras experiências existenciais, não pode deixar de assemelhar-se aos diversos universos religiosos. Pois a religião é a solução exemplar de toda crise existencial, não apenas porque é indefinidamente repetível, mas também porque é considerada de origem trans- cendental e, portanto, valorizada como revelação recebida de um outro mundo, trans humano. A solução religiosa não somente resolve a crise, mas, ao mesmo tempo, torna a existência “aberta” a valores que já não são contingentes nem particulares, permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim das contas, alcançar o mundo do espírito. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 13 A tentativa de demonstrar como o homem dessacralizado ainda possui comportamento religioso, porém, está na psiquê mais profunda, que se perde na miscelânea própria do cosmos dessacralizado e industrial, pois o homem contemporâneo dissocia essa pulsão do comportamento sacralizado, visto que não vive mais no mundo pautado pela sacralidade, como o faziam os primitivos. Porém, está latente, pulsante, como que aguardando para se manifestar. Percebe-se isso quando a “[...] atividade inconsciente do homem moderno não cessa de lhe apresentar inúmeros símbolos, e cada um tem uma certa mensagem a transmitir, uma certa missão a desempenhar, tendo em vista assegurar o equilíbrio da psique ou restabelecê-lo” (ELIADE, 1992, p. 102). Por meio dos símbolos, o ser humano a-religioso se conecta ao uni- versal, tornando-se acessível, aberto, de forma que uma experiência pessoal, a despeito da dessacralização do cosmo de sua época vivida, transmuda- -se em ato espiritual, em compreensão metafísica do mundo. É na compreensão dos símbolos mitológicos que o homem primitivo consegue viver o universal, seja esse símbolo uma pedra ou uma árvore. O homem a-religioso moderno, da mesma forma, guarda arquivos do passado em sua mente, de forma que, diante das crises, recorre a esses arquivos de memória, inconscientes, mas que povoam o imaginário, que lhe despertam para a conexão com o universal. Porém, quando, diante da simbologia, essa não lhe desperta os arquivos de conexão ao sagrado, o símbolo não faz efervescer à elevação a espiritualidade; “[...] ou seja, não conseguiu revelar-lhe uma das estruturas do real” (ELIADE, 1992, p. 102). Em suma, mesmo sem auxílio do cosmo, sacralizado, que inexiste nas sociedades modernas laicizadas, o homem a-religioso é auxiliado por seus arquivos inconscientes, e por isso tem possibilidade de abrir-se ao cosmos, mesmo que parcialmente. Assim, “[...] o inconsciente oferece-lhe soluções para as dificuldades de sua própria existência e, neste sentido, desempenha o papel da religião, pois, antes de tornar uma existência criadora de valores, a religião assegura-lhe a integridade” (ELIADE, 1992, p. 102). Desse modo, a latência da religião encontra-se em seu inconsciente, pronta a despertar diante das crises que lhe afligirem, o “[...] que significa também que as possibilidades de reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem, nesses seres, muito profundamente neles próprios” (ELIADE, 1992, p. 102). Partindo do pressuposto de que, no século XXI, o mundo se encontra, há tempos, em constante crise, a busca pelo sagrado, mesmo que parcial, é de cunho particularista, manifestada em conceito de espiritualidade, e promove, no mundo dessacralizado, a busca pelo sagrado em vários nuances e formas, mundo afora. O crescimento das inúmeras religiões mundiais demonstra essa A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico14 forma rascunhada de tentativas de voltar às origens, à criação, ao tempo sagrado. É o homo religiosus que pulsa no interior do homem a-religioso. Essas são as aproximações propostas aqui: do primitivo ao primitivo reinter- pretado, ou seja, a-religioso, mas nunca em um estado puro, mas sincretizado na relação religião-ciência. Fases do desenvolvimento do pensamento científico Uma vez demonstradas as ausências e as permanências da transcendência no pensamento religioso e no pensamento a-religioso, avancemos para as fases que permitiram o desenvolvimento do pensamento científico. Para Morgan (CASTRO, 2005), a humanidade existe desde épocas imemo- riais, às quais o homem contemporâneo não tem acesso; estende-se pelo passado imensurável e se perde em uma vasta e profunda antiguidade. Assim, segundo Morgan, na compreensão da evolução da humanidade, pode-se afirmar que “[...] a selvageria precedeu a barbárie em todas as tribos da huma- nidade, assim como se sabe que a barbárie precedeu a civilização” (CASTRO, 2005, p. 21). Esse processo se deu de forma lenta, progressiva e evolutiva, em estágios sucessivos, e permitiu acumular conhecimento experimental (ainda que algumas tribos e nações, por conta das limitações geográficas, não tenham se desenvolvido como as demais). Mesmo que as invenções e as descobertas evoluam progressivamente, para Castro (2005, p. 21), “[...] as instituições sociais e civis, em virtude de sua conexão com perpétuos desejos humanos, desenvolvem-se a partir de uns poucos germes primários de pensamento”, o que demonstra, segundo Morgan, uma origem única para o ser humano. Considera-se que, “[...] ao longo da última parte do período de selvageria e por todo o período de barbárie, a humanidade estava organizada, em geral, em gens, fratrias e tribos” (CASTRO, 2005, p. 21). Essa organização social era encontrada na Antiguidade, em todos os continentes. Para Castro, “[...] sua estrutura e suas relações como membros de uma série orgânica bem como os direitos, privilégios e obrigações [...] ilustram o crescimento da ideia de governo na mente humana” (CASTRO, 2005, p. 21). A família também passou pelo processo evolutivo na mesma lógica pro- gressiva e evolutiva selvageria-barbárie-civilização. Segundo Morgan (CASTRO, 2005, p. 21), “[...] a