Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
EPISTEMOLOGIA DO FENÔMENO RELIGIOSO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Descrever o papel da transcendência e da imanência na experiência religiosa. > Diferenciar experiência religiosa de experiência mística na história das religiões. > Conceituar o sagrado a partir da cosmovisão de uma experiência religiosa, inter-religiosa e não religiosa. Introdução Todo ser humano é um ser de e para a experiência que o conecta diretamente com a vida vivida. A experiência religiosa é parte dessa conexão e tende a compor a cosmovisão pela qual as pessoas orientam suas vidas, seja ela orientada para a transcendência ou para a imanência. Porque as pessoas vivem realidades dife- rentes, também suas experiências são distintas, inclusive a religiosa, por isso o esforço para entendê-las em seu contexto vital e longe de uma uniformização que é enganosa. A experiência que pode ser aproximada em sua realização é a mística, mas ainda assim ela precisa ser reconhecida conforme os objetos e cosmovisões que a circundam, promovem e explicam. A complexidade da experiência religiosa é mais percebida quando observamos que diferentes cosmovisões podem promovê- -la, sejam elas inter-religiosas e não religiosas. Neste capítulo, você estudará sobre a experiência religiosa, o que ela é e de que modo pode se falar de experiência religiosa transcendente e imanente. Usando os recursos do estudo metodológico comparado, você perceberá que a experiência religiosa é representada de várias maneiras, sendo fundante de A experiência religiosa Sidney de Moraes Sanches qualquer cosmovisão religiosa. Diferenciar a experiência mística nesse ambiente é importante para entendermos o que ela propõe ao ser humano. Além disso, você estudará o sagrado conforme percebido em uma tipologia das cosmovisões religiosa, inter-religiosa e não religiosa. Transcendência e imanência na experiência religiosa Experimentar é o que nós, seres humanos, fazemos por meio do corpo no mundo onde vivemos. É o resultado de nossa ação, livre e voluntária. Por isso, dizemos que cada ser humano é um ser de e para a experiência. Portanto, é importante, para isso, a consciência do corpo existindo em um lugar e em um tempo e de como a percepção dessa existência no corpo permite conhecer o que quer que seja. Experimentamos as coisas como parte de nossa condição humana marcada pela provisoriedade e mudança. Longe de ser acabado, pronto e definitivo, o ser humano é um ser de tentativa. Nas condições de tentativa, todo autoco- nhecimento é, de fato e por experimentação, provisório, relativo ao processo mesmo da experimentação e passível de revisão e de correção em qualquer tempo. E as alternâncias de experiências mostram que o ser humano não se compreende como o mesmo e nem a experiência como mesma durante a sua existência inteira. A experimentação das coisas e de si mesmo mostra que o ser humano está aberto e à procura de um encontro no qual ele se reconheça, seja capaz de se identificar, de dizer a si mesmo e para os demais quem ele é. Ele deseja se reconhecer como o sujeito que vê e sente as coisas que experimenta. A expressão do sujeito se dá por meio das coisas que lhe são próprias, seus interesses, metas, planos e gostos. A experiência do mundo diz respeito ao que o sujeito percebe, diz e se comporta, como exclusivamente sua. Na experiência do sujeito não importa o mundo em sua forma objetiva e factual, onde contam forma, volume, peso, as coisas. Importa, sim, a relação do sujeito com ele, e o meio para isso é a mente. Por meio dela, o mundo que está lá fora torna-se o mundo aqui dentro, e podem ser feitas várias coisas que são totalmente e exclusivamente do sujeito. Assim é a experiência religiosa. A religião pode ser definida como uma entidade concreta, objetiva e claramente delimitada, como se fosse um objeto de estudo. Você pode apontar seu credo comunicado em uma infinidade de textos e manuais, ou oralmente, em uma longa tradição; sua liturgia, desde A experiência religiosa2 rituais simples aos mais complexos; sua história desde o fundador ou funda- dora até sua disseminação para muitos lugares e suas transformações. Você pode comparar essa religião com outra religião estabelecendo as semelhanças e diferenças. No entanto, isso não significa que você conhece a religião, uma vez que essa é uma propriedade do sujeito enquanto faz a experiência religiosa. Em geral, uma experiência religiosa é apresentada em termos de uma salva- ção ou cura, apontando para alguma profunda necessidade humana, não importa como ela se manifeste. Cognitivamente, pode ser reportada como iluminação, entendimento, compreensão. Um mundo novo se abre ao sujeito dessa experiência (YANDELL, 2010). Mas também pode ser relatada como uma experiência visual e auditiva mental, não mediada pelos órgãos físicos: o olho e o ouvido. Em outros momentos, ela é introduzida por objetos físicos, mas com uma informação anexada considerada uma revelação ou comunicação espiritual fora ou contida no objeto. Outro modo de representar a experiência religiosa é quando ela é men- talmente significada pelo sujeito como uma crença ou fé religiosa. Uma representação mental intencional é a expressão do modo como pensamos sobre algo a partir de um pano de fundo previamente estabelecido em nossa mente. Nesse caso, o sujeito se orienta intencionalmente para e por deter- minada experiência religiosa, de modo que quando ele fala religiosamente está falando de sua fé, isto é, a partir de sua fé. Nesse sentido, a fé é: A relação de um indivíduo, ou de muitos indivíduos, com o transcendente divino, seja este conhecido como pessoal ou não-pessoal, como um ou como muitos, como moral ou não-moral, como benevolente ou exigente. A fé, neste sentido, inclui a experiência religiosa, o senso do numinoso, emoções religiosas de amor e reverência de esperança e temor, a disposição de adorar e o comprometimento por parte da vontade de servir uma realidade e um valor mais altos. Tudo isso é uma participação imediata, interior, pessoal, viva e existencial em um relacionamento experimentado com uma realidade maior, talvez infinitamente maior, e misteriosa que chamamos de Deus (SMITH, 2006, p. 11). A experiência religiosa é orientada para a transcendência ou para a ima- nência. Veja como pode ser isso a seguir. A experiência religiosa orientada para a transcendência Comumente, a experiência religiosa é considerada um ato humano de trans- cendência. Transcender trata da elevação a algo superior em relação à posição A experiência religiosa 3 na qual se encontra quem usa a palavra. Trata-se de uma metáfora espacial com o sentido de: elevar-se, ultrapassar, colocar-se acima. Mas, o que é transcendido? Quando as pessoas usam essa palavra o fazem para falar de algo que vai além delas mesmas, seja para fora delas, seja para dentro delas. E, também, usam essa palavra para dizer de algo que está acima de sua experiência comum, cotidiana. Portanto, transcender diz da experiência humana de elevação um deslocamento de baixo para cima; de ir além, de ultrapassar certos limites condicionados pela própria experiência humana. Transcendência é empregada com duas outras palavras: êxtase e su- blime. O êxtase refere-se a algo incomum, extraordinário e sobrenatural. Tipicamente sensorial, ele produz arrebatamento, enlevo, encanto, como se à mente fossem oferecidas pelos sentidos as mais profundas impressões, percebidas a partir de experiências, conhecimentos e contatos impossíveis de se ter acesso em condições normais. O sublime identifica o sagrado ou o santo e sugere algo perfeito, o degrau mais alto em uma escada ascendente, por isso mesmo o objetivo, a meta da experiência religiosa. O sublime produz a sensação humana da incomunicabilidade por estar perante algo impossível de descrever, de imaginar e, ainda mais, de falar. Em geral, a experiência religiosa sempre foi profundamente orientada para a transcendência, buscando a linguagem do sublime e do êxtase,toda- via não exatamente como um salto ou fuga para algum lugar ou tempo, em busca de uma origem ou de um fundamento último e final. Nela, e por ela, se busca um encontro substancial e permanente para além da experiência humana cotidiana e transitória que a eleva, que a arrebata, que a esvazia e a preenche com novos sentimentos e sentidos, implicando um novo olhar sobre a própria experiência. Nela, e por ela, o sagrado ou santo ou sublime se apresenta entre a posse e o desapego, sem se dar ao domínio do ser humano e nem à sua representação em linguagem humana. Ele se dá e é recebido, exigindo apenas abertura e acolhimento. Isso é representado por uma visão essencialista do ser humano no qual, conforme Tillich: “[...] a existência é, por assim dizer, tragada pela essência. As coisas existentes e os eventos são a atualização do ser essencial em um desenvolvimento progressivo” (1987, p. 261). A experiência religiosa orientada para a imanência Sendo assim, a imanência passou a ser o lugar da transcendência. Agora, pre- cisamos entender o uso da palavra imanência. Em seu uso clássico, imanência é aquilo que permanece no sujeito enquanto ele está fazendo alguma coisa. A experiência religiosa4 Temos o uso de imanente como a experiência e atividade humanas feitas nos limites da experiência possível, nesse caso, em oposição à transcendente, que ultrapassa esses limites. E, ainda, temos o uso de imanente como a experiência e atividade humanas limitadas ao eu consciente. Em resumo, como diz Abbagnano (2007, p. 540), “[...] comum a esses três significados do termo é o conceito de imanente como tudo que, fazendo parte da substância de uma