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A insensatez da escritura ensaios de literatura Presidente da República Michel Miguel Elias Temer Lulia Ministro da Educação José Mendonça Bezerra Filho Universidade Federal do Ceará - UFC Reitor Prof. Henry de Holanda Campos Vice-Reitor Prof. Custódio Luís Silva de Almeida Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Antônio Gomes de Souza Filho Pró-Reitor de Planejamento e Administração Prof. Almir Bittencourt da Silva Imprensa Universitária Diretor Joaquim Melo de Albuquerque Conselho Editorial Presidente Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães Conselheiros Prof.ª Angela Maria R. Mota Gutiérrez Prof. Ítalo Gurgel Prof. José Edmar da Silva Ribeiro Fortaleza 2017 A insensatez da escritura Cid Ottoni Bylaardt ensaios de literatura A insensatez da escritura: ensaios de literatura Copyright © 2017 by Cid Ottoni Bylaardt Todos os direitos reservados Impresso no BrasIl / prInted In BrazIl Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC) Av. da Universidade, 2932, fundos – Benfica – Fortaleza – Ceará Coordenação editorial Ivanaldo Maciel de Lima Revisão de texto Leidyanne Viana Normalização bibliográfica Marilzete Melo Nascimento Programação visual Sandro Vasconcellos / Thiago Nogueira Diagramação Sandro Vasconcellos Capa Lana Carolina Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Bibliotecária Marilzete Melo Nascimento CRB 3/1135 B993i Bylaardt, Cid Ottoni. A insensatez da escritura: ensaios de literatura / Cid Ottoni Bylaardt. - Fortaleza: Imprensa Universitária, 2017. 328 p. : il. ; 21 cm. (Estudos da Pós-Graduação) ISBN: 978-85-7485-305-5 1. Literatura. 2. Arte. 3. Crítica literária. I. Título. CDD 800 Agradecimentos À Capes Ao CNPq À Editora UFC À Imprensa Universitária FEITIO ............................................................................................... 9 PARTE I: ARTE, VERDADE, OLHARES A OBRA DE ARTE COMO SER-CRIADO: considerações sobre Der Ursprung des Kunstwerkes, de Martin Heidegger ..................... 15 ARTE: desligamento sem rumo (a verdade na pintura e no discurso, segundo Derrida) ............................................................... 37 A ESTÉTICA CONTEMPORÂNEA: nova poética, novo olhar ........... 53 ENTRE OS DISCURSOS DO ETNÓLOGO, DO FILÓSOFO E DO FICCIONISTA: a diluição do centro na estrutura do romance Nove noites, de Bernardo Carvalho .................................... 73 PARTE II: DOSSIÊ LOBO ANTUNES O DESEJO QUE PERMANECE DESEJO: o mito de Orfeu na ficção de Lobo Antunes ..................................................................... 91 O FRAGMENTO, A IMPOSSIBILIDADE, O SILÊNCIO E O NEUTRO NA PROSA CONTEMPORÂNEA DE LOBO ANTUNES .......................................................................... 107 A ESCRITA INSENSATA: uma leitura de O manual dos inquisidores, de Lobo Antunes ........................................................ 117 QUEM TEM MEDO DO LOBO ANTUNES? ............................... 135 NAUFRAGAR É PRECISO: conversa em Lisboa com António Lobo Antunes .................................................................................. 143 PARTE III: ITINERÁRIOS DE POESIA A DESTERRITORIALIZAÇÃO DO LIRISMO NA POESIA DE PAULO HENRIQUES BRITTO: itinerário de Macau, de Paulo Henriques Britto ............................................................... 155 SUMÁRIO O TEMPO EM REDE: itinerário de Poema sujo, de Ferreira Gullar ... 163 UMA VIAGEM NA POESIA: itinerário de Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira ..................................................... 181 FIGURAÇÕES DA MORTE: itinerário de Flor da morte, de Henriqueta Lisboa ........................................................................... 193 LEMINSKRITURAS DELIRANTES: itinerário de Distraídos venceremos, de Paulo Leminski ....................................................... 209 SONETO, A DOCE LOUCURA DO AMOR: itinerário de Sonetos, de Cláudio Manuel da Costa ........................................................... 221 EVOCAÇÃO DA INFÂNCIA: itinerário de Novos poemas, de Jorge de Lima .................................................................................. 231 O DISCURSO DE EXPORTAÇÃO: itinerário de Pau Brasil, de Oswald de Andrade .................................................................... 249 A QUANTIDADE MÍNIMA DA TONELADA DE MINÉRIO: itinerário de Prosas seguidas de odes mínimas, de José Paulo Paes ..... 263 A POESIA DO DESCONHECER: itinerário de O livro das ignorãças, de Manoel de Barros ..................................................... 293 ÍNDICE ONOMÁSTICO ............................................................. 315 BIBLIOGRAFIA ........................................................................... 319 FEITIO Este livro contém reflexões sobre a arte e a literatura, bem como diálogos com textos literários, compondo dezenove ensaios e artigos ori- ginados de pesquisas, reflexões e discussões em grupos de pesquisa e em salas de aula da graduação e da pós-graduação em Letras da UFC. O livro abre com o texto “A obra de arte como ser-criado: consi- derações sobre Der Ursprung des Kunstwerkes”, inspirado pela famosa obra de Heidegger, em que ele faz uma grande reflexão sobre as possibi- lidades de abordagem da arte. Em seu caminho de pensar, ele descarta a teoria, entendida como um acúmulo de enunciados que pretendem deli- mitar as propriedades e características dos objetos. Em vez de se adiantar aos fenômenos com modelos explicativos, seu procedimento procura descrever as coisas em seu horizonte de “mostração”: para falar da arte, é preciso colocar de lado toda a teoria sobre ela e dar um mergulho no horizonte mesmo em que a obra se mostra, em busca de sua verdade, sem se apoiar na visão de mundo do artista, nem desvendar suas su- postas alegorias, nem vasculhar sua oficina de trabalho. A obra é, a obra está, a obra existe. Quanto mais deixada a si mesma, em sua solidão, quanto menor for a interferência da cultura em sua determinação, mais ela sobressai como choque, como inquietação, como inabitual. Aí vem a grande questão de todo o discurso sobre a arte de Heidegger: para abor- darmos uma obra, devemos nos encher de informações sobre ela, ou devemos correr o risco, respeitar a essência da origem e mergulhar na verdade da obra, como quer Heidegger? Em seguida, o texto “A verdade em Van Gogh: desligamento sem rumo (a verdade na pintura e no discurso, segundo Derrida)” desen- volve, amplia, desdobra os pensamentos sobre a arte e a literatura, agora inspirados em Restitutions – de la vérité em pointure (1978), um longo ensaio incluído no livro La vérité em peinture, de Jacques Derrida, que Estudos da Pós-Graduação10 estabelece um confronto entre duas afirmações sobre uma pintura de sapatos de Van Gogh. Heidegger, em A origem da obra de arte, diz que os sapatos são de uma camponesa. Meyer Schapiro, em um texto poste- rior, procura desmentir Heidegger e atribuir os sapatos ao próprio pintor. Em seu ensaio, Derrida discute a questão da não correspondência entre o que a restituição pretende fazer e o que ela efetivamente faz. Essa não correpondência deve-se ao fato de que não há restituição em nenhum dos dois discursos (de Heidegger e de Schapiro), mas uma apropriação. O segundo texto, então, pretende provocar uma reflexão sobre o pensa- mento de Derrida em relação às abordagens à obra de arte, ao texto li- terário, que constituem a prática de professores e pesquisadores. O terceiro artigo deste livro reflete um pensar sobre a literatura contemporânea brasileira. O chamado Pós-Modernismo no Brasil, como na maioria dos países do mundo ocidental, é um fenômeno mul- tifacetado, repleto de indeterminação. Um dos aspectos desse pano- rama é a desconfiança das estruturas discursivas pretensamente está- veis que pareciam caracterizar a linguagem modernista, a consciência da precariedade dos fundamentos e determinações, disseminando-se, então, na ideia de errância,de dispersão, de insuficiência do pensa- mento dialético de suporte racionalista-iluminista. Essa atitude tende a produzir uma estética do estranhamento, em que a literatura parece inclinar-se a se configurar como uma atividade singular, um ato indife- renciado daquele que escreve no avesso obscuro e silencioso da lin- guagem. O referido texto pretende empreender uma reflexão sobre como essa dispersão de saberes e suas relações com o poder de dizer se processam em algumas obras já canônicas da literatura brasileira con- temporânea, e como essa condição parece determinar uma nova ma- neira de se olhar essa literatura, subvertendo os saberes, as formas, os gêneros, os conceitos que, até um certo momento, bastavam-nos para enquadrar o texto literário. Esta parte se fecha com o ensaio “Entre os discursos do etnólogo, do filósofo e do ficcionista: a diluição do centro na estrutura do ro- mance Nove noites, de Bernardo Carvalho”, uma reflexão sobre os con- ceitos de estrutura ligados ao desconstrucionismo de Derrida, os quais podem ser vislumbrados na estrutura acêntrica de Nove noites. A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 11 A segunda parte contém textos que dialogam com a obra de António Lobo Antunes, notável romancista português contemporâneo, que tem ocupado boa parte da pesquisa do autor deste livro. O texto “O desejo que permanece desejo: o Mito de Orfeu na ficção de Lobo Antunes” pretende estabelecer uma relação entre a lei- tura blanchotiana do Mito de Orfeu e o comportamento dos “escritores” dos romances de Lobo Antunes (entendidos como criaturas ficcionais que escrevem compulsivamente), com o intuito de mostrar como eles são completamente atraídos pela força da escrita que perde seu rumo, assim como Orfeu perde sua Eurídice ao voltar-se e mirar seu rosto. O ensaio seguinte intitula-se “O fragmento, a impossibilidade, o silêncio e o neutro na prosa