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Universidade do Sul de Santa Catarina Palhoça UnisulVirtual 2011 História da Filosofia I Disciplina na modalidade a distância Créditos Universidade do Sul de Santa Catarina | Campus UnisulVirtual | Educação Superior a Distância Reitor Ailton Nazareno Soares Vice-Reitor Sebastião Salésio Heerdt Chefe de Gabinete da Reitoria Willian Corrêa Máximo Pró-Reitor de Ensino e Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação Mauri Luiz Heerdt Pró-Reitora de Administração Acadêmica Miriam de Fátima Bora Rosa Pró-Reitor de Desenvolvimento e Inovação Institucional Valter Alves Schmitz Neto Diretora do Campus Universitário de Tubarão Milene Pacheco Kindermann Diretor do Campus Universitário da Grande Florianópolis Hércules Nunes de Araújo Secretária-Geral de Ensino Solange Antunes de Souza Diretora do Campus Universitário UnisulVirtual Jucimara Roesler Equipe UnisulVirtual Diretor Adjunto Moacir Heerdt Secretaria Executiva e Cerimonial Jackson Schuelter Wiggers (Coord.) Marcelo Fraiberg Machado Tenille Catarina Assessoria de Assuntos Internacionais Murilo Matos Mendonça Assessoria de Relação com Poder Público e Forças Armadas Adenir Siqueira Viana Walter Félix Cardoso Junior Assessoria DAD - Disciplinas a Distância Patrícia da Silva Meneghel (Coord.) Carlos Alberto Areias Cláudia Berh V. da Silva Conceição Aparecida Kindermann Luiz Fernando Meneghel Renata Souza de A. Subtil Assessoria de Inovação e Qualidade de EAD Denia Falcão de Bittencourt (Coord.) Andrea Ouriques Balbinot Carmen Maria Cipriani Pandini Assessoria de Tecnologia Osmar de Oliveira Braz Júnior (Coord.) Felipe Fernandes Felipe Jacson de Freitas Jefferson Amorin Oliveira Phelipe Luiz Winter da Silva Priscila da Silva Rodrigo Battistotti Pimpão Tamara Bruna Ferreira da Silva Coordenação Cursos Coordenadores de UNA Diva Marília Flemming Marciel Evangelista Catâneo Roberto Iunskovski Auxiliares de Coordenação Ana Denise Goularte de Souza Camile Martinelli Silveira Fabiana Lange Patricio Tânia Regina Goularte Waltemann Coordenadores Graduação Aloísio José Rodrigues Ana Luísa Mülbert Ana Paula R.Pacheco Artur Beck Neto Bernardino José da Silva Charles Odair Cesconetto da Silva Dilsa Mondardo Diva Marília Flemming Horácio Dutra Mello Itamar Pedro Bevilaqua Jairo Afonso Henkes Janaína Baeta Neves Jorge Alexandre Nogared Cardoso José Carlos da Silva Junior José Gabriel da Silva José Humberto Dias de Toledo Joseane Borges de Miranda Luiz G. Buchmann Figueiredo Marciel Evangelista Catâneo Maria Cristina Schweitzer Veit Maria da Graça Poyer Mauro Faccioni Filho Moacir Fogaça Nélio Herzmann Onei Tadeu Dutra Patrícia Fontanella Roberto Iunskovski Rose Clér Estivalete Beche Vice-Coordenadores Graduação Adriana Santos Rammê Bernardino José da Silva Catia Melissa Silveira Rodrigues Horácio Dutra Mello Jardel Mendes Vieira Joel Irineu Lohn José Carlos Noronha de Oliveira José Gabriel da Silva José Humberto Dias de Toledo Luciana Manfroi Rogério Santos da Costa Rosa Beatriz Madruga Pinheiro Sergio Sell Tatiana Lee Marques Valnei Carlos Denardin Sâmia Mônica Fortunato (Adjunta) Coordenadores Pós-Graduação Aloísio José Rodrigues Anelise Leal Vieira Cubas Bernardino José da Silva Carmen Maria Cipriani Pandini Daniela Ernani Monteiro Will Giovani de Paula Karla Leonora Dayse Nunes Letícia Cristina Bizarro Barbosa Luiz Otávio Botelho Lento Roberto Iunskovski Rodrigo Nunes Lunardelli Rogério Santos da Costa Thiago Coelho Soares Vera Rejane Niedersberg Schuhmacher Gerência Administração Acadêmica Angelita Marçal Flores (Gerente) Fernanda Farias Secretaria de Ensino a Distância Samara Josten Flores (Secretária de Ensino) Giane dos Passos (Secretária Acadêmica) Adenir Soares Júnior Alessandro Alves da Silva Andréa Luci Mandira Cristina Mara Schauffert Djeime Sammer Bortolotti Douglas Silveira Evilym Melo Livramento Fabiano Silva Michels Fabricio Botelho Espíndola Felipe Wronski Henrique Gisele Terezinha Cardoso Ferreira Indyanara Ramos Janaina Conceição Jorge Luiz Vilhar Malaquias Juliana Broering Martins Luana Borges da Silva Luana Tarsila Hellmann Luíza Koing Zumblick Maria José Rossetti Marilene de Fátima Capeleto Patricia A. Pereira de Carvalho Paulo Lisboa Cordeiro Paulo Mauricio Silveira Bubalo Rosângela Mara Siegel Simone Torres de Oliveira Vanessa Pereira Santos Metzker Vanilda Liordina Heerdt Gestão Documental Lamuniê Souza (Coord.) Clair Maria Cardoso Daniel Lucas de Medeiros Jaliza Thizon de Bona Guilherme Henrique Koerich Josiane Leal Marília Locks Fernandes Gerência Administrativa e Financeira Renato André Luz (Gerente) Ana Luise Wehrle Anderson Zandré Prudêncio Daniel Contessa Lisboa Naiara Jeremias da Rocha Rafael Bourdot Back Thais Helena Bonetti Valmir Venício Inácio Gerência de Ensino, Pesquisa e Extensão Janaína Baeta Neves (Gerente) Aracelli Araldi Elaboração de Projeto Carolina Hoeller da Silva Boing Vanderlei Brasil Francielle Arruda Rampelotte Reconhecimento de Curso Maria de Fátima Martins Extensão Maria Cristina Veit (Coord.) Pesquisa Daniela E. M. Will (Coord. PUIP, PUIC, PIBIC) Mauro Faccioni Filho (Coord. Nuvem) Pós-Graduação Anelise Leal Vieira Cubas (Coord.) Biblioteca Salete Cecília e Souza (Coord.) Paula Sanhudo da Silva Marília Ignacio de Espíndola Renan Felipe Cascaes Gestão Docente e Discente Enzo de Oliveira Moreira (Coord.) Capacitação e Assessoria ao Docente Alessandra de Oliveira (Assessoria) Adriana Silveira Alexandre Wagner da Rocha Elaine Cristiane Surian (Capacitação) Elizete De Marco Fabiana Pereira Iris de Souza Barros Juliana Cardoso Esmeraldino Maria Lina Moratelli Prado Simone Zigunovas Tutoria e Suporte Anderson da Silveira (Núcleo Comunicação) Claudia N. Nascimento (Núcleo Norte- Nordeste) Maria Eugênia F. Celeghin (Núcleo Pólos) Andreza Talles Cascais Daniela Cassol Peres Débora Cristina Silveira Ednéia Araujo Alberto (Núcleo Sudeste) Francine Cardoso da Silva Janaina Conceição (Núcleo Sul) Joice de Castro Peres Karla F. Wisniewski Desengrini Kelin Buss Liana Ferreira Luiz Antônio Pires Maria Aparecida Teixeira Mayara de Oliveira Bastos Michael Mattar Patrícia de Souza Amorim Poliana Simao Schenon Souza Preto Gerência de Desenho e Desenvolvimento de Materiais Didáticos Márcia Loch (Gerente) Desenho Educacional Cristina Klipp de Oliveira (Coord. Grad./DAD) Roseli A. Rocha Moterle (Coord. Pós/Ext.) Aline Cassol Daga Aline Pimentel Carmelita Schulze Daniela Siqueira de Menezes Delma Cristiane Morari Eliete de Oliveira Costa Eloísa Machado Seemann Flavia Lumi Matuzawa Geovania Japiassu Martins Isabel Zoldan da Veiga Rambo João Marcos de Souza Alves Leandro Romanó Bamberg Lygia Pereira Lis Airê Fogolari Luiz Henrique Milani Queriquelli Marcelo Tavares de Souza Campos Mariana Aparecida dos Santos Marina Melhado Gomes da Silva Marina Cabeda Egger Moellwald Mirian Elizabet Hahmeyer Collares Elpo Pâmella Rocha Flores da Silva Rafael da Cunha Lara Roberta de Fátima Martins Roseli Aparecida Rocha Moterle Sabrina Bleicher Verônica Ribas Cúrcio Acessibilidade Vanessa de Andrade Manoel (Coord.) Letícia Regiane Da Silva Tobal Mariella Gloria Rodrigues Vanesa Montagna Avaliação da aprendizagem Claudia Gabriela Dreher Jaqueline Cardozo Polla Nágila Cristina Hinckel Sabrina Paula Soares Scaranto Thayanny Aparecida B. da Conceição Gerência de Logística Jeferson Cassiano A. da Costa (Gerente) Logísitca de Materiais Carlos Eduardo D. da Silva (Coord.) Abraao do Nascimento Germano Bruna Maciel Fernando Sardão da Silva Fylippy Margino dos Santos Guilherme Lentz Marlon Eliseu Pereira Pablo Varela da Silveira Rubens Amorim Yslann David Melo Cordeiro Avaliações Presenciais Graciele M. Lindenmayr (Coord.) Ana Paula de Andrade Angelica Cristina Gollo Cristilaine Medeiros Daiana Cristina Bortolotti Delano Pinheiro Gomes Edson Martins Rosa Junior Fernando Steimbach Fernando Oliveira Santos Lisdeise Nunes Felipe Marcelo Ramos Marcio Ventura Osni Jose Seidler Junior Thais Bortolotti Gerência de Marketing Eliza B. Dallanhol Locks (Gerente) Relacionamento com o MercadoAlvaro José Souto Relacionamento com Polos Presenciais Alex Fabiano Wehrle (Coord.) Jeferson Pandolfo Karine Augusta Zanoni Marcia Luz de Oliveira Mayara Pereira Rosa Luciana Tomadão Borguetti Assuntos Jurídicos Bruno Lucion Roso Sheila Cristina Martins Marketing Estratégico Rafael Bavaresco Bongiolo Portal e Comunicação Catia Melissa Silveira Rodrigues Andreia Drewes Luiz Felipe Buchmann Figueiredo Rafael Pessi Gerência de Produção Arthur Emmanuel F. Silveira (Gerente) Francini Ferreira Dias Design Visual Pedro Paulo Alves Teixeira (Coord.) Alberto Regis Elias Alex Sandro Xavier Anne Cristyne Pereira Cristiano Neri Gonçalves Ribeiro Daiana Ferreira Cassanego Davi Pieper Diogo Rafael da Silva Edison Rodrigo Valim Fernanda Fernandes Frederico Trilha Jordana Paula Schulka Marcelo Neri da Silva Nelson Rosa Noemia Souza Mesquita Oberdan Porto Leal Piantino Multimídia Sérgio Giron (Coord.) Dandara Lemos Reynaldo Cleber Magri Fernando Gustav Soares Lima Josué Lange Conferência (e-OLA) Carla Fabiana Feltrin Raimundo (Coord.) Bruno Augusto Zunino Gabriel Barbosa Produção Industrial Marcelo Bittencourt (Coord.) Gerência Serviço de Atenção Integral ao Acadêmico Maria Isabel Aragon (Gerente) Ana Paula Batista Detóni André Luiz Portes Carolina Dias Damasceno Cleide Inácio Goulart Seeman Denise Fernandes Francielle Fernandes Holdrin Milet Brandão Jenniffer Camargo Jessica da Silva Bruchado Jonatas Collaço de Souza Juliana Cardoso da Silva Juliana Elen Tizian Kamilla Rosa Mariana Souza Marilene Fátima Capeleto Maurício dos Santos Augusto Maycon de Sousa Candido Monique Napoli Ribeiro Priscilla Geovana Pagani Sabrina Mari Kawano Gonçalves Scheila Cristina Martins Taize Muller Tatiane Crestani Trentin Avenida dos Lagos, 41 – Cidade Universitária Pedra Branca | Palhoça – SC | 88137-900 | Fone/fax: (48) 3279-1242 e 3279-1271 | E-mail: cursovirtual@unisul.br | Site: www.unisul.br/unisulvirtual Palhoça UnisulVirtual 2011 Design instrucional Leandro Kingeski Pacheco 1ª edição revista História da Filosofia I Livro didático Sérgio Sell Edição – Livro Didático Professor Conteudista Sérgio Sell Design Instrucional Leandro Kingeski Pacheco Assistente Acadêmico Roberta de Fátima Martins (1ª edição revista) Projeto Gráfico e Capa Equipe UnisulVirtual Diagramação Pedro Teixeira Daiana Ferreira Cassanego (1ª edição revista) Revisão B2B Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul Copyright © UnisulVirtual 2011 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição. 109 S46 Sell, Sérgio História da filosofia I : livro didático / Sérgio Sell ; design instrucional Leandro Kingeski Pacheco ; [assistente acadêmico Roberta de Fátima Martins]. – 1. ed. rev. – Palhoça : UnisulVirtual, 2011. 