coisa, não subsiste fora dessa coisa”. A experiência religiosa orientada para a imanência surge a partir da con- cepção do ser humano como existindo ou sendo dotado de ser; participa da realidade percebida e pode ser encontrada nela. Por outro lado, diante do ser humano está a possibilidade de “não ser”, pois é dele que o ser emerge; ele tanto pode realizar sua plena existência quanto pode mergulhar no vazio de sua não existência. Por exemplo, existe a branquitude, mas ela somente se realiza na cor branca. Outro exemplo: existe a humanidade, mas ela somente se efetiva no ser humano. Superar as dificuldades, empecilhos e estruturas limitadoras que impedem o potencial humano de existir é a tarefa que o ser humano se propõe no mundo, e isso acontece quando a existência se une à essência. Isso é representado por uma visão existencialista do ser humano que o considera alienado de seu verdadeiro potencial e, por isso, angustiado sob o peso de estruturas que impedem sua plena realização, precisando que sua vida seja reorientada para que encontre o pleno sentido (TILLICH, 1987). Imanência diz respeito às coisas, pessoas e acontecimentos naquilo que tem começo, meio e fim neles mesmos. Por exemplo: é imanente à flor o fato dela nascer, desenvolver e morrer, esgotando a própria existência nesse processo. Pode-se dizer, assim, que a cosmovisão moderna se orienta para o imanente. A transcendência na experiência religiosa: de Agostinho de volta a Platão Em sua fase madura, há muito tempo bispo e pensador profundo, Agosti- nho reflete sobre o conhecimento de Deus adquirido desde a sua primeira experiência religiosa. Ele diz estar certo de que ama a Deus, no entanto, de que maneira ele ama a Deus? Ele responde a partir de uma analogia entre os sentidos externos e os sentidos internos, dizendo: A experiência religiosa 5 Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu Deus (AGOSTINHO, 1999, p. 264). Agostinho constrói dois mundos que se correspondem sensorialmente. Com as percepções obtidas dos órgãos físicos ele tem acesso a luz, sabores, cheiros, gostos e contatos. Mas, amar a Deus, para ele, é uma entrega da vontade, e ele não vê como entregar-se a esses belos prazeres trazidos pelos sentidos simplesmente porque está convencido de que a aparência externa do mundo não contém Deus. Mas, existe um outro mundo, correspondente ao externo, por ele chamado de homem interior, cuja verdade é maior que aquele. Tal como o homem exterior recebe as impressões do mundo externo por seus sentidos, assim o homem interior recebe as impressões de Deus em si mesmo. Introspectivamente, Agostinho pode relembrar o que aconteceu com ele quando encontrou a Deus: uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço. Todavia, diferentemente das impressões do homem exterior, cujas impressões se desvanecem e se esvaem, estas do homem interior permanecem para sempre: uma luz que o espaço não contém, uma voz que o tempo não arrebata, um perfume que o vento não espalha, um sabor que não se acaba. Tudo aponta para a perpetuidade de uma experiência inesgotável naquilo que ela oferece a Agostinho. Mas, se Agostinho ama a Deus, a qual Deus ele ama? Ele passa a procurá-lo até onde seus órgãos físicos podem alcançar: a terra, o mar e o ar. Apesar de tudo ser belo, ainda não eram Deus. Então, ele se voltou para seu mundo interior investigando a si mesmo e descobriu que era composto de duas substâncias: corpo e alma, sendo a alma a mais importante, pois os sentidos do corpo remetiam a ela suas impressões para que ela julgasse o que era verdadeiro. Todavia, a alma também não era Deus. Contudo, se do corpo vai-se até a alma, da alma vai-se até Deus que está acima da alma. Assim, diz Agostinho (1999, p. 266): “[...] pela minha própria alma hei de subir até Ele. Ultrapassarei a força com que me prende ao corpo e com que encho de vida o meu organismo”. Subindo até Deus, de degrau em degrau, Agostinho A experiência religiosa6 vai conhecendo a Deus, pois na memória estão as imagens verdadeiras que sendo contempladas lhe trarão a verdade eterna que ele buscou a vida inteira. O modo como Agostinho compreendeu e apresentou sua experiência religiosa ocorrida na pequena Cassicíaco impressiona pela semelhança com a compreensão e apresentação platônica da realidade e do modo de conhecê- -la. Platão as elaborou em sua conhecida Teoria das Ideias ou das Formas. Conforme ela, há uma distinção entre a aparência do mundo, percebida pelos órgãos sensíveis humanos, e a sua forma verdadeira, percebida somente pela alma. O acesso a esse mundo de formas verdadeiras é feito na medida em que, por um exercício racional da alma, elas vão sendo discriminadas e superadas, das inferiores até as superiores, subindo degrau por degrau, até chegar à forma perfeita. É um exercício perfeitamente intelectual que leva à verdade eterna, por Platão apresentada como: o bem, o belo e o justo. Contudo, em Agostinho não é o intelecto humano quem ilumina e permite o conhecimento, mas a luz divina que bondosamente lança seus raios sobre esse intelecto, como ele disse: “Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde vos amei!... Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira!” (AGOSTINHO, 1999, p. 285). A imanência na experiência religiosa: de Aquino de volta a Aristóteles A filosofia aristotélica tratou de universalizar os raciocínios silogísticos em uma escala que ia da existência em categorias até o conceito mais universal possível sobre o ser: o ser enquanto ser, cujo conhecimento Aristóteles chamou metafísico. O ser é:essência e existência, necessidade e contingência, ato e potência. Além disso, ele possui forma, matéria, movimento e finalidade. Essa filosofia forneceu uma teologia natural para explicar as contínuas e sucessivas mudanças que ocorriam nos atributos do ser como causadas por outro até chegar à causa primeira, não causada, chamada Deus. A metafísica aristotélica foi usada por Tomás de Aquino tanto para construir a noção de um mundo que partia de Deus até a menor das criaturas inanimadas, como para guiar a mente humana para Deus até encontrá-lo como o único Deus na escala para além de todo ser. Assim, vai-se do mais sensível e particular ao mais abstrato e universal. Santo Tomás não hesitou em assimilar a metafísica aristotélica ao afirmar que ainda que possamos pensar universalmente sobre as coisas, é somente na existência individual dessas coisas que é possível conhecer como elas são. Como ele disse: “[...] é necessário que a essência signifique alguma coisa de A experiência religiosa 7 comum a todas as naturezas pelas quais os diversos entes são classificados nos diversos gêneros e espécies” (TOMÁS DE AQUINO, 2008, p. 4-5). Entretanto, ainda que os entes sejam muitos entre gêneros e espécies segundo suas naturezas, isso não significa que eles existam por si mesmos, mas que eles se vinculam a partir de uma hierarquia de causas até chegar a uma causa para todas as causas, ao primeiro ente que é a causa de todo ser, que é Deus. E, Deus, sendo causa de si mesmo, nele essência e existência o tornam tão-somente ser. Desse modo, em Deus estão todas as perfeições dos demais seres, e Ele as atribui a cada um conforme a bondade de sua vontade (TOMÁS DE AQUINO, 2008). A experiência religiosa, nesse caso, a experiência de Deus, acontece na interação com as coisas em sua natureza comum de existência. E, de novo, Aquino usa a doutrina aristotélica, na qual a experiência surge da repetição das mesmas vivências percebidas pelos sentidos até que elas são definitivamente armazenadas na memória, e utilizadas pela Razão vez após vez sempre que necessário (ABBAGNANO, 2007). O ponto de partida se dá por aquilo que está mais próximo do ser humano que são as coisas existentes em seu mundo, por meio da identificação da sua essência, do que cada coisa é. Assim se inicia o processo linear de conhecimento que se eleva até o conhecimento da essência do ser universal, que é Deus, onde essência e existência estão unidas. Mas, esse modo de explicar a experiência religiosa é ainda insuficiente, pelo simples fato de que não é possível a experiência direta de Deus visto ser ele inacessível à experiência humana comum e, então, à sua razão. Desse modo, Aquino retira a experiência religiosa do campo da experiência da dou- trinação, dos afetos e mesmo da reflexão intelectual, para concentrá-la na fé como plena certeza resultante do que Deus revela sobre si mesmo. Desse modo, a experiência religiosa é a apreensão de algo fora da realidade comum humana, mas possível de ser vivenciada porque há na natureza humana algo que predispõe não somente para a busca, mas para a apreensão desse objeto. Outra vez, no caso especificamente de Aquino, esse objeto é Deus enquanto uma pessoa que manifesta seu desígnio no mundo e, por isso mesmo, pode ser apreendido nele. A experiência religiosa8 Experiência religiosa e experiência mística na história das religiões Cosmovisões religiosas Antes de penetrar no entendimento da experiência religiosa, é importante entender como se constrói e como funciona uma visão de mundo, uma mun- divisão ou uma cosmovisão religiosa, e, para isso, usaremos da contribuição fundante do filósofo alemão Wilhelm Dilthey. Segundo Dilthey (1992), uma visão de mundo, ou cosmovisão, brota da vida como sua raiz. Da reflexão sobre a vida nasce a experiência de vida. A vida vivida é aquela onde experiências comuns a todos se repete diariamente formando tradições que, com o passar do tempo, se tornam experiências gerais da vida. Estas dão ao ser humano uma sólida identidade que na mesmidade do seu eu permite que ele se reconheça e aos outros também. Conforme Dilthey (1992), uma visão de mundo é regida por certos princípios. O primeiro deles são as disposições vitais, que são os ânimos reunidos pelos seres humanos perante os vários acontecimentos da vida. O segundo deles são as tentativas de solução do enigma da vida, onde a religião tem papel fundamental junto com a poesia e a metafísica. Trata-se de uma interpretação de mundo que visa dar-lhe significado e sentido. Quando uma compreensão da vida se torna ampla o suficiente para resolver o enigma da vida temos, então, uma visão de mundo ou cosmovisão. Via de regra, a estrutura de uma mundividência é sempre a mesma e consiste em: [...] uma conexão em que, sobre a base de uma imagem cósmica, se decidem as questões acerca do significado e do sentido da vida e daí se deduzem o ideal, o sumo bem, os princípios supremos da conduta de vida (DILTHEY, 1992, p. 15). A primeira camada dessa estrutura, segundo Dilthey (1992), é a imagem de mundo, que dá origem à segunda camada quando a imagem de mundo se torna modeladora da valoração da vida e da compreensão do mundo. A partir de então a cosmovisão plasma, transforma e reforma o mundo. São muitas e variadas as visões de mundo, tantas quantas são as condições de vida humana: clima, raça, a formação dos povos, épocas e tempos: Dilthey (1992, p. 17) afirma que: A experiência religiosa 9 [...] a vida que brota em condições tão especializadas é muito diversificada, e assim é também o próprio homem, que apreende a vida. E a estas diversidades típicas acrescentam-se as dos indivíduos singulares, do seu meio e da sua experiência vital. As visões de mundo se encontram umas com as outras levadas pelos seres humanos, seus possuidores, e tendem a se chocar, se reconciliar, se superar e se impor uma à outra, quando não mesclando-se e gerando novas concepções de mundo. Uma visão de mundo não nasce nem da ciência nem da filosofia, áreas da cultura destinadas ao trabalho disciplinado e orientado, mas da religião, da arte e da metafísica, regiões da cultura desinteressadas e livres para criar novos caminhos. No caso próprio da religião, uma cosmovisão religiosa nasce da conexão do ser humano com a vida. Essa conexão vital reside na distinção entre um mundo familiar ao ser humano, onde ele domina a natureza, e um outro mundo não tão familiar, desconhecido para ele, sobre o qual ele deve submeter-se, seja admitindo a existência de seres superiores aos quais deve submissão, seja aceitando a orientação de mediadores que o conduzam em meio a esse mundo desconhecido. Dessas relações nasce a magia, de onde procede o culto, sendo sua forma acabada a religião, que se desdobra em: [...] lugares sagrados, pessoas santas, imagens de deuses, símbolos, sacramentos, constituem casos singulares dessa relação. significam na religião o que o simbólico significa na arte e o conceptual na metafísica. E a tradição, justamente graças à obscuridade da sua origem, transforma-se num poder de força excepcional, no seio da relação religiosa (DILTHEY, 1992, p. 23). Essas ideias religiosas elementares, assim reunidas sob uma religião, constituem as mundividências religiosas, cuja essência se encontra na relação entre o visível e o invisível, um mundo inferior ou terreno e outro superior ou celestial, para a interpretação da realidade, às vezes em constante luta entre um e outro; na valoração da vida formando um ideal prático; no discurso simbólico para enunciação das ideias; nas doutrinas da fé para formalizar a tradição; nas práticas religiosas da oração e da meditação para possibilitar a comunicação com um ser superior. Veja a apresentação da cosmovisão religiosa indígena apresentada pelo pajé Kizibi do povo Desana assistindo ao vídeo “Olhar indígena”, disponível na plataforma YouTube. A experiência religiosa10 Cosmovisões religiosas brasileiras O que dizer dasmundivisões religiosas dos povos originários e estabelecidos neste país que chamamos de Brasil? O que há de peculiar na conexão vital com a realidade local que forma e é comunicada nas cosmovisões religiosas brasileiras? Temos, de início, duas características básicas ou ideias religiosas elemen- tares fundantes: a crença em uma providência superior, isto é, a certeza de que o mundo e a vida são cuidados por Deus, para os católicos e protestantes, ou por deuses e espíritos, para os indígenas e africanos. E a crença de que o mundo e os fatos da vida podem ser alterados pela intervenção superior, considerada uma resposta direta e imediata a um pedido ou apelo dirigido a algum ou a alguns desses cuidadores. Na base comum a essas crenças está outra que afirma a existência de multidões de espíritos, seres invisíveis subordinados e instrumentos dos seres cuidadores, que povoam o mundo junto com os seres humanos. Esse modo de pensar organiza o mundo e a vida sob o governo de seres pessoais e forças atuantes. Seres pessoais são os espíritos separados em superiores, os quais existem para além da realidade material das pessoas, e inferiores, aqueles que estão mais próximos das pessoas e intervêm na sua realidade material. Fala-se de Deus, mas admite-se o contato com deuses e deusas regionais, fantasmas, mortos, demônios, espíritos maus, santos, etc. Forças atuantes são impessoais e são relacionadas com o cotidiano das pessoas, como a sorte, o destino e poderes que podem decidir o que vai acontecer com alguém. Outras forças podem entrar em contato com as pessoas durante a sua existência e podem ser manipuladas em favor ou contra elas, como astros, amuletos, talismãs, magia, feitiços, etc. A existência das pessoas está ligada a esses “seres” e “forças”, onde pro- curam soluções para as doenças, fome, futuro incerto, direção em decisões, sorte no amor, como lidar com os espíritos. As pessoas tentam conquistar o favor de seres pessoais ou de forças atuantes, a fim de conseguir algum benefício próprio, imediato e particular, para si mesmas e para outras pessoas. Todavia, o Cristianismo estabelecido via evangelização católica e protes- tante fornece o ideal doutrinário, conceitual e moral dessas cosmovisões, em uma síntese não tão tranquila. Determinada pelo batismo cristão após a catequese, as cosmovisões religiosas vão mais além do estabelecido pela doutrina e organização religiosa cristã, distanciando-se pouco a pouco na medida em que inclui as ideias religiosas fundantes. Assim, crenças e prá- A experiência religiosa 11 ticas religiosas cristãs são misturadas facilmente às formas não cristãs de religiosidade, como a indígena e a africana, resultando outras cosmovisões com traços indígenas-africanos-cristãos. Tipologias da experiência religiosa Cosmovisões religiosas surgem de experiências religiosas como seu elemento fundante. Contudo, uma experiência religiosa não é única nem unificada. Para descrevê-la, precisamos de uma tipologia da experiência religiosa, isto é, uma investigação comparativa quanto ao modo como as diversas cosmovisões religiosas propõem a vivência da fé religiosa a seus praticantes. O método comparativo nos ajuda a entender quão variados são os tipos e subtipos de experiência religiosa, conforme pode-se verificar segundo Yandell (2010), a seguir. Experiências de iluminação As experiências de iluminação são típicas de religiões como o Budismo, o Jainismo e o Hinduísmo vedanta. No Budismo, é chamada de Nirvana e des- creve estados fugazes da consciência, até mesmo de sua suspensão total, e a quietude como consequência. No Jainismo, é chamada de Kevala, concen- trada na perenidade do eu em meio às percepções breves da consciência. No Hinduísmo, vedanta é chamada Moksha a experiência que envolve a identifi- cação do eu com Brama. Veja que todas sugerem a mesma experiência: uma autoconsciência a partir do despertamento do eu, mas cada uma difere no que diz respeito ao objeto e ao fim dessa iluminação. Experiências do numinoso As experiências do numinoso são particulares das religiões monoteístas como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo, comumente vinculadas à percepção de um Deus pessoal e autocomunicante. O sujeito experimenta o grandioso, espetacular, majestade e santidade de um ser vivo que desperta nele um sentimento de criaturidade e dependência, acompanhada de uma sensação de pecaminosidade, que gera arrependimento e adoração. Diferentemente das experiências anteriores, a experiência é feita fora do eu, não havendo nenhum grau de identificação o eu e a experiência. A experiência religiosa12 Experiências da natureza Também existem experiências da natureza na qual o sujeito se envolve percep- tivelmente com algum elemento natural, normalmente de caráter autônomo e individual, desvinculada de tradições e práticas religiosas. Tipologias dos objetos da experiência religiosa Toda experiência religiosa possui ou é dirigida para um objeto, um algo com o qual ela se relaciona, e que se torna o centro de seu discurso também. O método comparativo nos ajuda a conhecer e identificar os muitos e variados objetos das diversas experiências religiosas. Veja, a seguir, a classificação apresentada por Webb (2017). Experiências da iluminação Nas experiências de iluminação típicas do Budismo, Jainismo e Hinduísmo, não há um ser distinto e separado como objeto da experiência religiosa, e sim um fato ou aspecto básico da realidade: brama, o eu, ou o vazio. Característica da tradição religiosa budista é a meditação a partir da concentração em algum objeto da realidade que está na mente em busca da sua superação até ver a verdadeira natureza da realidade. Experiências do numinoso Nas experiências do numinoso o objeto é o próprio Deus, entendido como um ser espiritual onipotente, onisciente, e onipresente, eterno e perfeitamente bom. A