família passou por formas sucessivas, e criou grandes sistemas de consanguinidade e afinidade que duram até os dias de hoje”. Acompanhando Morgan, encontra-se essa mesma lógica evolucionista no que A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 15 diz respeito à propriedade: “[...] começando do zero, na selvageria, a paixão pela propriedade, como representando a subsistência acumulada, tornou-se agora dominante na mente humana nas raças civilizadas” (CASTRO, 2005, p. 22). Assim, a organização social e a ideia de governo de família e de propriedade atravessaram eras e demarcam, de maneira peremptória, certa regularidade desde os tempos imemoriais de selvageria até a civilização. Portanto, a ex- periência e a luta contra obstáculos emergem como fatores determinantes no processo evolutivo, que denuncia as razões pelas quais uma sociedade evoluiu ininterruptamente e outras sofreram interrupções no processo. Para Morgan, diferentemente das invenções e das descobertas, “[...] as instituições se desenvolveram a partir de uns poucos germes primários de pensamento [...] Os fatos indicam a formação gradual e o desenvolvimento subsequente de certas ideias, paixões e aspirações” (CASTRO, 2005, p. 23, grifo nosso). As ideias são: � subsistência; � governo; � linguagem; � família; � religião; � vida doméstica e arquitetura; � propriedade. Especificando, Morgandetalha que a subsistência “[...] foi aumentada e aperfeiçoada por uma série de artes sucessivas, introduzidas no decorrer de longos intervalos de tempo e conectadas mais ou menos diretamente com invenções e descobertas” (CASTRO, 2005, p. 24). Sobre governo, Morgan afirma que o germe dessa ideia “[...] deve ser buscado na organização por gentes no status de selvageria, e seguido, através de formas cada vez mais avançadas, até o estabelecimento da sociedade política” (CASTRO, 2005, p. 24). No que diz respeito à linguagem, Morgan informa que ela foi desenvolvida “[...] a partir das formas mais rudes e simples de expressão” (CASTRO, 2005, p. 24), e concorda com Lucrécio em relação ao fato de a comunicação ter se dado, primeiramente, pelos gestos, depois pela fala articulada. Segundo ele, “[...] a inteligência humana, inconsciente de propósito, desenvolveu a linguagem articulada utilizando os sons vocais” (CASTRO, 2005, p. 24). Consanguinidade, costumes comuns e casamento foram os aspectos que, segundo Morgan, predominaram na evolução das famílias, e por meio dos A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico16 quais a história da família pode ser, seguramente, traçada pelas diversas formas sucessivamente assumidas (CASTRO, 2005). Da cabana à casa da família contemporânea, o tema sobre arquiteturas das habitações humanas “[...] está ligado à forma da família e ao plano de vida doméstica, [e] permite uma ilustração razoavelmente completa do progresso desde a selvageria até a civilização” (CASTRO, 2005, p. 24, grifo nosso). Sobre a ideia de propriedade, Morgan afirma que, de forma lenta, ela foi sendo construída na mentalidade humana da selvageria, passando por adaptações até sua dominância: “[...] como uma paixão acima de todas as outras, marca o começo da civilização” (CASTRO, 2005, p. 24). As ideias de governo, família e propriedade foram elementos pelos quais Morgan apresentou as evidências do progresso humano em sucessivos perí- odos étnicos. Sobre o governo, ele detalha os dois seguintes planos. 1. Societas (sociedade), que passou de gens para fratria, depois, de forma crescente e abrangente, para tribo, confederação de tribos, povo e nação. Essa forma de organização antiga “[...] perdurou entre os gregos e romanos após o surgimento da civilização” (CASTRO, 2005, p. 25). 2. Civitas (estado), baseado no território e na propriedade, com estágios de integração entre as propriedades em vilas e em condados cujo povo está organizado em um corpo político (CASTRO, 2005). Há preservação dos progressos humanos nas famílias, em que sexo, parentesco e território formam a base de sua organização. Assim, casamento, consanguinidade, cotidiano, arquitetura e herança promoveram a evolução e permanências nas sociedades contemporâneas. As próprias demandas da vida humana também demonstram evidências de progresso evolutivo. Segundo Morgan (CASTRO, 2005, p. 26), “[...] pode ser observado, finalmente, que a experiência da humanidade tem seguido por canais quase uniformes; que as necessidades humanas, em condições similares, têm sido substancialmente as mesmas”. Morgan, apresenta, ainda, outra divisão dos períodos para facilitar a compreensão evolutiva do progresso do conhecimento, que denomina pe- ríodos étnicos (CASTRO, 2005), superando a demarcação proposta pelos arqueólogos dinamarqueses, que instituíram os conhecidos períodos como Períodos da Pedra, do Bronze e do Ouro. Os períodos étnicos propostos são A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 17 da selvageria e da barbárie, ambos subdivididos em subperíodos inicial, intermediário e final, e cada um desses períodos pode ser considerado com status inferior, intermediário e superior da evolução humana. Assim, temos, progressivamente: 1. da fase da infância da humanidade até a fase da dieta de subsistência (selvageria inferior); 2. da dieta de subsistência até a invenção de arco e flecha (selvageria intermediária); 3. da invenção de arco e flecha até a invenção das artes cerâmicas (sel- vageria superior). A invenção das artes cerâmicas demarca a divisão entre selvagens e bárbaros: 1. até a domesticação de animais no hemisfério oriental e, no ocidental, com a agricultura de irrigação (barbárie inferior); 2. da domesticação de animais, no hemisfério oriental, e, no ocidental, com a agricultura de irrigação, até a invenção do processo de forjar o minério de ferro (barbárie intermediária); 3. da invenção do processo de forjar o minério de ferro até a invenção do alfabeto (barbárie superior). A partir daqui, inicia-se a civilização. Cada um desses períodos tem características peculiares, e os períodos étnicos permitem identificar tribos isoladas, que mantiveram sua forma de vida e não sofreram influências externas. Esses períodos ajudam a compre- ender que a evolução do conhecimento se deu “[...] a partir de uns poucos germes primários de pensamento” (CASTRO, 2005, p. 30). Referências CASTRO, C. Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico18 Leituras recomendadas CASTRO, C. Textos básicos de antropologia: cem anos de tradição. Editora Zahar, 2016. FRAZER, J. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982. MARCONI, M. A; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2019. A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 19 ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Definir mito, rito, magia e sacrifício no contexto religioso. > Reconhecer a contribuição dos antropólogos Durkheim, Mauss e Evans- -Pritchard na definição de sacrifício, magia e rito. > Identificar o papel do rito na preservação da religião e das relações comu- nitárias. Introdução O mito, o rito, a magia e o sacrifício são componentes da religião que apresen- tam importantes distinções entre si. Por exemplo, o mito e o rito podem ser complementares, ou mesmo excludentes, e nem sempre os rituais mágicos e de sacrifício recorrem a uma mitologia para se justificarem. Ainda, o mito carrega quase sempre um aspecto explicativo do mundo, e os rituais às vezes encontram justificativas nos mitos. Esses e outros entendimentos relacionados aos conceitos de mito, rito, magia e sacrifício permitem uma melhor compreensão do fenômeno religioso. Assim, neste capítulo, você vai estudar esses conceitos e compreender as diferenças entre eles. Você também vai verificar as contribuições de alguns antropólogos e pensadores sobre o tema, notadamente os da escola funcionalista. Por fim, você vai compreender a importância dos ritos para a coesão social. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa Bruno Uhlick D'ambros Mitos: mentira, drama, ilusão e morte Para iniciar o estudo dos fenômenos religiosos, é importante compreender o que se entende por mitos. Os mitos são narrativas orais populares fantásticas sobre personagens humanos, divinos ou animais. Tais narrativas retratam o passado e tentam explicar algum aspecto da realidade presente, estando conectados com um aspecto religioso do povo que as narra. O principal ele- mento dos mitos é o elemento fantástico. Certamente há elementos religiosos nos mitos, bem como morais e epistêmicos, mas eles não são exclusivos. Burkert (1979, p. 1, tradução nossa) adota a definição de que o mito é “[...] pertencente a uma classe mais geral de contos tradicionais”. Assim, para Burkert (1979), o mito é um fenômeno linguístico como outros e é uma criação literária como outras. E, como ele é uma criação, surgem sempre as questões sobre quem criou e como, quando e por que foi criado. Em parte, essa é a função do estudioso dos mitos: descobrir quem, como, quando e por que se criou determinado mito. O sofista Aelius Theon, em sua obra Progymnasmata, diferenciavamito e narração dizendo que o mito é “[...] uma exposição falsa retratando a verdade” e que narração é “[...] uma exposição sobre eventos que aconteceram ou que poderiam ter ocorrido” (ELIADE, 2019, p. 111). Lang (1887), por sua vez, sustenta que há um conflito entre religião e mito. Para ele, “[...] religião é a crença em um ser original, um criador, imortal, sem negar a crença em seres espirituais, ainda que imorais” e que esse conflito está presente “nas crenças de antigos povos civilizados” (LANG, 1887, p. 3, tradução nossa). A mitologia é apenas um aspecto da religião. As histórias fantásticas dos mitos se conectam e, por vezes, fundam um sistema religioso, como é o caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Contudo, nem todas as religiões se reduzem à mitologia. A mitologia frequentemente fornece os elementos teóricos para a religião, o seu conjunto de conceitos, a sua teologia, a sua moral, mas nem toda a religião se reduz à mitologia. Por exemplo, a mitologia grega fornecia as histórias populares dos gregos, cantadas pelos rapsodos e narradas por Homero. Contudo, a religião grega não dependia apenas dessas mitologias, porque ela continha aspectos práticos e mágicos, que não dependiam das narrativas. Nas religiões ditas “do livro”, como as monoteístas, as mitologias quase sempre são a base da religião, e suas práticas são ritualísticas. Por exemplo, as histórias fantásticas narradas nos evangelhos são a base para muitas prá- ticas ritualísticas cristãs, como a cerimônia do lava-pés no Natal, a eucaristia Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa2 nas missas ou o próprio batismo por imersão ou aspersão. Já no paganismo grego, não há registros de práticas fundadas na mitologia grega, por exemplo, e nenhum grego tinha um rol de rituais a fazer com base nas ações míticas de Aquiles ou Odisseu, por exemplo. Havia, antes, uma moral heroica a se seguir, mas nem ela mesma dependia totalmente da fidelidade à narração mítica da Ilíada ou da Odisseia. A mitologia, além de fornecer em alguns casos uma ritualística, oferece também uma moral, por meio dos exemplos nas histórias narradas. Nos mitos, não importa tanto a veracidade ou não do acontecimento, mas sua lição, sua essência, por assim dizer. Nos mitos, suspende-se o juízo sobre verdade ou falsidade, e liga-se o juízo sobre o bom e o belo. A mitologia fornece aspectos estéticos e éticos muito mais do que aspectos epistêmicos. Ou seja, quando alguém ou um povo conta um mito, está muito mais preocupado em transmitir uma tradição, em entreter com uma história, em passar algum ensinamento