contemporânea de Lobo Antunes”. A escri- tura de António Lobo Antunes é gaga, fragmentária, desequilibrada, inadequada, embrulhada. O que temos é um desastre inevitável. Não obstante, é um desastre fascinante, sob uma perspectiva blanchotiana, que pressupõe uma escritura destituída de poder, que não fala a lin- guagem da ordem, mas não pode parar de falar, que nos expõe a uma espécie de perplexidade passiva, que confunde o conhecimento. A es- critura de Lobo Antunes é, assim, extremamente contemporânea em sua estética da falta, da ausência, da impossibilidade de encontro entre os extremos e os meios para comporem um conjunto lógico. A multiplici- dade de enunciadores, todos eles instáveis e descrentes do poder edifi- cante da escritura, impede a identificação de uma voz “central” (ou a que deveria ser o centro, que não há), o que contribui para o império do fragmento. O clímax e o desenlace clássicos não mais constituem o apelo da narrativa, que não aponta para uma solução, uma decisão, um ponto de chegada qualquer. É essa concepção de negatividade, asso- ciada às noções de fragmento e desastre, que este texto se propõe a in- vestigar na ficção de Lobo Antunes. Em seguida, temos uma leitura do romance O manual dos in- quisidores, que parece tratar de um tema aparentemente banal: a ascensão e a queda de um poderoso. O ensaio discute as relações de poder na narrativa, o qual, entretanto, é aqui volatilizado e desestabi- lizado por uma escrita que esconde um saber inoperante, ou um não saber, um discurso inútil e mentiroso, que se desenvolve a partir de si Estudos da Pós-Graduação12 mesmo, obnubilando o caráter retórico, mitológico ou ideológico do texto literário. Segue-se o texto “Quem tem medo do Lobo Antunes”, que pro- cura fazer uma apresentação do escritor, principalmente para aqueles que o acham “difícil”. Pretende, também, situar o autor e sua impor- tância na literatura contemporânea. A seção dedicada ao escritor português fecha-se com “Conversa em Lisboa com António Lobo Antunes”, uma espécie de entrevista, sem perguntas ou respostas, do autor deste livro com o escritor em Lisboa. A terceira parte do livro, intitulada “Itinerários de poesia”, pro- põe-se a fazer um roteiro de dez livros significativos de poesia brasi- leira, chamando a atenção para os elementos mais marcantes das obras. Os poetas focalizados são Paulo Henriques Britto, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa, Paulo Leminski, Clau dio Manuel da Costa, Jorge de Lima, Oswald de Andrade, José Paulo Paes e Manoel de Barros. Os ensaios e roteiros aqui reunidos parecem estar ligados por um pensamento: o de que a literatura não consegue apresentar verdades e conclusões. Os textos que seguem, muitos dos quais inspirados no pen- samento de Maurice Blanchot sobre a literatura, levantam perguntas, problemas, discussões, e procuram preservar da arte sua condição de abismo de intranquilidade, como o título da obra sugere. Cid Ottoni Bylaardt Parte I ARTE, VERDADE, OLHARES A OBRA DE ARTE COMO SER-CRIADO considerações sobre Der Ursprung des Kunstwerkes, de Martin Heidegger Heidegger não quer lançar à obra de arte o olhar da estética, geralmente impregnado de critérios de valor, nem pela perspectiva de um belo subjetivo, nem pelo viés da criação artística. Seu olhar é episte- mológico, em um sentido especial, na medida em que busca o conheci- mento da coisa em seu campo, e ontológico, porque busca sua essência, sua origem. Para o filósofo, a arte é, sobretudo, uma linguagem que segue seu caminho apontando para uma origem que nunca se revela. Ele se recusa a examinar o fenômeno artístico dentro das divisões pré-determinadas do saber, como as teorias da arte, a ética, a estética, a história. O fato de esse procedimento ser diverso do que se opera nor- malmente pode nos sinalizar algo. Filosofar é perguntar: o que é o ser? É uma pergunta ontológica, que busca determinar o ser do ente em sua totalidade, em seu campo de aparecimento, de “mostração”. Arte, assim, não é um fenômeno classi- ficável num campo particular, mas algo que se mostra no mundo em sua relação com a terra. Isso não significa que, para Heidegger, a obra de arte não tenha uma determinação própria; significa, isto sim, que ela merece ser estu- dada no horizonte em que se mostra, em seu campo de manifestação, numa atitude fenomenológica. A fenomenologia, para ele, tem como objeto de estudo o próprio fenômeno, isto é, as coisas em si mesmas e Estudos da Pós-Graduação16 não o que é dito sobre elas, suas identidades universais e seus sentidos especificamente representados. A investigação fenomenológica busca, assim, a essência do sujeito por meio da expressão das suas experiên- cias internas; procura descobrir a determinação dos entes em seus campos de manifestações, independentemente de posicionamentos pré- vios (classificações, características, enunciados). Em Der Ursprung des Kunstwerkes [A origem da obra de arte], ensaio nascido de algumas conferências do autor, em 1936, e publicado pela primeira vez em 1950, a pergunta que Heidegger faz é como se mostra a obra de arte, seu modo de ser. Ela não se restringe a uma aná- lise de propriedades. Trata-se de uma imersão no próprio horizonte de constituição da obra, em seu campo de jogo. Heidegger (2010, p. 42) afirma, então, que a obra de arte é uma coisa, situada entre o utensílio e a mera coisa. Contudo, a obra de arte, além do caráter de coisa, possui ainda “etwas anderes” [“algo outro”], que lhe confere a condição de objeto artístico. Quando se relaciona a algo externo, manifestando o outro, é alegoria, ou άλλο αγορεύει [allo agoreuei] (falar outro, dizer outro); quando se reúne com algo de outro, é ainda símbolo, em grego συμβάλλειν [symballein] (jogar com, trazer junto). Segundo o filósofo, a abordagem da obra de arte há muito tempo se baseia nos conceitos de alegoria e símbolo, que se apoiam no caráter coisal da obra, que é o que o artista realmenteproduz em seu ofício. Ele pro- põe-se, então, a encontrar a imediata e plena realidade vigente da obra de arte, para encontrar nela a verdadeira arte: “Wir möchten die unmit- telbare und volle Wirklichkeit des Kunstwerkes treffen; denn nur so finden wir inihm auch die wirkliche Kunst” (p. 44) [“Nós queremos alcançar a imediata e plena realidade vigente da obra de arte, pois so- mente assim encontramos nela também a verdadeira arte” (p. 45)].1 A coisa (ou o caráter coisal da coisa, ou as interpretações da coisidade da coisa) é conceituada habitualmente de três maneiras: 1) como suporte de características; 2) como unidade de múltiplas sensa- ções; 3) como matéria enformada (consistência, materialidade): “Die 1 Será utilizada neste artigo a tradução de Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva (HEIDEGGER, 2010). A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 17 drei aufgeführten Weisen der Bestimmungder Dingheit begreifen das Ding als den Träger von Merkmalen, als die Einnheit einer Empfindungsmannigfaltigkeit, als den geformten Stogg” (HEIDEGGER, 2010, p. 72) [“As três maneiras encaminhadas de de- terminação da coisidade concebem a coisa como portadora de caracte- rísticas, como a unidade de uma multiplicidade de sensações, como matéria enformada” (p. 73)]. Conforme a primeira conceituação habitual, as coisas têm pro- priedades específicas, essenciais, que constituem sua ontologia. Os pre- dicados da coisa são divididos em duas classes específicas: substância e acidentes, o que constitui uma abrangência por demais genérica. A obra de arte tem propriedades constantes, mas os enunciados acerca de sua substância e acidentes são insuficientes para alcançar sua determi- nação ontológica. A unidade pretensamente conferida pelo enunciado das propriedades é um discurso, uma representação. Vemos a coisa nela mesma, e como vemos, o que inviabiliza o acolhimento da própria coisa. É possível falar de uma coisa sem agredi-la ou dissimulá-la? Essa pergunta certamente merece ser repetida por professores e pesquisadores. As noções de agredir e dissimular que Heidegger sugere permeiam grande parte de seu pensamento sobre como a cultura ocidental forma seu saber. No livro Parmênides, Heidegger (2008c, p. 16), refere duas maneiras de se buscar o conhecimento de algo. A habitual é a que consiste em os estudiosos se apoderarem do objeto, assumirem uma ati- tude de superioridade em relação a ele e exercerem sobre ele um certo tipo de autoridade que a metafísica ocidental lhes concedeu. Em nosso saber, assim, o objeto de conhecimento normalmente é dominado e sub- jugado a partir de certas informações e relações factuais atribuídas a ele. A essa atitude, ele opõe o que denomina “saber essencial”, que é, em vez de dominar o objeto, o comentador se deixar tocar por ele. O modo de objetivação do saber ocidental é um sobrepujar, um ultrapassar do ser, ou meramente um atropelamento, em muitos casos. No saber essencial, o que há é um retroceder diante do ente. Professores e pesquisadores não podem descartar essas reflexões em suas abordagens do texto literário. A segunda conceituação habitual, pela qual se encara a coisa como αισθητόν [aisteton] (apreensível pelos sentidos), é uma con- Estudos da Pós-Graduação18 cepção ingênua e superficial: serve para qualquer coisa e provoca distorções tanto pelo afastamento quanto pela aproximação do re- ceptor à coisa. A terceira conceituação habitual considera a obra de arte uma síntese de matéria e forma. Aqui Heidegger reforça a ideia de que o processo civilizatório de busca de conhecimento da obra de arte passa, necessariamente, pela dualidade matéria-forma: Die Unterscheidung Von Stoff und Form ist, und zwar in den verschiendensten Spielarten, das Begriffsschema achlech- thin für alle Kunsttheorie und Ästhetik. Diese unbestreitbare Tatsache beweist aber weder daβ die Unterscheidung von Stoff und Form hinreichend begründet ist, noch daβ sie