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Prévia do material em texto

A insensatez 
da escritura
ensaios de literatura
Presidente da República
Michel Miguel Elias Temer Lulia
Ministro da Educação
José Mendonça Bezerra Filho
Universidade Federal do Ceará - UFC
Reitor
Prof. Henry de Holanda Campos
Vice-Reitor
Prof. Custódio Luís Silva de Almeida
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Prof. Antônio Gomes de Souza Filho
Pró-Reitor de Planejamento e Administração
Prof. Almir Bittencourt da Silva
Imprensa Universitária
Diretor
Joaquim Melo de Albuquerque 
Conselho Editorial
Presidente
Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães
Conselheiros
Prof.ª Angela Maria R. Mota Gutiérrez
Prof. Ítalo Gurgel
Prof. José Edmar da Silva Ribeiro
Fortaleza
2017
A insensatez 
da escritura
Cid Ottoni Bylaardt
ensaios de literatura
A insensatez da escritura: ensaios de literatura
Copyright © 2017 by Cid Ottoni Bylaardt
Todos os direitos reservados
Impresso no BrasIl / prInted In BrazIl
Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Av. da Universidade, 2932, fundos – Benfica – Fortaleza – Ceará
Coordenação editorial
Ivanaldo Maciel de Lima
Revisão de texto
Leidyanne Viana
Normalização bibliográfica
Marilzete Melo Nascimento
Programação visual 
Sandro Vasconcellos / Thiago Nogueira
Diagramação
Sandro Vasconcellos
Capa
Lana Carolina
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Bibliotecária Marilzete Melo Nascimento CRB 3/1135
B993i Bylaardt, Cid Ottoni.
 A insensatez da escritura: ensaios de literatura / Cid Ottoni Bylaardt. - Fortaleza: 
 Imprensa Universitária, 2017.
 328 p. : il. ; 21 cm. (Estudos da Pós-Graduação)
ISBN: 978-85-7485-305-5
1. Literatura. 2. Arte. 3. Crítica literária. I. Título.
 CDD 800
Agradecimentos
À Capes
Ao CNPq
À Editora UFC
À Imprensa Universitária
FEITIO ............................................................................................... 9
PARTE I: ARTE, VERDADE, OLHARES
A OBRA DE ARTE COMO SER-CRIADO: considerações sobre 
Der Ursprung des Kunstwerkes, de Martin Heidegger ..................... 15
ARTE: desligamento sem rumo (a verdade na pintura e no 
discurso, segundo Derrida) ............................................................... 37
A ESTÉTICA CONTEMPORÂNEA: nova poética, novo olhar ........... 53
ENTRE OS DISCURSOS DO ETNÓLOGO, DO FILÓSOFO 
E DO FICCIONISTA: a diluição do centro na estrutura do 
romance Nove noites, de Bernardo Carvalho .................................... 73
PARTE II: DOSSIÊ LOBO ANTUNES
O DESEJO QUE PERMANECE DESEJO: o mito de Orfeu na 
ficção de Lobo Antunes ..................................................................... 91
O FRAGMENTO, A IMPOSSIBILIDADE, O SILÊNCIO 
E O NEUTRO NA PROSA CONTEMPORÂNEA DE 
LOBO ANTUNES .......................................................................... 107
A ESCRITA INSENSATA: uma leitura de O manual dos 
inquisidores, de Lobo Antunes ........................................................ 117
QUEM TEM MEDO DO LOBO ANTUNES? ............................... 135
NAUFRAGAR É PRECISO: conversa em Lisboa com António 
Lobo Antunes .................................................................................. 143
PARTE III: ITINERÁRIOS DE POESIA
A DESTERRITORIALIZAÇÃO DO LIRISMO NA POESIA 
DE PAULO HENRIQUES BRITTO: itinerário de Macau, 
de Paulo Henriques Britto ............................................................... 155
SUMÁRIO
O TEMPO EM REDE: itinerário de Poema sujo, de Ferreira Gullar ... 163
UMA VIAGEM NA POESIA: itinerário de Itinerário de 
Pasárgada, de Manuel Bandeira ..................................................... 181
FIGURAÇÕES DA MORTE: itinerário de Flor da morte, de 
Henriqueta Lisboa ........................................................................... 193
LEMINSKRITURAS DELIRANTES: itinerário de Distraídos
venceremos, de Paulo Leminski ....................................................... 209
SONETO, A DOCE LOUCURA DO AMOR: itinerário de Sonetos, 
de Cláudio Manuel da Costa ........................................................... 221
EVOCAÇÃO DA INFÂNCIA: itinerário de Novos poemas, de 
Jorge de Lima .................................................................................. 231
O DISCURSO DE EXPORTAÇÃO: itinerário de Pau Brasil, 
de Oswald de Andrade .................................................................... 249
A QUANTIDADE MÍNIMA DA TONELADA DE MINÉRIO:
itinerário de Prosas seguidas de odes mínimas, de José Paulo Paes ..... 263
A POESIA DO DESCONHECER: itinerário de O livro das 
ignorãças, de Manoel de Barros ..................................................... 293
ÍNDICE ONOMÁSTICO ............................................................. 315
BIBLIOGRAFIA ........................................................................... 319
FEITIO
Este livro contém reflexões sobre a arte e a literatura, bem como 
diálogos com textos literários, compondo dezenove ensaios e artigos ori-
ginados de pesquisas, reflexões e discussões em grupos de pesquisa e em 
salas de aula da graduação e da pós-graduação em Letras da UFC.
O livro abre com o texto “A obra de arte como ser-criado: consi-
derações sobre Der Ursprung des Kunstwerkes”, inspirado pela famosa 
obra de Heidegger, em que ele faz uma grande reflexão sobre as possibi-
lidades de abordagem da arte. Em seu caminho de pensar, ele descarta a 
teoria, entendida como um acúmulo de enunciados que pretendem deli-
mitar as propriedades e características dos objetos. Em vez de se adiantar 
aos fenômenos com modelos explicativos, seu procedimento procura 
descrever as coisas em seu horizonte de “mostração”: para falar da arte, 
é preciso colocar de lado toda a teoria sobre ela e dar um mergulho no 
horizonte mesmo em que a obra se mostra, em busca de sua verdade, 
sem se apoiar na visão de mundo do artista, nem desvendar suas su-
postas alegorias, nem vasculhar sua oficina de trabalho. A obra é, a obra 
está, a obra existe. Quanto mais deixada a si mesma, em sua solidão, 
quanto menor for a interferência da cultura em sua determinação, mais 
ela sobressai como choque, como inquietação, como inabitual. Aí vem a 
grande questão de todo o discurso sobre a arte de Heidegger: para abor-
darmos uma obra, devemos nos encher de informações sobre ela, ou 
devemos correr o risco, respeitar a essência da origem e mergulhar na 
verdade da obra, como quer Heidegger? 
Em seguida, o texto “A verdade em Van Gogh: desligamento sem 
rumo (a verdade na pintura e no discurso, segundo Derrida)” desen-
volve, amplia, desdobra os pensamentos sobre a arte e a literatura, agora 
inspirados em Restitutions – de la vérité em pointure (1978), um longo 
ensaio incluído no livro La vérité em peinture, de Jacques Derrida, que 
Estudos da Pós-Graduação10
estabelece um confronto entre duas afirmações sobre uma pintura de 
sapatos de Van Gogh. Heidegger, em A origem da obra de arte, diz que 
os sapatos são de uma camponesa. Meyer Schapiro, em um texto poste-
rior, procura desmentir Heidegger e atribuir os sapatos ao próprio pintor. 
Em seu ensaio, Derrida discute a questão da não correspondência entre 
o que a restituição pretende fazer e o que ela efetivamente faz. Essa não 
correpondência deve-se ao fato de que não há restituição em nenhum 
dos dois discursos (de Heidegger e de Schapiro), mas uma apropriação. 
O segundo texto, então, pretende provocar uma reflexão sobre o pensa-
mento de Derrida em relação às abordagens à obra de arte, ao texto li-
terário, que constituem a prática de professores e pesquisadores.
O terceiro artigo deste livro reflete um pensar sobre a literatura 
contemporânea brasileira. O chamado Pós-Modernismo no Brasil, 
como na maioria dos países do mundo ocidental, é um fenômeno mul-
tifacetado, repleto de indeterminação. Um dos aspectos desse pano-
rama é a desconfiança das estruturas discursivas pretensamente está-
veis que pareciam caracterizar a linguagem modernista, a consciência 
da precariedade dos fundamentos e determinações, disseminando-se, 
então, na ideia de errância,de dispersão, de insuficiência do pensa-
mento dialético de suporte racionalista-iluminista. Essa atitude tende a 
produzir uma estética do estranhamento, em que a literatura parece 
inclinar-se a se configurar como uma atividade singular, um ato indife-
renciado daquele que escreve no avesso obscuro e silencioso da lin-
guagem. O referido texto pretende empreender uma reflexão sobre 
como essa dispersão de saberes e suas relações com o poder de dizer se 
processam em algumas obras já canônicas da literatura brasileira con-
temporânea, e como essa condição parece determinar uma nova ma-
neira de se olhar essa literatura, subvertendo os saberes, as formas, os 
gêneros, os conceitos que, até um certo momento, bastavam-nos para 
enquadrar o texto literário.
Esta parte se fecha com o ensaio “Entre os discursos do etnólogo, 
do filósofo e do ficcionista: a diluição do centro na estrutura do ro-
mance Nove noites, de Bernardo Carvalho”, uma reflexão sobre os con-
ceitos de estrutura ligados ao desconstrucionismo de Derrida, os quais 
podem ser vislumbrados na estrutura acêntrica de Nove noites.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 11
A segunda parte contém textos que dialogam com a obra de 
António Lobo Antunes, notável romancista português contemporâneo, 
que tem ocupado boa parte da pesquisa do autor deste livro.
O texto “O desejo que permanece desejo: o Mito de Orfeu na 
ficção de Lobo Antunes” pretende estabelecer uma relação entre a lei-
tura blanchotiana do Mito de Orfeu e o comportamento dos “escritores” 
dos romances de Lobo Antunes (entendidos como criaturas ficcionais 
que escrevem compulsivamente), com o intuito de mostrar como eles 
são completamente atraídos pela força da escrita que perde seu rumo, 
assim como Orfeu perde sua Eurídice ao voltar-se e mirar seu rosto.