iniciativa da revelação é de Deus a pessoas por ele escolhidas para alguma tarefa, como Moisés, Jesus ou Maomé, os profetas, ou a pessoas que se esforçam por conhecê-lo, como os místicos e místicas. Experiências da natureza Nas experiências da natureza é difícil especificar um objeto, visto que, de modo geral, ele se encontra difuso e fluido ou concentrado em alguma parte ou aspecto natural, sem que seja caracterizado por algum traço identitário. Experiência mística Uma experiência religiosa peculiarmente incomum é a experiência mística. Por isso mesmo é bastante complicada uma definição, visto que ela comporta “[...] uma constelação de práticas distintas, discursos, textos, instituições, A experiência religiosa 13 tradições, e experiências objetivando a transformação humana” (GELLMAN, 2019, documento on-line). De todo modo, é possível oferecer uma definição ampla e outra restrita de experiência mística. Gellman (2019) explica a experiência mística como uma experiência per- ceptiva que vai além dos sentidos e da introspecção comum, com ou sem a presença de reações físicas ou mentais, cujo resultado é a aquisição de um conhecimento de alguma realidade, seja Deus, seja o próprio eu, seja outro lugar. Dessa forma, toda experiência religiosa é uma experiência mística. Por outro lado, uma definição restrita acrescenta um aspecto unitivo à experiência perceptiva, onde acontece a dissolução dos limites entre quem tem a experiência e o objeto experimentado, acontecendo uma união total com a erradicação de qualquer duplicidade ou multiplicidade. Essa é considerada a experiência mística exemplar, pois ela vai além do conceito de experiência religiosa enquanto relacionada a algum conteúdo ou contexto religioso. A experiência mística na história das religiões A partir da observação empírica comparativa da experiência mística, conforme compreendida e vivenciada nas diversas religiões, Gellman (2019) constrói a seguinte tipologia de suas características fundamentais: Extrovertida e introvertida A experiência mística extrovertida é externa ao sujeito quando se dá a uni- dadecom o mundo ao seu redor; enquanto a introvertida é interna ao sujeito quando a unidade é dirigida para a sua interioridade, gerando uma percepção de nulidade, vazio ou falta de percepção sensorial do mundo externo. Dualista e monista A experiência mística dualista preserva a distinção, ainda que tênue, entre o sujeito e o que é desvelado a ele; enquanto a monista é unitiva dissolvendo a dualidade em uma só dimensão ou realidade. Nesse último caso, pode-se falar da união entendida como mútua participação na mesma realidade, e da união entendida como identificação quando acontece o desaparecimento do sujeito na realidade desvelada. Ambas as experiências são tipicamente encontradas no Cristianismo, sobretudo os chamados místicos e místicas medievais. No primeiro modelo, temos Bernardo de Claraval que descrevia a união com Deus como uma participação mútua em amor; e Jan van Ruysbroeck, para quem a união com Deus era semelhante à união do ferro com o fogo. A experiência religiosa14 No segundo modelo, temos o místico Sufi al-Husayn al-Hallaj (858–922), que chegou a proclamar “eu sou deus”; e o cabalista judeu Isaac de Acre, que escreveu sobre sua alma ser absorvida por Deus semelhante a um jarro de água em uma fonte corrente. No segundo modelo, temos o caminho místico de Teresa de Ávila, composto por: � oração mental; � oração de silêncio; � devoção de união onde a razão é absorvida em Deus; � devoção de arrebatamento onde tudo desaparece restando apenas a presença de Deus. Teúrgico e não teúrgico A experiência mística teúrgica procura ativa e deliberadamente, por meio de ritos e práticas, a comunhão com o divino movendo-o para alguma finalidade ou propósito do sujeito. Enquanto a não teúrgica envolve os mesmos atos, porém sem essa pretensão. No primeiro modelo, temos a mística cristã que, de certo modo, elabora caminhos para o encontro com Deus e busca dispor a graça divina em favor do sujeito; a Cabala judaica onde o sujeito objetiva fazer mudanças na vida interior da divindade; e a magia ritual que busca incorporar o divino. No segundo modelo, temos escolas filosóficas chamadas esotéricas que estudam as bases da magia e dos rituais sem, todavia, incorporá-los em alguma atividade mística. Apofático e catafático A experiência mística apofática afirma que nada pode ser dito acerca do modo como ela acontece, muito menos daquilo que é conhecido como resultado dela. Ela é totalmente incomunicável. O oposto acontece na experiência mística catafática, onde ela pode ser descrita como também o seu conteúdo é comunicável. Como exemplo de uma experiência mística apofática está no Tao, onde nomear as coisas é o princípio de toda multiplicidade, enquanto não nomear é o princípio criador do céu e da terra. Como exemplo de uma experiência mística catafática temos presente na descrição de cada etapa da elevação até o divino recheado de afirmações positivas acerca de quem o divino é. A experiência mística, por sua própria natureza, é descrita como inefável e paradoxal. Inefável é usada quando o sujeito afirma tal beleza, verdade e perfeição que não cabe uma linguagem ordinária para comunicá-la. Paradoxal A experiência religiosa 15 qualifica a experiência mística oposta àquilo que é esperado pelo sujeito, ou por atitudes que sugerem o contrário, como esvaziar-se para ser cheio, ou procurar um estado entre o pensamento e o não-pensamento. Assim qualificada e apresentada no campo do método comparativo das religiões, podemos conhecer a experiência mística em sua relação com a experiência religiosa, sem perder de vista que o que pode ser aprendido de ambas é estreitamente associado à mundividência própria de cada sujeito que faz a experiência. Sagrado a partir da cosmovisão de uma experiência religiosa, inter-religiosa e não religiosa Quando a pessoa diz ter experiências de uma religião, mais de uma religião ou nenhuma religião, sua compreensão se enquadra em um conjunto de experiências religiosas ou piedosas originais do mundo no qual vive. E o que impressiona as pessoas seja em qualquer situação na qual acontece a experiência religiosa ou não religiosa é o que lhe vêm gratuitamente, como um dom, cujas características são bondade, verdade e beleza, que despertam no ser humano outra ordem das coisas, e constitui, para ele, outro modo de ver sua própria existência no mundo. Essas características se apresentam em toda experiência religiosa e inter-religiosa, mas também se fazem perceber onde a religião sequer é mencionada, e onde nenhuma cosmovisão religiosa é indicada, mas cuja presença é percebida na interpretação das vivências do mundo. Sagrado e cosmovisão de uma experiência religiosa Uma cosmovisão religiosa reconhece o sagrado em tudo aquilo ao qual se atribui a capacidade de encarnar, exteriorizar ou institucionalizar, no sentido de ritualizar, o sentimento humano perante o que há de mais fundamental, no sentido de mais real, da sua experiência de viver no mundo. Por isso, sagrado é tudo aquilo que é dado como “separado” ou “santo”, isto é, ele tende a constituir um espaço da experiência humana no mundo distinto das coisas ordinárias. Uma experiência religiosa assim orientada sacraliza ou santifica lugares (templo), tempos determinados (dia, festa), ações (ritos), pessoas (profetas e sacerdotes), textos (escrituras, narrativas, fórmulas), imagens (pinturas, A experiência religiosa16 esculturas), espetáculos (representações), etc. Ela exige uma atitude especial do ser humano, como certo temor ou reverência profunda, que modifica o comportamento, os gestos, as roupas, a fala, as ações, os relacionamentos. Mais do que isso, porém, a experiência religiosa do sagrado identifica-o com um outro para o qual todo ser humano tende, como descreveu Eliade (1992, p. 13): A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, urna pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mun- do – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano. Eliade (1992) segue dizendo que sagrado e profano constituem um modo de se posicionar frente ao Cosmos, pois quando o sagrado se manifesta, o faz a partir do cosmos, isto é, da ordem natural. Árvores, rios, matas, ob- jetos, pessoas, vivas ou mortas, servem para mostrar que há algo mais na existência humana, um mistério oculto que chama e atrai para a descoberta, proporcionando outra dimensão da vida. O ser humano, então, percebe em si um temor, uma reverência, uma admiração que o chama para um encontro interior que ele sente almejar e necessitar dentro dele mesmo. Eliade (1992) distinguiu entre o sagrado e o profano como duas modalidades de existir do ser humano no mundo. Paralelamente ao espaço e tempo em que vivemos nossas vidas comuns, existe outro espaço e tempo para onde nos lançamos em busca de sentido e experiência transempírica. Isso não significa que saímos de nossa existência cotidiana, mas que criamos nela espaços e tempos no qual vivenciamos outra realidade em nossas vidas. São variadas as linguagens pelas quais se apresenta o sagrado na expe- riência religiosa. Ela pode ser mitológica, onde se fala do sagrado em termos de imagens, narrativas e símbolos, normalmente fantásticos, de modo a apelar à imaginação e aos sentimentos, antes que à razão ou à fé, criando certos universais que explicam a existência humana no mundo. Pode ser filosófica, na qual se faz a associação entre a experiência religiosa e uma manifestação racional como formação e comunicação de conceitos que ajudem a explicá-la e a entendê-la. Pode ser ética-teológica, de modo que o sagrado é ligado a um deus e as instituições, leis, costumes