arquetípico moral ou estético, do que falar a verdade cientificamente para alguém. É certo que há, segundo muitos teóricos, um aspecto explicativo dos mitos. As histórias fantásticas em geral tentavam explicar a origem de algum cos- tume, moral, valor, coisa, acontecimento, tradição etc. Eram, assim, tentativas pré-científicas de fornecer respostas para muitas dúvidas humanas. Porém, pergunta-se frequentemente no estudo dos mitos se eles são anteriores ou posteriores à coisa explicada. Por exemplo, no mito da ressurreição de Cristo: teria sido ele o criador da crença na ressurreição e, portanto, anterior a ela, ou teria sido ele decorrência da crença na ressurreição e veio para explicá-la? Ou, ainda, o mito da criação do homem a partir da argila foi a causa da crença da criação do homem a partir do barro ou foi uma tentativa de explicar essa crença? Em todos os casos, o mito sempre tenta explicar algo, ou a coisa em si, ou a crença nessa coisa. O estudo acadêmico dos mitos, ou mitologia, iniciou-se com os estudos filológicos na Alemanha do fim do século XVIII e início do século XIX. Assim, ele se desenvolveu dentro da área da linguística e posteriormente foi dissemi- nado para outras áreas das ciências humanas, como história, antropologia e ciências da religião. O interesse nesse estudo teve início junto com o interesse no estudo das línguas antigas, como grego, latim, hebraico e sânscrito, e está profundamente ligado também aos estudos do folclore. Por esse motivo, o estudo da mitologia floresceu concomitantemente com o estudo das línguas indo-europeias e das teorias ligadas a elas. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 3 Uma das teorias ligadas às línguas indo-europeias é a da existência de uma raça ariana. Essa teoria sustenta que uma leva migratória de falantes de línguas proto-indo-iranianas, os arianos (do sânscrito ārya, , nobre; etimologia sobrevivente no termo “irã” moderno), em direção ao ocidente, teria formado os povos caucasianos, as suas línguas e, consequen- temente, os seus mitos. Esses mitos teriam elementos comuns entre eles e, decantadas as devidas diferenças mútuas, suas estruturas podem ser traçadas até hoje. Tal fato originou a disciplina da mitologia comparativa, em que vários mitos de vários lugares são comparados para encontrar uma estrutura narrativa comum. Uma prova da origem comum dos mitos e das línguas europeias com os povos falantes de línguas arianas é a expressão “Zeus pai”: em grego, Zeus Pater, em latim, Jupiter Pater, em védico, Dyáuṣ Pitṛ́ . Essa semelhança sugere que gregos, romanos e indianos se originaram de uma mesma cultura ancestral e seria uma prova para a teoria da raça ariana e sua migração para o ocidente. A línguas e os mitos, assim, são objetos de estudos genealógicos para se traçar as origens comuns de línguas, culturas e mitos. Na mitologia, é possível encontrar muitos temas recorrentes entre vários mitos de vários lugares. Por exemplo, a criação do homem da argila é um tema comum em inúmeras mitologias: � na epopeia suméria de Gilgamesh, a deusa Aruru molda Enkidu a partir da argila; � na mitologia grega, Prometeu molda os homens a partir da argila; � na mitologia hebraica, o deus Elohim molda o homem da argila; � na mitologia hindu, Parvati molda Ganesh na argila; � na mitologia chinesa, Nüwa molda humanos a partir da argila amarela. Outro exemplo de um tema recorrente em vários mitos de vários lugares é o tema do domínio do fogo: � na mitologia grega, Prometeu rouba o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e levá-los à civilização; � na mitologia semítica, no livro de Enoque, os anjos caídos e Azazel ensinam os homens a usar o fogo; � na mitologia védica, Rigveda fala de um herói chamado Matarisvan que descobriu o fogo, que havia sido escondido da humanidade. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa4 Um último exemplo: a titanomaquia. Muitas culturas têm um mito de cria- ção, em que deuses mais jovens e civilizados combatem e derrotam deuses mais velhos e selvagens, que representam as forças do caos. Por exemplo: � na mitologia hindu, os devas guerreiam com os asuras; � na mitologia grega, os deuses olímpicos guerreiam com os titãs; � na mitologia celta, os deuses da vida e da luz guerreiam com os fomo- rianos, deuses da morte e das trevas. Alguns especialistas interpretam esses mitos comuns como um reflexo das conquistas dos povos indo-arianos em sua expansão para o ocidente, onde eles se viam como nobres e portadores da civilização. Esses são somente alguns exemplos de inúmeros temas mitológicos comuns espalhados por várias culturas. Existem muitos outros, como os temas dos gigantes, dos dragões e das serpentes, da luta contra o caos, do ouroboros, do herói, das metamorfoses, dos deuses que visitam os homens, dos homens que visitam os deuses, da virgem que concebe, das aparições celestes etc. Em todos eles, temos a narração de uma história fantástica. Essa primeira abordagem das mitologias era essencialmente diacrônica, ou seja, focava no estudo dos mitos e em seu desenvolvimento no tempo e no espaço. Portanto, utilizava largamente as teorias evolucionistas e difusionis- tas para elaborar as suas próprias teorias sobre a mitologia. Nessa primeira fase do estudo dos mitos, surgiram alguns nomes muito importantes, como Jacob Ludwig Karl Grimm (1785-1863), Andrew Lang (1844-1912),Franz Bopp (1791-1867), Friedrich Max Müller (1823-1900) e James George Frazer (1854-1941). Os trabalhos dessa primeira leva de mitólogos eram profundamente históricos e filológicos, tentando traçar hipóteses evolutivas dos mitos e encontrar origens comuns e processos migratórios comuns pelos quais os mitos tenham passado e se desenvolvido juntamente com a língua e o povo. Contudo, o excessivo foco no aspecto diacrônico pecava em explicar muitas