O ensaio seguinte intitula-se “O fragmento, a impossibilidade, o 
silêncio e o neutro na prosa contemporânea de Lobo Antunes”. A escri-
tura de António Lobo Antunes é gaga, fragmentária, desequilibrada, 
inadequada, embrulhada. O que temos é um desastre inevitável. Não 
obstante, é um desastre fascinante, sob uma perspectiva blanchotiana, 
que pressupõe uma escritura destituída de poder, que não fala a lin-
guagem da ordem, mas não pode parar de falar, que nos expõe a uma 
espécie de perplexidade passiva, que confunde o conhecimento. A es-
critura de Lobo Antunes é, assim, extremamente contemporânea em sua 
estética da falta, da ausência, da impossibilidade de encontro entre os 
extremos e os meios para comporem um conjunto lógico. A multiplici-
dade de enunciadores, todos eles instáveis e descrentes do poder edifi-
cante da escritura, impede a identificação de uma voz “central” (ou a 
que deveria ser o centro, que não há), o que contribui para o império do 
fragmento. O clímax e o desenlace clássicos não mais constituem o 
apelo da narrativa, que não aponta para uma solução, uma decisão, um 
ponto de chegada qualquer. É essa concepção de negatividade, asso-
ciada às noções de fragmento e desastre, que este texto se propõe a in-
vestigar na ficção de Lobo Antunes.
Em seguida, temos uma leitura do romance O manual dos in-
quisidores, que parece tratar de um tema aparentemente banal: a 
ascensão e a queda de um poderoso. O ensaio discute as relações de 
poder na narrativa, o qual, entretanto, é aqui volatilizado e desestabi-
lizado por uma escrita que esconde um saber inoperante, ou um não 
saber, um discurso inútil e mentiroso, que se desenvolve a partir de si 
Estudos da Pós-Graduação12
mesmo, obnubilando o caráter retórico, mitológico ou ideológico do 
texto literário.
Segue-se o texto “Quem tem medo do Lobo Antunes”, que pro-
cura fazer uma apresentação do escritor, principalmente para aqueles 
que o acham “difícil”. Pretende, também, situar o autor e sua impor-
tância na literatura contemporânea.
A seção dedicada ao escritor português fecha-se com “Conversa 
em Lisboa com António Lobo Antunes”, uma espécie de entrevista, sem 
perguntas ou respostas, do autor deste livro com o escritor em Lisboa.
A terceira parte do livro, intitulada “Itinerários de poesia”, pro-
põe-se a fazer um roteiro de dez livros significativos de poesia brasi-
leira, chamando a atenção para os elementos mais marcantes das 
obras. Os poetas focalizados são Paulo Henriques Britto, Ferreira 
Gullar, Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa, Paulo Leminski, 
Clau dio Manuel da Costa, Jorge de Lima, Oswald de Andrade, José 
Paulo Paes e Manoel de Barros.
Os ensaios e roteiros aqui reunidos parecem estar ligados por um 
pensamento: o de que a literatura não consegue apresentar verdades e 
conclusões. Os textos que seguem, muitos dos quais inspirados no pen-
samento de Maurice Blanchot sobre a literatura, levantam perguntas, 
problemas, discussões, e procuram preservar da arte sua condição de 
abismo de intranquilidade, como o título da obra sugere.
 Cid Ottoni Bylaardt 
Parte I
ARTE, VERDADE, 
OLHARES
A OBRA DE ARTE COMO SER-CRIADO 
considerações sobre Der Ursprung des 
Kunstwerkes, de Martin Heidegger
Heidegger não quer lançar à obra de arte o olhar da estética, 
geralmente impregnado de critérios de valor, nem pela perspectiva de 
um belo subjetivo, nem pelo viés da criação artística. Seu olhar é episte-
mológico, em um sentido especial, na medida em que busca o conheci-
mento da coisa em seu campo, e ontológico, porque busca sua essência, 
sua origem. Para o filósofo, a arte é, sobretudo, uma linguagem que 
segue seu caminho apontando para uma origem que nunca se revela.
Ele se recusa a examinar o fenômeno artístico dentro das divisões 
pré-determinadas do saber, como as teorias da arte, a ética, a estética, a 
história. O fato de esse procedimento ser diverso do que se opera nor-
malmente pode nos sinalizar algo.
Filosofar é perguntar: o que é o ser? É uma pergunta ontológica, 
que busca determinar o ser do ente em sua totalidade, em seu campo de 
aparecimento, de “mostração”. Arte, assim, não é um fenômeno classi-
ficável num campo particular, mas algo que se mostra no mundo em sua 
relação com a terra.
Isso não significa que, para Heidegger, a obra de arte não tenha 
uma determinação própria; significa, isto sim, que ela merece ser estu-
dada no horizonte em que se mostra, em seu campo de manifestação, 
numa atitude fenomenológica. A fenomenologia, para ele, tem como 
objeto de estudo o próprio fenômeno, isto é, as coisas em si mesmas e 
Estudos da Pós-Graduação16
não o que é dito sobre elas, suas identidades universais e seus sentidos 
especificamente representados. A investigação fenomenológica busca, 
assim, a essência do sujeito por meio da expressão das suas experiên-
cias internas; procura descobrir a determinação dos entes em seus 
campos de manifestações, independentemente de posicionamentos pré-
vios (classificações, características, enunciados).
Em Der Ursprung des Kunstwerkes [A origem da obra de arte], 
ensaio nascido de algumas conferências do autor, em 1936, e publicado 
pela primeira vez em 1950, a pergunta que Heidegger faz é como se 
mostra a obra de arte, seu modo de ser. Ela não se restringe a uma aná-
lise de propriedades. Trata-se de uma imersão no próprio horizonte de 
constituição da obra, em seu campo de jogo. Heidegger (2010, p. 42) 
afirma, então, que a obra de arte é uma coisa, situada entre o utensílio e 
a mera coisa. Contudo, a obra de arte, além do caráter de coisa, possui 
ainda “etwas anderes” [“algo outro”], que lhe confere a condição de 
objeto artístico. Quando se relaciona a algo externo, manifestando 
o outro, é alegoria, ou άλλο αγορεύει [allo agoreuei] (falar outro, 
dizer outro); quando se reúne com algo de outro, é ainda símbolo, em 
grego συμβάλλειν [symballein] (jogar com, trazer junto). Segundo o 
filósofo, a abordagem da obra de arte há muito tempo se baseia nos 
conceitos de alegoria e símbolo, que se apoiam no caráter coisal da 
obra, que é o que o artista realmenteproduz em seu ofício. Ele pro-
põe-se, então, a encontrar a imediata e plena realidade vigente da obra 
de arte, para encontrar nela a verdadeira arte: “Wir möchten die unmit-
telbare und volle Wirklichkeit des Kunstwerkes treffen; denn nur so 
finden wir inihm auch die wirkliche Kunst” (p. 44) [“Nós queremos 
alcançar a imediata e plena realidade vigente da obra de arte, pois so-
mente assim encontramos nela também a verdadeira arte” (p. 45)].1 
A coisa (ou o caráter coisal da coisa, ou as interpretações da 
coisidade da coisa) é conceituada habitualmente de três maneiras: 1) 
como suporte de características; 2) como unidade de múltiplas sensa-
ções; 3) como matéria enformada (consistência, materialidade): “Die 
1 Será utilizada neste artigo a tradução de Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo 
da Silva (HEIDEGGER, 2010).
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 17
drei aufgeführten Weisen der Bestimmungder Dingheit begreifen das 
Ding als den Träger von Merkmalen, als die Einnheit einer 
Empfindungsmannigfaltigkeit, als den geformten Stogg” 
(HEIDEGGER, 2010, p. 72) [“As três maneiras encaminhadas de de-
terminação da coisidade concebem a coisa como portadora de caracte-
rísticas, como a unidade de uma multiplicidade de sensações, como 
matéria enformada” (p. 73)].
Conforme a primeira conceituação habitual, as coisas têm pro-
priedades específicas, essenciais, que constituem sua ontologia. Os pre-
dicados da coisa são divididos em duas classes específicas: substância 
e acidentes, o que constitui uma abrangência por demais genérica. A 
obra de arte tem propriedades constantes, mas os enunciados acerca de 
sua substância e acidentes são insuficientes para alcançar sua determi-
nação ontológica. A unidade pretensamente conferida pelo enunciado 
das propriedades é um discurso, uma representação. Vemos a coisa nela 
mesma, e como vemos, o que inviabiliza o acolhimento da própria coisa. 
É possível falar de uma coisa sem agredi-la ou dissimulá-la? 
Essa pergunta certamente merece ser repetida por professores e 
pesquisadores. As noções de agredir e dissimular que Heidegger sugere 
permeiam grande parte de seu pensamento sobre como a cultura ocidental 
forma seu saber. No livro Parmênides, Heidegger (2008c, p. 16), refere 
duas maneiras de se buscar o conhecimento de algo. A habitual é a que 
consiste em os estudiosos se apoderarem do objeto, assumirem uma ati-
tude de superioridade em relação a ele e exercerem sobre ele um certo 
tipo de autoridade que a metafísica ocidental lhes concedeu. Em nosso 
saber, assim, o objeto de conhecimento normalmente é dominado e sub-
jugado a partir de certas informações e relações factuais atribuídas a ele. 
A essa atitude, ele opõe o que denomina “saber essencial”, que é, em vez 
de dominar o objeto, o comentador se deixar tocar por ele. O modo de 
objetivação do saber ocidental é um sobrepujar, um ultrapassar do ser, ou 
meramente um atropelamento, em muitos casos. No saber essencial, o 
que há é um retroceder diante do ente. Professores e pesquisadores não 
podem descartar essas reflexões em suas abordagens do texto literário.
A segunda conceituação habitual, pela qual se encara a coisa 
como αισθητόν [aisteton] (apreensível pelos sentidos), é uma con-
Estudos da Pós-Graduação18
cepção ingênua e superficial: serve para qualquer coisa e provoca 
distorções tanto pelo afastamento quanto pela aproximação do re-
ceptor à coisa.
 A terceira conceituação habitual considera a obra de arte uma 
síntese de matéria e forma. Aqui Heidegger reforça a ideia de que o 
processo civilizatório de busca de conhecimento da obra de arte passa, 
necessariamente, pela dualidade matéria-forma: 
Die Unterscheidung Von Stoff und Form ist, und zwar in den 
verschiendensten Spielarten, das Begriffsschema achlech-
thin für alle Kunsttheorie und Ästhetik. Diese unbestreitbare 
Tatsache beweist aber weder daβ die Unterscheidung von Stoff 
und Form hinreichend begründet ist, noch daβ sie ursprün-
glich in den Bereich der Kunst und des Kunstwerkes gehört. 
(HEIDEGGER, 2010, p. 62).
[A distinção entre matéria e forma é, e na verdade nas mais 
diferentes variedades, pura e simplesmente o esquema concei-
tual usado em todas as teorias de arte e da Estética. Este fato 
incontestável não comprova nem que a distinção entre matéria e 
forma esteja suficientemente fundada nem que ela pertença ori-
ginalmente ao âmbito da arte e da obra de arte (HEIDEGGER, 
2010, p. 63)].