ursprün- glich in den Bereich der Kunst und des Kunstwerkes gehört. (HEIDEGGER, 2010, p. 62). [A distinção entre matéria e forma é, e na verdade nas mais diferentes variedades, pura e simplesmente o esquema concei- tual usado em todas as teorias de arte e da Estética. Este fato incontestável não comprova nem que a distinção entre matéria e forma esteja suficientemente fundada nem que ela pertença ori- ginalmente ao âmbito da arte e da obra de arte (HEIDEGGER, 2010, p. 63)]. Esse “esquema conceitual” é a base das abordagens da obra de arte na cultura ocidental. Ele parece dar uma resposta à pergunta, mas é, afinal, insuficiente, mesmo porque pode se aplicar a qualquer realidade, ser ou objeto. Assim, a representação da forma e da matéria, a interpretação do conteúdo são discursos que não conferem especificidade à obra de arte, porque eles tanto valem para ela como para a mera coisa e para o apetrecho, como também não revelam um campo fenomenológico de enraizamento. Matéria e forma estão na essência do apetrecho, ou utensílio, e são determi- nadas pela serventia, portanto, matéria e forma não constituem deter - minações originais da coisidade da mera coisa: “Diese längst geläufig gewordene Denkweise greift allem unmittelbaren Erfahren des Seienden vor” (HEIDEGGER, 2010, p. 72) [“Este modo de pensar habitual, há muito tempo antecipou-se a toda experienciação imediata do sendo” (p. 73)]. A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 19 O utensílio tende a desaparecer em seu uso, cedendo lugar para sua utilidade, que é o que interessa, o que jamais deverá acontecer à obra de arte. As reflexões apresentadas inicialmente por Heidegger para abordar a coisa e a obra são considerações não fenomenológicas desti- nadas a apresentar um tipo de procedimento habitual (pesquisa de pro- priedades, sensações, matéria-forma). Mas em que consiste, então, seu procedimento fenomenológico? O que é propriamente o acontecimento da verdade na arte? A fenomenologia é inimiga da teoria, entendida esta como um acú- mulo de enunciados que pretendem delimitar as propriedades e caracte- rísticas dos objetos (interpelação lógico-categorial). Em vez de se adiantar aos fenômenos, com modelos explicativos prévios, a fenomenologia pro- cura descrever (e não explicar) as coisas em seu horizonte de mostração. Para falar da arte, é preciso colocar de lado toda a teoria sobre ela e dar um mergulho no horizonte mesmo em que a obra se mostra. Caracterizar o utensílio com base em sua utilidade é uma atitude superficial. Há que pensar em sua confiabilidade, em sua solidez. Um apetrecho é apetrecho enquanto é útil. Um sapato exposto em um museu não é um apetrecho; já foi, não mais é. Um calçado de camponês é um apetrecho enquanto é usado durante seu trabalho, enquanto está cal- çado, enquanto é usado como apetrecho. Heidegger escolhe, então, um par de sapatos para exemplificar sua abordagem de um utensílio. Para “facilitar” a demonstração, ele apresenta um quadro de Van Gogh que representa, segundo ele, um par de sapatos de uma camponesa. A determinação do ser do utensílio não pode ser alcançada por uma teorização; é necessário um mergulho no campo específico de mostração do utensílio, sem nenhum posiciona- mento prévio. Uma série de remissões (lembranças, considerações) se faz presente então. Um fato curioso a respeito de Der Ursprung des Kunstwerkes, que merece reflexão, é que seu autor parece ter sido traído por suas próprias ideias anos depois da publicação do ensaio, sob o olhar de ou- trem. Vejamos como. Para Heidegger, a verdade da arte é absoluta, seu saber-querer reside nela própria: Estudos da Pós-Graduação20 Dieses Wissen, das als Wollen in der Wahrheit des Werkes einheimisch wird und nur so ein Wissen bleibt, nimmt das Werk nicht aus seinem Insichstehen heraus, zerrt es nicht in den Umkreis des bloβen Erlebens und setzt das Werk nicht herab in die Rolle eines Erlebniserregers (HEIDEGGER, 2010, p. 172). [Este saber, que como querer radica na verdade da obrae só assim permanece um saber, não retira a obra do seu permane- cer-em-si, não a arrasta para o círculo da simples vivência nem a rebaixa ao papel de provocadora de vivências (HEIDEGGER, 2010, p. 173)]. A referência ao quadro de Van Gogh e a atribuição da proprie- dade dos sapatos pintados por Van Gogh a uma camponesa repercu- tiram posteriormente no mundo da arte e da filosofia, e uma reflexão sobre esse efeito tardio parece nos conduzir a uma inferência de que a obra estaria atuando para Heidegger como estimulante de vivências, comprometendo seu estar-em-si. A referência que o pensador faz aqui é a “ein bekanntes Gemälde von van Gogh, des solches Schuhzeug mehr- mals” (HEIDEGGER, 2010, p. 78) [“uma conhecida pintura de Van Gogh, que várias vezes pintou tal calçado” (p. 79)], sem definir exata- mente qual, mas, certamente, um quadro que apresenta sapatos pin- tados. Em seguida, diz que eles pertencem a uma camponesa, cria uma narrativa com a personagem e seus sapatos e utiliza a obra como uma figuração para sustentar seu discurso a respeito do embate entre mundo e terra, noção importante para se entender a origem da obra de arte. Tal atribuição, dependendo do olhar de quem vê, pode soar como um arrasto da obra para o círculo da mera vivência. Algumas décadas depois, em 1968, o historiador de arte Meyer Schapiro escreve um texto desautorizando a “restituição” dos sapatos à camponesa por Heidegger, e faz sua própria restituição: os sapatos são de um homem, e um homem urbano, e, mais certamente, do próprio Van Gogh. Em 1978, Jacques Derrida publica o ensaio “Restitutions – de la vérité en pointure”, no livro La vérité en peinture (DERRIDA, 2010). Derrida, então, discute a questão da não correspondência entre o que a restituição pretende fazer e o que ela efetivamente faz. Essa não corre- pondência deve-se ao fato de que não há restituição em nenhum dos A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 21 dois discursos (de Heidegger e de Schapiro), mas uma apropriação. Schapiro insiste em suas ideias e não percebe as ideias de Heidegger, inclusive uma fundamental: a de que, para este, realmente não importa de quem sejam os sapatos, ou seja, a ideia de que ele se apropria da fi- gura da camponesa como alegoria para sua discussão sobre mundo e terra. Ademais, a utilização da imagem da camponesa e seus sapatos está relacionada à intenção de Heidegger exatamente de negar a repre- sentação, à sua tentativa de ver a arte como um fenômeno imanente, e não como reprodução da realidade. Isto Schapiro parece não conseguir ver, chegando a atribuir a atitude de Heidegger, segundo Duque-Estrada, ao “sintoma de uma patologia nacional-socialista” (DUQUE- ESTRADA, 2010, p. 338), uma referência evidente à adesão de Heidegger ao Partido Nazista na Alemanha, em 1933. Segundo Derrida, reportado por Duque-Estrada, “nem Heidegger nem Schapiro suportam, cada um a seu modo, o caráter abandonado, largado, separado, desgar- rado, dos sapatos” (p. 338). Ele atribui aos sapatos um dom alucinó- geno: tudo o que dizem Heidegger e Schapiro a respeito deles faz parte de uma “dramaturgie délirante” [“dramaturgia delirante”], uma aluci- nação: “Ces souliers sont allucinogènes” (DERRIDA, 2010, p. 312) [“Esses sapatos são alucinógenos”], “comme um paire de gants” (p. 307) [“como um par de luvas”], igualmente alucinógenas. Van Gogh pintou luvas em 1889, em Arles, as quais Schapiro insiste em consi- derar objetos pessoais (restituindo-as ao dono), procedimento que es- tende a outras naturezas mortas: tudo na arte tem que ter um dono, as atribuições e restituições têm que ser feitas para o conforto do apre- ciador de arte. Heidegger é acusado de descontextualizar o quadro e de projetar nele suas próprias alucinações. Schapiro pretende atribuir ao quadro uma verdade, uma propriedade: ele pertence ao próprio pintor, e não a uma camponesa fictícia, cometendo, afinal, o mesmo abuso de que acusa Heidegger, ao submeter as pinturas a um saber acadêmico. Ele não leva em conta a condição de arte daqueles sapatos, desassociados dos corpos em movimento no mundo, abandonados a si mesmos, déso- euvrés. Seu movimento é próprio, sem destino, sem verdade, sem con- clusões. Nada dizem, por mais que provoquem dizeres. Caminham Estudos da Pós-Graduação22 para o eterno adiamento de sentido, sua sempre différance, permane- cendo impermeáveis às reduções perpetradas pelos comentaristas em suas análises. Esquecendo-se convenientemente de sua própria redução, Schapiro denuncia a tentativa de Heidegger de estabelecer uma comparação entre as botas e o mundo das realidades camponesas, atribuindo a elas uma perspectiva social. Para Heidegger, não obstante, os sapatos projetam a aletheia da obra de arte, a verdade instaurada pela própria obra. Figura 1 - Van Gogh: Vieux souliers aux lacets Fonte: https://givethemhell.wordpress.com/page/8/. Voltando ao texto de Heidegger, sabemos que há um par de sa- patos, o estado em que se encontram e o que podem revelar. São sapatos acostumados a trabalho duro, gastos. Daí manifestam-se as remissões que, a nosso ver, confirmam – em vez de desabonar – a lógica heideg- geriana. Essas remissões não se referem à intencionalidade do autor, nem a teorias previamente confeccionadas para descrever o objeto. Instalamo-nos, antes de mais nada, no mundo revelado pela obra, que nos remete ao mundo da camponesa. Heidegger fala da fadiga dos A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 23 passos, do campo rude, de seu vento agreste, da umidade do solo, da solidão do caminho. Figura 2 - Van Gogh: Paire des souliers sur sol bleu Fonte: http://www.idixa.net/Pixa/pagixa-0601151408.html. Eis o mundo que emerge dos sapatos, de sua matéria, de sua forma, da natureza que o envolve. Sob os sapatos, há uma terra, seus presentes, suas recusas, as inquietações que provoca, as emoções do nascimento e da morte. Os sapatos