230 p. : il. ; 28 cm. Inclui bibliografia. 1. Filosofia – História. I. Pacheco, Leandro Kingeski. II. Martins, Roberta de Fátima. III. Título. Sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 Palavras do professor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9 Plano de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 UNIDADE 1 - A origem da Filosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 UNIDADE 2 - A Filosofia pré‑socrática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 UNIDADE 3 - Os sofistas e Sócrates . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 UNIDADE 4 - Platão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 UNIDADE 5 - Aristóteles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 UNIDADE 6 - O período helenístico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 Para concluir o estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 Sobre o professor conteudista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 Respostas e comentários das atividades de autoavaliação . . . . . . . . . . . . . 219 Biblioteca Virtual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 7 Apresentação Este livro didático corresponde à disciplina História da Filosofia I. O material foi elaborado visando a uma aprendizagem autônoma e aborda conteúdos especialmente selecionados e relacionados à sua área de formação. Ao adotar uma linguagem didática e dialógica, objetivamos facilitar seu estudo a distância, proporcionando condições favoráveis às múltiplas interações e a um aprendizado contextualizado e eficaz. Lembre‑se que sua caminhada, nesta disciplina, será acompanhada e monitorada constantemente pelo Sistema Tutorial da UnisulVirtual, por isso a “distância” fica caracterizada somente na modalidade de ensino que você optou para sua formação, pois na relação de aprendizagem professores e instituição estarão sempre conectados com você. Então, sempre que sentir necessidade entre em contato; você tem à disposição diversas ferramentas e canais de acesso tais como: telefone, e‑mail e o Espaço Unisul Virtual de Aprendizagem, que é o canal mais recomendado, pois tudo o que for enviado e recebido fica registrado para seu maior controle e comodidade. Nossa equipe técnica e pedagógica terá o maior prazer em lhe atender, pois sua aprendizagem é o nosso principal objetivo. Bom estudo e sucesso! Equipe UnisulVirtual. Palavras do professor Caro(a) estudante, Você está iniciando o estudo da história da Filosofia Antiga. Ao conhecer os fatores que possibilitaram o surgimento e o desenvolvimento da Filosofia no mundo helênico, você estará formando a base conceitual que lhe permitirá realizar uma reflexão mais crítica, rigorosa e bem fundamentada da sua própria visão de mundo e de certos modelos interpretativos que nossa cultura nos oferece ou mesmo tenta nos impor. Ao estudar a origem da Filosofia, você verá como está marcada por uma tentativa de explicar, de forma puramente racional, tudo que está à nossa volta, promovendo um “desencantamento” do mundo e uma ruptura com a mentalidade religiosa. Não que a Filosofia tenha algo contra a religião. A história está recheada de exemplos tanto de filósofos ateus quanto de filósofos crentes. A filosofia, no entanto, não é nem contra nem a favor da religião. Mas faz questão de ser diferente dela. Nesta disciplina, você verá como os primeiros filósofos realizaram esse processo de separação do pensamento racional em relação aos conhecimentos fundamentados na fé e na autoridade eclesiástica. Você poderá acompanhar as principais dificuldades enfrentadas nessa transformação de mentalidade. Ao estudar a filosofia clássica, você terá a oportunidade de perceber a complexidade dos grandes sistemas de conhecimento construídos no auge da cultura grega. Sócrates, Platão e Aristóteles foram gênios que dedicaram suas vidas a formular sistemas teóricos consistentes e bem fundamentados, para orientar as escolhas humanas. 10 Universidade do Sul de Santa Catarina Você também verá como a decadência de Atenas levou ao surgimento das filosofias helenísticas. A complexidade do assunto não permitirá que nos aprofundemos em nenhum tópico específico, mas construir uma base sólida para a compreensão das outras disciplinas do curso já é uma meta satisfatória. Espero que este livro seja útil para o seu amadurecimento intelectual. Bom estudo! Professor Sérgio Sell Plano de estudo O plano de estudos visa a orientá‑lo no desenvolvimento da disciplina. Ele possuielementos que o ajudarão a conhecer o contexto da disciplina e a organizar o seu tempo de estudos. O processo de ensino e aprendizagem na UnisulVirtual leva em conta instrumentos que se articulam e se complementam, portanto, a construção de competências se dá sobre a articulação de metodologias e por meio das diversas formas de ação/mediação. São elementos desse processo: � o livro didático; � o Espaço UnisulVirtual de Aprendizagem (EVA); � as atividades de avaliação (a distância, presenciais e de autoavaliação); � o Sistema Tutorial. Ementa História da Filosofia Antiga. A tradição Mítica: Homero e Hesíodo. A Pólis Grega. O nascimento da Filosofia. Os pensadores pré‑socráticos. O período clássico. O período helenístico. 12 Universidade do Sul de Santa Catarina Objetivos da disciplina Geral Identificar um panorama dos principais períodos, escolas, filósofos e conceitos que marcaram os primeiros dez séculos da história da Filosofia, com destaque especial para a filosofia clássica e seus principais representantes: Sócrates, Platão e Aristóteles. Específicos � Identificar geográfica, histórica e culturalmente o nascimento e desenvolvimento inicial da Filosofia. � Identificar as noções fundamentais da mentalidade filosófica. � Compreender os avanços e limites de cada nova teoria proposta pelos filósofos antigos em suas tentativas de superar seus antecessores. � Desenvolver a formação de um vocabulário técnico de Filosofia. � Refletir sobre as origens do pensamento filosófico, observando a lenta, porém irreversível, superação da mentalidade mítica e a consolidação da mentalidade ocidental. Carga horária A carga horária total da disciplina é 60 horas‑aula. 13 História da Filosofia I Conteúdo programático/objetivos Veja, a seguir, as unidades que compõem o livro didático desta disciplina e os seus respectivos objetivos. Estes se referem aos resultados que você deverá alcançar ao final de uma etapa de estudo. Os objetivos de cada unidade definem o conjunto de conhecimentos que você deverá possuir para o desenvolvimento de habilidades e competências necessárias à sua formação. Unidades de estudo: 6 Unidade 1 – A origem da Filosofia O estudo desta unidade possibilita identificar os principais fatores históricos que permitiram o surgimento da Filosofia e a superação da mentalidade mítica pela mentalidade racional Unidade 2 – A Filosofia pré‑socrática Nesta unidade, você conhecerá as principais etapas do desenvolvimento da filosofia pré‑socrática e compreenderá os fatores históricos e políticos que condicionaram o desenvolvimento inicial da Filosofia. Unidade 3 – Os sofistas e Sócrates Aqui você estudará os acontecimentos que fizeram de Atenas o maior centro da cultura grega antiga. Você poderá acompanhar o surgimento de uma nova classe intelectual, os sofistas, bem como o surgimento da filosofia clássica com Sócrates. Unidade 4 – Platão Esta unidade lhe permitirá conhecer vários aspectos do pensamento de Platão, um dos filósofos mais influentes em toda a história da Filosofia. 14 Universidade do Sul de Santa Catarina Unidade 5 – Aristóteles Nesta unidade, você encontrará os principais elementos teóricos que compõem o sistema aristotélico, o qual representa o auge da filosofia clássica grega. Unidade 6 – O período helenístico Finalizando nossos estudos, você encontrará nesta unidade um resumo das principais ideias defendidas pelos filósofos do helenismo. Aqui você poderá identificar os fatores da decadência de Atenas e acompanhar o surgimento e desenvolvimento das escolas cínica, cética, epicurista e estoica. Agenda de atividades/Cronograma � Verifique com atenção o EVA, organize‑se para acessar periodicamente a sala da disciplina. O sucesso nos seus estudos depende da priorização do tempo para a leitura, da realização de análises e sínteses do conteúdo e da interação com os seus colegas e professor. � Não perca os prazos das atividades. Registre no espaço a seguir as datas com base no cronograma da disciplina disponibilizado no EVA. � Use o quadro para agendar e programar as atividades relativas ao desenvolvimento da disciplina. 