Esse “esquema conceitual” é a base das abordagens da obra de 
arte na cultura ocidental. Ele parece dar uma resposta à pergunta, mas é, 
afinal, insuficiente, mesmo porque pode se aplicar a qualquer realidade, 
ser ou objeto. 
Assim, a representação da forma e da matéria, a interpretação do 
conteúdo são discursos que não conferem especificidade à obra de arte, 
porque eles tanto valem para ela como para a mera coisa e para o apetrecho, 
como também não revelam um campo fenomenológico de enraizamento. 
Matéria e forma estão na essência do apetrecho, ou utensílio, e são determi-
nadas pela serventia, portanto, matéria e forma não constituem deter -
minações originais da coisidade da mera coisa: “Diese längst geläufig 
gewordene Denkweise greift allem unmittelbaren Erfahren des Seienden 
vor” (HEIDEGGER, 2010, p. 72) [“Este modo de pensar habitual, há muito 
tempo antecipou-se a toda experienciação imediata do sendo” (p. 73)].
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 19
O utensílio tende a desaparecer em seu uso, cedendo lugar para 
sua utilidade, que é o que interessa, o que jamais deverá acontecer à 
obra de arte. 
As reflexões apresentadas inicialmente por Heidegger para 
abordar a coisa e a obra são considerações não fenomenológicas desti-
nadas a apresentar um tipo de procedimento habitual (pesquisa de pro-
priedades, sensações, matéria-forma). Mas em que consiste, então, seu 
procedimento fenomenológico? O que é propriamente o acontecimento 
da verdade na arte?
A fenomenologia é inimiga da teoria, entendida esta como um acú-
mulo de enunciados que pretendem delimitar as propriedades e caracte-
rísticas dos objetos (interpelação lógico-categorial). Em vez de se adiantar 
aos fenômenos, com modelos explicativos prévios, a fenomenologia pro-
cura descrever (e não explicar) as coisas em seu horizonte de mostração. 
Para falar da arte, é preciso colocar de lado toda a teoria sobre ela e dar 
um mergulho no horizonte mesmo em que a obra se mostra.
Caracterizar o utensílio com base em sua utilidade é uma atitude 
superficial. Há que pensar em sua confiabilidade, em sua solidez. Um 
apetrecho é apetrecho enquanto é útil. Um sapato exposto em um museu 
não é um apetrecho; já foi, não mais é. Um calçado de camponês é um 
apetrecho enquanto é usado durante seu trabalho, enquanto está cal-
çado, enquanto é usado como apetrecho.
Heidegger escolhe, então, um par de sapatos para exemplificar 
sua abordagem de um utensílio. Para “facilitar” a demonstração, ele 
apresenta um quadro de Van Gogh que representa, segundo ele, um par 
de sapatos de uma camponesa. A determinação do ser do utensílio não 
pode ser alcançada por uma teorização; é necessário um mergulho no 
campo específico de mostração do utensílio, sem nenhum posiciona-
mento prévio. Uma série de remissões (lembranças, considerações) se 
faz presente então.
Um fato curioso a respeito de Der Ursprung des Kunstwerkes, 
que merece reflexão, é que seu autor parece ter sido traído por suas 
próprias ideias anos depois da publicação do ensaio, sob o olhar de ou-
trem. Vejamos como. Para Heidegger, a verdade da arte é absoluta, seu 
saber-querer reside nela própria:
Estudos da Pós-Graduação20
Dieses Wissen, das als Wollen in der Wahrheit des Werkes 
einheimisch wird und nur so ein Wissen bleibt, nimmt das 
Werk nicht aus seinem Insichstehen heraus, zerrt es nicht in den 
Umkreis des bloβen Erlebens und setzt das Werk nicht herab in 
die Rolle eines Erlebniserregers (HEIDEGGER, 2010, p. 172).
[Este saber, que como querer radica na verdade da obrae só 
assim permanece um saber, não retira a obra do seu permane-
cer-em-si, não a arrasta para o círculo da simples vivência nem 
a rebaixa ao papel de provocadora de vivências (HEIDEGGER, 
2010, p. 173)]. 
A referência ao quadro de Van Gogh e a atribuição da proprie-
dade dos sapatos pintados por Van Gogh a uma camponesa repercu-
tiram posteriormente no mundo da arte e da filosofia, e uma reflexão 
sobre esse efeito tardio parece nos conduzir a uma inferência de que a 
obra estaria atuando para Heidegger como estimulante de vivências, 
comprometendo seu estar-em-si. A referência que o pensador faz aqui é 
a “ein bekanntes Gemälde von van Gogh, des solches Schuhzeug mehr-
mals” (HEIDEGGER, 2010, p. 78) [“uma conhecida pintura de Van 
Gogh, que várias vezes pintou tal calçado” (p. 79)], sem definir exata-
mente qual, mas, certamente, um quadro que apresenta sapatos pin-
tados. Em seguida, diz que eles pertencem a uma camponesa, cria uma 
narrativa com a personagem e seus sapatos e utiliza a obra como 
uma figuração para sustentar seu discurso a respeito do embate entre 
mundo e terra, noção importante para se entender a origem da obra de 
arte. Tal atribuição, dependendo do olhar de quem vê, pode soar como 
um arrasto da obra para o círculo da mera vivência. Algumas décadas 
depois, em 1968, o historiador de arte Meyer Schapiro escreve um texto 
desautorizando a “restituição” dos sapatos à camponesa por Heidegger, 
e faz sua própria restituição: os sapatos são de um homem, e um homem 
urbano, e, mais certamente, do próprio Van Gogh. 
Em 1978, Jacques Derrida publica o ensaio “Restitutions – de la 
vérité en pointure”, no livro La vérité en peinture (DERRIDA, 2010). 
Derrida, então, discute a questão da não correspondência entre o que a 
restituição pretende fazer e o que ela efetivamente faz. Essa não corre-
pondência deve-se ao fato de que não há restituição em nenhum dos 
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 21
dois discursos (de Heidegger e de Schapiro), mas uma apropriação. 
Schapiro insiste em suas ideias e não percebe as ideias de Heidegger, 
inclusive uma fundamental: a de que, para este, realmente não importa 
de quem sejam os sapatos, ou seja, a ideia de que ele se apropria da fi-
gura da camponesa como alegoria para sua discussão sobre mundo e 
terra. Ademais, a utilização da imagem da camponesa e seus sapatos 
está relacionada à intenção de Heidegger exatamente de negar a repre-
sentação, à sua tentativa de ver a arte como um fenômeno imanente, e 
não como reprodução da realidade. Isto Schapiro parece não conseguir 
ver, chegando a atribuir a atitude de Heidegger, segundo Duque-Estrada, 
ao “sintoma de uma patologia nacional-socialista” (DUQUE-
ESTRADA, 2010, p. 338), uma referência evidente à adesão de 
Heidegger ao Partido Nazista na Alemanha, em 1933. Segundo Derrida, 
reportado por Duque-Estrada, “nem Heidegger nem Schapiro suportam, 
cada um a seu modo, o caráter abandonado, largado, separado, desgar-
rado, dos sapatos” (p. 338). Ele atribui aos sapatos um dom alucinó-
geno: tudo o que dizem Heidegger e Schapiro a respeito deles faz parte 
de uma “dramaturgie délirante” [“dramaturgia delirante”], uma aluci-
nação: “Ces souliers sont allucinogènes” (DERRIDA, 2010, p. 312) 
[“Esses sapatos são alucinógenos”], “comme um paire de gants” (p. 
307) [“como um par de luvas”], igualmente alucinógenas. Van Gogh 
pintou luvas em 1889, em Arles, as quais Schapiro insiste em consi-
derar objetos pessoais (restituindo-as ao dono), procedimento que es-
tende a outras naturezas mortas: tudo na arte tem que ter um dono, as 
atribuições e restituições têm que ser feitas para o conforto do apre-
ciador de arte.
Heidegger é acusado de descontextualizar o quadro e de projetar 
nele suas próprias alucinações. Schapiro pretende atribuir ao quadro 
uma verdade, uma propriedade: ele pertence ao próprio pintor, e não a 
uma camponesa fictícia, cometendo, afinal, o mesmo abuso de que 
acusa Heidegger, ao submeter as pinturas a um saber acadêmico. Ele 
não leva em conta a condição de arte daqueles sapatos, desassociados 
dos corpos em movimento no mundo, abandonados a si mesmos, déso-
euvrés. Seu movimento é próprio, sem destino, sem verdade, sem con-
clusões. Nada dizem, por mais que provoquem dizeres. Caminham 
Estudos da Pós-Graduação22
para o eterno adiamento de sentido, sua sempre différance, permane-
cendo impermeáveis às reduções perpetradas pelos comentaristas em 
suas análises.
Esquecendo-se convenientemente de sua própria redução, Schapiro 
denuncia a tentativa de Heidegger de estabelecer uma comparação entre 
as botas e o mundo das realidades camponesas, atribuindo a elas uma 
perspectiva social. Para Heidegger, não obstante, os sapatos projetam a 
aletheia da obra de arte, a verdade instaurada pela própria obra.
 Figura 1 - Van Gogh: Vieux souliers aux lacets
 Fonte: https://givethemhell.wordpress.com/page/8/. 
Voltando ao texto de Heidegger, sabemos que há um par de sa-
patos, o estado em que se encontram e o que podem revelar. São sapatos 
acostumados a trabalho duro, gastos. Daí manifestam-se as remissões 
que, a nosso ver, confirmam – em vez de desabonar – a lógica heideg-
geriana. Essas remissões não se referem à intencionalidade do autor, 
nem a teorias previamente confeccionadas para descrever o objeto. 
Instalamo-nos, antes de mais nada, no mundo revelado pela obra, que 
nos remete ao mundo da camponesa. Heidegger fala da fadiga dos 
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 23
passos, do campo rude, de seu vento agreste, da umidade do solo, da 
solidão do caminho.
 Figura 2 - Van Gogh: Paire des souliers sur sol bleu
 Fonte: http://www.idixa.net/Pixa/pagixa-0601151408.html.
Eis o mundo que emerge dos sapatos, de sua matéria, de sua 
forma, da natureza que o envolve. Sob os sapatos, há uma terra, seus 
presentes, suas recusas, as inquietações que provoca, as emoções do 
nascimento e da morte.
Os sapatos apontam para o mundo da camponesa, cujo caráter 
ontológico é a confiabilidade. Ela transita por esse mundo que lhe é 
familiar, que tem seu ritmo próprio e constante; eis por que é um 
mundo confiável.