apontam para o mundo da camponesa, cujo caráter ontológico é a confiabilidade. Ela transita por esse mundo que lhe é familiar, que tem seu ritmo próprio e constante; eis por que é um mundo confiável. Há aqui um alargamento das ideias de Heidegger sobre o ser-aí. Até então, ele considerava que a negatividade estava sempre afeita ao ser-aí humano, considerado como ponto de instabilidade das semân- ticas históricas, ou seja, como produtor de significados que produzem instabilidade. Nessa nova concepção, os próprios significados, a pró- Estudos da Pós-Graduação24 pria semântica já contém em si a instabilidade. A confiabilidade do mundo, então, é abalada pela terra, em sua intimidade impenetrável, em sua experiência de negatividade. Vejamos, assim, como o embate mundo x terra está relacionado à revelação do modo de ser próprio à obra de arte. A verdade a que Heidegger alude reside na rede remissiva que os sapatos propiciam. Não é uma verdade no sentido lógico e racional do termo, como um enunciado passível de verificação, mas está relacionada ao horizonte de mostração do ente. Seu significado surge na conformidade do utensílio com a rede referencial do mundo que é dele. Além disso, ele remete também a uma instabilização da confiabilidade do mundo, isto é, à terra, a dimensão abissal, a presença incontornável de uma inconsis- tência no próprio mundo. A terra remete a natureza, solidez, liberdade, constitui o solo onde repousa o mundo, defende-se do estrago que o mundo perpetra, alberga tudo o que se ergue. Sobre ela, o homem histórico funda o seu habitar no mundo. O mundo evoca humanidade, cultura, utilidade, estabilidade, ne- cessidade, proximidade, o que foi instaurado sobre a terra, domesti- cação e utilização da terra, é o que revela a terra (o templo em sua quie- tude permite ver a tormenta da tempestade). Em suas relações, terra e mundo fazem parte de um jogo de en- cobrimento e não encobrimento em que o ser-aí humano se vê lançado (inconfiávele confiável; instável e estável; natural e cultural; inabitual e habitual; imprevisível e previsível... e outras relações semelhantes). Pode-se pensar aqui num movimento dialético, mas de um tipo especial de dialética, sobre a qual falaremos adiante. O texto sugere que a obra de arte é que propicia essa relação, cujo vislumbre Heidegger teve a partir da tentativa de abordá-la. O mundo das tarefas, das condi- ções, busca a confiabilidade, o conforto, o funcionamento das coisas. Arte não é isso. Daí a presença da terra, a que se pode relacionar a ideia de inquietação: podemos dizer que a terra cumpre aí o papel de origem, sendo ela a própria inquietação do inabitual. Heidegger diz que a arte promove “die Aufstellung einer Welt” (HEIDEGGER, 2010, p. 112) [“a instalação de um mundo” (p. 113)] num lugar aberto por A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 25 ela, num rasgão. A terra é impelida para nada, ou está aí para nada: “Die Erde ist das zu nichts gedrängte Mühelose-Unermüdlich” (p. 114) [“A Terra é a que não sendo forçada a nada é sem esforço e infatigável” (p. 115)], ou seja, enquanto o mundo tem objetivos a cumprir, finali- dades a perseguir, a terra não vai para lugar nenhum, o que pode ser entendido como aquele componente inutilitário fundamental da obra de arte. A terra é o imperscrutável, o resistente às explicações, a que só se ilumina em sua condição de insondável, de inexplorável. É a salva- guarda da obra de arte: a obra se retira na terra, num fechamento que não é “kein einförmiges, starres Verhangenbleiben, sondern es entfaltet sich in eine unerschöpflicher Fülle einfacher Weisen und Gestalten” (p. 116) [“nenhum permanecer encoberto, rígido e uniforme. Mas ele se desdobra numa inesgotável abundância de modos simples e figuras” (p. 117)]. A tinta do pintor não se gasta, só ilumina; a palavra do poeta não se desvigora, de tal maneira que “das Wort erst wahrhaft ein Wort wird und bleibt” (p. 118) [“a palavra se torne e permaneça verdadeira- mente uma palavra” (p. 119)]. O achado é belo: eis a origem, a terra, o componente não mundo da obra de arte, sua salvaguarda. Essas noções tornaram-se caras à filosofia da arte pós-heideggeriana, com desdobra- mentos no pensamento de Maurice Blanchot, Emmanuel Levinas, Michel Foucault, Roland Barthes, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben, para citar alguns pensadores. Quando se fala em dialética, pensa-se inicialmente na Grécia clássica de Heráclito e Zenão de Eleia, principalmente, que eram pen- sadores iconoclastas e perigosos, ligados à instabilidade das coisas, à mudança permanente, ao devir, em oposição aos metafísicos, que aca- baram por prevalecer por conveniência. Na idade moderna, a noção de dialética está intimamente ligada ao pensamento de Hegel e aos seus desdobramentos na metafísica ocidental (curiosamente, pode-se dizer que na modernidade os dialéticos e os metafísicos se abraçam). Consoante o pensamento de Hegel, os opostos tendem a conduzir a uma síntese, identificada ao fim da história, à totalização do processo civilizatório, o momento máximo do poder da negatividade: a Ação Negativa do Homem. Esse seria o momento culminante do conheci- mento humano, que pressupõe um Estado homogêneo e universal, sem Estudos da Pós-Graduação26 conflitos sociais, e uma Natureza submissa ao homem, familiar a ele. A morte é o estímulo de nossas ações, impulsionando-nos em nosso processo histórico. O fim da história seria, assim, o remate perfeito do poder da negatividade. Quando Heidegger “opõe” traços como inconfiável e confiável; instável e estável; natureza e cultura; inabitual e habitual; imprevisível e previsível, e os relaciona a terra e mundo, ele coloca algumas expres- sões que dão pistas seguras sobre essa “dialética”. Ao final do §109 de Der Ursprung des Kunstwerkes, ao discutir o conceito de verdade, ele fala dessa oposição “dialektische vorgestellt” (HEIDEGGER, 2010, p. 136) [“representada dialeticamente” (p. 137)], para dizer que a verdade nunca é apenas ela mesma, mas também o seu contrário. Ele mesmo adverte que os opostos não são excludentes nem destrutivos, e que, no embate de forças, “die Streitenden, das eine je das andere, in die Selbstbehauptung ihres Wesens” (p. 120) [“os que disputam elevam-se, uns e outros, à auto-afirmação de sua essência” (p. 121)]. Diz mais: “Im Streit trägt jedes das andere über sich hinaus” (p. 122) [“Na disputa, cada um transporta o outro para além de si” (p. 123)], e o combate per- manece combate, não se resolve nunca. Voltando ao §109, encon- tramos aí uma outra inquietação, que vale a pena comentar, conside- rando as três traduções consultadas em português: “Das Geheure ist im Grunde nicht geheuer, es ist un-geheuer” (p. 136). As três versões em português para a mesma frase são as seguintes: “O insuspeito, no fundo, não é insuspeito; ele é in-suspeitado” (Laura Borba Moosberger); “O tranquilizante é, no fundo, não tranquilizante: é um abismo de inquie- tação” (Maria da Conceição Costa); “O seguro é no fundo não seguro; é não-seguro” (Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro). O adje- tivo un-geheuer é traduzido como “in-suspeitado”, como “abismo de inquietação” e como “não-seguro”; uma ampliação de seu significado pode nos conduzir às noções de inaudito, abominável, colossal e – pasmem – monstruoso. Tudo isso relacionado ao embate mundo x terra. Como conciliar dialeticamente tantas oposições na monstruosidade da obra de arte? A camponesa tem um mundo porque a obra está na abertura do sendo. Só através da obra, e só nela, o ser-apetrecho do apetrecho vem A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 27 expressamente à luz (quando ele olha o sapato e “vê” as atribulações, o trabalho pesado, o trigo e o pão, a fome, a morte...). A pintura propicia a abertura do sendo (os sapatos pintados), que emerge no desvelamento do seu ser. Assim, põe-se em obra a verdade do sendo, está em obra um acontecer da verdade (e não da beleza). E essa verdade não é também a cópia do real, não são os sapatos copiados e colocados na tela, mas uma reprodução da essência geral das coisas. O templo sobre o rochedo e os sapatos de Van Gogh apresentam o mundo e a terra em seu embate es- sencial, tornando-os evidentes. E aqui se completa o círculo: a realidade mais próxima na obra de arte é o suporte coisal. Heidegger afirma que, ao aparecer o ser-ape- trecho do apetrecho na obra, veio à luz aquilo que está em obra na obra: a abertura do sendo no seu ser. Ou seja, a vidência do ser-apetrecho no apetrecho faz ocorrer, na obra de arte, o acontecimento da verdade – o que quer dizer que é na obra que a verdade se cria, ou, se se preferir, é na obra que se instaura um mundo (o que remete ao terceiro eixo). A arte, portanto, na sua essência, é uma origem. Para Heidegger, a verdade, ou melhor, aquilo que faz da verdade o que ela é, traduz-se como um acontecimento histórico desde o qual o mundo de um povo se revela. A verdade assim compreendida por Heidegger é uma retomada do fenômeno que o grego antigo denominou αλήθεια [alethéia] – que nós traduzimos como “verdade”, fazendo pouco para entendê-la melhor – fenômeno desde o qual o ser (dos ho- mens e das coisas) vem à tona e ganha significado. Poesia, para o filó- sofo, é antes o movimento do qual as coisas surgem – o movimento de produção desde onde acontece a desocultação do sendo fazendo com que este ganhe corpo e significado. A obra de arte comporta entes que são a expressão de como o mundo é fundado, e eles vêm à luz como são (embora essa luz guarde ainda alguma obscuridade). Por mais que um mundo pareça fundado, confiável, há sempre uma instabilidade proveniente da terra. A verdade da obra de arte não é nenhuma pretensa alegoria que o artista lhe em- presta. Essa verdade não é fruto de uma intenção, de uma subjetividade. O homem ergue seu mundo (mundo elaborado, produzido) sobre a terra. Heidegger