15 História da Filosofia I Atividades obrigatórias Demais atividades (registro pessoal) 1UNIDADE 1A origem da Filosofia Objetivos de aprendizagem � Identificar os principais fatores históricos que permitiram o surgimento da filosofia. � Comparar as narrativas de Homero e Hesíodo com o nascente discurso filosófico‑racional. � Compreender as principais diferenças entre o pensamento mítico e o pensamento filosófico. � Compreender as noções de physis, causalidade, arqué, cosmo, lógos e crítica. Seções de estudo Seção 1 O mito como forma de conhecimento Seção 2 Apogeu e declínio da mitologia grega Seção 3 A origem histórica da filosofia Seção 4 Noções fundamentais da mentalidade filosófica 18 Universidade do Sul de Santa Catarina Para início de estudo Pensar é uma atividade que faz parte do ser humano. Tentar compreender nós mesmos e a realidade que nos cerca faz parte da nossa natureza. A necessidade de saber quem somos, de onde viemos, para onde vamos, buscar uma explicação para os acontecimentos e compreender o sentido da vida – tudo isso está presente em todas as civilizações, de forma às vezes mais, às vezes menos elaborada. Mas os gregos antigos inventaram uma forma original de lidar com essas questões. Nesta unidade de estudo, você vai poder identificar quais foram as peculiaridades desse jeito grego de pensar: o jeito filosófico‑científico‑racional. A partir de agora, você é o nosso convidado nessa jornada às origens da filosofia. Seção 1 – O mito como forma de conhecimento Historicamente, cada civilização construiu suas próprias formas de compreender e explicar a realidade. Nos primórdios do processo civilizatório, a carência de informações sistematizadas, de métodos de investigação e de instrumentos de pesquisa faz com que a explicação dos fenômenos naturais seja simplista (às vezes, simplória), parcial e com uma forte tendência ao subjetivismo. A vida em sociedade exige que se estabeleça um conjunto de verdades aceitas coletivamente. Sem essa base compartilhada de crenças, a convivência em grupo não seria viável. Mas como fazer com que todos os indivíduos de uma sociedade aceitem as mesmas explicações como sendo as verdadeiras? Uma saída simples e eficaz para esse problema é o mito. 19 História da Filosofia I Unidade 1 O mito consiste numa narrativa passada de geração a geração, contendo, geralmente, elementos que podem ser utilizados na explicação de fenômenos naturais ou na prescrição de condutas morais. O mito não é apresentado como verdade absoluta, e sim como um conhecimento elaborado por antigos ancestrais ou indivíduos extraordinários que, por sua grande sabedoria ou até mesmo por poderes sobrenaturais, teriam compreendido a realidade de uma forma mais profunda. Em cada cultura, os mitos mais fundamentais são os chamados “mitos de origem”, aqueles que narram a forma como o mundo foi criado e, mais especificamente, como o ser humano e o próprio grupo social foram criados. Esse tipo de mito tem sido encontrado nas raízes de todas as culturas que conhecemos atualmente. Um bom exemplo de um mito de origem é a narrativa que encontramos no Gênesis, o primeiro livro da Bíblia Sagrada. Nessa narrativa, temos uma descrição da origem do mundo a partir da vontade de Deus. Segundo o Gênesis, o Deus único produz o universo a partir do nada e gera também um ser especial, o ser humano, para reinar sobre os outros seres. Essa narrativa descreve também a origem do bem (a vontade de Deus) e do mal (desobediência humana) e estabelece as bases da ação moral. Além disso, ela descreve o surgimento de diferentes povos e culturas e estabelece a ideia de “povo escolhido”. O mito de origem serve para dar uma resposta àqueles questionamentos mais fundamentais que nos afligem quando buscamosencontrar um sentido para a nossa própria existência: a origem do mundo e do ser humano, a vida e a morte, o bem e o mal, a saúde e a doença, a guerra e a paz, etc. É uma explicação que serve de fundamento para todas as outras explicações. Além dos mitos de origem, há também mitos mais específicos, que servem para explicar fenômenos particulares, como os ventos, por exemplo, ou mesmo um acontecimento particular 20 Universidade do Sul de Santa Catarina como, por exemplo, a guerra de Troia. Em todas as suas variedades, o conhecimento mítico é uma resposta para tudo aquilo que é inexplicável, quando se utilizam apenas as experiências já acumuladas. O conhecimento mítico possui algumas características e limitações que o diferenciam de outros tipos de conhecimento mais elaborados, disponíveis atualmente. Vejamos essas características: � O mito é uma representação alegórica da realidade, uma fantasia. Enquanto conhecimento da realidade, o mito não possui a intenção de ser uma explicação exata. Ao contrário, ele possui apenas uma significação simbólica. Dessa forma, o mito é uma ficção que serve de analogia para que se possa compreender a realidade. � O mito utiliza elementos sobrenaturais para explicar os fenômenos naturais. Ele se torna útil justamente quando não conseguimos dar uma explicação racional para os fatos do cotidiano. Quando temos necessidade de superar um problema cognitivo, o mito surge como uma estratégia eficaz, que consiste em empurrar o problema para fora do alcance das nossas angústias mais ordinárias. Querer saber por que está ventando é uma pretensão cognitiva legítima. Mas, se não houver nenhuma resposta convincente para essa questão, uma boa saída é afirmar simplesmente que o deus do vento está fazendo ventar. Por outro lado, querer saber por que o deus do vento está fazendo ventar já extrapola os limites das nossas pretensões cognitivas legítimas. O recurso ao sobrenatural é a saída mais fácil e eficaz sempre que se esgotam as possibilidades da explicação racional. � O mito é maleável. Embora tenha uma estrutura que se mantém mais ou menos inalterada, certos detalhes podem ser deixados de lado ou suprimidos, ou, ao contrário, podem ser supervalorizados, dependendo de cada situação ou da intenção de quem faz a narrativa. Além disso, como vai passando de geração a geração, o mito vai‑se modificando ao longo do tempo e adaptando‑se a novas situações. 21 História da Filosofia I Unidade 1 � O mito envolve uma carga muito grande de subjetividade. Já na sua origem, o mito é uma representação subjetiva e arbitrária, dado que ele precisa ser criado por alguém. Todo mito tem um autor, alguém que contou a estória pela primeira vez. É claro que, ao ser contada novamente por outra pessoa, essa estória vai ganhar novas nuanças. Cada novo narrador torna‑se co‑autor do mito. Cada um dá a sua contribuição subjetiva à narração. � Embora envolva uma grande dose de subjetividade, o mito é sempre um fenômeno cultural. Trata‑se de uma narrativa de domínio público e funciona como uma representação da verdade que é aceita, de forma implícita, por cada um dos membros da coletividade. O próprio fato da aceitação de um mito por um determinado indivíduo pode ser tomado como critério para a sua inclusão, ou não, em um determinado grupo social. A aceitação geral do mito, sem questionamentos, serve como um elemento que reforça a unidade de um povo. Para que o mito possa alcançar plenamente a sua finalidade, é comum o encontrarmos, no processo civilizatório, associado a mecanismos de imposição social. Cada indivíduo, como membro de um grupo marcado por uma identidade cultural, deve aceitar como adequadas as explicações dadas pela tradição, sem questioná‑las. Além disso, o mito possui vários mecanismos de convencimento. O principal é a educação. Para garantir que os mitos não se percam com o passar do tempo, eles são incorporados na formação das novas gerações. Assim, as crianças precisam conviver, desde pequenas, com as narrativas míticas. O conhecimento dos mitos e a capacidade de narrá‑los de forma completa e detalhada passam a constituir um dos sinais de refinamento cultural. Mas só a educação não é suficiente para garantir a aceitação universal do mito. Por isso um segundo mecanismo de sua imposição social é a religião. É comum encontrarmos, nas sociedades mais antigas, a função de explicação dos fenômenos da realidade associada à função religiosa. Isso faz sentido na medida em que ambas fazem referência a elementos 22 Universidade do Sul de Santa Catarina sobrenaturais. Assim, traçar os limites entre mitologia e religião pode ser uma tarefa difícil ou mesmo impossível. Um terceiro mecanismo de imposição do mito é o poder político. Na maioria das civilizações, o poder político surge e se desenvolve intimamente associado ao poder religioso. Dessa forma, a aceitação geral e incondicional de certos mitos interessa ao Estado. Nesse sentido, o poder político se encarrega de estabelecer normas que obriguem a aceitação de certas versões de um mito em detrimento de outras versões e de outros mitos. Atenção! Como você pode ver, o mito tem um papel fundamental no florescimento de uma cultura. Mas o conhecimento mítico tem muitas limitações também. Entre as limitações do conhecimento mítico, podemos destacar duas fundamentais: sua reduzida capacidade explicativa e sua restrita abrangência populacional. A primeira grande limitação do mito é a falta de uma base concreta que sustente suas explicações. Como vimos, o conhecimento mítico é elaborado para suprir as carências do conhecimento empírico; trata‑se de uma explicação alegórica para aquilo que é inexplicável a partir dos dados da experiência. O mito é uma explicação forjada, sem compromisso com a verdade. A outra grande limitação tem uma feição política. Todo mito é sempre fruto de uma cultura. E toda cultura tem seus mitos. Isso faz com que toda vez que ocorra um contato entre duas ou mais culturas, surja um conflito entre mitos. Quando o mito determina a compreensão da própria existência de um grupo social e da realidade que o cerca, um confronto entre mitos implica um conflito existencial para toda uma população. O choque entre mitos concorrentes coloca em risco a própria identidade cultural de um povo. Isso faz com que o diálogo intercultural torne‑se algo indesejável nas sociedades que se fundamentam sobre mitos, levando‑as ao fundamentalismo e à intolerância. 