Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Código Logístico I000046 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-65-5821-060-3 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 6 0 3 Imagem e cultura visual Rafael Araldi Vaz IESDE BRASIL 2021 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2021 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: TATYANA Yamshanova/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ V497i Vaz, Rafael Araldi Imagem e cultura visual / Rafael Araldi Vaz. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021. 132 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-060-3 1. Imagens. 2. Comunicação visual. I. Título. 21-72298 CDD: 302.2 CDU: 316.77 Rafael Araldi Vaz Doutor e mestre em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciado e bacharel em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Professor no ensino superior, ministrando as disciplinas de Teoria e Metodologia da História, História da Arte, História das Religiões e Religiosidades, História das Relações Étnico-Raciais, História Contemporânea e História do Brasil Republicano. Autor e pesquisador na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas: religião e religiosidades, imaginários religiosos, subjetividade e práticas de subjetivação, relações de poder, saúde e doença, políticas de saúde pública, arte e produções culturais, historiografia, teoria e metodologia da história, com ênfase nos estudos de Michel Foucault. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 História, imagem e visualidade 9 1.1 O mundo das imagens 10 1.2 A imagem como fonte histórica 17 1.3 O problema da visualidade 20 1.4 Da historiografia à historiofotia:a conversão da história em imagens 24 2 Teorias da imagem e da visão 30 2.1 Linguagem visual e cultura visual 31 2.2 A iconologia de Erwin Panofsky e a semiótica de Roland Barthes 34 2.3 A virada visual e os estudos visuais 40 2.4 Oculocentrismo, sociedade escópica e regime de visualidade 43 2.5 A imagem entre realismo e simulacro 48 3 Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 53 3.1 História da arte e iconografia 54 3.2 A pintura em Aby Warburg e Ernst Gombrich 57 3.3 Baxandall e o olhar de época 62 3.4 Ginzburg e o paradigma indiciário 64 3.5 Imagem, sujeito e tempo em Didi-Huberman 68 4 A imagem na era da reprodução técnica 74 4.1 Fotografia, cinema e a era da reprodução técnica 75 4.2 Imagem, cultura de massa e sociedade do espetáculo 84 4.3 O uso da fotografia e do cinema como fonte histórica 88 4.4 A narrativa histórica na fotografia e no cinema 94 5 Imagem e visualidade no ensino de História 99 5.1 Uso da pintura e da fotografia no ensino de História 100 5.2 Uso do cinema e histórias em quadrinhos (HQs) no ensino de História 109 5.3 Imaginário, imagem e memória 120 Gabarito 127 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Nesta obra você vai encontrar um panorama dos principais debates sobre imagem e cultura visual, verificando importantes linhas teóricas no estudo da imagem e da visualidade. Dessa forma, poderá entender como a historiografia se serviu das contribuições fornecidas pelas teorias da imagem e pela história da arte. Ao mesmo tempo, vai compreender como utilizar esses instrumentos e conceitos para o ensino de História. No primeiro capítulo vamos conhecer as diferentes formas de utilização e compreensão das imagens pelas sociedades antigas e contemporâneas. Vamos abordar também a importância da imagem e da visualidade como objetos de estudo para a História, conhecendo, por conseguinte, os principais debates sobre os limites e as possibilidades da conversão da escrita da história para o formato (áudio)visual. No segundo capítulo vamos entender a imagem como uma forma de linguagem organizada pela cultura visual. Nesse sentido, vamos perceber as transformações históricas nos estudos teóricos sobre a imagem, bem como as diferenças entre iconografia, iconologia e semiótica. Desse modo, vamos reconhecer as contribuições da virada visual e dos estudos visuais para o estudo das imagens, observando os conceitos de oculocentrismo, sociedade escópica e regime de visualidade para apreender a tensão epistemológica entre realismo e simulacro no estudo das imagens. No terceiro capítulo vamos identificar as origens dos estudos iconográficos e as contribuições fornecidas pela história da arte no estudo das imagens para, então, compreendermos os métodos de estudo de Aby Warburg e Ernst Gombrich, as inovações