diz que, ao erguer um mundo, a obra elabora a terra Estudos da Pós-Graduação28(“produz” a terra). Esse produzir ou elaborar, para ele, parece ser o fato de que o mundo que o ser-aí humano ergue acolhe a terra, deixa a terra ser terra: “Das Werk rückt und hält die Erde selbst in das Offene einer Welt. Das Werk läβt die Erde eine Erde sein” (HEIDEGGER, 2010, p. 114) [“A obra move e mantém a própria terra no aberto de um mundo. A obra deixa a Terra ser uma Terra” (p. 118)]. A verdade é sempre histórica (está ligada às construções linguís- ticas humanas), então, não há como padronizar a relação entre mundo e terra. É um embate, sim, uma contenda. Uma frase chama a atenção: “Die Welt trachtet in ihrem Aufruhen auf der Erde, diese zu überhöhen” (HEIDEGGER, 2010, p. 120) [“O mundo aspira, no seu repousar sobre a terra, a fazê-la sobressair” (p. 121)]. Esta é a tradução de Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro (HEIDEGGER, 2010), como também a de Laura de Borba Moosburger (HEIDEGGER, 2007). A ter- ceira edição em português consultada, traduzida por Maria da Conceição Costa, dá a seguinte versão da frase: “O mundo aspira, no seu repousar sobre a terra, a sobrepujá-la” (HEIDEGGER, 2010, p. 63). Os verbos sobressair e sobrepujar em português parecem divergir, mas pode-se pensar em algo como sobressair no sobrepujar, uma vez que, se a obra elabora a terra ao erguer o mundo, e se isso se traduz em um embate, é justo pensar que o sobrepujar, o sobressair ressoam a instabilidade da relação entre mundo e terra, o que é reafirmado, parece-nos, pela frase “Sie [die Welt] duldet als das Sichöffnende kein Verschlossenes” (p. 120). Cotejemos as três traduções: “Ele [o mundo] não tolera, como o que se abre, nenhum fechamento” (Azevedo e Castro); “Como aquilo que se abre, ele nada tolera de fechado” (Costa); “Como aquele que se abre, não tolera nenhum encerrado” (Moosberger). As três versões con- vergem para a ideia de que o mundo, onde se realiza o aberto, a fenda, não encerra nada, mantendo tudo em movimento. A essência da obra de arte é, portanto, “das Sich-ins-Werk-Setzen der Warheit” (HEIDEGGER, 2010, p. 120) [“pôr-se em obra da ver- dade” (p. 121)] um acontecimento universal. Ele não está só nos sapatos de Van Gogh, mas em toda obra de arte. Conforme o filósofo, é a lin- guagem que nos deverá conduzir à descoberta da Verdade. Neste sen- tido, toda a arte é poema, daí que são referenciadas a arte plástica, repre- A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 29 sentada pelos quadros dos sapatos, de Van Gogh, a literatura, nos poemas de Hölderlin, ou, por exemplo, a arquitetura de um templo grego. A expressão “Sich-ins-Werk-Setzen der Warheit” requer uma consideração: não é a arte que põe em obra a verdade, mas a verdade é que se põe em obra na arte. Em vez de partir do ser-aí humano para pensar o que ocorre no aí, Heidegger vai ao próprio lugar do acontecimento, o campo de mostração, que guarda suas instabilidades internas. O ser-aí aparece, então, como dependente das articulações da própria história, como história do ser, como história da diferença ontológica e das figuras da diferença ontológica. Para Heidegger, “Geschichte ist die Entrückung eines volkes in sein Aufgegebenes als Einrückung in sein Migegebenes” (HEIDEGGER, 2010, p. 196) [“História é o desabrochar de um ovo em sua tarefa histórica, enquanto um adentrar no que lhe foi entre-doado para realizar” (p. 197)]. A história é, portanto, o acontecimento ligado à ontologia do ser, e não um discurso sobre coisas acontecidas. Assim, ele propõe uma nova forma de abordar esses acontecimentos, independentes dos enunciados exis- tentes sobre a natureza das coisas, e, para tal, procura utilizar termos que fogem às verdades estabelecidas e fixadas: clareira, abrigo, encobrimento, desvelamento, linguagem, poesia, essência poética. O acontecimento da arte se dá em seu campo fenomenológico; o evento requisita o ser-aí humano para lhe dar voz: “A linguagem é a morada do ser” (HEIDEGGER, 2008b, p. 326). Não é o homem quem define o modo de ser de sua casa, mas o acontecimento do ser. Nesse acontecimento, a arte é decisiva quando sua essência poética se revela. O sentido essencial da linguagem é a poesia; a poesia é o mais origi- nário dos ditos poéticos essenciais. Como se articula o pôr-se-em-obra da verdade com a linguagem? O ser se apropria do ser-aí e encontra sua morada, como um ser-aí his- tórico. A linguagem é essa dupla apropriação, ou seja, o ser-aí é apro- priado pelo ser e apropria-se de sua morada. Linguagem aqui não é entendida como um sistema de comunicação. Na verdade, é a medida de uma época, de uma história e se confunde com a palavra simples do ser, a origem do ser e da linguagem. Há aí um ditado, um ditado poé- tico: o ser dita ao ser-aí a medida de sua história. Essa medida é simul- Estudos da Pós-Graduação30 tânea ao acontecimento poético; assim, a arte abre o espaço para pensar o acontecimento da verdade independentemente de qualquer enunciado. A arte é o lugar da verdade, ela não diz uma verdade, não conta uma verdade, daí seu poder histórico e fundacional (instaurador, consti- tuidor). É como diz o narrador de “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, sobre seu relato: “E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor” (ROSA, 1971, p. 343). O lugar da verdade é a narrativa, a absoluta, sem relação com a vivência do mundo. Se a origem da obra de arte está em sua verdade, temos que ver o que é para Heidegger a verdade. A verdade com a qual todo mundo concorda (que podemos entender como metafísica) é a verdade cuja essência é inessencial. A verdade é a essência do verdadeiro e pode ser evocada pela palavra grega αλήθεια [alethéia], que aponta para a deso- cultação do sendo, ou seu não-encobrimento. Mas essa desocultação- -verdade não é propriamente a conformidade de um enunciado com seu objeto. Assim, a ideia de desocultação permanece impensada entre os gregos e na filosofia posterior a eles. Habitualmente, verdade é o mesmo que justeza de representação, concordância do conhecimento com seu objeto. O conhecimento dos humanos sobre as coisas é in- completo, aproximado. Pouca coisa está sob nosso poder e nossa re- presentação. Esse ente que se mostra na abertura carrega uma estranha contradição quando se retém na ocultação e se projeta na desocultação. A ocultação ocorre no sendo de modo duplo, algo como uma dupla reserva: como recusa e como dissimulação. A dissimulação ou camu- flagem do sendo é que permite que nos iludamos, que não tenhamos certeza exata na visão das coisas. Garante a dispersão e a transgressão no nosso entendimento. “Zum Wesen der Wahrheit als der Unverborgenheit gehört dieses Verweigern in der Weise des zwiefachen Verbergens” (HEIDEGGER, 2010, p. 136, grifo do autor) [“À essência da verdade como desvela- mento pertence este denegar no modo de duplo valor” (p. 137)]. Até aqui pode-se notar que, para Heidegger, a palavra verdade acolhe opo- sições, dualidades, ambiguidades, dispersões, equívocos, ou seja, nada A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 31 tem a ver com a ideia de uma determinação metafísica proposta por um enunciado. A verdade como desocultação advém da oposição entre a clareira e a dupla ocultação (recusa e dissimulação). A verdade, por- tanto, não é ciência, e sim a produção de uma obra sem antes e depois. Essa verdade advém do combate entre a clareira e a ocultação, da reci- procidade entre mundo e terra. Do combate entre mundo e terra advém a unidade, pela presença do rasgão, formada pelos combatentes, a qual previne o fechamento da terra, que quer seguir suas próprias leis. O apetrecho desaparece em sua serventia, enquanto a obra de arte so- bressai no simples ser-produzido. Não tem a ver com a notoriedade de um grande artista, nem se reporta ao conhecimento de um expert, nemdepende de prestígio público. Quanto mais essencialmente a obra se abre, tanto mais brilha plenamente a singularidade do fato de que ela é, ao invés de não ser. Não importa quem fez, nem como fez; só importa o que está feito. A obra é: “Dort, wo der Künstler und der Vorgang und die Umstände der Entstehung des Werkes unbekannt bleiben, tritt dieser Stoβ, dieses »Daβ« des Geschaffenseins am reinsten aus dem Werk hervor” (HEIDEGGER, 2010, p. 164) [“Lá onde o artista e o processo e as circunstâncias do surgimento da obra permanecem desconhecidos, é que este embate, este ‘isto’ do ser-criado se põe em evidência de modo mais puro, a partir da obra” (p. 167)]. O embate, o choque a que Heidegger se refere é a presença do inabitual, do inquietante, do não conforme, do inusitado. Temos aí novamente um ponto de reflexão relacionado à nossa atividade de estudiosos de literatura: quando se aborda um texto lite- rário, há uma compulsão irresistível de falar da vida de quem o es- creveu, quantos prêmios ganhou, quantas vezes se casou, sua impor- tância social e histórica, que público lê suas obras, que obras o autor lia, sem mencionar as doutas classificações e teorizações de que a obra é vítima. Segundo Ezra Pound, “O mau crítico se identifica facilmente quando começa a discutir o poeta e não o poema” (POUND, 2007, p. 9). Hoje, felizmente, essa compulsão tem diminuído um pouco, mas, em muitas abordagens e salas de aula, o que se diz sobre a obra parece ter mais interesse do que a obra em si. Estudos da Pós-Graduação32 A obra é, a obra está, a obra existe. Quanto mais deixada a si mesma, em sua solidão, quanto menor for a interferência da cultura em sua determinação, mais ela sobressai como choque, como inquietação, como inabitual. Eis sua salvaguarda: deixar a obra ser obra em seu re- pouso intranquilo. Essa salvaguarda parece-me ser uma espécie de con- templação, um absorver da verdade da obra, um saber que é um querer, um desejo de não ver as coisas determinadas na obra, mas a persistência no