e demais vivências humanas. E, ainda, pode ser fenomenológica,onde a apresentação da experiência religiosa é percebida, recebida e representada na subjetividade de um sujeito que pode falar sobre ela. A experiência religiosa 17 A experiência que o ser humano faz com o sagrado, todavia, é maior do que aquilo que lhe é apresentado. Nele, o sagrado se faz representar como relação e encontro com o sublime e santo, inserindo-o em outra dimensão da realidade. E, também, como salvação, gozo perene, e transformação que reo- rienta sua existência para o que a transcende, como uma união indestrutível. “Sagrado” é uma palavra comum em nosso vocabulário e geralmente usada em oposição a profano ou a mundano. A ênfase excessiva nessa distinção tende a dividir a vida em duas esferas e a desvalorizar o profano ou mundano como de menor valor, e até pecaminoso e prejudicial. Sagrado e cosmovisão de uma experiência inter- religiosa Uma cosmovisão inter-religiosa preserva o que há de religioso no sagrado, entretanto partilhando-o com mais de uma cosmovisão religiosa. É possível refletir sobre isso a partir de três temas: a experiência do sagrado é comum a toda e qualquer experiência religiosa; a experiência religiosa se dá e se faz a partir de contextos diferentes dando lugar a diversas cosmovisões religiosas; o fenômeno contemporâneo da globalização religiosa coloca, necessariamente, a pluralidade religiosa e como as religiões interagem umas com as outras. Começando por esse último tópico, vivemos um tempo no qual as religiões estão disseminadas por toda a parte, tornando-se globais. As pessoas podem experimentar um culto amazônico do Santo Daime em uma sala de reuniões de uma grande capital em quase qualquer lugar do mundo. São muitas as possibilidades de experimentações religiosas, o que não implica um vínculo institucional com nenhuma delas, como diz Jungblut (2014, documento on-line): Uma das coisas que mais fica evidente nesse processo de horizontalização da globalização da religião é o ganho de autonomia identitária dos indivíduos frente às “tradições” que sustentam muitas das modalidades religiosas existentes na atualidade. As religiões –e mesmo as religiosidades mais difusas e desinstitu- cionalizadas do mundo moderno– necessitam, em maior ou menor escala, algum ancoramento em tradições com alguma profundidade histórica. É preciso ter em mente, portanto, o processo de destradicionalização que é desencadeado pela globalização e que afeta o campo religioso mundial. O inverso também deve ser refletido. De que modo e em que medida a globalização religiosa entendida como um processo social diversamente A experiência religiosa18 experimentado, que atravessa as nações, modificando a experiência do tempo e do espaço, afeta as religiões? Conforme Ortiz (2001), não há o predomínio de uma religião global, pois todas as religiões e crenças estão presentes de modo diferenciado, e mesmo a experiência religiosa é diversa em cada uma delas. Para Ortiz (2001), as religiões estão presentes para além dos limites terri- toriais e políticos de um Estado-nação, e tem mais potencial aglutinador de ações e estratégias globais, demandando a lealdade dos seus participantes independentemente de onde estão localizados e da sua lealdade a uma nação onde nasceram ou vivem. Toda religião se tornou um lugar de memória e de identidade, onde as pessoas se vinculam umas às outras, como parte de uma comunidade religiosa global. A falência do projeto modernizador de articular as necessidades das sociedades, abriu espaço para que as religiões provessem meios a partir de suas próprias sabedorias para orientar os indivíduos em uma escala transnacional, propondo, inclusive, uma ética global apoiada em uma concepção religiosa da dignidade humana, da duplicidade humano-natureza, em franca oposição à ideologia do mercado global, considerada promotora do que há de mais perverso por estimular a ação egoísta humana: o consumo. Dilthey (1992) nos ensina que diversos contextos mudam as conexões vitais das pessoas, provocando, também, experiências de vida diferentes, que, por sua vez, rearranjam as mundividências religiosas, e é o que acontece no mundo atual. Quaisquer que sejam, contudo, elas retêm o mesmo propósito de oferecer uma solução para os enigmas da vida sob a base de uma imagem cósmica. Desde a qual são decididas as questões do sentido e do significado da vida, o bem para o qual as pessoas são orientadas, os princípios e valores que as guiam em seu cotidiano, nas pequenas e grandes decisões. Sobre ela é edificada a vida psíquica das pessoas, determinando seus prazeres e desprazeres, gostos e atitudes, a sua vida pessoal e coletiva. As pessoas vivenciam experiências religiosas diferentes constituindo mundividências religiosas variadas, justificando que o conjunto delas seja chamado de pluralidade. Isso implica uma reconsideração do lugar hege- mônico dado a uma ou outra mundividência religiosa, tal como descreve Dilthey (1992, p. 18): [...] As mundividências que fomentam a compreensão da vida e induzem a objetivos vitais e proveitosos conservam-se e suplantam as mais insignificantes. Assim se opera entre elas uma selecção. E, na sucessão das gerações, as mundividências mais viáveis desenvolvem-se até obter uma forma mais perfeita. A ideia de que uma cosmovisão religiosa deve superar as demais como por um processo evolucionista, seja derrotando-as, seja apresentando-se mais A experiência religiosa 19 perfeita, é superada pela compreensão de que qualquer uma delas se organiza sob a mesma estrutura orientada para o mesmo fim: responder e confortar o indivíduo em sua indagação pela vida. Somente que cada cosmovisão reli- giosa é determinada pelo lugar, pela coletividade, pela individualidade, pelo tempo, pela genialidade e engenhosidade de um e outro, uma e outra; enfim, pela experiência vital que conduz uma mundividência religiosa a ser de tal modo, enquanto outra se desenvolve de modo diferente. Sendo assim, cada uma também é uma resposta específica ao contexto vital de onde ela mesma brotou, em solo fértil, para o qual também é destinada a nutrir e sustentar. Em que medida e sob quais condições se dá a apreensão do sagrado em uma cosmovisão inter-religiosa? A experiência religiosa se origina na percep- ção e apreensão do sagrado considerado um mistério a ser nomeado conforme a cosmovisão religiosa que a sustenta. Várias são as formas disso acontecer e desse sagrado ser nomeado via objetificação da experiência religiosa. Nas religiões monoteístas, o sagrado é nomeado Deus em um sentido pessoal, trata-se de um nome próprio. No Hinduísmo, Brahman é fundamento da realidade, não sendo ligado a alguma pessoalidade ou personificação, sendo a forma do Absoluto. Mas, há deuses que são nomeados como: Shiva, Agni e outros. No Budismo, não há deuses a ser nomeados, apenas transcendência e a iluminação quando ela é alcançada. Nas religiões afro-indígenas brasileiras os deuses são nomeados, mas interagem continuamente com o ambiente natural aos quais são vinculados. Portanto, uma cosmovisão inter-religiosa corresponde uma respectiva cosmovisão intercultural, e somente uma perspectiva intercultural contribui para a superação das muitas formas de tendências etnocêntricas e mono- culturais que reduzem a experiência religiosa do sagrado, desconsiderando a alteridade e o diálogo como valores a serem preservados continuamente. Leia sobre a relação atual entre diálogo inter-religioso e liberdade religiosa no artigo de Ivanir dos Santos, “A caminhada em defesa da liberdade religiosa e seus desafios para a construção do diálogo inter-religioso”, publicado na Revista Numen, v. 22, n. 1, p. 26-42, jan./jun. 2019, disponível na internet. A experiência religiosa20 Sagrado e cosmovisão de uma experiência não religiosa Uma das características do nosso tempo é a transferência do sagrado de cosmovisões religiosas e inter-religiosas para outras não religiosas. Houve tempo em que a experiência não religiosa era chamada deidolatria quando se atribuía o sagrado a coisas que em si mesmas não possuíam a qualidade atribuída. Ou de secularização quando se retirava o sagrado das coisas que possuíam essa qualidade. Ou, ainda, de humanismo quando o ser humano negava ao sagrado o domínio e gestão de sua própria vida, a maneira como desejaria e queria modelar a sua experiência no mundo no qual vive, por limi- tações resultantes de obrigações e deveres que o sagrado viesse a lhe impor. Como conceito não religioso é possível intuir o sagrado a partir da cone- xão vital entre o espírito humano e o lugar no qual ele mora, vive e constrói sua cosmovisão. Lugar que é solo, chão, que nutre, alimenta, dá e mantém a vida, mas que também o recebe de volta, libertando-o para que sua jornada siga adiante. Esse retorno ao sagrado não significa, entretanto, que se trate de um retorno à cosmovisão religiosa. A identidade construída pelo ser humano na sua relação com esses dias é de tal modo fragmentada, multifacetada, individualizada, que não se pode apontar uma só experiência não religiosa do sagrado. Sua condição de existência no mundo lhe é imposta pela ordem do presente. É ela que orienta o espírito humano e, assim, a sua espirituali- dade, carregada de um presente intenso e urgente. E esse presente oferece um mundo de sensações difusas, desconexas e pouco significativas quanto ao seu sentido. Por outro lado, não implica em que não haja interesse reavivado pela experiência do sagrado, ainda que não religiosa. Isso é perceptível no recente interesse das gerações mais jovens em se assumirem publicamente interes- sadas no espiritual não religioso, e não mais restrita à