23 História da Filosofia I Unidade 1 Atenção! Como você pode ver, o mito possui qualidades e vantagens que seduzem o ser humano. Mas também apresenta desvantagens e riscos que não podem deixar de ser levados em consideração. Na Antiguidade mais remota, todas as grandes civilizações cresceram sustentadas pelos mitos. Entretanto, por volta do séc. VI a.C., uma civilização emergente, que até então se desenvolvera alicerçada nos mitos, vislumbrou um caminho diferente. Era a civilização grega que, devido a uma confluência de fatores históricos, geográficos e culturais, tornou‑se o berço da democracia, da filosofia e da ciência. Eles não sabiam, mas esse novo caminho mudaria a história da humanidade. É essa nova proposta civilizatória que nós veremos a partir da próxima seção. Seção 2 – Apogeu e declínio da mitologia grega A mitologia grega formou‑se a partir da tradição oral popular. Para facilitar a memorização, as narrativas mitológicas eram transformadas em poemas, que se decoravam e eram costumeiramente recitados como entretenimento. Com o passar do tempo, surge na Grécia uma classe artística composta de aedos (poetas que recitavam suas próprias composições) e rapsodos (artistas que recitavam poemas de outros autores ou mesmo poemas de domínio público). As comemorações religiosas e cívicas costumavam ser abrilhantadas pela participação de aedos e rapsodos, alguns dos quais se tornaram personalidades ilustres da história grega.24 Universidade do Sul de Santa Catarina Homero O mais famoso poeta grego foi Homero (séc. IX a.C.). Costuma‑se atribuir a ele a autoria de dois poemas épicos: a Ilíada e a Odisséia. Homero era cego e, talvez por isso, tenha desenvolvido a habilidade de memorização de forma tão extraordinária: a Ilíada é formada por 15.693 versos e a Odisséia, por 12.110. As apresentações de Homero consistiam em espetáculos que duravam vários dias e atraíam multidões. Homero tornou‑se um grande ídolo. Muitos poetas tentavam imitá‑lo. O público se esforçava em decorar pelo menos algumas dezenas de versos, para conferir se o poeta era capaz de repetir exatamente os mesmos versos em uma outra apresentação. Figura 1.1 - O poeta Homero Fonte: Portal dos professores, (2006). O sucesso de Homero ajudou a difundir o dialeto que ele usava nos poemas, e isso foi decisivo para conferir certa unidade linguística à cultura grega. As histórias de deuses e heróis passaram a fazer parte do imaginário coletivo. A memorização dos versos mais famosos e a incorporação dos ideais neles contidos tornaram‑se a base da educação grega. Mas qual era a concepção de mundo dos poemas de Homero? 25 História da Filosofia I Unidade 1 Os poemas de Homero relatam os feitos dos grandes heróis, seres extraordinários, de sangue nobre, notáveis por suas virtudes (areté) e que deveriam ser vistos como modelo para a ação humana. As virtudes desses heróis são a coragem, a força física, a habilidade no uso de armas, o poder de persuasão através do discurso e, principalmente, a lealdade. Para o herói das epopeias homéricas, a honra vale mais que a própria vida. E, em busca dessa honra, o herói deve esforçar‑se para se sobressair e para que seu nome seja lembrado por incontáveis gerações. O herói homérico é aquele que luta continuamente para superar em qualidades todos que o cercam e também para superar a si mesmo. A ação do herói, no entanto, é limitada pelo destino e sofre constantemente a interferência dos deuses. O destino, uma vez traçado, não pode mais ser alterado. Além disso, o herói precisa compreender que, sem a ajuda dos deuses, ele se torna incapaz de alcançar seus objetivos. A pior desgraça na vida humana, mesmo para um herói, é o ódio dos deuses. Portanto o complemento necessário das virtudes do herói é a piedade (a devoção e o respeito aos deuses). Hesíodo Outro poeta fundamental para o desenvolvimento da mitologia grega foi Hesíodo (séc. VIII a.C.). Como aedo, Hesíodo tornou‑se famoso e reverenciado por toda a cultura grega. Em sua obra Teogonia (do grego theos: deus, e gonia: origem), Hesíodo faz uma compilação bastante completa da origem e genealogia dos deuses. Hesíodo sistematizou os antigos mitos da criação e organizou as relações entre deuses e heróis numa sequência lógica. A genealogia é composta por três gerações: a de Urano (céu), a de Cronos (tempo) e a de Zeus. Numa outra obra, Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo situa a origem da humanidade em uma etapa da sucessão de raças em decadência: à raça de ouro seguem‑se as raças de prata, de bronze, a dos heróis e, Figura 1.2 - O poeta Hesíodo Fonte: Universidade Federal de Minas Gerais, [20??]. 26 Universidade do Sul de Santa Catarina por fim, a raça de ferro, à qual nós próprios pertencemos. Assim, Hesíodo desqualifica a origem nobre como elemento fundamental da virtude. Se todos nós somos descendentes decaídos de raças mais elevadas, não é a origem familiar que nos torna melhores, ou piores. Dessa forma, Hesíodo nivela todos os seres humanos. Para ele, o que realmente nos diferencia é o esforço individual na busca da excelência. Em Hesíodo, a interferência dos deuses sobre a ação humana é minimizada. Embora os deuses tenham interferido nas ações das outras raças, inclusive nas ações dos heróis, nossa raça tornou‑se insignificante para eles e ficou entregue a si mesma. A busca da excelência (areté) através do esforço pessoal é a única forma de que o ser humano agora dispõe para fugir dos infortúnios da vida. Os deuses, embora existam e tenham poder para interferir na vida humana, distanciam‑se e passam a se preocupar consigo mesmos. Essas duas inovações de Hesíodo, o nivelamento da espécie humana e o distanciamento dos deuses, formaram as bases ideológicas para o aparecimento da democracia e para a laicização da cultura grega. Seção 3 – A origem histórica da filosofia A temática sobre as origens da filosofia é tão antiga como sua consolidação em forma de pensamento (tipo de conhecimento). Já, na Antiguidade, há o debate entre a tese orientalista e a ocidentalista. A primeira defende que os gregos nada fizeram além de aperfeiçoar elementos do pensamento oriental. A segunda defende a tese do milagre grego, tomando a filosofia como uma criação puramente grega. Laicização: processo de tornar laico ou de desvincular de conotações religiosas. 27 História da Filosofia I Unidade 1 Esse debate perdurou até o final do século XIX, mudando com as novas descobertas arqueológicas do final do século XIX e início do século XX, com a confluência de novas pesquisas da linguística e da antropologia, particularmente quanto ao estudo da mentalidade primitiva ou arcaica. Passa‑se, então, a procurar entender de que modo, num dado ambiente e em certas condições históricas, a mentalidade mítica foi dando lugar à mentalidade filosófico‑científica. Não se trata mais de pensar a filosofia como um milagre, no sentido religioso; tampouco pensá‑la como mero legado do Oriente. Certamente os gregos antigos desenvolveram o legado oriental e são devedores deste: a matemática e a astronomia constituem bons exemplos disso. Contudo muitos historiadores contemporâneos defendem que a filosofia, enquanto uma forma de pensamento, uma teorização, é uma invenção grega. Jean‑Paul Vernant, um helenista, defende ter sido uma série de condições sociopolíticas que levaram a essa mudança de mentalidade. Marilena Chaui (2000a, p. 31‑32), em parte, fundamentando‑se neste helenista, resume essas condições: Helenista: estudioso que se dedica a investigar a história e a cultura da Grécia antiga. � As viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer. � A invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível. � A invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização. 28 Universidade do Sul de Santa Catarina � O surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir. �A invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas ‑‑ como por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses ‑‑ , supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a ideia dela, o que dela se pensa e se transcreve. � A invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia: 1. A ideia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade – da pólis – servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional. 