abismo de intranquilidade que a obra propicia. Então o saber-querer que constitui a salvaguarda é esse contemplar, esse fruir. Esse querer-saber, ou saber-querer da obra não a retira de seu estar-em-si. Arte, portanto, não é vivência de mundo, não é correspon- dência de enunciados, não é verificação de certezas. “Sobald jener Stoβ ins Un-geheure im Geläufigen und Kennerischen abgefangen wird, hat um die Werke schon der Kunstbetrieb begonnen” (HEIDEGGER, 2010, p. 172) [“Tão-logo aquele impulso do embate para o extraordinário é atenuado pelo conhecido e corriqueiro, já co- meçou o comércio artístico em torno das obras” (p. 172)]. Cabe aqui citar a versão de Maria da Conceição Costa da mesma frase, para um comentário: “Tão-logo o choque do insuspeitado é amortecido no cor- riqueiro e conhecido, já começou a indústria da arte em torno à obra” (HEIDEGGER, 2008a, p. 55). Chamamos a atenção para as palavras Stoβ e Un-geheure. Stoβ é traduzido como embate ou como choque, conforme a versão. Qualquer que seja a opção, temos aí a ideia de que algo abala o mundo das leis, da segurança, da ordem. A outra, Un- geheure, aqui como substantivo, conduz à noção de extraordinário e insuspeitado, mas também de formidável, colossal, abominável e monstro. As duas noções em conjunto remetem a uma ideia funda- mental do pensamento de Heidegger sobre a obra de arte: o enigmá- tico, o inaugural, o instável, o perturbador. Arte não é erudição, não é saber racional, embora seja frequentemente assaltada pela metafísica da teoria e da crítica, como aponta argutamente Mário Quintana, em seu Caderno H: “Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor exclama: ‘Olha uma borboleta!’. O crítico ajusta os nasóculos e, ante aquele pedaço esvoaçante de vida, murmura: – Ah! sim, um lepidóp- tero...” (QUINTANA, 2001, p. 19). A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 33 Os últimos parágrafos de A origem da obra de arte são a própria declaração de amor do filósofo à arte e, particularmente, à poesia: “Wahrheit als die Lichtung und Verbergung des Seienden geschieht, indem gedichtet wird Alle Kunst ist als Geschehenlassen der Ankunft der Warheit des Seiendenals eines solchen im Wesen Dichtung” (HEIDEGGER, 2010, p. 182, grifos do autor) [“A verdade, como cla- reira e velamento do sendo, acontece no que ela é poietizada. Toda arte é, como o deixar-acontecer da adveniência da verdade do sendo como tal, em essência poiesis” (p. 183, grifos do autor)]. Dichtung, Poesia, poiesis, têm um sentido bastante amplo na concepção de Heidegger, e, possivelmente, englobam todas as outras artes, mas guardam uma re- lação profunda e estreita com a linguagem. Assim, a origem da arte é sua essência, a essência da arte é a Poesia, e a essência da Poesia é a fundação, a instauração da verdade: “Stiftern als Schenken, Stiften als Gründen und Stiften als Anfangen” (HEIDEGGER, 2010, p. 190) [“fundar como doar, fundar como funda- mentar, fundar como principiar” (p. 191)]. A obra de arte envolve seres e elementos carregados de cultura, e, no entanto, o que a arte produz jamais esteve aí, é sempre começante. Essa ideia é fascinante, e aí nos voltamos novamente para o papel da crítica literária e do professor de literatura: trazer a obra para a cultura, as relações sociais, culturais. Isto é, revelar na obra de arte o que ela contém de mundo previsível, organizado, pré-estabelecido é esclarecer a verdade da obra ou trata-se apenas de um reducionismo de quem precisa se apoiar em elementos concretos para explicar a arte? Para abordarmos a obra de arte, devemos nos encher de informações sobre ela, “Kentnisse des Vergangenen” (p. 200) [“conhecimentos eruditos do passado” (p. 201)], como querem os professores universitários e orientadores de tese, ou devemos correr o risco e respeitar a essência da origem, como quer Heidegger? Novamente recorro ao poeta Mário Quintana, em mais uma de suas saborosas provocações: Essa mania de ler sobre autores fez com que, no último cente- nário de Shakespeare, se travasse entre uma professorinha do interior e este escriba o seguinte diálogo: Estudos da Pós-Graduação34 – Que devo ler para conhecer Shakespeare? – Shakespeare (QUINTANA, 2001, p. 75). Aí vem a grande questão de todo o discurso de Heidegger sobre a arte. Ele termina, então, com uns versos que aludem à morada na origem da Poesia, do poeta “dessen Werk zu bestehen den Deutschen noch bevorsteht” (HEIDEGGER, 2010, p. 200) [“cuja obra constitui ainda um desafio para os alemães a experienciarem” (p. 172)], ou seja, Hölderlin: »Schwer verläβt Was nahe dem Ursprung wohnet, den Ort.« Die Wanderung, Bd. IV (Hellingrath), S. 167. [Dificilmente abandona O que mora na proximidade do originário, o lugar. A Peregrinação, tomo IV (Hellingrath), p. 167] No parágrafo final do posfácio, ele fala da maneira como a arte é tratada em nossa civilização: In der Weise, wie für die abendländisch bestimmte Welte das seiende als das Wirkliche ist, verbirgt sich ein eingentümli- ches Zisammengehen der Schönheit mit der Wahrheit. Dem Wesesnswandel der Wahrheit entspricht die Wesengsgeschichte der abendländischen Kunst. Diese ist aus der für sich genom- menen Schönheit sowenig zu begreifen wie aus dem Erlebnis, gesetz, daβ der metaphysische Begriff von der Kunst in ihr Wesen reicht (HEIDEGGER, 2010, p. 208). [No modo como o sendo é o real vigente para o mundo determi- nado ocidentalmente, vela-se um singular ir junto da beleza com a verdade. À transformação essencial da verdade corresponde a história essencial da arte ocidental. Esta não é para ser compre- endida nem a partir da beleza tomada para si, nem a partir da vivência, a não ser que o conceito metafísico da arte alcance sua essência (HEIDEGGER, 2010, p. 209)]. [No modo como, para o mundo determinado à maneira ocidental, o ente manifesta o seu ser enquanto real, esconde-se uma parti- A INSENSATEZ DA ESCRITURA:ensaios de literatura 35 cular junção da beleza à verdade. À transformação da essência da verdade corresponde a história essencial da arte ocidental. Esta última é tão pouco compreensível a partir da beleza tomada só por si, como a partir da vivência, na suposição de que o con- ceito metafísico da arte possa alguma vez alcançar a essência da arte] (HEIDEGGER, 2008a, p. 67). É difícil, para quem lida com a literatura, como criador, como crítico, como estudioso, como comentador, ficar indiferente a essa ad- vertência de Martin Heidegger. A “beleza”, a esthesis, a emoção da arte em nossa cultura racionalista deve estar subordinada a uma verdade pre- estabelecida, às vezes contestada, às vezes refeita, às vezes complemen- tada, que acaba se tornando uma espécie de cânone crítico sob cuja ótica toda obra de arte deve ser vista? Considerando a literatura, nossas obras de arte são também atacadas por nossos escritos, dissertações, teses, en- saios, artigos etc. Talvez tenha que ser assim, mas será sempre neces- sário que o texto crítico se coloque numa posição hierárquica superior à própria obra de arte, em nome da segurança, do domínio, da maestria? Por que não investirmos mais, talvez, na magia, no enigma, no deixar- -nos tocar pela obra, em vez de violentá-la de maneira contumaz? ARTE Desligamento sem rumo (a verdade na pintura e no discurso, segundo Derrida) O subtítulo do texto “Restitutions – de la vérité em pointure” (1978), um longo ensaio incluído no livro La vérité em peinture, de Jacques Derrida, gera, de início, perplexidade ao se confrontarem os termos poin- ture [pwɛt̃yʀ] e peinture [pɛt̃yʀ], associados à noção de verdade. Derrida abre seu texto com três epígrafes altamente provoca- doras, que abalam a força do significante “restituições”, palavra carre- gada de uma robusta presença ligada à adequação, à conformidade, à legitimação, à atribuição, noções, por sua vez, fortemente enraizadas nos discursos metafísicos de tradição iluminista-racionalista. O pensa- mento de Derrida, em seu olhar desconfiado a tais textos, confronta-os com as noções de singularidade, alteridade, heterogeneidade, diferença, apropriação, desenraizamento, abandono, espectralidade. Aqui, parti- cularmente, ele coloca em cheque um texto de Meyer Schapiro, “A na- tureza morta como objeto pessoal” (SCHAPIRO, 1978, p. 135-151). O texto de Schapiro faz referência à Origem da obra de arte, de Martin Heidegger, em que o filósofo alemão atribui a propriedade de uns sa- patos pintados por Van Gogh, sem indicar exatamente quais, ou em qual quadro, a uma camponesa. Alguns anos depois, o texto de Schapiro desautoriza a restituição de Heidegger e institui a sua própria verdade: os sapatos não pertencem a nenhuma mulher do campo, mas a um Estudos da Pós-Graduação38 homem da cidade, o próprio Van Gogh. Derrida, então, faz uma re- flexão preciosa sobre essas verdades escriturais. As epígrafes dizem; escutemo-las. A primeira delas é um verbete de dicionário: POINTURE (lat. punctura), sf. Syn. anc. de piqûre. T. d’imprim. Petite lame de fer qui porte une pointe et qui sert à fixer sur le tympan la feuille à imprimer. Trou qu’elle fait dans le papier. T. de cordonnier, de gantier. Nombre de points d’une chaussure, d’une paire de gants (DERRIDA, 2010, p. 291).2 Como termo ligado às técnicas antigas de impressão gráfica, pointure refere-se a cada uma das chapas de ferro que possuem uma ponta que serve para fixar sobre o tímpano a folha a ser impressa. Designa ainda o furo que essa ponta faz no papel. Como termo de sapa- taria ou luvaria, refere-se ao número que designa o tamanho de um calçado, ou de uma luva. Derrida joga então com palavras e conceitos, como peinture/pointure, medida, texto, discurso e verdade. A segunda epígrafe é uma frase atribuída a Paul Cézanne: “Je vous dois la vérité en peinture, et je vous la dirai” (DERRIDA, 2010, p. 291).3 O pintor teria dito tal frase a Émile Bernard pouco tempo antes de morrer, e, afinal, a verdade não foi dita, instaurando-se o mistério. Se fosse a verdade de um pintor acadêmico do século XVII ou XVIII, po- der-se-ia pensar em representação perfeita, em compromisso de verifi- cação, mas, considerando-se um pintor do final do século XIX, cuja preocupação em arte consistia mais na sensação do que na represen- tação, só se pode pensar em uma nova concepção de verdade, que afinal não foi revelada. As palavras de Cézanne ressoam no título do livro e, segundo Derrida, soam também como um algo que é devido, uma dí- 2 Tradução nossa: “PUNTURA (lat. punctura), sf. Syn. ant. de piqûre. Gráf. Pequena lâmina de ferro que possui uma ponta e que serve para fixar sobre o tímpano a folha a ser impressa. Furo que ela faz no papel. Sapataria e luvaria. Tamanho de um sapato, de um par de luvas”. 