coisas sobre os mitos, como sua função social, seu significado particular, seu aspecto prático e seu caráter religioso ou político dentro do sistema e da cultura em questão, bem como sua utilidade. Houve também uma abordagem estrutural-funcionalista da religião. Nessa perspectiva, deixava-se de considerar tão preponderantes os aspectos dia- crônicos nos mitos e levava-se em consideração seus aspectos sincrônicos, ou seja, sua função aqui e agora dentro da cultura e do sistema religioso em questão. São expoentes dessa abordagem: Émile Durkheim (1858-1917), Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 5 Marcel Mauss (1872-1950), E. E. Evans-Pritchard (1902-1973), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Georges Dumézil (1898-1986) e Joseph John Campbell (1904-1987). Uma interpretação frequente dos mitos é o chamado evemerismo. O evemerismo é uma teoria hermenêutica de interpretação dos mitos criada no século IV a.C. por Evêmero (330-220 a.C.), mas defendida já muito antes pelo sofista Pródico de Ceos (465-395 a.C.). Evêmero dizia que todos os persona- gens mitológicos, heróis ou deuses, teriam tido uma existência real e comum no passado, mas, ao longo do tempo, foram divinizados. Assim, histórias fantásticas foram sendo inventadas, e seus feitos foram amplificados por medo, ignorância ou admiração dos povos. Ou seja, não há nenhum sentido oculto nos mitos — apenas hipérboles e exageros de pessoas comuns reais do passado. David Hume e Voltaire, na modernidade, adotaram essa posição sobre os mitos cristãos. Já para Platão, os mitos tinham uma importante função política na pólis. Como o rei-filósofo é o único habilitado a mentir, então é importante criar bons mitos para o bom funcionamento da pólis. Assim, a função do filósofo não se oporia à do poeta: ambos criam e disseminam mitos, mas o primeiro cria mitos bons para o funcionamento social, e o segundo, não. Na sua obra A república, Platão censura os mitos tradicionais, contudo, não condena os mitos em si, mas sua função, porque seriam prejudiciais para a educação dos jovens na pólis. O mito deve estar à serviço da verdade, e não o contrário. As histórias fantásticas devem ser usadas de modo a incutir bons valores nos jovens. Isso se dá porque “[...] Platão, através dos mitos, trata de estruturas complexas constitutivas desse homem” (BOCAYUVA, 2014, p. 13). Bultmann (2000) também trouxe considerações importantes sobre os mitos com o seu conceito hermenêutico de demitologização. Ele argumenta que não é mais viável no mundo moderno crer nos mitos do novo testamento, porque a ciência moderna é irreconciliável com a mitologia cristã antiga. Portanto, é preciso desmitologizar o mito, o que significa que se deve ver a mensagem central por trás do mito, seu sentido simbólico. Assim, é importante depurar o cristianismo mítico da essência do próprio cristianismo, o chamado kerigma. O kerigma é a essência do cristianismo, a moral cristã nas palavras de Jesus no Sermão da Montanha, a mensagem por trás dos mitos cristãos. Assim, os milagres, a morte e a ressurreição, os exorcismos, as curas e as histórias fantásticas no Evangelho não são histórias reais, mas encobrem simbolica- mente o sentido real. Por exemplo, a história mitológica da ressurreição de Jesus esconde seu verdadeiro sentido — a saber, que a morte não é o fim, que há continuidade da vida, que o espírito prossegue sua jornada etc. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa6 Mito, para Bultmannn (2000), é o que era para o antropólogo britânico Edward Tylor (1832-1917): uma explicação primitiva e fantástica do mundo, incompatível com a explicação científica, e sua interpretação literal deve ser rejeitada para dar lugar a uma interpretação simbólica. A real intenção do mito é contar sobre o entendimento do próprio homem — por isso, o mito deve ser interpretado não cosmologicamente, mas antropologicamente e existencialmente. Bultmann (2000, p. 13-14) afirma que: Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por exemplo, a concepção do mundo como estruturado em três planos: céu, terra e inferno; o conceito da intervenção de poderes sobrenaturais no curso dos acontecimentos; e a concepção dos milagres, especialmente a ideia da intervenção de poderes sobrenaturais na vida interior da alma, a ideia de que os homens podem ser tentados e corrompi- dos pelo demônio e possuídos por maus espíritos. A esta concepção de mundo qualificamos de mitológica porque difere da que tem sido formada e desenvolvida pela ciência, desde que esta se iniciou na antiga Grécia, e que logo foi aceita por todos os homens modernos. Nesta concepção moderna do mundo, é fundamental a relação entre causa e efeito. Eliade (2019) não interpreta os mitos simbolicamente nem muda sua função aparente. Para ele, o mito é uma explicação sobre a origem de um fenômeno, e não apenas uma explicação de seu acontecimento pontual. Eliade (2019) crê que a ciência moderna também tem seus mitos, e os mitos, assim como a ciência, têm função explicativa do mundo. O mito fala sobre como em épocas longínquas os deuses criaram coisas, sociais ou naturais, que ainda existem. O mito, assim, tenta justificar o presente com histórias genealógicas passadas. Além desse aspecto “histórico-teórico” do mito, ele tem um aspecto prático — a saber, convencer o povo presente a aceitar dada tradição, reencená-la, teatralizá-la, para atualizá-la e voltar magicamente nesse tempo mítico de quando ela ocorreu, por meio de um rito acessório. Assim, o prêmio do mito é o reencontro com a própria divindade, com seu tempo primordial, e disso advém uma regeneração presente, em que se confirma que as ações presentes de dado povo estão corretas. O mito serve para não ser contestado, para ser obedecido, para servir de ligação com esse passado mítico da história. A ciência, ao