de Baxandall para a história da arte e as contribuições do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg para o estudo da História e o estudo das imagens. Assim, vamos tratar das relações entre imagem, sujeito e tempo na obra de Georges Didi-Huberman, bem como as novas questões colocadas para a história da arte por esse autor. APRESENTAÇÃOVídeo 8 Imagem e cultura visual No quarto capítulo vamos discutir o papel da fotografia e do cinema na reconfiguração da arte e as transformações trazidas para o campo da imagem. Em primeiro lugar, vamos entender a relação entre indústria cultural, cultura de massa, sociedade do espetáculo e produção de imagens na modernidade. Vamos tratar, então, do conceito de aura desenvolvido por Walter Benjamin para a definição da pintura como obra de arte, dos diferentes usos da fotografia e do cinema como fonte histórica para os historiadores, bem como dos seus papéis na elaboração da narrativa histórica. No último capítulo vamos verificar possibilidades de uso da imagem no ensino de História com metodologias e estratégias didático-pedagógicas que se sirvam da utilização da pintura, da fotografia, do cinema e das histórias em quadrinhos para demonstrar a importância do debate sobre visualidade e cultura visual. Além disso, buscamos demonstrar a importância de se problematizar a imagem como suporte na construção do imaginário social e como lugar de memória. Esta obra foi pensada para a formação de profissionais do componente curricular de História e para a área de Ciências Humanas. Nosso objetivo é fornecer os principais fundamentos conceituais e teóricos para o estudo das imagens em uma linguagem acessível, de modo a contribuir para a formação de futuros professores. História, imagem e visualidade 9 1 História, imagem e visualidade Neste capítulo, vamos conhecer como a imagem foi compreendida ao longo da história e de que forma a visualidade moldou o olhar de algumas sociedades. Imagem e visualidade estão intimamente ligadas a tal ponto que sem uma não somos capazes de compreender inte- gralmente a outra e vice-versa. Mais ainda, vamos perceber de que maneira o conceito de imagem foi compreendido em suas origens no mundo antigo e como o compreendemos atualmente. Ao introduzirmos as primeiras noções sobre imagem e visualidade, vamos adentrar no modo em que as imagens passaram aser trata- das quando estudadas pelos historiadores, verificando como se deu a passagem do estatuto da imagem nos estudos históricos, a qual foi, primeiramente, negligenciada pelos historiadores do século XIX e, posteriormente, inserida nos debates dos historiadores do século XX como uma fonte histórica complementar, seja na condição de apoio, de prova ou de ilustração. Por fim, vamos apontar os novos caminhos abertos nas décadas de 1970 e 1980 no estudo das imagens e na sua reformulação como fonte e objeto de pesquisa. Ao final, vamos compreender como a visualidade adentrou modes- tamente no campo da história e como tem fornecido novas formas de estudos sobre o papel da imagem nela. Ao mesmo tempo, verificare- mos algumas propostas desenvolvidas pelos historiadores no sentido de superar os limites da história escrita, convertendo-a em história visual. Assim, poderemos compreender as tensões e possibilidades de os historiadores fazerem história por meio de imagens, ou seja, ir além da historiografia e produzir historiofotia. 10 História, imagem e visualidade 1.1 O mundo das imagens Vídeo Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • reconhecer as diferentes formas como as imagens foram utilizadas e compreendidas pelas sociedades antigas e contemporâneas; • relacionar a ampliação da noção de documento histórico e a inclusão das imagens como fonte para o campo da história; • perceber a importância da visualidade como objeto de estu- do para a história; • apreender os principais debates sobre os limites e as possi- bilidades da conversão da escrita da história para o formato (áudio)visual. Objetivos de aprendizagem Ao assistirmos a um filme, olharmos um álbum de fotografias, ob- servarmos placas publicitárias, navegarmos pela internet, visitarmos uma exposição de arte visual, passearmos pelas cidades observando monumentos públicos, vitrais e mosaicos de catedrais, ou mesmo na devoção aos santos e orixás dos terreiros das religiões de matriz afri- cana, nessas e em muitas outras ocasiões vivenciamos experiências de contato com imagens. Até mesmo quando pensamos e projetamos ideias, quando