3 Tradução nossa: “Eu lhes devo a verdade em pintura, e a direi a vocês”. A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 39 vida, um débito que ele reconhece: “Je le dois”. Schapiro e Heidegger, cada um dos dois deve a verdade em pintura. A terceira epígrafe é de Van Gogh: “Mais elle m’est si chere, la vérité, le chercher à faire vrai aussi, enfin je crois, je crois que je préfere encore être cordonnier à être musicien avec les couleurs” (DERRIDA, 2010, p. 291).4 Novamente, a pintura nos assombra com seu real, ou com o dis- curso do real. Como será, então, a verdade do próprio Van Gogh, a verdade que ele procura fazer? Quem vai nos dar as pistas das relações entre todos esses textos que aí são mencionados, citados, aludidos, é o próprio Derrida em seu ensaio. A verdade pretendida ressoa nos discursos. A palavra que dá nome ao texto de Derrida, “restitutions”, plural de restituição, liga-se ao pensamento metafísico: Schapiro restitui o sapato de Van Gogh a seu legítimo dono, Heidegger restitui as botinas à camponesa. De fato, nada se restitui, o que há é uma apropriação. Um convite a pensar: o que isso tem a ver com nossa prática em literatura, nós pesquisadores literários, nós que falamos da literatura? Falar sobre o pensamento de Derrida é falar de desconstrução, que não é um método, mas um acontecimento que paira sobre a lin- guagem, sobre o discurso, particularmente o discurso ocidental, que é o que utilizamos. E falar em desconstrução é falar em metafísica, é falar em metafísica da presença, a qual parte do princípio de que o signo traz consigo certas determinações que constituirão as verdades dos dis- cursos, dada a natureza da linguagem dentro do sistema iluminista, que induz à visão do signo como presença, numa redução metafísica do significar, que aprisiona o comparecimento do significado, que se erige na tarefa de restituir, de atribuir. O desejo do acesso imediato ao signi- ficado faz com que se construa uma metafísica acerca do privilégio da presença sobre a ausência. Para Derrida, o signo não é presença, o ob- jeto não está no signo, é apenas um rastro, para além do qual não existe origem possível. 4 Tradução nossa: “Mas ela me é muito cara, a verdade, e procurar criar a verdade, enfim eu creio, eu creio que prefiro ser um sapateiro a ser um músico com as cores”. Estudos da Pós-Graduação40 O discurso metafísico ocidental constitui um sistema binário de oposições que carregam sinais positivos e negativos, como masculino / feminino, cultura / natureza, ser / não ser, fala / escrita, realidade / apa- rência, centro / margem. Os significantes trazem em si a presença auto- mática de considerações que parecem estar impregnadas neles. No caso do par masculino / feminino, por exemplo, temos, de um lado, autori- dade, força, determinação, poder; de outro, fragilidade, meiguice, sub- missão, sedução etc. Esse sistema está ligado à noção de estrutura, conceito antiquís- simo na episteme ocidental; ela tem sido sempre neutralizada, ou redu- zida, pelo fato de lhe ser sempre atribuído um centro, um ponto de presença, uma origem fixa. O centro organiza, orienta e equilibra a es- trutura, a coerência dosistema, e, sobretudo, limita o jogo da estrutura. Ainda hoje não se pode pensar uma estrutura sem centro. Mas a natureza da linguagem é tal que não podemos deixar de ter a ilusão de ver o signo como uma presença, isto é, de ver no signo a presença da “coisa” ou do “conceito”. É a isso que Derrida chama “me- tafísica da presença”. Essa ilusão é necessária para que o signo funcione como tal: afinal, o significante está no lugar de alguma outra coisa, e, embora na plena presença do signo, o conceito de algo é definitiva- mente adiado. Para ele, o signo carrega não apenas o traço daquilo que substitui, mas também o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisa- mente da diferença. Em suma, o signo é caracterizado pelo adiamento (da presença) e pela diferença (relativamente a outros signos). Esses dois traços estão sintetizados no conceito de différance.5 A ruptura ou disrupção ocorre quando a estrutura começa a ser pensada, repetida. Daí, a disrupção é repetição. A lei do desejo do 5 O pensamento racionalista-iluminista opera por causa e efeito, a partir da noção de origem, ponto de partida, para onde se quer chegar. A noção de différance, confrontada com différence, termos homófonos, é criação de Derrida. Em francês, o verbo différer significa simultaneamente “adiar” e “diferenciar”, ações que estão na base do ato de significar fora da metafísica da presença. As duas palavras são pronunciadas da mesma forma, mas escritas de maneira diferente, o que questiona a tradicional prevalência da fala sobre a escrita, e o fato de que esta seria uma espécie de “imagem” daquela. A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 41 centro, que comanda os deslocamentos e substituições no processo de significação é repensada, a lei da presença central deve passar a ser vista não mais como algo natural, a linguagem desperta a ideia de que na verdade não há centro, não há realmente um significado central, ori- ginário e transcendental, e este só se sustenta dentro de um sistema de diferenças. A ausência de um significado transcendental amplia indefi- nidamente o campo e o jogo da significação. A lei da presença do centro conduz o discurso frequentemente a uma pretensão de certeza comumente encontrada em discursos de dou- tores, em geral, e de críticos literários, como se lê nos fragmentos se- guintes, retirados da obra de nomes canônicos da crítica brasileira: É uma constante não desmentida de toda a nossa evolução li- terária que a verdadeira poesia só se realiza, no Brasil, quando sentimos na sua mensagem uma certa presença dos homens, das coisas, dos lugares do país (CANDIDO, 2006, p. 134-136). A história o prova; ela nos mostra a inteligência e a atividade mais especialmente residindo no branco puro ou no mestiço; e nunca no índio ou no negro estremes de qualquer mistura. [...] Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se talvez depurado e belo como no Velho Mundo (ROMERO, 1980, p. 924-925). Ao contemplar a história da literatura brasileira não fugimos a uma impressão pessimista. É uma literatura pobre. Ainda não chegamos mesmo à plena posse de uma literatura. [...]. Qualquer que seja a época em que se observe, há sempre nela algo que falta, certa densidade, certo calado, certa riqueza, que lhe comu- nicariam personalidade (COUTINHO, 1968, p. 36). Vale dizer: há casos em que uma ação externa se justifica per- feitamente num romance introspectivo, e, ao revés, não se justifica num romance extrospectivo. Vejamos exemplos. O Guarani, típica narrativa histórica, e portanto linear ou extros- pectiva, desenvolve-se como uma complexa bacia hidrográfica, cruzada por rios de vário caudal e intensidade. [...] Com isso, justapôs à história um apêndice inútil, que amortece sobremodo o impacto provocado pela refrega entre indígenas e brancos (MOISÉS, 2004, p. 92). Estudos da Pós-Graduação42 Afirmações taxativas e categóricas, acompanhadas de justifica- tivas pretensamente inquestionáveis, como as que carregam as expres- sões “uma constante não desmentida”, “a verdadeira poesia”, “A his- tória o prova”, “Pela seleção natural”, “É uma literatura pobre”, “se justifica perfeitamente”, “não justifica”, parecem estabelecer a derra- deira e única palavra sobre os assuntos abordados pelos autores, e a circulação abonada desses discursos pelas salas de aula e salões de con- gressos, praticamente sem contestação, parecem constituir restitutions da verdade a seu verdadeiro dono. São discursos repletos de certezas, que acompanham as palavras, certezas sempre presentes na elocução, e que nunca precisam ser demonstradas, só precisam ser sempre vistas como verdades não desmentidas. De tornada aos quadros, a questão principal da desconstrução colocada por Derrida em “Restitutions” é: de quem são os sapatos da(s) pintura(s) de Van Gogh? Daí a querela entre Schapiro e Heidegger. A ideia de não correspondência entre o que a restituição pretende fazer e o que ela efetivamente faz é importante aqui. Essa não correspondência deve-se ao fato de que não há restituição em nenhum dos dois discursos, repita-se, mas uma apropriação. Schapiro insiste em suas ideias e não percebe as ideias de Heidegger, inclusive uma fundamental: a de que realmente não importa de quem sejam os sapatos, uma vez que ele se apropria da figura da camponesa como alegoria para sua discussão sobre mundo e terra. Além disso, a utilização da imagem da camponesa e seus sapatos está relacionada à intenção de Heidegger exatamente de negar a representação, à sua tentativa de ver a arte como um fenômeno imanente, e não como representação da realidade. É notável a ideia de que esses sapatos são alucinógenos: tudo o que dizem Heidegger e Schapiro a respeito deles faz parte de uma “dra- maturgia delirante”, uma alucinação: “Ces souliers sont allucinogènes” (DERRIDA, 2010, p. 312).6 O historiador de arte acusa Heidegger de retirar o quadro de seu contexto e de projetar nele seus próprios fantasmas, e empenha-se