identidade privada das pessoas. Enquanto as pessoas mais velhas, cuja experiência religiosa foi modelada pela modernidade, tinham e ainda têm alguma vergonha em admitir publicamente uma experiência religiosa. Isso não ocorre com os mais jovens, que não demonstram o mesmo constrangimento e, inclusive, buscam claramente essa experiência. Boa parte dessa busca tem a ver com o fortalecimento de atitudes, prá- ticas e valores que proporcionam o bem-estar e convívio públicos, típico de uma atitude samaritana. Nela, a prática da conduta confirma a veracidade da experiência não religiosa, redefinindo um novo campo semântico para a A experiência religiosa 21 palavra “justiça”. Ela não é mais empregada juntamente com “reparação” e “vingança”, mas com “perdão”, “amor” e “solidariedade”. Separa-se a doutrina cristã da experiência das atitudes, valores e sentimentos que ela inspira. Isso é bem específico com relação a Jesus, em que o interesse está nos relatos dos evangelhos e não na doutrina cristológica. Jesus se torna um exemplo de imitação, onde não importa o que houve de historicamente verda- deira nele, mas até onde se busca inspiração na narrativa de um ser humano que, em sua busca de Deus, ensinou os seres humanos como deveriam viver. Nesse sentido, a própria salvação ganha contornos diferentes. Não se trata de definir o destino final dos seres humanos e nem de dividi-los entre os que seguem a doutrina cristã e frequentam a igreja e aqueles que não o fazem. A salvação é vinculada ao seguimento de Jesus. Salvo é aquele que faz o que ele fez e quanto de sua conduta responde aos apelos do Nazareno. Outro modo de compreender a experiência não religiosa do sagrado à luz de uma cosmovisão moderna e pós-moderna é observando como são sacralizados a vida e o meio ambiente, de modo que corresponder à sua sacralidade é vivenciar a experiência não religiosa do sagrado. Defender a vida, em todos os seus níveis têm valor equivalente ao sagrado hoje em dia, se tornando um princípio ético irrecusável. O que aproxima um vegetal, um animal e um ser humano? Obviamente que a vida, pois todos são constituídos de organismos que vivem. Isto equivale a dizer que todos eles são capazes de realizar determinadas ações que os mantém vivos: nutrir- -se, crescer e se reproduzir. Portanto, é legítimo afirmar o valor sagrado da vida, para além da mera observação e constatação mecânica de como ela se manifesta. Contudo, observar a sacralidade da vida deve inserir o meio ambiente com os ecossistemas e biodiversidades que o compõem. Os seres humanos os usam para edificar o seu modo de viver sem, todavia, prestar a devida atenção ao modo de vida desses seres, esgotando-os, senão destruindo-os, inviabilizando a vida que está ali. Uma experiência não religiosa do sagrado exige uma cosmovisão não religiosa desses ecossistemas e biodiversidades, e dos seres que neles coabitam juntamente conosco o mesmo planeta. Escolher preservá-los, dando-lhes o mesmo direito à vida que reivindicamos para nós é o que há de mais sagrado a ser feito. E isso é realizado por meio de uma cosmovisão que veja os seres humanos enquanto seres sociais, culturais, políticos e individuais, assegurando o conhecimento e conscientização, como também os meios para realizar as transformações necessárias. Referências A experiência religiosa22 ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. DILTHEY, W. Os tipos de concepção de mundo. Covilhã: Lusosofia, 1992. ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. GELLMAN, J. Mysticism. In: STANFORD Encyclopedia of Philosophy. [S. l.: s. n.], 2019. Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/sum2019/entries/mysticism. Acesso em: 17 fev. 2021. JUNGBLUT, A. L. Globalização e religião: efeitos do pluralismo global no campo religioso contemporâneo. Civitas, v. 14, n. 3, set./dez. 2014. Disponível em: https://revistasele- tronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/16483. Acesso em: 17 fev. 2021. ORTIZ, R. Anotações sobre religião e globalização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, out. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102- -69092001000300004&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 17 fev. 2021. SMITH, W. C. O sentido e o fim da religião. São Leopoldo: Sinodal, 2006. TILLICH, P. Teologia sistemática. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1987. TOMÁS DE AQUINO. O ente e a essência. Covilhã: Lusosofia, 2008. WEBB, M. Religious experience. In: STANFORD Encyclopedia of Philosophy. [S. l.:s. n.], 2017. Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/win2017/entries/religious- -experience. Acesso em: 17 fev. 2021. YANDELL, K. E. Religious experience. In: TALIAFERRO, C.; DRAPER, P.; QUINN, P. L. (ed.). A companion to philosophy of religion. 2. ed. Sussex: Blackwell, 2010. Leituras recomendadas CROATTO, J. S. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2010. OLHAR Indígena - Pajé Kizib e a Cosmovisão do Povo Desana. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (6 min). Publicado pelo canal Raphael Crespo. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=c7_d9oiYd6k. Acesso em: 17 fev. 2021. SANTOS, I. A Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa e seus desafios para a construção do diálogo inter-religioso. Numen, v. 22, n. 1, 2019. Disponível em: https:// periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/29599. Acesso em: 17 fev. 2021. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. A experiência religiosa 23 EPISTEMOLOGIA DO FENÔMENO RELIGIOSO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Diferenciar sagrado e profano. > Descrever elementos de leitura do religioso. > Relacionar as linguagens sagradas com as linguagens religiosas a partir da oralidade e da escrita. Introdução A religião é um sistema bastante complexo e muitos teóricos citados a seguir, entendem-na comoum sistema simbólico, uma verdadeira linguagem que deve ser decifrada por aquele que a deseja compreender. Ao estudar o fenômeno religioso, certamente pesquisador se depara com dois termos estruturantes: o sagrado e o profano. Eles representam uma importante chave de leitura para o estudo desse fenômeno. Neste capítulo, você vai receber importantes chaves de compreensão deste fenô- meno, especialmente os elementos constituintes desta linguagem: o símbolo, o mito e o rito. Além disso, será introduzido aos termos sagrado e profano a partir da perspectiva de dois importantes teóricos para o estudo da religião: Rudolf Otto e Mircea Eliade. O sagrado e o profano: chaves de interpretação do fenômeno religioso Por ser complexo, o fenômeno religioso pode ser compreendido a partir de diversas chaves interpretativas. Uma delas diz respeito ao binômio sagrado/ Linguagens religiosas: lendo o sagrado Robert Rautmann profano. São conceitos relativamente simples, mas que não são unânimes nos estudos da religião. Neste capítulo, nos ateremos especialmente às perspectivas de dois autores, Rudolf Otto e Mircea Eliade, ambos ligados à fenomenologia da religião. Em síntese, pode-se dizer são estudos que se interessam pelo sentido ou a essência do fenômeno religioso. Rudolf Otto Rudolf Otto nasceu em 25 de setembro de 1869, em Peine, na Alemanha. Foi pastor protestante, filósofo e teólogo. No ano de 1898, doutorou-se com a tese intitulada “As concepções do Espírito Santo em Lutero”. Em 1904, tornou-se professor de teologia em Göttingen; mais tarde, em 1917, passou a lecionar na Universidade de Marburg. É desse mesmo ano a sua mais famosa obra: O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. No ano de 1937, após uma combinação de dependência de morfina e crises depressivas, Otto foi internado numa clínica psiquiátrica, onde viria a falecer logo em seguida. Essas informações são relevantes aos estudos de religião, pois sua compreensão de sagrado deriva diretamente de sua cosmovisão luterana e de seus estudos como teólogo. A obra O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional, elaborada em 23 capítulos, procura analisar a reação dos indivíduos diante do que o autor chama de “numinoso”. Em sua análise, é o sagrado a origem de toda a religião, expresso das mais variadas formas. Nesse sentido, Otto procura analisar as modalidades da experiência reli- giosa, voltando-se para o lado irracional da religião. Segundo ele, os elementos racionais de uma religião são necessários para se ter acesso a ela; contudo, representam apenas a parte periférica da experiência religiosa. A religião teria como tarefa possibilitar que o indivíduo experiencie o sobrenatural. Ao pensar dessa forma, Otto apresenta uma postura crítica em relação ao racionalismo advindo do Iluminismo e do pensamento posterior. Sua com- preensão é que a linguagem tenta apresentar a divindade de forma racional. Porém, os conceitos nunca esgotam a ideia da divindade. A partir do segundo capítulo de sua obra, Otto categoriza essas experiências religiosas como numinosas, ou seja, divinas. Essa categoria, segundo Otto, não poderia ser definida, apenas debatida. O numinoso seria algo totalmente diferente, totalmente outro (ganz andere, em alemão), o lado irracional da reli- gião que havia sido esquecido pela ênfase na racionalização dos seus estudos. Essa categoria numinosa seria algo que os místicos das várias religiões teriam vivenciado. Um deus compreendido não seria um Deus, segundo Otto (2007). Linguagens religiosas: lendo o sagrado2 O adjetivo numinoso utilizado por Rudolf Otto é um neologismo do autor. É derivado de numen, palavra latina que pode significar “divindade”, “poder celestial”, “inspiração”. Com o termo, Otto queria se referir ao sentimento da criatura