Há aqui um alargamento das ideias de Heidegger sobre o ser-aí. 
Até então, ele considerava que a negatividade estava sempre afeita ao 
ser-aí humano, considerado como ponto de instabilidade das semân-
ticas históricas, ou seja, como produtor de significados que produzem 
instabilidade. Nessa nova concepção, os próprios significados, a pró-
Estudos da Pós-Graduação24
pria semântica já contém em si a instabilidade. A confiabilidade do 
mundo, então, é abalada pela terra, em sua intimidade impenetrável, em 
sua experiência de negatividade. 
Vejamos, assim, como o embate mundo x terra está relacionado à 
revelação do modo de ser próprio à obra de arte. A verdade a que 
Heidegger alude reside na rede remissiva que os sapatos propiciam. 
Não é uma verdade no sentido lógico e racional do termo, como um 
enunciado passível de verificação, mas está relacionada ao horizonte de 
mostração do ente. Seu significado surge na conformidade do utensílio 
com a rede referencial do mundo que é dele. Além disso, ele remete 
também a uma instabilização da confiabilidade do mundo, isto é, à 
terra, a dimensão abissal, a presença incontornável de uma inconsis-
tência no próprio mundo.
A terra remete a natureza, solidez, liberdade, constitui o solo 
onde repousa o mundo, defende-se do estrago que o mundo perpetra, 
alberga tudo o que se ergue. Sobre ela, o homem histórico funda o seu 
habitar no mundo.
O mundo evoca humanidade, cultura, utilidade, estabilidade, ne-
cessidade, proximidade, o que foi instaurado sobre a terra, domesti-
cação e utilização da terra, é o que revela a terra (o templo em sua quie-
tude permite ver a tormenta da tempestade).
Em suas relações, terra e mundo fazem parte de um jogo de en-
cobrimento e não encobrimento em que o ser-aí humano se vê lançado 
(inconfiávele confiável; instável e estável; natural e cultural; inabitual 
e habitual; imprevisível e previsível... e outras relações semelhantes). 
Pode-se pensar aqui num movimento dialético, mas de um tipo 
especial de dialética, sobre a qual falaremos adiante. O texto sugere 
que a obra de arte é que propicia essa relação, cujo vislumbre Heidegger 
teve a partir da tentativa de abordá-la. O mundo das tarefas, das condi-
ções, busca a confiabilidade, o conforto, o funcionamento das coisas. 
Arte não é isso. Daí a presença da terra, a que se pode relacionar a 
ideia de inquietação: podemos dizer que a terra cumpre aí o papel de 
origem, sendo ela a própria inquietação do inabitual. Heidegger diz 
que a arte promove “die Aufstellung einer Welt” (HEIDEGGER, 2010, 
p. 112) [“a instalação de um mundo” (p. 113)] num lugar aberto por 
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 25
ela, num rasgão. A terra é impelida para nada, ou está aí para nada: 
“Die Erde ist das zu nichts gedrängte Mühelose-Unermüdlich” (p. 114) 
[“A Terra é a que não sendo forçada a nada é sem esforço e infatigável” 
(p. 115)], ou seja, enquanto o mundo tem objetivos a cumprir, finali-
dades a perseguir, a terra não vai para lugar nenhum, o que pode ser 
entendido como aquele componente inutilitário fundamental da obra 
de arte. A terra é o imperscrutável, o resistente às explicações, a que só 
se ilumina em sua condição de insondável, de inexplorável. É a salva-
guarda da obra de arte: a obra se retira na terra, num fechamento que 
não é “kein einförmiges, starres Verhangenbleiben, sondern es entfaltet 
sich in eine unerschöpflicher Fülle einfacher Weisen und Gestalten” 
(p. 116) [“nenhum permanecer encoberto, rígido e uniforme. Mas ele 
se desdobra numa inesgotável abundância de modos simples e figuras” 
(p. 117)]. A tinta do pintor não se gasta, só ilumina; a palavra do poeta 
não se desvigora, de tal maneira que “das Wort erst wahrhaft ein Wort 
wird und bleibt” (p. 118) [“a palavra se torne e permaneça verdadeira-
mente uma palavra” (p. 119)]. O achado é belo: eis a origem, a terra, o 
componente não mundo da obra de arte, sua salvaguarda. Essas noções 
tornaram-se caras à filosofia da arte pós-heideggeriana, com desdobra-
mentos no pensamento de Maurice Blanchot, Emmanuel Levinas, 
Michel Foucault, Roland Barthes, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben, 
para citar alguns pensadores. 
Quando se fala em dialética, pensa-se inicialmente na Grécia 
clássica de Heráclito e Zenão de Eleia, principalmente, que eram pen-
sadores iconoclastas e perigosos, ligados à instabilidade das coisas, à 
mudança permanente, ao devir, em oposição aos metafísicos, que aca-
baram por prevalecer por conveniência. Na idade moderna, a noção de 
dialética está intimamente ligada ao pensamento de Hegel e aos seus 
desdobramentos na metafísica ocidental (curiosamente, pode-se dizer 
que na modernidade os dialéticos e os metafísicos se abraçam). 
Consoante o pensamento de Hegel, os opostos tendem a conduzir a 
uma síntese, identificada ao fim da história, à totalização do processo 
civilizatório, o momento máximo do poder da negatividade: a Ação 
Negativa do Homem. Esse seria o momento culminante do conheci-
mento humano, que pressupõe um Estado homogêneo e universal, sem 
Estudos da Pós-Graduação26
conflitos sociais, e uma Natureza submissa ao homem, familiar a ele. 
A morte é o estímulo de nossas ações, impulsionando-nos em nosso 
processo histórico. O fim da história seria, assim, o remate perfeito do 
poder da negatividade.
Quando Heidegger “opõe” traços como inconfiável e confiável; 
instável e estável; natureza e cultura; inabitual e habitual; imprevisível 
e previsível, e os relaciona a terra e mundo, ele coloca algumas expres-
sões que dão pistas seguras sobre essa “dialética”. Ao final do §109 de 
Der Ursprung des Kunstwerkes, ao discutir o conceito de verdade, ele 
fala dessa oposição “dialektische vorgestellt” (HEIDEGGER, 2010, p. 
136) [“representada dialeticamente” (p. 137)], para dizer que a verdade 
nunca é apenas ela mesma, mas também o seu contrário. Ele mesmo 
adverte que os opostos não são excludentes nem destrutivos, e que, no 
embate de forças, “die Streitenden, das eine je das andere, in die 
Selbstbehauptung ihres Wesens” (p. 120) [“os que disputam elevam-se, 
uns e outros, à auto-afirmação de sua essência” (p. 121)]. Diz mais: “Im 
Streit trägt jedes das andere über sich hinaus” (p. 122) [“Na disputa, 
cada um transporta o outro para além de si” (p. 123)], e o combate per-
manece combate, não se resolve nunca. Voltando ao §109, encon-
tramos aí uma outra inquietação, que vale a pena comentar, conside-
rando as três traduções consultadas em português: “Das Geheure ist im 
Grunde nicht geheuer, es ist un-geheuer” (p. 136). As três versões em 
português para a mesma frase são as seguintes: “O insuspeito, no fundo, 
não é insuspeito; ele é in-suspeitado” (Laura Borba Moosberger); “O 
tranquilizante é, no fundo, não tranquilizante: é um abismo de inquie-
tação” (Maria da Conceição Costa); “O seguro é no fundo não seguro; 
é não-seguro” (Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro). O adje-
tivo un-geheuer é traduzido como “in-suspeitado”, como “abismo de 
inquietação” e como “não-seguro”; uma ampliação de seu significado 
pode nos conduzir às noções de inaudito, abominável, colossal e – 
pasmem – monstruoso. Tudo isso relacionado ao embate mundo x terra. 
Como conciliar dialeticamente tantas oposições na monstruosidade da 
obra de arte? 
A camponesa tem um mundo porque a obra está na abertura do 
sendo. Só através da obra, e só nela, o ser-apetrecho do apetrecho vem 
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 27
expressamente à luz (quando ele olha o sapato e “vê” as atribulações, o 
trabalho pesado, o trigo e o pão, a fome, a morte...). A pintura propicia 
a abertura do sendo (os sapatos pintados), que emerge no desvelamento 
do seu ser. Assim, põe-se em obra a verdade do sendo, está em obra um 
acontecer da verdade (e não da beleza). E essa verdade não é também a 
cópia do real, não são os sapatos copiados e colocados na tela, mas uma 
reprodução da essência geral das coisas. O templo sobre o rochedo e os 
sapatos de Van Gogh apresentam o mundo e a terra em seu embate es-
sencial, tornando-os evidentes.
E aqui se completa o círculo: a realidade mais próxima na obra 
de arte é o suporte coisal. Heidegger afirma que, ao aparecer o ser-ape-
trecho do apetrecho na obra, veio à luz aquilo que está em obra na obra: 
a abertura do sendo no seu ser. Ou seja, a vidência do ser-apetrecho no 
apetrecho faz ocorrer, na obra de arte, o acontecimento da verdade – o 
que quer dizer que é na obra que a verdade se cria, ou, se se preferir, é 
na obra que se instaura um mundo (o que remete ao terceiro eixo). A 
arte, portanto, na sua essência, é uma origem.
Para Heidegger, a verdade, ou melhor, aquilo que faz da verdade 
o que ela é, traduz-se como um acontecimento histórico desde o qual o 
mundo de um povo se revela. A verdade assim compreendida por 
Heidegger é uma retomada do fenômeno que o grego antigo denominou 
αλήθεια [alethéia] – que nós traduzimos como “verdade”, fazendo 
pouco para entendê-la melhor – fenômeno desde o qual o ser (dos ho-
mens e das coisas) vem à tona e ganha significado. Poesia, para o filó-
sofo, é antes o movimento do qual as coisas surgem – o movimento de 
produção desde onde acontece a desocultação do sendo fazendo com 
que este ganhe corpo e significado.
A obra de arte comporta entes que são a expressão de como o 
mundo é fundado, e eles vêm à luz como são (embora essa luz guarde 
ainda alguma obscuridade). Por mais que um mundo pareça fundado, 
confiável, há sempre uma instabilidade proveniente da terra. A verdade 
da obra de arte não é nenhuma pretensa alegoria que o artista lhe em-
presta. Essa verdade não é fruto de uma intenção, de uma subjetividade. 