contrário, não tem essa função. A ciência só explica; o mito explica e regenera. A ciência funciona por contestação constante de si mesma, o que leva a uma dúvida eterna sobre ela mesma e a um constante ruir de suas próprias bases. O mito, ao contrário, não admite revisão, ceticismo, dúvida — é essa certeza mítica que é a sua força. Os modernos creem na ciência, contudo, ela mesma precisa de seus próprios mitos constantemente — caso contrário, Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 7 deve justificar-se. Tylor, Frazer e Max Weber (1864–1920) argumentavam que o mito é vítima da secularização moderna. Eliade (2019) argumenta que o mito não morreu, mas permanece camuflado no meio da ciência. Eliade (2019, p. 122) crê que alguns "comportamentos míticos" sobrevivem no mundo moderno, como o mito do retorno às origens. O autor aponta que: [...] quando se empreendia uma inovação, esta era concebida, ou apresentada, como um retorno à origem. A Reforma inaugurou o retêm à Bíblia e ambicionava reviver a experiência da Igreja primitiva, ou mesmo das primeiras comunidades cristãs. A Revolução Francesa tomou como paradigmas os romanos e os espartanos. Os inspiradores e os chefes da primeira revolução europeia radical e vitoriosa, que assinalou não somente o fim de um regime, mas o fim de um ciclo histórico, consideravam-se os restauradores das antigas virtudes exaltadas por Tito Lívio e Plutarco. Na aurora do mundo moderno, a "origem" gozava de um prestígio quase mágico. Ter uma "origem" bem estabelecida significava, em suma, prevalecer-se de uma origem nobre. "Temos nossa origem em Roma!", repetiam comorgulho os intelectuais romenos dos séculos XVIII e XIX. A consciência de uma descendência latina era acompanhada, para eles, de uma espécie de participação mística na grandeza de Roma. Tylor (1920) defende uma completa separação entre mito e ciência. Ele inclui o mito na religião e a religião e a ciência na filosofia, dividida, por sua vez, em primitiva e moderna. A filosofia primitiva é igual à religião. Não existe ciência primitiva. A filosofia moderna tem duas divisões: religião e ciência. A religião moderna é composta de metafísica e ética, que não estão presentes na religião primitiva. A metafísica lida com entidades não físicas, das quais os primitivos não possuem a noção, já que toda entidade é física; e a ética lida com entidades morais que também não existem para os primitivos. Para ele, o mito se originou da mente infantil dos homens primitivos. Tylor (1920, p. 282, tradução nossa) foi um dos primeiros a defender a mitologia comparativa como modo de descobrir padrões mentais culturais relevados nos mitos; ele diz que: [...] tratar mitos semelhantes de regiões diferentes organizados em grandes grupos comparados torna possível rastrear na mitologia o funcionamento de processos imaginativos recorrentes com a regularidade evidente de um padrão mental; e, as- sim, histórias das quais uma única instância teria sido uma mera curiosidade isolada tomam seu lugar entre estruturas bem marcadas e consistentes da mente humana. Tylor (1920) entende a religião como animista, tanto a primitiva quanto a moderna, porque a crença em deuses é derivada da crença em almas, e as almas são entidades físicas nas religiões primitivas. A religião primitiva era análoga à ciência, porque tinha pretensões explicativas do mundo. A expli- Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa8 cação religiosa é personalista: as decisões arbitrárias dos deuses explicam as coisas. A explicação científica é impessoal: as leis naturais explicam as coisas. Como hoje a ciência explica mais e melhor do que a religião, os mitos perderam qualquer utilidade explicativa. Tylor interpreta os mitos literalmente e se opõe a qualquer hermenêutica mitológica alegórica, poética, metafórica, simbólica ou evemérica. O alemão Max Müller pensava que os próprios antigos haviam interpretado mal seus próprios mitos, considerando-os literais. Histórias originalmente simbólicas de fenômenos naturais passaram a ser lidas como descrições lite- rais dos atributos dos deuses. Por exemplo, um mar “furioso” foi interpretado como uma pessoa realmente irada, e então o mito foi criado para explicar essa antropomorfização. Isso acontecia porque, segundo Müller, as línguas antigas não possuíam substantivos abstratos ou de gênero neutro. Sempre se pensava e se falava personalisticamente e antropomorfizadamente. Os mitos foram inventados devido a uma lacuna de expressão nessas línguas antigas proto-indo-arianas (MÜLLER, 1901). Frazer (1982) considerava o mito parte da religião primitiva, e esta, por sua vez, parte da filosofia universal. A religião primitiva é contraparte da ciência natural. Mito e ciência ou verdade são exclusivos. A religião primitiva funciona como contraparte da tecnologia. O mito serve para criar eventos magicamente, como o bom rendimento da safra. O ritual é encenação do mito. Um mito querido a Frazer era o de Adônis. Adônis era filho do rei Ciníras de Chipre com sua filha Mirra. Pérsefone e Afrodite eram apaixonadas por ele. Contudo, Adônis preferia Afrodite e passava mais tempo com ela. Ares, amante de Afrodite, enciumado, mandou um javali matar Adônis. O javali atingiu fatalmente Adônis na anca, que jorrou sangue. O sangue, ao cair na terra, fez nascer uma anêmona. Afrodite, que corria para salvá-lo, feriu-se em uma rosa — as rosas até então eram todas brancas — e a transformou em rosa vermelha com seu sangue. Adônis morto desceu ao submundo e lá encontrou Perséfone. Zeus, compadecido de Afrodite, decidiu que Adônis passaria quatro meses com Afrodite, quatro com Perséfone e quatro livre. Segundo Frazer, o mito explica as estações do ano, a safra e as colheitas. O antropólogo polonês Bronisław Malinowski (1884–1942) afirma que os primitivos procuram controlar