2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Nesse, um poeta‑vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses a que eles deveriam obedecer. Agora, com a pólis, isto é, a cidade política [cidade‑estado], surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti‑la com os outros, persuadi‑los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica. 29 História da Filosofia I Unidade 1 3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A ideia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia. Fonte: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, (2008). Essa passagem de uma narrativa mítica (caracterizada por um discurso sacralizante, que busca dar conta das origens, não como produto de um ser humano transformador, mas de uma divindade [ou divindades], que traça [ou traçam] o destino dos seres humanos) para uma narrativa centrada na racionalidade – o lógos – não se deu repentinamente, e muitos elementos que encontramos nos primeiros filósofos – os pré‑socráticos – ainda carregam aspectos míticos. Seção 4 – Noções fundamentais da mentalidade filosófica De acordo com Danilo Marcondes (2001, p. 22‑27), algumas noções são fundamentais para entendermos a diferenciação entre o pensamento mítico e o filosófico‑científico. São elas: a physis, a causalidade, a arqué (ou arkhé), o cosmo, o lógos e o caráter crítico. Veja‑as em detalhes, na sequência. 1 – A physis Esta palavra grega pode ser traduzida por natureza, entendendo esta em, pelo menos, três sentidos, conforme Chaui (2000b, p. 257): 30 Universidade do Sul de Santa Catarina 1) processo de nascimento, surgimento, crescimento (sentido derivado do verbo phýomai); 2) disposição espontânea e natureza própria de um ser; características naturais e essenciais de um ser; aquilo que constitui a natureza de um ser; 3) força originária criadora de todos os seres, responsável pelo surgimento, transformação e perecimento deles. Physis é o fundo inesgotável de onde vem o Kósmos; e é fundo perene para onde regressam todas as coisas, a realidade primeira e última de todas as coisas. Assim, a physis é o mundo natural, a totalidade dos entes, a totalidade daquilo que é. 2 – A causalidade Esta totalidade, reforça Marcondes (2001, p. 24‑25), é engendrada (produzida) por uma relação de causa e efeito. A característica central da explicação da natureza pelos primeiros filósofos é, portanto, o apelo à noção de causalidade, interpretada em termos puramente naturais. O estabelecimento de uma conexão causal entre determinados fenômenos naturais constitui assim a forma básica da explicação científica e é, em grande parte, por esse motivo que consideramos as primeiras tentativas de elaboração de teorias sobre o real como o início do pensamento científico. Explicar é relacionar um efeito a uma causa que o antecede e determina. Explicar é, portanto, reconstruir o nexo causal existente entre os fenômenos da natureza, é tomar um fenômeno como efeito de uma causa. É a existência desse nexo que torna a realidade inteligível e nos permite considerá‑la como tal. É importante, entretanto, que o nexo causal se dê entre fenômenos naturais. Isto porque podemos considerar que o pensamento mítico também estabelece explicações causais. Assim, na narrativa da guerra de Tróia na Ilíada de Homero, vemos os deuses tomar o partido dos gregos e dos troianos e influenciar os acontecimentos em favor destes ou daqueles, portanto, fenômenos humanos e naturais têm nesse caso causas sobrenaturais. Trata‑se de uma explicação causal, porém dada através da referência 31 História da Filosofia I Unidade 1 a causas sobrenaturais. É por isso que o que distingue a explicação filosófico‑cientí fica da mítica é a referência apenas a causas naturais. A explicação causal possui, entretanto, um caráter regressivo. Ou seja, explicamos sempre uma coisa por outra e há assim a possibilidade de se ir buscando uma causa anterior, mais básica, até o infinito. Cada fenômeno poderia ser tomado como efeito de uma nova causa, que por sua vez seria efeito de uma causa anterior, e assim sucessivamente, em um processo sem fim. Isso, contudo, invalidaria o próprio sentido da explicação, pois, mais uma vez a explicação levaria ao inexplicável, a um misté‑ rio, portanto, tal como no pensamento mítico. Para evitar que isso aconteça, surge a necessidade de se estabelecer uma causa primeira, um primeiro princípio, ou conjunto de princípios, que sirva de ponto de partida para todo o processo racional. É aí que encontramos a noção de arqué. 3 – Arqué (ou arkhé) A arqué é o princípio originário. Tem também o sentido de comando e, como aponta Marcondes (2001, p. 25‑26), serve para resolver o problema da causalidade ao infinito. A importância da noção de arqué está exatamente na tentativa por parte desses filósofos de apresentar uma explicação da realidade em um sentido mais profundo, estabelecendo um princípio básico que permeie toda a realidade, que de certa forma a unifique, e que ao mesmo tempo seja um elemento natural. Tal princípio daria precisamente o caráter geral a esse tipo de explicação, permitindo considerá‑la como inaugurando a ciência. Mais à frente você verá como a arkhé foi tratada por cada um dos filósofos originários – os pré‑socráticos. 32 Universidade do Sul de Santa Catarina 4 – O cosmo Em grego, cosmo significa ordenado, ornado. Tendo presente essas acepções, podemos entender o cosmo como belo – logo, um princípio, também, estético –, pois o que é bem ordenado, harmônico, é belo e justo. Nesse sentido, diz Marcondes (2001, p. 26) que O cosmo é assim o mundo natural, bem como o espaço celeste, enquanto realidade ordenada de acordo com certos princípios racionais. A idéia básica de cosmo é, portanto, a de uma ordenação racional, uma ordem hierárquica, em que certos elementos são mais básicos, e que se constitui de forma determinada, tendo a causalidade como lei principal. O cosmo, entendido assim como ordem, opõe‑se ao caos ( , que seria precisamente a falta de ordem, o estado da matéria anterior à sua organização. É importante notar que a ordem do cosmo é umaordem racional, “razão” significando aí exatamente a existência de princípios e leis que regem, organizam essa realidade. É a racionalidade deste mundo que o torna compreensível, por sua vez, ao entendimento humano. É porque há na concepção grega o pressuposto de uma correspondência entre a razão humana e a racionalidade do real – o cosmo – que este real pode ser compreendido, pode‑se fazer ciência, isto é, pode‑se tentar explicá‑lo teoricamente. Daí se origina o termo “cosmologia”, como explicação dos processos e fenômenos naturais e como teoria geral sobre a natureza e fundamento do universo. 5 – O lógos Lógos, a principal noção filosófica, pode ser traduzida por palavra, discurso, “razão”. É a narrativa explicativa, a qual supõe encadeamento de juízos de forma coerente e o estabelecimento das relações de causa e efeito racionalmente. Nesse sentido, difere‑se de mythos – o discurso mítico, dos poetas, pois, neste, certos princípios lógicos não são necessários. Para reforçar tudo isso, tomemos Marcondes (2001, p. 26‑27) novamente: No geral, para os gregos antigos, certos conceitos têm concomitantemente um sentido estético, ético, utilitário e ontológico. Mesmo assim, cabe salientar que, nos pensadores originários – os pré-socráticos -, a relação entre ética e estética ainda não está totalmente consolidada. É a partir de Sócrates, particularmente como a noção de kalokagathia – ser belo e bom – que isso se consolidará. Contudo esse aspecto em particular será tema de outra disciplina: a Estética. 33 História da Filosofia I Unidade 1 O lógos é fundamentalmente uma explicação, em que razões são dadas. É nesse sentido que o discurso dos primeiros filósofos, que explica o real por meio de causas naturais, é um lógos. Essas razões são fruto não de uma inspiração ou de uma revelação, mas simplesmente do pensamento humano aplicado ao entendimento da natureza. O lógos. É, portanto, o discurso racional, argumentativo, em que as explicações são justificadas e estão sujeitas à crítica e à discussão (ver tópico seguinte). Daí deriva, por exemplo, o nosso termo “lógica”. Porém, o próprio Heráclito caracteriza a realidade como tendo um lógos, ou seja, uma racionalidade (ver o conceito de cosmo acima) que seria captada pela razão humana. Portanto um dos pressupostos básicos da visão dos primeiros filósofos é a correspondência entre a razão humana e a racionalidade do real, o que tornaria possível um discurso racional sobre o real. 6 – O caráter crítico Essa é a verdadeira essência da atitude filosófica. Diferente das noções anteriores, que são teóricas, essa é uma noção prática, relacionada à atitude necessária para que se possa pensar filosoficamente. Baseado em Popper, Marcondes (2001, p. 27) descreve assim essa noção: Um dos aspectos mais fundamentais do saber que se constitui nessas primeiras escolas de pensamento, sobretudo na escola jônica, é seu caráter crítico. Isto é, as teorias aí formuladas não o eram de forma dogmática, não eram apresentadas como verdades absolutas e definitivas, mas como passíveis de serem discutidas, de susci tarem divergências e discordâncias, de permitirem formulações e propostas alterna tivas. Como se trata de