O homem ergue seu mundo (mundo elaborado, produzido) sobre a 
terra. Heidegger diz que, ao erguer um mundo, a obra elabora a terra 
Estudos da Pós-Graduação28(“produz” a terra). Esse produzir ou elaborar, para ele, parece ser o fato 
de que o mundo que o ser-aí humano ergue acolhe a terra, deixa a terra 
ser terra: “Das Werk rückt und hält die Erde selbst in das Offene einer 
Welt. Das Werk läβt die Erde eine Erde sein” (HEIDEGGER, 2010, 
p. 114) [“A obra move e mantém a própria terra no aberto de um mundo. 
A obra deixa a Terra ser uma Terra” (p. 118)].
A verdade é sempre histórica (está ligada às construções linguís-
ticas humanas), então, não há como padronizar a relação entre mundo e 
terra. É um embate, sim, uma contenda. Uma frase chama a atenção: 
“Die Welt trachtet in ihrem Aufruhen auf der Erde, diese zu überhöhen” 
(HEIDEGGER, 2010, p. 120) [“O mundo aspira, no seu repousar sobre 
a terra, a fazê-la sobressair” (p. 121)]. Esta é a tradução de Idalina 
Azevedo e Manuel Antônio de Castro (HEIDEGGER, 2010), como 
também a de Laura de Borba Moosburger (HEIDEGGER, 2007). A ter-
ceira edição em português consultada, traduzida por Maria da Conceição 
Costa, dá a seguinte versão da frase: “O mundo aspira, no seu repousar 
sobre a terra, a sobrepujá-la” (HEIDEGGER, 2010, p. 63). Os verbos 
sobressair e sobrepujar em português parecem divergir, mas pode-se 
pensar em algo como sobressair no sobrepujar, uma vez que, se a obra 
elabora a terra ao erguer o mundo, e se isso se traduz em um embate, é 
justo pensar que o sobrepujar, o sobressair ressoam a instabilidade da 
relação entre mundo e terra, o que é reafirmado, parece-nos, pela frase 
“Sie [die Welt] duldet als das Sichöffnende kein Verschlossenes” 
(p. 120). Cotejemos as três traduções: “Ele [o mundo] não tolera, como 
o que se abre, nenhum fechamento” (Azevedo e Castro); “Como aquilo 
que se abre, ele nada tolera de fechado” (Costa); “Como aquele que se 
abre, não tolera nenhum encerrado” (Moosberger). As três versões con-
vergem para a ideia de que o mundo, onde se realiza o aberto, a fenda, 
não encerra nada, mantendo tudo em movimento.
A essência da obra de arte é, portanto, “das Sich-ins-Werk-Setzen 
der Warheit” (HEIDEGGER, 2010, p. 120) [“pôr-se em obra da ver-
dade” (p. 121)] um acontecimento universal. Ele não está só nos sapatos 
de Van Gogh, mas em toda obra de arte. Conforme o filósofo, é a lin-
guagem que nos deverá conduzir à descoberta da Verdade. Neste sen-
tido, toda a arte é poema, daí que são referenciadas a arte plástica, repre-
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 29
sentada pelos quadros dos sapatos, de Van Gogh, a literatura, nos poemas 
de Hölderlin, ou, por exemplo, a arquitetura de um templo grego. 
A expressão “Sich-ins-Werk-Setzen der Warheit” requer uma 
consideração: não é a arte que põe em obra a verdade, mas a verdade é 
que se põe em obra na arte. Em vez de partir do ser-aí humano para 
pensar o que ocorre no aí, Heidegger vai ao próprio lugar do 
acontecimento, o campo de mostração, que guarda suas instabilidades 
internas. O ser-aí aparece, então, como dependente das articulações da 
própria história, como história do ser, como história da diferença 
ontológica e das figuras da diferença ontológica. Para Heidegger, 
“Geschichte ist die Entrückung eines volkes in sein Aufgegebenes als 
Einrückung in sein Migegebenes” (HEIDEGGER, 2010, p. 196) 
[“História é o desabrochar de um ovo em sua tarefa histórica, enquanto 
um adentrar no que lhe foi entre-doado para realizar” (p. 197)]. A 
história é, portanto, o acontecimento ligado à ontologia do ser, e não um 
discurso sobre coisas acontecidas. Assim, ele propõe uma nova forma 
de abordar esses acontecimentos, independentes dos enunciados exis-
tentes sobre a natureza das coisas, e, para tal, procura utilizar termos 
que fogem às verdades estabelecidas e fixadas: clareira, abrigo, 
encobrimento, desvelamento, linguagem, poesia, essência poética.
O acontecimento da arte se dá em seu campo fenomenológico; o 
evento requisita o ser-aí humano para lhe dar voz: “A linguagem é a 
morada do ser” (HEIDEGGER, 2008b, p. 326). Não é o homem quem 
define o modo de ser de sua casa, mas o acontecimento do ser. Nesse 
acontecimento, a arte é decisiva quando sua essência poética se revela. 
O sentido essencial da linguagem é a poesia; a poesia é o mais origi-
nário dos ditos poéticos essenciais.
Como se articula o pôr-se-em-obra da verdade com a linguagem? 
O ser se apropria do ser-aí e encontra sua morada, como um ser-aí his-
tórico. A linguagem é essa dupla apropriação, ou seja, o ser-aí é apro-
priado pelo ser e apropria-se de sua morada. Linguagem aqui não é 
entendida como um sistema de comunicação. Na verdade, é a medida 
de uma época, de uma história e se confunde com a palavra simples do 
ser, a origem do ser e da linguagem. Há aí um ditado, um ditado poé-
tico: o ser dita ao ser-aí a medida de sua história. Essa medida é simul-
Estudos da Pós-Graduação30
tânea ao acontecimento poético; assim, a arte abre o espaço para pensar 
o acontecimento da verdade independentemente de qualquer enunciado. 
A arte é o lugar da verdade, ela não diz uma verdade, não conta uma 
verdade, daí seu poder histórico e fundacional (instaurador, consti-
tuidor). É como diz o narrador de “A hora e vez de Augusto Matraga”, 
de Guimarães Rosa, sobre seu relato: “E assim se passaram pelo menos 
seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr, sem 
mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um 
caso acontecido, não senhor” (ROSA, 1971, p. 343). O lugar da verdade 
é a narrativa, a absoluta, sem relação com a vivência do mundo.
Se a origem da obra de arte está em sua verdade, temos que ver 
o que é para Heidegger a verdade. A verdade com a qual todo mundo 
concorda (que podemos entender como metafísica) é a verdade cuja 
essência é inessencial. A verdade é a essência do verdadeiro e pode ser 
evocada pela palavra grega αλήθεια [alethéia], que aponta para a deso-
cultação do sendo, ou seu não-encobrimento. Mas essa desocultação-
-verdade não é propriamente a conformidade de um enunciado com 
seu objeto. Assim, a ideia de desocultação permanece impensada entre 
os gregos e na filosofia posterior a eles. Habitualmente, verdade é o 
mesmo que justeza de representação, concordância do conhecimento 
com seu objeto. O conhecimento dos humanos sobre as coisas é in-
completo, aproximado. Pouca coisa está sob nosso poder e nossa re-
presentação. Esse ente que se mostra na abertura carrega uma estranha 
contradição quando se retém na ocultação e se projeta na desocultação. 
A ocultação ocorre no sendo de modo duplo, algo como uma dupla 
reserva: como recusa e como dissimulação. A dissimulação ou camu-
flagem do sendo é que permite que nos iludamos, que não tenhamos 
certeza exata na visão das coisas. Garante a dispersão e a transgressão 
no nosso entendimento.
“Zum Wesen der Wahrheit als der Unverborgenheit gehört dieses 
Verweigern in der Weise des zwiefachen Verbergens” (HEIDEGGER, 
2010, p. 136, grifo do autor) [“À essência da verdade como desvela-
mento pertence este denegar no modo de duplo valor” (p. 137)]. Até 
aqui pode-se notar que, para Heidegger, a palavra verdade acolhe opo-
sições, dualidades, ambiguidades, dispersões, equívocos, ou seja, nada 
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 31
tem a ver com a ideia de uma determinação metafísica proposta por um 
enunciado. A verdade como desocultação advém da oposição entre a 
clareira e a dupla ocultação (recusa e dissimulação). A verdade, por-
tanto, não é ciência, e sim a produção de uma obra sem antes e depois. 
Essa verdade advém do combate entre a clareira e a ocultação, da reci-
procidade entre mundo e terra. Do combate entre mundo e terra advém 
a unidade, pela presença do rasgão, formada pelos combatentes, a qual 
previne o fechamento da terra, que quer seguir suas próprias leis. O 
apetrecho desaparece em sua serventia, enquanto a obra de arte so-
bressai no simples ser-produzido. Não tem a ver com a notoriedade de 
um grande artista, nem se reporta ao conhecimento de um expert, nemdepende de prestígio público. Quanto mais essencialmente a obra se 
abre, tanto mais brilha plenamente a singularidade do fato de que ela é, 
ao invés de não ser. 
Não importa quem fez, nem como fez; só importa o que está 
feito. A obra é: “Dort, wo der Künstler und der Vorgang und die 
Umstände der Entstehung des Werkes unbekannt bleiben, tritt dieser 
Stoβ, dieses »Daβ« des Geschaffenseins am reinsten aus dem Werk 
hervor” (HEIDEGGER, 2010, p. 164) [“Lá onde o artista e o processo 
e as circunstâncias do surgimento da obra permanecem desconhecidos, 
é que este embate, este ‘isto’ do ser-criado se põe em evidência de modo 
mais puro, a partir da obra” (p. 167)]. O embate, o choque a que 
Heidegger se refere é a presença do inabitual, do inquietante, do não 
conforme, do inusitado. 
Temos aí novamente um ponto de reflexão relacionado à nossa 
atividade de estudiosos de literatura: quando se aborda um texto lite-
rário, há uma compulsão irresistível de falar da vida de quem o es-
creveu, quantos prêmios ganhou, quantas vezes se casou, sua impor-
tância social e histórica, que público lê suas obras, que obras o autor lia, 
sem mencionar as doutas classificações e teorizações de que a obra é 
vítima. Segundo Ezra Pound, “O mau crítico se identifica facilmente 
quando começa a discutir o poeta e não o poema” (POUND, 2007, p. 9). 
Hoje, felizmente, essa compulsão tem diminuído um pouco, mas, em 
muitas abordagens e salas de aula, o que se diz sobre a obra parece ter 
mais interesse do que a obra em si.
Estudos da Pós-Graduação32
A obra é, a obra está, a obra existe. Quanto mais deixada a si 
mesma, em sua solidão, quanto menor for a interferência da cultura em 
sua determinação, mais ela sobressai como choque, como inquietação, 
como inabitual. Eis sua salvaguarda: deixar a obra ser obra em seu re-
pouso intranquilo. Essa salvaguarda parece-me ser uma espécie de con-
templação, um absorver da verdade da obra, um saber que é um querer, 
um desejo de não ver as coisas determinadas na obra, mas a persistência 
no abismo de intranquilidade que a obra propicia. Então o saber-querer 
que constitui a salvaguarda é esse contemplar, esse fruir. 