em 6 Tradução nossa: “Esses sapatos são alucinógenos”. A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 43 restituir ao quadro sua verdade: ele pertence não a uma camponesa, mas a um homem da cidade, ao próprio Van Gogh. Para Derrida, Schapiro comete o mesmo abuso que atribui a Heidegger, retirando de seu con- texto filosófico as referências que este faz ao quadro, desconsiderando o caminho do pensamento heideggeriano e submetendo as pinturas a um saber acadêmico, uma expertise. Tanto para Heidegger quanto para Schapiro, os sapatos constituem um par. Os dois estudiosos se esquecem de que os sapatos estão abandonados, desenlaçados, desamarrados, désœuvrés. Desengonçados, desemparelhados, destacados dos corpos que andam, e destacados um do outro também. Dois não constituem necessariamente um par. Se não são um par, são o suporte vazio de uma ausência. Parecem andar, estão em movimento, embora não cheguem jamais a um destino, não permitam uma conclusão, uma verdade. Não dizem nada, apenas fazem dizer. Como obra, cumprem seu destino de différance, seu eterno adiamento de sentido, sua sempre diferença. Assim, são irredutíveis às restituições que tentam fazer deles Heidegger e Schapiro, com a diferença de que Heidegger vai infinitamente mais longe, ao fazê-los abrir um abismo de intranquilidade na terra. Schapiro denuncia cientificamente uma projeção identificatória de Heidegger, que anexa as botas à sua paisagem social, que se engana a si mesmo: “They are grounded rather in his own social outlook with its heavy pathos of the primordial and earthy” (SCHAPIRO, 1978, p. 138).7 O historiador de arte esquece-se convenientemente de sua pró- pria projeção. Eis a alucinação na pintura, seu fantasma. Entretanto, indaga Derrida, o que é uma projeção, quais são seus limites, o que é possível e o que não é possível projetar? Ela é uma adequação? Um desvelamento? Se a verdadeem pintura de Heidegger aparece nos sa- patos pintados como aletheia, para Schapiro, aparecem como a verdade de adequação, de representação fiel e mimética. Talvez a alucinação de Heidegger seja atenuada pelo fato de que a verdade em pintura de Van Gogh esteja ligada à terra, aos camponeses 7 Tradução nossa: “Eles se baseiam mais em sua própria perspectiva social com seu pesado pathos do primordial e do terreno”. Estudos da Pós-Graduação44 e camponesas, ainda que sua verdade permaneça representativa. Nas cartas a Théo, Vincent se declara um “peintre de paysans” [“pintor de camponeses”]: “Quand je dis que je suis un peintre de paysans, c’est bien ainsi en réalité, et tu verras mieux par la suite que c’est là que je me sens dans mon milieu” (DERRIDA, 2010, p. 420).8 Pintor de campo- neses, de sapatos camponeses? Tornando à terceira epígrafe, lembremo- -nos de que Van Gogh declara preferir ser um sapateiro a um músico de cores. Para ele, os detalhes das coisas, sua presença real, encarnam seu “destino espiritual”. O argumento não confere consistência absoluta à projeção alucinatória de Heidegger, mas parece ser um suporte identifi- catório para ela. A condição de desamparo, de desgarramento dos sapatos, parece incomodar profundamente tanto a Heidegger quanto a Schapiro. Os sa- patos estão abandonados; devem, então, ser restituídos ao seu lugar, ao seu dono, às suas condições de existência real, e, assim, Heidegger e Schapiro estabelecem suas verdades sobre o objeto, sobre a obra de arte, restituindo-lhes suas certezas. Schapiro, entretanto, não leva em conta que o que Heidegger faz é uma crítica à representação, e que o fato de os sapatos serem de uma camponesa ou de um homem urbano não faz a menor diferença para o filósofo. Quanto a isso, é incontornável retomar alguns momentos de A origem da obra de arte, a partir da seguinte afirmação: “Onde o ar- tista e o processo e as circunstâncias da gênese da obra permanecem desconhecidos, é que mais puramente ressai este choque, este ‘que’ do ser-criado da obra” (HEIDEGGER, 2008a, p. 52). O choque a que Heidegger se refere é a presença do inabitual, do inquietante, do não conforme, do inusitado etc. Quando vamos abordar um texto literário, nossa compulsão é falar da vida de quem a fez, quantos prêmios ga- nhou, quantas vezes se casou, por que fulano é importante, que público lê suas obras. Segundo Ezra Pound (2007, p. 9), “O mau crítico se iden- tifica facilmente quando começa a discutir o poeta e não o poema”. 8 Tradução nossa: “Quando eu digo que sou um pintor de camponeses, isto é assim na realidade, e você vai ver melhor em seguida que este é o lugar onde eu me sinto na minha comunidade”. A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 45 Para Heidegger, a obra é, a obra está, a obra existe. Quanto mais deixada a si mesma, em sua solidão, quanto menor for a interferência da cultura em sua determinação, mais ela sobressai como choque, como inquietação, como inabitual. Eis sua salvaguarda – seu resguardo –, que é deixar a obra ser obra, digamos assim, em seu repouso intranquilo. Essa salvaguarda parece ser uma espécie de contemplação, um absorver da verdade da obra, um saber que é um querer, um desejo de não ver as coisas determinadas na obra, mas a persistência no abismo de inquie- tação que ela propicia. Esse contemplar, esse fruir é, então, o saber- -querer que constitui a salvaguarda da obra. Ainda em A origem da obra de arte, Heidegger adverte que esse querer-saber, saber-querer “não arranca a obra de seu estar-em-si, não a arrasta para o âmbito da mera vivência e não a rebaixa ao papel de esti- mulante de vivências” (HEIDEGGER, 2008a, p. 54). Arte, portanto, não é vivência de mundo, não é correspondência de enunciados, não é verificação de certezas: “Logo que o choque para o abismo intranquili- zante é amortecido no campo do habitual e do perito, começou já o ne- gócio da arte em torno das obras” (HEIDEGGER, 2008a, p. 55). Arte não é erudição, não é saber racional, não é o frio lepidóptero do crítico, mas a borboleta esvoaçante, como queria Mario Quintana. Assim, a arte não é feita para retornar a lugar nenhum, para ser restituída a coisa alguma. A arte existe para existir, para estar lá, a arte é. É o que parece dizer a pintura – as pinturas – dos sapatos de Van Gogh: Ces souliers sont une allégorie de la peinture, une figure du détachement pictural. Ils disent: nous sommes la peinture en peinture. Ou encore: on pourrait intituler ce tableau: l’origine de la peinture. Il met le tableau en tableau et vous invite à ne pas oublier; cela même qu’il vous fait oublier: vous avez sous les yeux de la peinture et non pas des souliers (essayez donc de les remettre, à vos pieds ou à ceux d’un autre!), la peinture est ori- ginairement ce détachement qui perd pied. Mais le détachement doit aussi s’entendre (DERRIDA, 2010, p. 391).9 9 Tradução nossa: “Esses sapatos são uma alegoria da pintura, uma figura do desligamento pictural. Eles dizem: nós somos a pintura em pintura. Ou então: Estudos da Pós-Graduação46 Aqui, Derrida refere-se a um “détachement qui perd pied”. A ex- pressão perd pied pode ser entendida como estar perdido, não ter refe- rência, linha de conduta. Pode-se pensar ainda em “perder o pé”, também, no sentido de não ter segurança de onde pisar, de afogar, nau- fragar, soçobrar. O texto de Derrida tem uma estrutura dialogada, em que duas, ou várias vozes, que não podem ser identificadas, manifes- tam-se. Uma dessas vozes em determinado momento parece contestar a fala retrocitada, que pode soar também como uma atribuição, ou uma apropriação, e a refuta, interrompendo-a bruscamente: – Non, non, non, ça ne dit rien de tel, ça ne donne rien à en- tendre, surtout pas, une fois de plus, cette mise-en-abyme10 de la peinture dans la peinture dont on a bien montré à quelle satura- tion restituante, à quelle réa déquation représentative elle tendait encore. Non, non (DERRIDA, 2010, p. 391).11 A forma utilizada por Derrida, de encenar várias vozes para pensar a obra de arte, harmoniza-se com seu pensamento, que recusa afirmações categóricas e verdades sobre ela. Se a obra diz algo, ao mesmo tempo não diz nada, e tudo o que ela diz constitui uma apro- priação de um sentido e uma atribuição a ela de um discurso. Na sequ- ência das contestações, uma outra voz se manifesta: – Si – le détachement doit aussi s’entendre comme une mission représentative à rattacher à son origine émettrice. Un rattachement poder-se-ia intitular esse quadro: a origem da pintura. Ele coloca o quadro em quadro e convida vocês a não esquecerem; aquilo mesmo que ele os faz esquecer: vocês têm sob os olhos a pintura e não os sapatos (experimentem então remetê-los aos seus pés, ou aos pés de outra pessoa!), a pintura é originariamente esse desligamento que perde o rumo. Mas o desligamento deve também entender-se”. 10 A expressão refere-se a uma obra mostrada no interior de outra de que se fala, em dois sistemas semióticos idênticos: uma narrativa dentro da narrativa, um filme dentro do filme, uma pintura dentro da pintura. 11 Tradução nossa: “– Não, não, não, ela não diz nada disso, não dá a entender nada, sobretudo não, uma vez mais, esse mise-en-abyme da pintura dentro da pintura que bem se mostrou àquele excesso restituidor, àquela readequação representativa a que ela ainda tendia. Não, não”. A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 47 est déjà, toujours, en train de resserrer le destricturé. En ce sens les souliers font marquer (font marcher, font marché-de) ce qu’on tra duirait par l’énoncé suivant: ceci est un tableau, nous sommes la peinture en peinture, ceci est dessiné par les traits, les bordures, les lacets des souliers vides qui nous detachment du sujet en pied. Dès lors ces traits en lacets forment le « cadre » du tableau qui paraissait les encadrer. Nous les souliers, nous sommes plus grands que le cadre et la signature incorporée. Le tableau
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