construções do pensamento humano, de idéias de um filósofo – e não de verdades reveladas, de caráter divino ou sobrenatural –, estão sempre abertas à discussão, à reformulação, a correções. O que pode ser ilustrado pelo fato de que, na escola de Mileto, os dois principais seguidores de Tales, Anaxímenes e Anaximandro, não aceitaram a idéia do mestre de que a água seria o elemento pri mordial, postulando outros elementos, respectivamente o ar e o apeiron, como tendo esta função. Isso pode ser tomado como sinal de que nessa escola 34 Universidade do Sul de Santa Catarina filosófica o debate, a divergência e a formulação de novas hipóteses eram estimulados. A única exigência era que as propostas divergentes pudessem ser justificadas, explicadas e fundamen tadas por seus autores, e que pudessem, por sua vez, ser submetidas à crítica. Síntese Entre os séculos X e VI a.C., os gregos antigos inventaram uma forma original de explicar a realidade. Essa nova forma de pensar se caracteriza por uma valorização do ser humano enquanto parâmetro para compreender o universo, e se opõe às explicações baseadas em decisões divinas e em forças sobrenaturais. Uma série de condições sociopolíticas contribuíram para o desenvolvimento dessa nova mentalidade. Entre elas, podemos destacar as viagens marítimas, o surgimento da vida urbana e a invenção do calendário, da moeda, da escrita alfabética e da política. Essa passagem de uma mentalidade mítica para uma mentalidade centrada na racionalidade ocorreu de forma lenta e gradual. Mas, a partir do séc. VI a.C., já é possível identificar algumas noções fundamentais da mentalidade filosófica: a physis, a causalidade, a arqué, o cosmo, o lógos e o caráter crítico. 35 História da Filosofia I Unidade 1 Atividades de autoavaliação Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação. O gabarito está disponível no final do livro didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem. 1) Em relação às condições sociopolíticas que levaram ao declínio da mentalidade mítica e ao surgimento da mentalidade filosófica, numere a 2ª coluna de acordo com a 1ª (alguns números se repetem): 1. Viagens marítimas 2. Invenção do calendário 3. Invenção da moeda 4. Surgimento da vida urbana 5. Invenção da escrita alfabética 6. Invenção da política a) ( ) Produz uma capacidade de abstração nova, tornando a percepção do tempo como algo natural, e não como um poder divino. b) ( ) Estimula uma nova formulação das explicações, que seja acessível à compreensão de todos, e não mais apenas de uma minoria de iniciados. c) ( ) Produz o desencantamento e a desmistificação do mundo. d) ( ) Faz aparecer um novo tipo de discurso, fundado no diálogo, na discussão e na persuasão, diferente daquele que era proferido pelo mito e que pretendia ter sua origem em uma revelação sobrenatural. e) ( ) Produz mudanças econômicas e sociais como a valorização do comércio e do artesanato e a diminuição do prestígio da aristocracia proprietária de terras, para quem os mitos foram criados. f) ( ) Revela uma nova capacidade de abstração e de generalização, que permite comparar coisas totalmente diferentes. g) ( ) Introduz a ideia de lei como expressão da vontade humana. h) ( ) Revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que permite representar ideias abstratas. 36 Universidade do Sul de Santa Catarina 2) A invenção da filosofia na Grécia antiga representou o surgimento de uma nova forma de pensar. Isso não significa que as outras formas desapareceram totalmente. Ao contrário, até hoje encontramos formas de compreender e explicar a realidade que são amplamente difundidas e que não se enquadram nas exigências que caracterizam a filosofia. Um bom exemplo disso é a religião. O Livro Gênesis (1º livro da Bíblia), por exemplo, narra a origem do mundo e da humanidade, e o faz de uma forma totalmente diferente da forma filosófica. Propomos, então, que você identifique essa diferença, seguindo este roteiro: a) identifique as noções fundamentais da mentalidade filosófica; b) leia a parte inicial do Gênesis (Basta ler o capítulo 1. Caso você não tenha uma Bíblia, consulte o e‑book respectivo, disponível na Internet, e acessível por seu buscador e navegador preferido); c) verifique, uma a uma, se as noções fundamentais da mentalidade filosófica estão contempladas no texto bíblico. Que resultado você encontrou? 37 História da Filosofia I Unidade 1 3) Vamos aprender grego? Escreva a palavra grega que corresponde a cada um dos vocábulos abaixo: a) origem; elemento primordial: _______________ b)natureza: _______________ c) razão: _______________ d) cidade‑Estado: _______________ e) virtude/excelência: _______________ f) ordenado [aquilo que está em ordem]: _______________ g) desordenado: _______________ Saiba mais Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade, consultando as seguintes referências: MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré‑socráticos a Wittgenstein. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000a. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000b. 2UNIDADE 2A Filosofia pré‑socrática Objetivos de aprendizagem � Identificar as principais etapas de desenvolvimento da filosofia pré‑socrática. � Diferenciar as principais escolas pré‑socráticas. � Identificar os principais representantes de cada escola e seus principais conceitos. � Compreender avanços e limites de cada teoria. � Identificar e compreender fatores históricos e políticos que condicionaram o desenvolvimento inicial da Filosofia. � Habituar‑se ao vocabulário da filosofia grega. Seções de estudo Seção 1 Contexto histórico e localização geográfica Seção 2 A Escola Jônica Seção 3 A Escola Pitagórica Seção 4 Xenófanes e a Escola Eleática Seção 5 Os filósofos pluralistas Seção 6 A Escola Atomista Seção 7 O sentido geral da Filosofia pré‑socrática 40 Universidade do Sul de Santa Catarina Para início de estudo A partir do séc. VI a.C. ocorreu na Grécia uma gradativa laicização da cultura. Os poemas de Homero e Hesíodo, outrora considerados fonte de conhecimento da realidade, perderam a sua relevância explicativa pouco a pouco e foram passando à categoria de “cultura supérflua” e, sobre certas questões, até mesmo “danosa”. A necessidade de compreender a natureza de forma racional implicou, então, buscar novas formas de explicar o que e como as coisas são e por que são como são. Nessa busca, os primeiros filósofos foram esbarrando em diversas dificuldades, mas também foram alcançando algumas vitórias e vencendo etapas importantes. É essa jornada que vamos acompanhar a partir de agora. Seção 1 – Contexto histórico e localização geográfica Antes de falar dos primeiros filósofos, é necessário fazer mais alguns esclarecimentos sobre o contexto em que surgiu a Filosofia. A Grécia antiga, o berço da Filosofia, não era um país. Era, de fato, um conjunto de dezenas de pequenos países, ou cidades‑Estado (pólis). O que ligava esses países era a sua cultura. O idioma grego, com pequenas variações, era falado em todas as poleis. Poetas e rapsodos iam de cidade em cidade, apresentando‑se em festivais e datas comemorativas, e disseminavam os mitos de Homero, Hesíodo e de outros autores. Essa unidade cultural teve origem em questões históricas (como a formação do próprio povo heleno através de uma sucessão de invasões do território grego por povos indo‑europeuo o Jônios, Eólios, Aqueus e Dórios), características geográficas (relevo acidentado, solo pouco fértil, proximidade do mar, grande número de ilhas, etc.) e militares (as cidades‑Estado eram Poleis é o plural de pólis. 41 História da Filosofia I Unidade 2 incapazes de enfrentar sozinhas as nações mais poderosas, mas, quando unidas, eram consideradas invencíveis). A principal atividade econômica dos gregos era o comércio marítimo. Para garantir seus interesses, os gregos fundaram diversas colônias encravadas em territórios de outros países, algumas delas implantadas através de guerras e invasões, outras estabelecidas através de acordos pacíficos com grandes reinos. Foi nessas colônias que a Filosofia surgiu e se desenvolveu ao longo de quase dois séculos, antes de chegar à pólis de Atenas, onde encontrou seu apogeu na cultura helênica. Veja na figura 2.1 uma representação dos domínios helênicos. Figura 2.1 - O mundo grego nos séculos V e IV a.C Fonte: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, [20??]. Hoje, os filósofos dessa fase inicial da história da Filosofia costumam ser chamados de pré‑socráticos. Os pré‑socráticos foram os “criadores” da Filosofia. Infelizmente, todas as obras escritas por esses pensadores acabaram perdendo‑se ao longo dos milênios que historicamente nos separam deles. O pouco que nós conhecemos da filosofia dos pré‑socráticos nos chegou, principalmente, a partir de textos de autores clássicos os quais citam trechos das obras que se perderam ou fazem alguma referência clara ao conteúdo de tais obras. Atualmente, temos dois tipos de fonte em que podemos nos basear para reconstruirmos como foi o pensamento dos primeiros filósofos: os fragmentos e a doxografia. Os gregos se autodenominavam helenos, e a Grécia, que não era um país, e sim um conjunto de cidades-Estado, era chamada de Hélade. 