Esse querer-saber, ou saber-querer da obra não a retira de seu 
estar-em-si. Arte, portanto, não é vivência de mundo, não é correspon-
dência de enunciados, não é verificação de certezas. “Sobald jener 
Stoβ ins Un-geheure im Geläufigen und Kennerischen abgefangen 
wird, hat um die Werke schon der Kunstbetrieb begonnen” 
(HEIDEGGER, 2010, p. 172) [“Tão-logo aquele impulso do embate 
para o extraordinário é atenuado pelo conhecido e corriqueiro, já co-
meçou o comércio artístico em torno das obras” (p. 172)]. Cabe aqui 
citar a versão de Maria da Conceição Costa da mesma frase, para um 
comentário: “Tão-logo o choque do insuspeitado é amortecido no cor-
riqueiro e conhecido, já começou a indústria da arte em torno à obra” 
(HEIDEGGER, 2008a, p. 55). Chamamos a atenção para as palavras 
Stoβ e Un-geheure. Stoβ é traduzido como embate ou como choque, 
conforme a versão. Qualquer que seja a opção, temos aí a ideia de que 
algo abala o mundo das leis, da segurança, da ordem. A outra, Un-
geheure, aqui como substantivo, conduz à noção de extraordinário 
e insuspeitado, mas também de formidável, colossal, abominável e 
monstro. As duas noções em conjunto remetem a uma ideia funda-
mental do pensamento de Heidegger sobre a obra de arte: o enigmá-
tico, o inaugural, o instável, o perturbador. Arte não é erudição, não é 
saber racional, embora seja frequentemente assaltada pela metafísica 
da teoria e da crítica, como aponta argutamente Mário Quintana, em 
seu Caderno H: “Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor 
exclama: ‘Olha uma borboleta!’. O crítico ajusta os nasóculos e, ante 
aquele pedaço esvoaçante de vida, murmura: – Ah! sim, um lepidóp-
tero...” (QUINTANA, 2001, p. 19). 
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 33
Os últimos parágrafos de A origem da obra de arte são a própria 
declaração de amor do filósofo à arte e, particularmente, à poesia: 
“Wahrheit als die Lichtung und Verbergung des Seienden geschieht, 
indem gedichtet wird Alle Kunst ist als Geschehenlassen der Ankunft 
der Warheit des Seiendenals eines solchen im Wesen Dichtung” 
(HEIDEGGER, 2010, p. 182, grifos do autor) [“A verdade, como cla-
reira e velamento do sendo, acontece no que ela é poietizada. Toda arte 
é, como o deixar-acontecer da adveniência da verdade do sendo como 
tal, em essência poiesis” (p. 183, grifos do autor)]. Dichtung, Poesia, 
poiesis, têm um sentido bastante amplo na concepção de Heidegger, e, 
possivelmente, englobam todas as outras artes, mas guardam uma re-
lação profunda e estreita com a linguagem. 
Assim, a origem da arte é sua essência, a essência da arte é a 
Poesia, e a essência da Poesia é a fundação, a instauração da verdade: 
“Stiftern als Schenken, Stiften als Gründen und Stiften als Anfangen” 
(HEIDEGGER, 2010, p. 190) [“fundar como doar, fundar como funda-
mentar, fundar como principiar” (p. 191)]. A obra de arte envolve seres 
e elementos carregados de cultura, e, no entanto, o que a arte produz 
jamais esteve aí, é sempre começante. Essa ideia é fascinante, e aí nos 
voltamos novamente para o papel da crítica literária e do professor de 
literatura: trazer a obra para a cultura, as relações sociais, culturais. 
Isto é, revelar na obra de arte o que ela contém de mundo previsível, 
organizado, pré-estabelecido é esclarecer a verdade da obra ou trata-se 
apenas de um reducionismo de quem precisa se apoiar em elementos 
concretos para explicar a arte? Para abordarmos a obra de arte, 
devemos nos encher de informações sobre ela, “Kentnisse des 
Vergangenen” (p. 200) [“conhecimentos eruditos do passado” (p. 201)], 
como querem os professores universitários e orientadores de tese, ou 
devemos correr o risco e respeitar a essência da origem, como quer 
Heidegger? Novamente recorro ao poeta Mário Quintana, em mais 
uma de suas saborosas provocações:
 
Essa mania de ler sobre autores fez com que, no último cente-
nário de Shakespeare, se travasse entre uma professorinha do 
interior e este escriba o seguinte diálogo: 
Estudos da Pós-Graduação34
– Que devo ler para conhecer Shakespeare? 
– Shakespeare
(QUINTANA, 2001, p. 75).
Aí vem a grande questão de todo o discurso de Heidegger sobre 
a arte. Ele termina, então, com uns versos que aludem à morada na 
origem da Poesia, do poeta “dessen Werk zu bestehen den Deutschen 
noch bevorsteht” (HEIDEGGER, 2010, p. 200) [“cuja obra constitui 
ainda um desafio para os alemães a experienciarem” (p. 172)], ou 
seja, Hölderlin: 
 
»Schwer verläβt
Was nahe dem Ursprung wohnet, den Ort.«
Die Wanderung, Bd. IV (Hellingrath), S. 167.
[Dificilmente abandona
O que mora na proximidade do originário, o lugar.
A Peregrinação, tomo IV (Hellingrath), p. 167]
No parágrafo final do posfácio, ele fala da maneira como a arte é 
tratada em nossa civilização:
 
In der Weise, wie für die abendländisch bestimmte Welte das 
seiende als das Wirkliche ist, verbirgt sich ein eingentümli-
ches Zisammengehen der Schönheit mit der Wahrheit. Dem 
Wesesnswandel der Wahrheit entspricht die Wesengsgeschichte 
der abendländischen Kunst. Diese ist aus der für sich genom-
menen Schönheit sowenig zu begreifen wie aus dem Erlebnis, 
gesetz, daβ der metaphysische Begriff von der Kunst in ihr 
Wesen reicht (HEIDEGGER, 2010, p. 208).
[No modo como o sendo é o real vigente para o mundo determi-
nado ocidentalmente, vela-se um singular ir junto da beleza com 
a verdade. À transformação essencial da verdade corresponde a 
história essencial da arte ocidental. Esta não é para ser compre-
endida nem a partir da beleza tomada para si, nem a partir da 
vivência, a não ser que o conceito metafísico da arte alcance sua 
essência (HEIDEGGER, 2010, p. 209)].
[No modo como, para o mundo determinado à maneira ocidental, 
o ente manifesta o seu ser enquanto real, esconde-se uma parti-
A INSENSATEZ DA ESCRITURA:ensaios de literatura 35
cular junção da beleza à verdade. À transformação da essência 
da verdade corresponde a história essencial da arte ocidental. 
Esta última é tão pouco compreensível a partir da beleza tomada 
só por si, como a partir da vivência, na suposição de que o con-
ceito metafísico da arte possa alguma vez alcançar a essência da 
arte] (HEIDEGGER, 2008a, p. 67). 
É difícil, para quem lida com a literatura, como criador, como 
crítico, como estudioso, como comentador, ficar indiferente a essa ad-
vertência de Martin Heidegger. A “beleza”, a esthesis, a emoção da arte 
em nossa cultura racionalista deve estar subordinada a uma verdade pre-
estabelecida, às vezes contestada, às vezes refeita, às vezes complemen-
tada, que acaba se tornando uma espécie de cânone crítico sob cuja ótica 
toda obra de arte deve ser vista? Considerando a literatura, nossas obras 
de arte são também atacadas por nossos escritos, dissertações, teses, en-
saios, artigos etc. Talvez tenha que ser assim, mas será sempre neces-
sário que o texto crítico se coloque numa posição hierárquica superior à 
própria obra de arte, em nome da segurança, do domínio, da maestria? 
Por que não investirmos mais, talvez, na magia, no enigma, no deixar-
-nos tocar pela obra, em vez de violentá-la de maneira contumaz?
ARTE 
Desligamento sem rumo (a verdade na 
pintura e no discurso, segundo Derrida)
 
O subtítulo do texto “Restitutions – de la vérité em pointure” 
(1978), um longo ensaio incluído no livro La vérité em peinture, de Jacques 
Derrida, gera, de início, perplexidade ao se confrontarem os termos poin-
ture [pwɛt̃yʀ] e peinture [pɛt̃yʀ], associados à noção de verdade.
Derrida abre seu texto com três epígrafes altamente provoca-
doras, que abalam a força do significante “restituições”, palavra carre-
gada de uma robusta presença ligada à adequação, à conformidade, à 
legitimação, à atribuição, noções, por sua vez, fortemente enraizadas 
nos discursos metafísicos de tradição iluminista-racionalista. O pensa-
mento de Derrida, em seu olhar desconfiado a tais textos, confronta-os 
com as noções de singularidade, alteridade, heterogeneidade, diferença, 
apropriação, desenraizamento, abandono, espectralidade. Aqui, parti-
cularmente, ele coloca em cheque um texto de Meyer Schapiro, “A na-
tureza morta como objeto pessoal” (SCHAPIRO, 1978, p. 135-151). O 
texto de Schapiro faz referência à Origem da obra de arte, de Martin 
Heidegger, em que o filósofo alemão atribui a propriedade de uns sa-
patos pintados por Van Gogh, sem indicar exatamente quais, ou em qual 
quadro, a uma camponesa. Alguns anos depois, o texto de Schapiro 
desautoriza a restituição de Heidegger e institui a sua própria verdade: 
os sapatos não pertencem a nenhuma mulher do campo, mas a um 
Estudos da Pós-Graduação38
homem da cidade, o próprio Van Gogh. Derrida, então, faz uma re-
flexão preciosa sobre essas verdades escriturais. 
As epígrafes dizem; escutemo-las. A primeira delas é um verbete 
de dicionário:
POINTURE (lat. punctura), sf. Syn. anc. de piqûre. T. d’imprim. 
Petite lame de fer qui porte une pointe et qui sert à fixer sur le 
tympan la feuille à imprimer. Trou qu’elle fait dans le papier. T. 
de cordonnier, de gantier. Nombre de points d’une chaussure, 
d’une paire de gants (DERRIDA, 2010, p. 291).2 
Como termo ligado às técnicas antigas de impressão gráfica, 
pointure refere-se a cada uma das chapas de ferro que possuem uma 
ponta que serve para fixar sobre o tímpano a folha a ser impressa. 