diante do transcendente, ou seja, um sentimento de reverência, temor e fascínio. Vejamos caso a caso alguns aspectos dessa ideia de sagrado que ficam evidenciados na obra de Otto. Aspecto do tremendum É estabelecida uma comparação entre o temor que o ser humano sente diante de uma situação de destruição ou violência e o temor diante do sagrado. Trata-se de uma comparação com semelhanças, mas também dessemelhanças: [...] é uma designação bastante próxima daquilo a que queremos nos referir, mas que não passa de uma analogia para uma reação emocional muito específica que se assemelha ao temor e permite que este dê uma pista dele, mas a reação em si é algo bem diferente de temer (OTTO, 2007, p. 45). Deve-se recordar que Otto tinha diante de si os textos bíblicos do Antigo Testamento e as experiências místicas que ali estavam descritas, muitas delas permeadas deste temor diante do sagrado. Aspecto avassalador Outra característica do divino/sagrado, para Otto, tem relação com o termo majestas, que procura expressar uma superioridade esmagadora de poder. Diante da realidade do sagrado, o ser humano se sentiria totalmente nulo, insignificante. É o sentimento da criatura diante da divindade criadora, que “[...] afunda e desvanece em sua nulidade perante o que está acima” (OTTO, 2007, p. 41). Aspecto fascinante O divino comporta, segundo Otto, um duplo caráter: ser terrível, repulsivo, tremendo e, ao mesmo tempo, atraente e fascinante. Na compreensão do sagrado para Otto, “[...] o que me apavora me atrai” (OTTO, 2007, p. 68). O in- divíduo permanece em um estado de repulsa e, ao mesmo tempo, de atração; o temor o distancia, mas o fascinante lhe atrai. Linguagens religiosas: lendo o sagrado 3 Aspecto enérgico Segundo Otto, este aspecto seria a energia do numen. Diante do sagrado, o indivíduo tem suas paixões, sua vontade e seu zelo sagrado despertados. Ele é tomado por um tipo de ira santa ou um impulso irresistível, um amor ardoroso, enfim, uma paixão arrebatadora em relação à divindade. Otto compreende, portanto, que o sagrado seria a própria manifestação divina (que, para ele, se trata da divindade judaico-cristã). Deus seria um poder terrível, não uma alegoria moral ou uma ideia filosófica (não o deus dos filósofos). Ele descobre o pavor terrível diante do sagrado, o mysterium tremendum, mysterium entendido como o que está escondido, o que não se revela, o que não é intuído, o que não é compreendido. Para ele, o temor religioso seria mysterium fascinans. Não sendo racionalizado, pode ser apenas vivenciado na dimensão do sentimento. A vivência religiosa diante do sagrado, segundo Otto, envolveria as sensações do corpo: “É notável que semelhante terror característico diante da presença do inquietante provoque uma reação física, tão singular, nunca juntamente com o medo e o terror natural: ‘congela- -se o sangue nas veias’, ‘a pele arrepia’” (OTTO apud GASBARRO, 2013, p. 82). Mircea Eliade Mircea Eliade foi um intelectual nascido em 1907 em Bucareste, na Romênia. Estudou na Romênia e na Índia (na Universidade de Calcutá) e doutorou-se em 1933, com uma tese acerca das técnicas iogues. Retornou a Bucareste, passou por Portugal, França e Estados Unidos, onde faleceria, aos 79 anos. Foi bastante marcado pela obra O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional, de Rudolf Otto. Utilizou métodos descritivos em suas abordagens, valendo-se de seu amplo conhecimento de diversas culturas e religiões, não somente daquelas ocidentais. Sua obra central é O sagrado e o profano: a essência das religiões, publicada originalmente no ano de 1954. Há, contudo, diversas obras suas importantíssimas para o estudo da religião: História das crenças e das ideias religiosas (elaborada em três volumes), Mito e realidade, Dicionário das religiões, Tratado de história das religiões, O conhe- cimento sagrado de todas as eras, Yoga: imortalidade e liberdade, Ferreiros e alquimistas, O Mito do Eterno Retorno, Mefistófeles e o Andrógino, Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso, entre muitas outras. Mircea Eliadeescreveu sua obra O sagrado e o profano: a essência das religiões quase 40 anos após o texto fundamental de Otto (O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional). Talvez por não ser não teólogo, conseguiu perceber certas limitações no pensamento de Linguagens religiosas: lendo o sagrado4 Rudolf Otto. Eliade entendeu que a abordagem de Otto tinha seu valor para o leitor, mas ele próprio pretendia uma abordagem diferente, analisando o sagrado de uma forma mais completa e complexa: Passados 40 anos, as análises de R. Otto guardam ainda seu valor, o leitor tirará proveito da leitura e da meditação delas. Mas nas páginas que seguem, situamo- -nos numa outra perspectiva. Propomo-nos apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional. Não é a relação entre os elementos não racional e racional da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade (ELIADE, 2018, p. 16–17). Sua definição inicial de sagrado é de algo que “está em contraposição ao profano” (ELIADE, 2018, p. 17). Toda a realidade sociocultural está, segundo Eliade, numa dialética “sagrado/profano”. Em sua obra O sagrado e o profano: a essência das religiões, ele proporia então o termo hierofania para designar a manifestação do sagrado. Hierofania é uma palavra formada por dois termos gregos (hiero = sagrado; faneia = manifesto). Bastante utilizada na fenomenologia da religião, especialmente por Eliade, significa a manifestação de uma realidade sagrada. De acordo com várias tradições religiosas, essa manifestação do sagrado pode se dar em um objeto (uma espada, um colar, uma pedra, etc.), um ser vivo (árvore, animal) ou até mesmo na encarnação humana de uma divindade. Para Eliade, o termo era útil, pois teria apenas a função de apresentar que o sagrado se revela. Segundo o autor, a história das religiões apresenta uma série de hierofanias indiscutíveis, pois alguma coisa de ordem diferente teria se manifestado no plano das coisas ordinárias, comuns, profanas. Assim, as coisas ditas sagradas são reverenciadas pelas pessoas não pela coisa em si, mas porque são hierofânicas. Dessa forma, os indivíduos das primeiras sociedades humanas buscavam estar próximos desses objetos sagrados, pois equivaleriam ao poder. Esses indivíduos, na reflexão de Eliade, compreen- diam suas ações sempre em relação ao sagrado, ao contrário do indivíduo moderno, que dessacralizou suas ações e o cosmo que o rodeia. O indivíduo “primitivo” (utilizando-se a terminologia de Eliade) seria o Homo religiosus. [...] o homem religioso assume um modo de existência específica no mundo, e, apesar do grande número de formas histórico-religiosas, este modo específico é sempre reconhecível. Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o Homo religiosus acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tornando- Linguagens religiosas: lendo o sagrado 5 -o real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, participa da realidade. Os deuses criaram o homem e o Mundo, os Heróis civi- lizadores acabaram a Criação, e a história de todas as obras divinas e semidivinas está conservada nos mitos (ELIADE, 2018, p. 164). Para ambos, Rudolf Otto e Mircea Eliade, como representantes clássicos da fenomenologia da religião, a questão principal está na reação do ser humano diante da manifestação do assim chamado sagrado. Não está em questão o numinoso em si, e sim a experiência religiosa humana que se dá com o numinoso. Nesta perspectiva da fenomenologia da religião, haveria em todo ser humano uma faculdade especial que o colocaria predisposto a sentir (ter sensações) diante do sagrado. Algumas críticas acerca do tema A utilização do termo “sagrado” como categoria universal é bastante dis- cutida nos círculos acadêmicos. A palavra empregada originalmente por Otto é heilig (sagrado, em alemão). Contudo, há pesquisas que apontam que o adjetivo heilig nos textos bíblicos (fonte de pesquisa essencial para Otto) corresponde, muitas vezes, a outros termos que poderiam ser utili- zados, como devoto, piedoso, honesto, sério, respeitável, venerável, etc. (USARSKI, 2006). A teoria elaborada por Rudolf Otto pode ser considerada uma reação da teologia (nesse caso, protestante) numa época em que os estudos compa- rativos das religiões e as histórias das religiões ganhavam força em terras europeias. Segundo Gasbarro (2013, p. 81), a “[...] teoria de R. Otto é de derivação teológica, ou melhor, é uma espécie de generalização perceptiva e transcendental, inteiramente protestante, da subjetividade cristã, através da experiência da criatura.” Esta segunda crítica está alinhada ao contexto, muitas vezes negligen- ciado pelos estudiosos, no qual Otto está inserido, bem como ao esquema que ele utiliza: a relação do indivíduo diante do Deus especificamente judaico-cristão. As críticas — acadêmicas, deve-se ressaltar — têm em vista uma preocupação de que o pesquisador do fenômeno religioso procure assumir um distanciamento metodológico em relação ao seu objeto de estudo. Ou seja, sua aproximação ao fenômeno religioso se dá de forma diferente do que o faria um teólogo ou um adepto desta ou daquela religião. Linguagens religiosas: lendo o sagrado6 Outro autor clássico nos estudos da religião é o francês Émile Durkheim. Sua obra mais conhecida é Formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália, escrita em 1912. Durkheim compre- ende a religião como uma forma por meio da qual o indivíduo e a sociedade estruturam o mundo. A religião, segundo ele, é um sistema de representação construído socialmente. Durkheim se utiliza igualmente do binômio sagrado/ profano. Para ele, coisas sagradas eram aquelas que protegidas e isoladas por meio de proibições. O que é profano deve estar à distância do que é sagrado. Elementos da linguagem religiosa A religião é um fenômeno ao mesmo tempo rico e complexo. Ela produz im- pactos profundos e duradouros nos indivíduos e nas coletividades. Ademais, a religião tem uma relação estreita com a linguagem. Sabemos que a experiência religiosa é vivenciada pelo indivíduo que tem, contudo, dificuldade de exprimi- -la a outrem. Eventualmente, essa dificuldade torna-se, inclusive, uma impos- sibilidade. Os relatos de pessoas que passaram por experiências de êxtase são recorrentes na literatura religiosa. Ainda assim, essa experiência tende a ser representada de alguma forma por estes indivíduos. Tais representações adquirem, portanto, um caráter simbólico, uma vez que apontam para uma realidade que ultrapassa tanto o indivíduo quanto a signo, o sinal, o símbolo utilizado para se expressar. Entendemos, portanto, que a experiência religiosa é uma experiência do tipo simbólica. Nesse âmbito, José Severino Croatto (2010, p. 81) afirma que: “Assim como a experiência da Realidade transcendente (o Mistério ou qualquer que seja seu nome) é o núcleo do fato religioso, o símbolo é, na ordem da expressão, a linguagem originária e fundante da experiência religiosa, a primeira e a que alimenta todas as demais.” Assim, o ser humano que vive a experiência religiosa dentro (ou fora) de uma tradição religiosa deseja comunicar essa experiência. Essa comunicação realiza, novamente, a vivência do sagrado, do transcendente. Os elementos dessa linguagem — o símbolo, o mito e o rito — serão examinados a seguir. O símbolo A etimologia da palavra “símbolo” apresenta sua raiz no termo latino symbolus, que, por sua vez, deriva de dois termos: syn, do grego, indicando encontro ou união, e o verbo ballein, que está relacionado a lançar ou arremeter. Assim, a Linguagens religiosas: lendo o sagrado 7 palavra “símbolo” tem como significado etimológico aproximado a noção de “lançar junto”. Esse significado implicauma dualidade que se unifica, duas realidades que se tornam apenas uma (GIRARD, 2005). Um exemplo próximo é o do matrimônio, no qual duas pessoas se tornam uma só realidade, ainda que permaneçam com suas individualidades. Na Antiguidade, há registros do uso do termo symbolon para designar um objeto, como um amuleto, partido em dois pedaços, com finalidades preci- sas: um empréstimo ou contrato de outra natureza. Entregues aos parceiros desse contrato, cada um dos pedaços permitiria aos seus proprietários (ou seus portadores) o eventual reconhecimento mútuo e a possibilidade de reclamar seus direitos ou haveres. Nessa perspectiva, o “símbolo” é com- preendido pelos envolvidos na transação. Pode-se dizer, então, que há um vínculo unindo aqueles que detêm o símbolo, ou, dito de outra forma, que apreendem seu significado. Para o senso comum, chama-se de símbolo uma infinidade de ele- mentos, como: sinais gráficos de matemática, f ísica e química, brasões, escudos, bandeiras, logomarcas, distintivos, emblemas, insígnias, etc. Para os teóricos, um signo, um emblema ou um sinal não pode ser confun- dido com um símbolo, pois aqueles foram estabelecidos por convenção e significam coisa bem concretas, enquanto o símbolo, ao contrário, transignifica, ou seja, possui um significado além dele mesmo. E o que isto quer dizer? O símbolo é um reflexo de algo que o ultrapassa. Diante da realidade que ele simboliza, o próprio símbolo se torna insignificante. De uma forma antitética, um símbolo é igual ao que representa e, ao mesmo tempo, diferente. Um exemplo bastante didático é a “água” enquanto símbolo. O indivíduo, diante dela, será tomado por inúmeras impressões simbólicas. Consideremos a função purificadora da água. Como elemento em si, a água realiza a limpeza do que está sujo. Diante da pureza da água, as coisas ficam purificadas. Desta constatação, deriva a intuição simbólica de uma purificação interior, mais profunda — de pensamentos, intenções, emoções, impurezas morais, pecados, energias negativas, etc. Trata-se, na verdade, da experiência humana diante deste elemento. Ela não é simbólica em si, mas é assim constituída a partir da vivência humana. Essa é apenas uma das aplicações simbólicas do elemento água. O mesmo elemento poderia ser considerado destrutivo (como numa inundação ou temporal), regenerador (para aquele que está sedento) ou fecundo (para as plantas). Eis o caráter polissêmico do símbolo — uma vez que está relacionado a uma realidade histórica e geográfica própria. Linguagens religiosas: lendo o sagrado8 Em relação aos critérios de determinação de um símbolo, devemos dizer, ainda, que ele deve ser observável (de conhecimento imediato), mostrar-se facilmente exprimível (simples e evidente), ter máxima expressividade, ser reconhecível por uma coletividade e ser ligado à vivência (objeto de uma experiência profunda). Portanto, o símbolo, como aponta Croatto (2010), é o elemento básico da linguagem da religião e aponta sempre para uma realidade além. O mito No entendimento do senso comum, “mito” refere-se a uma história, uma narrativa inverossímil, sem fundamentos, desprovida de verdade. Há ainda outro sentido, mais recente (que chega por meio de uma linguagem mais midiática), que significaria uma sumidade, uma personalidade destacada em determinado meio — esportivo, político, entretenimento etc. No estudo das religiões, o significado de mito está distante destes apre- sentados. A palavra tem sua origem na palavra latina mythus, e esta no grego antigo muthos, cujo significado aproximado seria fala, palavra falada, pensamento, história, lembrança. Um conceito de mito largamente aceito na comunidade acadêmica é aquele elaborado por Mircea Eliade, que, reconhecendo a limitação de se conceituar algo tão amplo, acreditava que seria o conceito “menos imperfeito”. Eis o conceito: O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido em tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. [...] Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes, dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) do Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje (ELIADE, 1998, p. 11). O mito, antes de tudo, é uma narrativa realizada com a intenção de responder algumas inquietações — sobre a existência, as origens, seres sobrenaturais, etc. O mito é ainda atemporal. Sua narrativa aponta para os primórdios — a gênese do cosmos, do ser humano, da sociedade, etc. — mas atinge todo e qualquer ser humano no local e tempo em que entra em contato com o mito. Linguagens religiosas: lendo o sagrado 9 Outro conceito interessante para a noção de mitos é: [...] são relatos fundadores, histórias de deuses ou de coisas, que fornecem um conjunto de representações das relações do mundo e da humanidade com os seres invisíveis. Oscilando entre a lenda e a ciência, o mito já é uma ordenação racional. Ele situa o homem em seu lugar no universo graças a um sistema de referências no interior de um todo cuja organização (cosmos) é afirmada e não apenas constatada (LABURTHE-TOLRA; WARNIER, 2003, p. 204). O mito, por ser uma narrativa, pertence à ordem literária e, portanto, im- plica uma sequência narrativa. Os deuses (ou seres espirituais ou superiores) são os protagonistas do mito. É por meio de suas ações ou palavras que as coisas e seres se originam. Os mitos, além disso, narram acontecimentos sig- nificativos, ou seja, não são histórias banais. Por meio dos mitos, o indivíduo entra em contato com a origem divina da sociedade a qual pertence, bem como das suas instituições, costumes, leis, comportamentos, etc. Na obra de Eliade citada anteriormente, são elencados quatro caracterís- ticas principais do mito: caráter narrativo, sagrado, verdadeiro e exemplar. Já segundo Widengren (apud JORGE, 1998), pode-se classificar os mitos em dois grandes grupos: mitos de vida e mitos sobre a outra vida. Entre os mitos de vida, o autor apresenta a seguinte classificação: � Mitos de criação — são aqueles que narram o nascimento dos deuses (teogonias) e a formação do mundo. Um poema bastante conhecido é o Enuma Elish, pertencente à mitologia babilônica, que apresenta de forma exemplar esta categoria de mito. Ainda que no Ocidente o mito de criação mais conhecido seja aquele contido nos textos sagrados judaico-cristãos, há diversos outros mitos de criação, como o asteca, o iorubá, o nórdico, o egípcio, o grego, o persa, o babilônico, entre tantos outros. � Mitos da origem da espécie humana — associa-se normalmente À gênese do ser humano a um objeto da natureza. Esse é o caso, por exemplo, na mitologia nórdica ou iraniana, bem como do texto do livro bíblico de Gênesis, no qual o homem foi formado a partir do barro. � Mitos tribais — trata-se das narrativas relacionadas aos heróis epô- nimos, ou seja, aqueles que dão seu nome a uma tribo, um local, uma época, uma dinastia, etc. Linguagens religiosas: lendo o sagrado10 � Mitos de fundação do culto — relaciona-se às narrativas mitológicas que estabelecem as origens dos cultos e cerimônias sagradas. � Mitos sociais — aqueles que descrevem as origens das instituições religiosas ou sociais. Por sua vez, os chamados mitos de morte estão relacionados à descrição de outros mundos. Podem descrever o paraíso original (muitas vezes uma era de ouro). Há também os mitos do ocaso do mundo, que descrevem o fim dos tempos e das coisas, em oposição aos mitos de criação do mundo e da humanidade. O rito Da mesma forma que o termo “mito”, “rito” é um termo polissêmico. É uma palavra usada em diversos ambientes — jurídico,
Compartilhar