42 Universidade do Sul de Santa Catarina Fragmento é uma parte de um texto que foi preservada, apesar de a obra completa ter‑se perdido. Muitas vezes são frases transcritas em obras de outros autores antigos. Doxografia são comentários, avaliações e explicações que outros autores antigos fizeram sobre as ideias defendidas por esses filósofos cujos textos se perderam. Às vezes são resumos que filósofos ou historiadores antigos fizeram das ideias defendidas por algum outro pensador. Os pré‑socráticos podem ser classificados em cinco grupos: os jônios, os pitagóricos, os eleatas, os pluralistas e os atomistas. Para ampliar seus conhecimentos sobre a filosofia pré‑socrática, acompanhe explicações sobre cada um desses grupos. Seção 2 – A Escola Jônica A partir do séc. XII a.C., os gregos estabeleceram diversas colônias nas ilhas do Mar Egeu e na costa oeste da Ásia Menor (território que hoje faz parte da Turquia). Nos séculos VII e VI a.C., essa região, na época chamada de Jônia, passou a ser o principal pólo de desenvolvimento econômico da Grécia devido à sua posição estratégica para o controle do comércio no Mediterrâneo. Na mais importante dessas colônias, a pólis de Mileto, nasceu a Filosofia. Mileto foi o primeiro centro intelectual da Filosofia. Sua influência durou até a destruição total da cidade pelos persas, no ano de 494 a.C. Além de Mileto, a pólis de Éfeso também se destacou como um centro de discussão filosófica na Jônia. Numa tradição que remonta a Aristóteles, costuma‑se considerar Tales de Mileto (640 – 562 a.C.) como sendo o primeiro filósofo, seguido de Anaximandro (610 – 547 a.C.) e de Anaxímenes (585 – 524 a.C.), ambos também de Mileto, e de Heráclito de Éfeso (540 – 470 a.C.). 43 História da Filosofia I Unidade 2 Por que Tales é considerado o primeiro filósofo? O que ele fez de diferente? Caracterizou o trabalho de Tales e dos outros pensadores jônios a tentativa de compreender a realidade sem fazer referência a elementos sobrenaturais. O que eles procuravam eram explicações para os fenômenos naturais, baseadas exclusivamente na observação atenta e no raciocínio cuidadoso. A Filosofia nasceu como uma tentativa de elaborar uma teoria sobre a natureza (physis), que explicasse os seus fenômenos sem falar em deuses, em magia ou em forças ocultas. Mas surge aqui um primeiro problema conceitual: O que é a natureza? Como diferenciar o natural do sobrenatural? Em Grego, em Latim e também em Português, a palavra natureza é formada a partir de um radical que indica nascimento. Natureza é o conjunto de tudo aquilo que é natu (nascido). Na realidade concreta, no entanto, às vezes é difícil determinar quando ocorre o nascimento de algumas coisas. E, mais ainda: às vezes a morte de uma coisa é o nascimento de outra. Assim, a natureza passa a ser pensada como uma sucessão de transformações, como devir. Não é difícil perceber que essas transformações não são totalmente aleatórias; ao contrário, elas parecem seguir certa ordem (cosmos). Os seres concretos, os objetos, não surgem do nada, nem por acaso. Também não podem ser totalmente destruídos. O processode geração e corrupção (produção e destruição) dos seres envolve a combinação ou separação de elementos materiais, que não são criados nem desaparecem totalmente nessa transformação. 44 Universidade do Sul de Santa Catarina Uma semente, ao germinar, passa a absorver água, elementos do solo e do ar. Toda essa matéria é absorvida, transformada e reorganizada, vai ganhando aos poucos a forma de uma planta que cresce, vive durante certo tempo e morre, se decompõe e vira matéria‑prima para o surgimento de novos seres. Toda a matéria que compõe a árvore foi retirada do solo e voltará a ser solo. A matéria‑prima já existia e continuará existindo mesmo após a destruição total da árvore. Essa é uma forma nova de compreender a realidade. Veja que, aqui, não se fala em quem criou a árvore. Essa nova forma de compreender a realidade esbarra em um problema: Qual é a matéria‑prima elementar de que é feita a natureza? Qual seria esse elemento primordial (arkhé), capaz de se transformar em barro, em madeira, em carne, em pedra ou em qualquer outra matéria? Esse é o problema que marca o início da Filosofia. É também o primeiro ponto de discordância entre os filósofos jônios. Para compreendermos as contribuições da chamada escola jônica, precisamos dividi‑la em duas fases. A primeira está centrada na pólis de Mileto; a segunda na pólis de Éfeso. A Física Milésia Da contribuição original dos filósofos de Mileto, não restou nenhum documento escrito. Tudo o que conhecemos de Tales, Anaximandro e Anaxímenes nos chegou através de comentários (doxografia) feitos por filósofos e historiadores antigos, ou através de pequenos trechos (fragmentos) citados por autores antigos que, presumivelmente, tiveram acesso às obras originais. Uma das principais fontes de acesso às elaborações intelectuais dos pensadores milésios são as obras de Aristóteles. Em sua obra Metafísica, Aristóteles refere‑se a esses primeiros filósofos como fisiólogos (estudiosos da physis). 45 História da Filosofia I Unidade 2 Tales de Mileto (fim do séc. VI a.C.) De Tales, o primeiro filósofo, sabemos hoje muito pouco. Além de não dispormos sequer de fragmentos de suas obras, até mesmo os testemunhos que nos chegam dele são precários. Mesmo assim, ele é a mais antiga referência histórica que temos de alguém que buscou unir, difundir e estimular duas tradições: a tentativa de determinar com precisão qual seria a matéria elementar de que é feita a natureza e a tentativa de aprimorar continuamente o conhecimento da natureza através da crítica racional das teorias já disponíveis. Sabia mais sobre Tales de Mileto! Além de filósofo, Tales se destacou na astronomia e na matemática e foi considerado um dos sete sábios da Grécia Antiga. A partir de suas pesquisas, Tales identificou a água como sendo a arkhé, a substância primordial de que são feitas todas as outras substâncias. Para ele: � tudo é água; � todas as substâncias materiais são obtidas ou por condensação ou por evaporação da água; � a Terra é um disco (achatado e circular) feito de água transformada em outros tipos de matéria; � esse disco flutua no universo, que é todo feito de água. Se levarmos essas ideias de Tales ao po da letra, elas podem parecer tolices. Mas, na verdade, a contribuição de Tales foi revolucionária. Contando principalmente com a sua própria observação e com uma linguagem ainda não desenvolvida para a elaboração de teorias científicas, Tales precisou ainda utilizar‑se de metáforas para dar início à construção de uma descrição racional do cosmos. Ao dizer que tudo é água, ele não estava falando especificamente de H2O, mas sim da umidade. Talvez fosse mais exato traduzir a frase de Tales como: “Tudo vem do úmido”. Figura 2.2 - Tales de Mileto Fonte: Editora Moderna, [20??]. 46 Universidade do Sul de Santa Catarina Após ter identificado a forma como a água se transforma em todas as coisas (através da condensação e da evaporação), Tales precisava explicar por que ocorrem essas transformações. Mais uma vez, ele foi obrigado a recorrer a uma metáfora: Tudo é cheio de deuses. Atenção! Certamente, o pai da Filosofia não estava usando a palavra “deuses” num sentido religioso. Tales se referia a certos fenômenos naturais observáveis, como a atração entre o ferro e o imã, ou como a gota de orvalho, que parece segurar‑se a uma folha de árvore instantes antes de cair. A matéria, mesmo os minerais, parece ser dotada de uma força intrínseca, capaz de interferir naquilo que está à sua volta. De acordo com o grau de condensação ou evaporação da matéria e, principalmente, em função das combinações de porções de matérias diferentes, essa força pode variar em intensidade e manifestar‑se de formas variadas. Por isso o grão de areia é inerte, o fogo é inquieto, o ar é inconstante; por isso é que vemos as diferenças entre os minerais, os vegetais, os animais e os humanos. Mas tudo na natureza pode ser explicado a partir da própria natureza. Anaximandro de Mileto (fim do séc. VI a.C.) Anaximandro foi discípulo e continuador do trabalho de Tales. Assim como o seu mestre, foi reconhecido como importante astrônomo e matemático. Foi geógrafo e político. Atribui‑se a ele a confecção de um mapa‑múndi, a introdução na Grécia do uso do Gnômon (relógio solar), a medição das distâncias entre as estrelas e a descoberta da obliquidade do zodíaco. Mas, assim como Tales, sua principal contribuição está na tentativa de identificar com precisão o elemento primordial do cosmos e as causas dos fenômenos naturais (astronômicos, meteorológicos, físicos, biológicos, etc.). Figura 2.3 - Anaximandro de Mileto Fonte: Anaximandro de Mileto, (2009). 