a natureza pelos ritos, em vez de explicá-la pelos mitos. Malinowski (1988) argumenta que os primitivos estão muito ocupados correndo atrás da sobrevivência para se dar ao luxo de refletir sobre isso. Para Malinowski, os primitivos usam o mito como uma reserva para a ciência. Onde a ciência para, volta-se para a mágica. Outro aspecto do mito é que ele, por narrar eventos passados sobre a origem, diz que nada Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 9 pode ser feito, que as coisas são como são, e assim tende a justificar uma moral resignada sobre os fenômenos sociais e naturais presentes. Já o rito seria seu oposto: seria a crença na possibilidade de que alguma mudança é possível, de que é possível alterar o curso da realidade; assim, um de seus pressupostos é a crença em alguma liberdade humana. A mitologia grega é muito rica e muito bem documentada. Ao longo do tempo, muitas coletâneas e versões dos mitos gregos apareceram. A Biblioteca Mitológica, de Pseudo-Apolodoro, os poemas épicos Ilíada e Odisseia, de Homero, a Teogonia, de Hesíodo, as tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, as Histórias, de Heródoto, a Biblioteca Histórica, de Diodoro Sículo, a Descrição da Grécia, de Pausânias, as Metamorfoses, de Ovídio, e a Eneida, de Virgílio, são algumas das obras que recontam os mitos gregos. Talvez um dos mitos mais famosos e populares na Antiguidade tenha sido o de Hércules. Hércules era filho de Zeus e Alcmena, filha do rei de Argos. Ele era odiado por Hera, esposa de Zeus e sua madrasta. Hércules ficou conhecido por sua extrema força, mas também por ter matado sua própria esposa Mégara e seus filhos em um acesso de raiva. Para obter a expiação desse erro, o rei Euristeu o incumbiu de 12 trabalhos, que fez com maestria. Contudo, ele morreu devido a uma poção mágica mortal, que sua esposa, enganada pelo centauro Nesso, passou em seu manto, que queimou sua carne. Zeus concedeu-lhe a imortalidade junto ao Olimpo. Em torno de Hércules desenvolveu-se um culto que foi muito popular na Península Ibérica. O estreito de Gibraltar era chamado na Antiguidade de Colunas de Hércules, e em Cádis haviam algumas torres em sua homenagem. Lévi-Strauss (2007), por sua vez, resgata uma visão intelectualista dos mitos. O mito também é uma tentativa de compreender o mundo, uma ex- plicação de algo, um procedimento intelectual. Lévi-Strauss considera que o pensamento primitivo é concreto, e o moderno, abstrato, e isso se reflete na mitologia. O pensamento primitivo é qualitativo, enquanto o moderno, quantitativo. O pensamento primitivo foca em aspectos sensíveis e visíveis da realidade — os minerais, as plantas, os barulhos, os sons, as cores, as texturas, os sabores, os odores e os mitos manipulam essas qualidades dos sentidos, enquanto o pensamento lógico moderno os exorciza da ciência. Lévi-Strauss (2007, p. 21) considera os mitos como parte da “[...] ciência do concreto”. Ainda, ele diz que todos os homens e povos pensam de modo classificatório, em pares de oposições, e as projetam no mundo. Os fenômenos culturais e os mitos, especialmente, mostram esses binarismos estruturantes da realidade e tenta solucioná-los. O próprio Lévi-Strauss nos diz qual era seu objetivo quanto aos mitos, quando escreve que: Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa10 As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma criação «fantasiosa» da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única — não se esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente. O meu problema era tentar descobrir se havia algum tipo de ordem por detrás desta desordem aparente — e eratudo (LÉVI-STRAUSS, 2007, p. 23). Para quem se interessar mais pelo tema do mito, existem algumas obras básicas, tanto coletâneas de mitos quanto teoria mitológica. Abaixo listamos os principais títulos e seus respectivos autores: � Jacob Grimm — Mitologia alemã � Pierre Commelin — Mitologia grega e romana � Jenny March — Mitos clássicos � Andrew Lang — Mito, religião e ritual � James Frazer — O ramo de ouro � Robert Graves — Os mitos gregos � Reginaldo Prandi — Mitologia dos orixás � Junito de Souza Brandão — Dicionário mítico-etimológico � Thomas Bulfinch — O livro da mitologia � Ovídio — Metamorfoses � Claude Lévi-Strauss — Mitológicas; Mito e significado � Georges Dumézil — O festim da imortalidade: estudo de mitologia comparada indo-europeia � Joseph Campbell — O herói de mil faces � Rudolf Bultmann — Novo Testamento e Mitologia � Robert Segal — Mito: uma breve introdução � Jordan Peterson — Mapas do significado: arquitetura da crença � Ernst Cassirer — Linguagem e mito � Mircea Eliade — Mito e realidade � K. K. Ruthven — O mito Rito: teatro e drama O rito, junto com o mito, é um dos principais componentes da religião. É quase difícil, para não dizer impossível, achar uma religião sem um conjunto de mitologias próprias e de ritos específicos. Mesmo aquelas Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 11 vertentes mais “racionalizadas” do cristianismo e depuradas de aparatos ritualísticos barrocos, como o luteranismo e o presbiterianismo, têm sua ritualística mínima. Mas o que é o rito? Um ritual é uma sequência de ações, pessoas, gestos, objetos e palavras específicas feitas em um local específico com uma finalidade específica, diri- gidas a uma entidade específica, para modificar alguma realidade específica. Assim, um ritual se caracteriza como profundamente concreto, performático, prático e ordenado. Enquanto o mito é essencialmente oral e narrativo, o rito é essencialmente performático. Por vezes, os ritos podem ser a atualização de um evento mítico passado. É o caso do rito eucarístico católico, que pretende ser a constante reatualização da noite da santa ceia e da morte de Jesus. Nesse caso, mito e rito caminham juntos. Todo