Designa ainda o furo que essa ponta faz no papel. Como termo de sapa-
taria ou luvaria, refere-se ao número que designa o tamanho de um 
calçado, ou de uma luva. Derrida joga então com palavras e conceitos, 
como peinture/pointure, medida, texto, discurso e verdade.
A segunda epígrafe é uma frase atribuída a Paul Cézanne: “Je 
vous dois la vérité en peinture, et je vous la dirai” (DERRIDA, 2010, 
p. 291).3
O pintor teria dito tal frase a Émile Bernard pouco tempo antes 
de morrer, e, afinal, a verdade não foi dita, instaurando-se o mistério. Se 
fosse a verdade de um pintor acadêmico do século XVII ou XVIII, po-
der-se-ia pensar em representação perfeita, em compromisso de verifi-
cação, mas, considerando-se um pintor do final do século XIX, cuja 
preocupação em arte consistia mais na sensação do que na represen-
tação, só se pode pensar em uma nova concepção de verdade, que afinal 
não foi revelada. As palavras de Cézanne ressoam no título do livro e, 
segundo Derrida, soam também como um algo que é devido, uma dí-
2 Tradução nossa: “PUNTURA (lat. punctura), sf. Syn. ant. de piqûre. Gráf. Pequena 
lâmina de ferro que possui uma ponta e que serve para fixar sobre o tímpano a folha 
a ser impressa. Furo que ela faz no papel. Sapataria e luvaria. Tamanho de um 
sapato, de um par de luvas”. 
3 Tradução nossa: “Eu lhes devo a verdade em pintura, e a direi a vocês”. 
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 39
vida, um débito que ele reconhece: “Je le dois”. Schapiro e Heidegger, 
cada um dos dois deve a verdade em pintura.
A terceira epígrafe é de Van Gogh: “Mais elle m’est si chere, la 
vérité, le chercher à faire vrai aussi, enfin je crois, je crois que je préfere 
encore être cordonnier à être musicien avec les couleurs” (DERRIDA, 
2010, p. 291).4 
Novamente, a pintura nos assombra com seu real, ou com o dis-
curso do real. Como será, então, a verdade do próprio Van Gogh, a 
verdade que ele procura fazer? Quem vai nos dar as pistas das relações 
entre todos esses textos que aí são mencionados, citados, aludidos, é o 
próprio Derrida em seu ensaio.
A verdade pretendida ressoa nos discursos. A palavra que dá 
nome ao texto de Derrida, “restitutions”, plural de restituição, liga-se ao 
pensamento metafísico: Schapiro restitui o sapato de Van Gogh a seu 
legítimo dono, Heidegger restitui as botinas à camponesa. De fato, nada 
se restitui, o que há é uma apropriação. Um convite a pensar: o que isso 
tem a ver com nossa prática em literatura, nós pesquisadores literários, 
nós que falamos da literatura?
Falar sobre o pensamento de Derrida é falar de desconstrução, 
que não é um método, mas um acontecimento que paira sobre a lin-
guagem, sobre o discurso, particularmente o discurso ocidental, que é o 
que utilizamos. E falar em desconstrução é falar em metafísica, é falar 
em metafísica da presença, a qual parte do princípio de que o signo traz 
consigo certas determinações que constituirão as verdades dos dis-
cursos, dada a natureza da linguagem dentro do sistema iluminista, que 
induz à visão do signo como presença, numa redução metafísica do 
significar, que aprisiona o comparecimento do significado, que se erige 
na tarefa de restituir, de atribuir. O desejo do acesso imediato ao signi-
ficado faz com que se construa uma metafísica acerca do privilégio da 
presença sobre a ausência. Para Derrida, o signo não é presença, o ob-
jeto não está no signo, é apenas um rastro, para além do qual não existe 
origem possível.
4 Tradução nossa: “Mas ela me é muito cara, a verdade, e procurar criar a verdade, enfim 
eu creio, eu creio que prefiro ser um sapateiro a ser um músico com as cores”.
Estudos da Pós-Graduação40
O discurso metafísico ocidental constitui um sistema binário de 
oposições que carregam sinais positivos e negativos, como masculino / 
feminino, cultura / natureza, ser / não ser, fala / escrita, realidade / apa-
rência, centro / margem. Os significantes trazem em si a presença auto-
mática de considerações que parecem estar impregnadas neles. No caso 
do par masculino / feminino, por exemplo, temos, de um lado, autori-
dade, força, determinação, poder; de outro, fragilidade, meiguice, sub-
missão, sedução etc. 
Esse sistema está ligado à noção de estrutura, conceito antiquís-
simo na episteme ocidental; ela tem sido sempre neutralizada, ou redu-
zida, pelo fato de lhe ser sempre atribuído um centro, um ponto de 
presença, uma origem fixa. O centro organiza, orienta e equilibra a es-
trutura, a coerência dosistema, e, sobretudo, limita o jogo da estrutura. 
Ainda hoje não se pode pensar uma estrutura sem centro.
Mas a natureza da linguagem é tal que não podemos deixar de ter 
a ilusão de ver o signo como uma presença, isto é, de ver no signo a 
presença da “coisa” ou do “conceito”. É a isso que Derrida chama “me-
tafísica da presença”. Essa ilusão é necessária para que o signo funcione 
como tal: afinal, o significante está no lugar de alguma outra coisa, e, 
embora na plena presença do signo, o conceito de algo é definitiva-
mente adiado. Para ele, o signo carrega não apenas o traço daquilo que 
substitui, mas também o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisa-
mente da diferença. Em suma, o signo é caracterizado pelo adiamento 
(da presença) e pela diferença (relativamente a outros signos). Esses 
dois traços estão sintetizados no conceito de différance.5
A ruptura ou disrupção ocorre quando a estrutura começa a ser 
pensada, repetida. Daí, a disrupção é repetição. A lei do desejo do 
5 O pensamento racionalista-iluminista opera por causa e efeito, a partir da noção de 
origem, ponto de partida, para onde se quer chegar. A noção de différance, 
confrontada com différence, termos homófonos, é criação de Derrida. Em francês, o 
verbo différer significa simultaneamente “adiar” e “diferenciar”, ações que estão na 
base do ato de significar fora da metafísica da presença. As duas palavras são 
pronunciadas da mesma forma, mas escritas de maneira diferente, o que questiona 
a tradicional prevalência da fala sobre a escrita, e o fato de que esta seria uma 
espécie de “imagem” daquela.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 41
centro, que comanda os deslocamentos e substituições no processo de 
significação é repensada, a lei da presença central deve passar a ser 
vista não mais como algo natural, a linguagem desperta a ideia de que 
na verdade não há centro, não há realmente um significado central, ori-
ginário e transcendental, e este só se sustenta dentro de um sistema de 
diferenças. A ausência de um significado transcendental amplia indefi-
nidamente o campo e o jogo da significação.
A lei da presença do centro conduz o discurso frequentemente a 
uma pretensão de certeza comumente encontrada em discursos de dou-
tores, em geral, e de críticos literários, como se lê nos fragmentos se-
guintes, retirados da obra de nomes canônicos da crítica brasileira:
É uma constante não desmentida de toda a nossa evolução li-
terária que a verdadeira poesia só se realiza, no Brasil, quando 
sentimos na sua mensagem uma certa presença dos homens, das 
coisas, dos lugares do país (CANDIDO, 2006, p. 134-136).
A história o prova; ela nos mostra a inteligência e a atividade 
mais especialmente residindo no branco puro ou no mestiço; 
e nunca no índio ou no negro estremes de qualquer mistura. 
[...] Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio 
de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância 
até mostrar-se talvez depurado e belo como no Velho Mundo 
(ROMERO, 1980, p. 924-925).
Ao contemplar a história da literatura brasileira não fugimos a 
uma impressão pessimista. É uma literatura pobre. Ainda não 
chegamos mesmo à plena posse de uma literatura. [...]. Qualquer 
que seja a época em que se observe, há sempre nela algo que 
falta, certa densidade, certo calado, certa riqueza, que lhe comu-
nicariam personalidade (COUTINHO, 1968, p. 36).
Vale dizer: há casos em que uma ação externa se justifica per-
feitamente num romance introspectivo, e, ao revés, não se 
justifica num romance extrospectivo. Vejamos exemplos. O 
Guarani, típica narrativa histórica, e portanto linear ou extros-
pectiva, desenvolve-se como uma complexa bacia hidrográfica, 
cruzada por rios de vário caudal e intensidade. [...] Com isso, 
justapôs à história um apêndice inútil, que amortece sobremodo 
o impacto provocado pela refrega entre indígenas e brancos 
(MOISÉS, 2004, p. 92).
Estudos da Pós-Graduação42
Afirmações taxativas e categóricas, acompanhadas de justifica-
tivas pretensamente inquestionáveis, como as que carregam as expres-
sões “uma constante não desmentida”, “a verdadeira poesia”, “A his-
tória o prova”, “Pela seleção natural”, “É uma literatura pobre”, “se 
justifica perfeitamente”, “não justifica”, parecem estabelecer a derra-
deira e única palavra sobre os assuntos abordados pelos autores, e a 
circulação abonada desses discursos pelas salas de aula e salões de con-
gressos, praticamente sem contestação, parecem constituir restitutions 
da verdade a seu verdadeiro dono. São discursos repletos de certezas, 
que acompanham as palavras, certezas sempre presentes na elocução, 
e que nunca precisam ser demonstradas, só precisam ser sempre vistas 
como verdades não desmentidas.
De tornada aos quadros, a questão principal da desconstrução 
colocada por Derrida em “Restitutions” é: de quem são os sapatos da(s) 
pintura(s) de Van Gogh? Daí a querela entre Schapiro e Heidegger. A 
ideia de não correspondência entre o que a restituição pretende fazer e 
o que ela efetivamente faz é importante aqui. Essa não correspondência 
deve-se ao fato de que não há restituição em nenhum dos dois discursos, 
repita-se, mas uma apropriação. Schapiro insiste em suas ideias e não 
percebe as ideias de Heidegger, inclusive uma fundamental: a de que 
realmente não importa de quem sejam os sapatos, uma vez que ele se 
apropria da figura da camponesa como alegoria para sua discussão 
sobre mundo e terra. Além disso, a utilização da imagem da camponesa 
e seus sapatos está relacionada à intenção de Heidegger exatamente de 
negar a representação, à sua tentativa de ver a arte como um fenômeno 
imanente, e não como representação da realidade. 