47 História da Filosofia I Unidade 2 No entanto, diferente de Tales, Anaximandro não identificou a arkhé a nenhuma substância conhecida. Paro ele, a substância primordial não poderia ser nada que fosse específico, nada que tivesse propriedades determinadas. Caso contrário, não seria possível explicar racionalmente o surgimento das propriedades contrárias. Se a arkhé fosse úmida, ela não poderia ser a origem do seco; se fosse clara, não seria possível a ela gerar o escuro, etc. Deveria haver, portanto, uma substância primordial indefinida, eterna e indestrutível, da qual todos os elementos materiais se formavam e para a qual todos voltavam. A essa substância, ele deu o nome de ápeiron (ilimitado ou infinito). Anaximandro também propôs uma mudança na forma de se explicar a origem e as transformações das coisas materiais. Na busca de uma teoria cada vez mais racional, Anaximandro evitou o termo “deuses”, utilizado por seu antecessor, e propôs dois novos princípios explicativos para o devir: o movimento eterno e a diké (justiça). De acordo com a teoria de Anaximandro, o ápeiron, por sua própria natureza, está em eterno movimento, em constante transformação. Essa transformação contínua não teve começo e nunca terá fim. É esse movimento implacável, em forma de turbilhão, que faz surgir o universo das coisas materiais. Ou melhor, é através desse fluxo ininterrupto que surgem vários universos. Cada um desses universos passa por incontáveis transformações e, mais cedo ou mais tarde, todos voltam a desaparecer no ápeiron. Dessa forma, a matéria que hoje compõe o nosso mundo, pode já ter feito parte de um outro universo, e poderá vir a formar diversos outros. No entanto esse movimento não é totalmente caótico. Ele segue um princípio geral inevitável: a diké (justiça). A justiça funciona como um princípio de compensação obrigatória que é arbitrada por um juiz: o tempo. O ápeiron tende a permanecer sempre indeterminado. Cada vez que o seu movimento intrínseco gera algo determinado, gera, como consequência, também o seu contrário. Ou seja, o surgimento da luz precisa ser compensado 48 Universidade do Sul de Santa Catarina com um período de escuridão; o aparecimento de matéria seca terá como consequência a geração de matériaumidade. Assim, conforme Anaximandro, toda existência de algo materialmente determinado tem que ser compensada pela existência do seu contrário. Dessa forma, embora seja possível para nós identificar, em partes diferentes do mundo a nossa volta, o frio e o calor, o duro e o intangível, o leve e o pesado, a soma geral de tudo o que existe, já existiu ou virá a existir é sempre neutra, é indiferenciada, pois, ao se juntarem os contrários, eles anulam mutuamente suas diferenças, voltando a ser ápeiron. Acompanhe um fragmento atribuído a Anaximandro de Mileto: Entre os que admitem um só princípio móvel e infinito, Anaximandro de Mileto, filho de Praxíades, sucessor e discípulo de Tales, disse que o princípio e elemento das coisas que existem era o ápeiron (indefinido), tendo sido ele o primeiro a introduzir este nome do princípio material. Diz ele que tal princípio não é nem a água nem qualquer outro dos chamados elementos, mas uma outra natureza indefinida, de que provêm todos os céus e os mundos neles contidos. E a fonte da geração das coisas que existem é aquela em que se verifica também a sua destruição segundo a necessidade; pois pagam castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do tempo. (SIMPLÍCIO apud KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 1994, p. 106‑107). Anaxímenes de Mileto (?585 – 529 a.C.) Com Anaxímenes, a filosofia milésia chega ao seu ápice. Seguidor de Tales e de Anaximandro, seu esforço estava voltado para a elaboração de uma teoria sobre a natureza cada vez mais abrangente e racionalizada. Anaxímenes aperfeiçoa a tese de Tales do elemento primordial único, ao mesmo tempo que incorpora algumas inovações propostas por Anaximandro. Por outro lado, ele também Figura 2.4 - Anaxímenes de Mileto Fonte: Filoxarxa, [20??]. 49 História da Filosofia I Unidade 2 propõe novas soluções teóricas que tornam a sua filosofia mais simples e consistente que a de seus antecessores. Discordando de Tales, Anaxímenes defende a ideia de que tudo é feito de ar. No entanto, se o ar se transforma em água (liquefação) e a água pode transformar‑se em ar (evaporaçãoo o como já vimos ao falar de Taleo o a grande diferença entre esses dois filósofos está na representação do universo feita por Anaxímenes: para ele a Terra é um disco que flutua no ar. Aqui também é preciso deixar claro que “ar” não corresponde exatamente ao que chamamos contemporaneamente de ar. Refere‑se mais propriamente a vapor. Diferente de Anaximandro, Anaxímenes não propõe que a arkhé seja um elemento diferente daqueles que já conhecemos. Mas, se por um lado ele rejeita a solução de seu antecessor, não pode deixar de buscar uma solução para as dificuldades levantadas por Anaximandro contra a aceitação de que a substância fundamental do universo pudesse ser algum elemento com características determinadas. A matéria primordial precisa, de fato, ser qualitativamente indefinida para ser capaz de originar os contrários. Mas o ar, segundo Anaxímenes, é capaz de atender a essa necessidade: ele pode tanto ser quente quanto pode ser frio; pode ser úmido, ou seco. O ar não tem uma forma definida. Ele está em toda parte e nele nada é determinado. Ou seja, o ar se parece muito com o ápeiron, mas com uma vantagem em termos de consistência teórica: embora possamos ter motivos racionais para crer que o ápeiron exista, não é possível confirmar empiricamente essa existência. Já o ar pode ser sentido e percebido através da experiência, e ninguém que estiver sendo razoável irá questionar a sua existência. Assim, a escolha de Anaxímenes tem a seu favor, em primeiro lugar, um grau maior de simplicidade em relação aos princípios fundamentais sobre os quais se apoia. Essa nova forma de conceber a arkhé exige menos da boa vontade daqueles que estiverem dispostos a avaliar a razoabilidade de uma explicação desmitificada da natureza. 50 Universidade do Sul de Santa Catarina Como surgem todos os demais elementos materiais? Mais uma vez, Anaxímenes é minimalista: toda distinção é sempre quantitativa. A diferença entre uma pedra e a pluma é a quantidade de ar que cada uma contém. A diferença entre o calor e o frio também é explicada pela maior ou menor quantidade de ar. E o modo pelo qual o ar assume as mais diferentes formas materiais é a condensação e a rarefação. Mas a maior contribuição da filosofia de Anaxímenes foi ter proposto uma explicação para a origem da vida de uma forma totalmente desmistificada. Embora Tales já tivesse considerado que as leis que regem a natureza são as mesmas que regem os seres vivos (ao afirmar que “tudo está cheio de deuses”), Anaxímenes esmera‑se em formular essa mesma ideia sem recorrer a uma linguagem que contivesse referências, ainda que metafóricas, a elementos sobrenaturais. “O mundo respira” − essa é a solução encontrada por Anaxímenes. Se tudo é feito de ar, é natural que, em maior ou menor velocidade e intensidade, tudo esteja, continuamente, ou absorvendo ou exalando ar. Tudo respira. Nos animais isso é facilmente perceptível. E, mesmo em certos fenômenos da natureza mineral, essa respiração é detectável. O fogo, por exemplo, necessita de ar para manter‑se aceso, ao mesmo tempo que libera um outro tipo de ar, misturado com cinza, que é chamado de fumaça. Seguindo essa analogia, a evaporação da água e a chuva, o verão e o inverno, o nascer do sol e o ocaso, a vida e a morte nada mais são do que aspectos observáveis da respiração disseminada por todas as partes do universo; nada mais são do que fases do complexo e intrincado ciclo de compressões e descompressões de ar. 51 História da Filosofia I Unidade 2 Tudo é, no fundo, a manifestação de um único princípio fundamental: o ar em movimento. Embora abstratamente possamos decompor este princípio único em dois – o ar e o movimento – , na realidade não há essa dualidade: tudo o que existe é ar, e o ar possui como característica essencial uma motilidade a qual, algumas vezes, o torna mais rarefeito, e, outras vezes, mais comprimido. Acompanhe alguns fragmentos atribuídos a Anaxímenes de Mileto. Anaxímenes de Mileto, filho de Eurístrato, que foi companheiro de Anaximandro, diz também que a natureza subjacente é una e infinita, porém não indefinida, como afirmou Anaximandro, mas definida, pois a identifica com o ar; e que ela difere, na sua natureza substancial, pelo grau de rarefação e de densidade. Ao tornar‑se mais sutil, transforma‑se em fogo; ao tornar‑se mais densa, transforma‑se em vento, depois em nuvem, depois (quando ainda mais densa) em água, depois em terra, depois em pedra. E tudo o mais provém dessas substâncias. Ele admite também o movimento perpétuo através do qual ocorre a mudança. (SIMPLÍCIO apud KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 1994, po 147). A matéria que é comprimida e condensada é fria, e a que é rarefeita e ‘frouxa’ é quente. (PLUTARCO, DE PRIM apud KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 1994, po 151). Como a nossa alma, que é ar, nos mantém unidos, assim também a respiração e o ar mantêm todo o cosmo. (AÉCIO apud KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 1994, po 161). 52 Universidade do Sul de Santa Catarina Saiba mais sobre o sentido geral da filosofia milésia! Será que a natureza foi criada? Será que um deus a criou? Tais questionamentos não interessam aos primeiros filósofos, pois qualquer explicação criacionista extrapolaria os limites da observação e do raciocínio, adentrando no campo da fé. Essa é, de fato, a originalidade dos pensadores de Mileto que, ao invés de uma teogonia – uma explicação da criação do mundo – , buscam uma cosmologia ‑ uma explicação racional e científica dos fenômenos da natureza. Heráclito de Éfeso (540 – 470 a.C.) Nos séculos VII e VI a.C. a pólis de Mileto havia sido o principal centro econômico da Grécia. Mileto era aliada do poderoso reino da Lídia, em cujo território estava encravada. Quando a Lídia foi atacada pelos persas, Mileto se opôs à invasão. Após ter vencido os lídios,
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