rito depende um mito, mas nem todo mito depende de um rito. Nessa definição, estão incluídas toda a liturgia católica, ortodoxa e pro- testante, as liturgias judaicas, islâmicas e pagãs, os cultos, os louvores, os sacramentos, os ritos de passagens, os batismos, os casamentos, as cerimô- nias orientais e também os ritos não religiosos, como juramentos, coroações, posses presidenciais, inaugurações, casamentos, funerais, colações de grau, condecorações honoríficas, formaturas etc. Basicamente toda ação perfor- mática pode ser um rito. Rito, em sentido restrito, é um conceito religioso. Contudo, em uma sociedade laicizada que tomou emprestadas ritualísticas religiosas do cristianismo, pode-se perfeitamente falar em rito no sentido amplo. Contudo, à título de delimitação, sempre que falarmos de rito aqui, falaremos no sentido religioso. O termo “rito” vem do latim ritus, um conceito jurídico e religioso romano usado para significar a performance correta do direito, análoga ao nosso moderno direito processual — literalmente “o reto”, o jeito certo de fazer algo. Este, por sua vez, é derivado do sânscrito ṛtá, que significa “ordem visível” nos Vedas — ou seja, a ordem regular do normal, o modo apropriado, justo e natural da estrutura cósmica e das ações humanas. Nota-se, já na sua etimologia, que o termo “rito” tinha uma conotação ética, a saber, o modo correto de agir, que devia ser uma mimese da natureza. A natureza, para os antigos, tinha uma racionalidade intrínseca, uma lógica, um propósito — não era puro caos, mas essencialmente ordenada. Portanto, a vida humana tam- bém deveria ser assim. Os ritos, portanto, mimetizavam essa ordem natural no mundo humano. Existe um aspecto mágico nos ritos religiosos. A correta manipulação de objetos, o correto uso e proferimento de palavras secretas ou encantamentos, dada entonação de voz, o correto uso de ingredientes ou elementos, o correto Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa12 uso de roupas específicas e gestos específicos — tudo isso aproxima os rituais de um aspecto mágico. A magia, como veremos a seguir, é a manipulação e a performance de coisas com vista a alterar uma realidade natural. Os ritos se aproximam desse aspecto mágico, na medida em que exigem uma correta manipulação ou performance. William Robertson Smith (1846–1894), orientalista escocês, argumenta que a crença, ou o convencimento, só é importante para as religiões modernas, mas não era nas religiões antigas, que focavam muito mais nos rituais, ou seja, em aspectos práticos da religião. Em vez de as religiões antigas possuírem um credo, um rol de dogmas fixos, elas possuíam uma história mitológica que explicava ou justificava os ritos estabelecidos por alguma instituição direta dos deuses ou por seu exemplo. Mas esse mito explicativo não era obrigatório. Desse modo, o mito era secundário ao rito. O rito não dependia de um mito para ser performado (SMITH; SUTHERLAND, 1912). O problema da teoria de Smith é que ela somente explica o mito, mas não o rito, e, ademais, restringe o mito ao rito, de modo que só se pode compreender um mito posteriormente ao próprio rito. Para Tylor (1920), o mito é uma explicação do mundo físico, e não do ritual, e funciona independentemente do rito; é uma declaração, uma narrativa equivalente a um credo, mas na forma de uma história fantástica. O ritual pressupõe um mito para Tylor, diferentemente do que diz Smith, porque o mito é a explicação, a fundação do rito, a fonte de onde a performance se origina. Frazer dedica o cerne de seu clássico O ramo de ouro para tratar do estágio intermediário entre a religião e a ciência, um estágio em que magia e religião estão combinadas. É nessa fase do desenvolvimento evolutivo da religião que está o ritualismo mítico, porque nele o mito e o rito se fundem. Frazer (1982) mostra um exemplo de ritual mágico, em que o deus da vegetação morre e renasce. O ritual é feito quando se quer que o inverno acabe logo. O ritual funciona pela lei da similaridade, em que a imitação de um acontecimento natural faz com que ele realmente ocorra — como ocorre no vodu. Para Fra- zer, a explicação mítica é só um meio de controle, e o ritual é sua aplicação; contudo, o mito ainda está subordinado ao rito. Burkert (1979) defende a completa separação e independência entre mito e rito — contudo, ambos se reforçam mutuamente. O mito confere ao rito justificativas: deve-se dramatizar o mito porque os deuses assim o fizeram. O rito reforça o mito, transformando uma simples história fantástica em um comportamento. Burkert (1979) funda o mito no sacrifício e na violência e agressão, que tem sua origem no sacrifício da caça, expressão primitiva da agressão. O ritual do sacrifício é a caça dramatizada. Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 13 A Figura 1 exemplifica um ritual dos Karajás, no Tocantins, que marca a passagem da infância para a idade adulta. Figura 1. Ritual Hetohoky, ou festa da casa grande, dos Karajás, no Tocantins, que marca a passagem da infância para a idade adulta. Fonte: Araújo (2016, documento on-line). Para Durkheim (1996), o rito, a aglomeração de indivíduos em torno da mesma crença, faz surgir uma efervescência social que leva, por sua vez, ao sentimento religioso. Sobre isso, ele escreve que “[...] só o fato da aglomeração já age como excitante excepcionalmente poderoso. Uma vez que os indivíduos estão reunidos, emana da sua aproximação uma espécie de eletricidade que os conduz rapidamente a grau extraordinário de exaltação” e “[...] portanto, é nesses meios sociais efervescentes e dessa própria efervescência que parece ter nascido a ideia religiosa” (DURKHEIM, 1996, p. 274). Magia: ilusão e encantamento Um aspecto indissociável do rito é a magia. É difícil separá-los,
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