É notável a ideia de que esses sapatos são alucinógenos: tudo o 
que dizem Heidegger e Schapiro a respeito deles faz parte de uma “dra-
maturgia delirante”, uma alucinação: “Ces souliers sont allucinogènes” 
(DERRIDA, 2010, p. 312).6
O historiador de arte acusa Heidegger de retirar o quadro de seu 
contexto e de projetar nele seus próprios fantasmas, e empenha-se em 
6 Tradução nossa: “Esses sapatos são alucinógenos”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 43
restituir ao quadro sua verdade: ele pertence não a uma camponesa, mas 
a um homem da cidade, ao próprio Van Gogh. Para Derrida, Schapiro 
comete o mesmo abuso que atribui a Heidegger, retirando de seu con-
texto filosófico as referências que este faz ao quadro, desconsiderando 
o caminho do pensamento heideggeriano e submetendo as pinturas a 
um saber acadêmico, uma expertise. Tanto para Heidegger quanto para 
Schapiro, os sapatos constituem um par. Os dois estudiosos se esquecem 
de que os sapatos estão abandonados, desenlaçados, desamarrados, 
désœuvrés. Desengonçados, desemparelhados, destacados dos corpos 
que andam, e destacados um do outro também. Dois não constituem 
necessariamente um par. Se não são um par, são o suporte vazio de uma 
ausência. Parecem andar, estão em movimento, embora não cheguem 
jamais a um destino, não permitam uma conclusão, uma verdade. Não 
dizem nada, apenas fazem dizer. Como obra, cumprem seu destino de 
différance, seu eterno adiamento de sentido, sua sempre diferença. 
Assim, são irredutíveis às restituições que tentam fazer deles Heidegger 
e Schapiro, com a diferença de que Heidegger vai infinitamente mais 
longe, ao fazê-los abrir um abismo de intranquilidade na terra. 
Schapiro denuncia cientificamente uma projeção identificatória 
de Heidegger, que anexa as botas à sua paisagem social, que se engana 
a si mesmo: “They are grounded rather in his own social outlook with 
its heavy pathos of the primordial and earthy” (SCHAPIRO, 1978, 
p. 138).7 O historiador de arte esquece-se convenientemente de sua pró-
pria projeção. Eis a alucinação na pintura, seu fantasma. Entretanto, 
indaga Derrida, o que é uma projeção, quais são seus limites, o que é 
possível e o que não é possível projetar? Ela é uma adequação? Um 
desvelamento? Se a verdadeem pintura de Heidegger aparece nos sa-
patos pintados como aletheia, para Schapiro, aparecem como a verdade 
de adequação, de representação fiel e mimética. 
Talvez a alucinação de Heidegger seja atenuada pelo fato de que 
a verdade em pintura de Van Gogh esteja ligada à terra, aos camponeses 
7 Tradução nossa: “Eles se baseiam mais em sua própria perspectiva social com seu 
pesado pathos do primordial e do terreno”.
Estudos da Pós-Graduação44
e camponesas, ainda que sua verdade permaneça representativa. Nas 
cartas a Théo, Vincent se declara um “peintre de paysans” [“pintor de 
camponeses”]: “Quand je dis que je suis un peintre de paysans, c’est 
bien ainsi en réalité, et tu verras mieux par la suite que c’est là que je me 
sens dans mon milieu” (DERRIDA, 2010, p. 420).8 Pintor de campo-
neses, de sapatos camponeses? Tornando à terceira epígrafe, lembremo-
-nos de que Van Gogh declara preferir ser um sapateiro a um músico de 
cores. Para ele, os detalhes das coisas, sua presença real, encarnam seu 
“destino espiritual”. O argumento não confere consistência absoluta à 
projeção alucinatória de Heidegger, mas parece ser um suporte identifi-
catório para ela.
A condição de desamparo, de desgarramento dos sapatos, parece 
incomodar profundamente tanto a Heidegger quanto a Schapiro. Os sa-
patos estão abandonados; devem, então, ser restituídos ao seu lugar, ao 
seu dono, às suas condições de existência real, e, assim, Heidegger e 
Schapiro estabelecem suas verdades sobre o objeto, sobre a obra de 
arte, restituindo-lhes suas certezas. Schapiro, entretanto, não leva em 
conta que o que Heidegger faz é uma crítica à representação, e que o 
fato de os sapatos serem de uma camponesa ou de um homem urbano 
não faz a menor diferença para o filósofo.
Quanto a isso, é incontornável retomar alguns momentos de 
A origem da obra de arte, a partir da seguinte afirmação: “Onde o ar-
tista e o processo e as circunstâncias da gênese da obra permanecem 
desconhecidos, é que mais puramente ressai este choque, este ‘que’ do 
ser-criado da obra” (HEIDEGGER, 2008a, p. 52). O choque a que 
Heidegger se refere é a presença do inabitual, do inquietante, do não 
conforme, do inusitado etc. Quando vamos abordar um texto literário, 
nossa compulsão é falar da vida de quem a fez, quantos prêmios ga-
nhou, quantas vezes se casou, por que fulano é importante, que público 
lê suas obras. Segundo Ezra Pound (2007, p. 9), “O mau crítico se iden-
tifica facilmente quando começa a discutir o poeta e não o poema”.
8 Tradução nossa: “Quando eu digo que sou um pintor de camponeses, isto é assim 
na realidade, e você vai ver melhor em seguida que este é o lugar onde eu me sinto 
na minha comunidade”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 45
Para Heidegger, a obra é, a obra está, a obra existe. Quanto mais 
deixada a si mesma, em sua solidão, quanto menor for a interferência da 
cultura em sua determinação, mais ela sobressai como choque, como 
inquietação, como inabitual. Eis sua salvaguarda – seu resguardo –, que 
é deixar a obra ser obra, digamos assim, em seu repouso intranquilo. 
Essa salvaguarda parece ser uma espécie de contemplação, um absorver 
da verdade da obra, um saber que é um querer, um desejo de não ver as 
coisas determinadas na obra, mas a persistência no abismo de inquie-
tação que ela propicia. Esse contemplar, esse fruir é, então, o saber-
-querer que constitui a salvaguarda da obra.
Ainda em A origem da obra de arte, Heidegger adverte que esse 
querer-saber, saber-querer “não arranca a obra de seu estar-em-si, não a 
arrasta para o âmbito da mera vivência e não a rebaixa ao papel de esti-
mulante de vivências” (HEIDEGGER, 2008a, p. 54). Arte, portanto, 
não é vivência de mundo, não é correspondência de enunciados, não é 
verificação de certezas: “Logo que o choque para o abismo intranquili-
zante é amortecido no campo do habitual e do perito, começou já o ne-
gócio da arte em torno das obras” (HEIDEGGER, 2008a, p. 55). Arte 
não é erudição, não é saber racional, não é o frio lepidóptero do crítico, 
mas a borboleta esvoaçante, como queria Mario Quintana. 
Assim, a arte não é feita para retornar a lugar nenhum, para ser 
restituída a coisa alguma. A arte existe para existir, para estar lá, a 
arte é. É o que parece dizer a pintura – as pinturas – dos sapatos de 
Van Gogh:
Ces souliers sont une allégorie de la peinture, une figure du 
détachement pictural. Ils disent: nous sommes la peinture en 
peinture. Ou encore: on pourrait intituler ce tableau: l’origine de 
la peinture. Il met le tableau en tableau et vous invite à ne pas 
oublier; cela même qu’il vous fait oublier: vous avez sous les 
yeux de la peinture et non pas des souliers (essayez donc de les 
remettre, à vos pieds ou à ceux d’un autre!), la peinture est ori-
ginairement ce détachement qui perd pied. Mais le détachement 
doit aussi s’entendre (DERRIDA, 2010, p. 391).9
9 Tradução nossa: “Esses sapatos são uma alegoria da pintura, uma figura do 
desligamento pictural. Eles dizem: nós somos a pintura em pintura. Ou então: 
Estudos da Pós-Graduação46
Aqui, Derrida refere-se a um “détachement qui perd pied”. A ex-
pressão perd pied pode ser entendida como estar perdido, não ter refe-
rência, linha de conduta. Pode-se pensar ainda em “perder o pé”, 
também, no sentido de não ter segurança de onde pisar, de afogar, nau-
fragar, soçobrar. O texto de Derrida tem uma estrutura dialogada, em 
que duas, ou várias vozes, que não podem ser identificadas, manifes-
tam-se. Uma dessas vozes em determinado momento parece contestar a 
fala retrocitada, que pode soar também como uma atribuição, ou uma 
apropriação, e a refuta, interrompendo-a bruscamente:
– Non, non, non, ça ne dit rien de tel, ça ne donne rien à en-
tendre, surtout pas, une fois de plus, cette mise-en-abyme10 de la 
peinture dans la peinture dont on a bien montré à quelle satura-
tion restituante, à quelle réa déquation représentative elle tendait 
encore. Non, non (DERRIDA, 2010, p. 391).11
A forma utilizada por Derrida, de encenar várias vozes para 
pensar a obra de arte, harmoniza-se com seu pensamento, que recusa 
afirmações categóricas e verdades sobre ela. Se a obra diz algo, ao 
mesmo tempo não diz nada, e tudo o que ela diz constitui uma apro-
priação de um sentido e uma atribuição a ela de um discurso. Na sequ-
ência das contestações, uma outra voz se manifesta:
– Si – le détachement doit aussi s’entendre comme une mission 
représentative à rattacher à son origine émettrice. Un rattachement 
poder-se-ia intitular esse quadro: a origem da pintura. Ele coloca o quadro em 
quadro e convida vocês a não esquecerem; aquilo mesmo que ele os faz esquecer: 
vocês têm sob os olhos a pintura e não os sapatos (experimentem então remetê-los 
aos seus pés, ou aos pés de outra pessoa!), a pintura é originariamente esse 
desligamento que perde o rumo. Mas o desligamento deve também entender-se”.
10 A expressão refere-se a uma obra mostrada no interior de outra de que se fala, em 
dois sistemas semióticos idênticos: uma narrativa dentro da narrativa, um filme 
dentro do filme, uma pintura dentro da pintura.
11 Tradução nossa: “– Não, não, não, ela não diz nada disso, não dá a entender nada, 
sobretudo não, uma vez mais, esse mise-en-abyme da pintura dentro da pintura 
que bem se mostrou àquele excesso restituidor, àquela readequação representativa 
a que ela ainda tendia. Não, não”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 47
est déjà, toujours, en train de resserrer le destricturé. En ce sens 
les souliers font marquer (font marcher, font marché-de) ce 
qu’on tra duirait par l’énoncé suivant: ceci est un tableau, nous 
sommes la peinture en peinture, ceci est dessiné par les traits, 
les bordures, les lacets des souliers vides qui nous detachment 
du sujet en pied. Dès lors ces traits en lacets forment le « cadre 
» du tableau qui paraissait les encadrer. Nous les souliers, nous 
sommes plus grands que le cadre et la signature incorporée. Le 
tableau

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