recor- damos uma lembrança da infância ou ainda quando sonhamos, as ima- gens estão lá, auxiliando nossas experiências cognitivas e afetivas, fato que demonstra como as imagens povoam nossas vidas, a tal ponto que podemos falar de um mundo das imagens. Como podemos notar com os exemplos citados, as imagens são for- mas de comunicação visual que compartilhamos em nossa sociedade e cultura e vivenciamos organicamente em nossa própria biologia. Em suma, as imagens são o resultado mais direto de uma de nossas princi- pais capacidades sensoriais: a visão. Nesse sentido, o olhar humano é a capacidade biológica primordial para a produção de imagens. Fruto da evolução e da adaptação aos ambientes e às tecnologias criadas pelos seres humanos, o olhar hu- mano é um instrumento de natureza biológica, mas que foi moldado História, imagem e visualidade 11 pelas experiências socioculturais ao longo da história. Por isso, pode- mos afirmar que existiram e existem tantas formas de olhar quanto ti- pos de sociedades ao longo da história. E é por esse motivo que damos o nome de visualidade às diversas formas com que as sociedades ope- ram o seu modo de ver a realidade que vivem e as invenções que criam. Podemos assim dizer que há uma relação de interdependência na- tural entre visão e imagem. Essa interdependência é tão fundamental que uma pessoa que não dispõe da visão desde seu nascimento não poderá usufruir de uma experiência direta com as imagens, exceto exercendo um contato indireto na forma da sinestesia. Muito embora existam inúmeros casos em que as imagens possam aparecer em so- nhos e pensamentos para pessoas que desenvolveram cegueira total ao longo dos anos, a capacidade comunicativa das imagens se torna reduzida ou anulada para quem, em algum momento de sua vida, se tornou cego. Podemos notar, nesses casos extremos, como a imagem possui alto grau de interdependência com o sentido natural da visão. Pode parecer óbvio, mas, partindo dessa constatação, podemos compreender que as imagens são produzidas e endereçadas ao olhar, sendo fabricadas justamente para que sejam vistas. Por esse motivo, nenhum estudo que tenha por objetivo compreender as imagens poderá se abster de entender as dinâmicas da visualidade, já que esta diz respeito às características biológicas e culturais que fornecem as condições de visualização, interpretação e comunica- ção das imagens. Ao considerarmos o fato de que existe um número imenso de ti- pos de culturas e sociedades humanas ao longo da história, podemos constatar que as formas de comunicação e interpretação das imagens são diretamente dependentes do tipo de visualidade produzida em determinada sociedade. Assim como a imagem, a visualidade também é uma criação cultural. Em poucas palavras, podemos dizer que toda imagem possui uma capacidade de comunicação que, por sua vez, pos- sui uma ou mais formas de visualidade correspondente para interpre- tá-la e torná-la inteligível. Nesse contexto, um bom exemplo aparece na história da América, conta-se que durante a chegada das caravelas de Cristóvão Colombo, as populações nativas, que se encontravam na costa da praia, ao olhar a linha do horizonte, não eram capazes de identificar a vinda das em- sinestesia: relação de interdependência entre os quatro sentidos: visão, audição, tato e paladar. O sinestésico é capaz de suprir a ausência de um dos sentidos com os demais, o que possibilita, por exemplo, que um cego possa perceber uma imagem com o apoio dos outros sentidos. Glossário Janela da Alma é um belíssimo documentário que apresenta a história de dezenove pessoas com variados tipos de deficiência visual – cada uma conta como é a sua percepção de visão, como vê o mundo e as pessoas. A película também traz revelações pessoais sobre aspectos relacio- nados à visão segundo grandes nomes como José Saramago, Hermeto Pascoal, Wim Wenders e outras personalidades, explorando as diferentes dinâmicas da visualidade e como elas são trabalha- das ao nível da subjetivi- dade e da memória. Direção: João Jardim; Co-direção: Walter Carvalho. Brasil: Copacabana Filmes e Produções, 2001. Documentário 12 História, imagem e visualidade barcações espanholas, pois acreditavam que era um tipo de formação de ondas incomuns, mas sem conseguirem perceber de fato que eram embarcações. Para o olhar indígena, as caravelas eram desconhecidas e, por esse motivo, seria improvável que as reconhecessem navegando no mar, já que sua cultura não possuía uma experiência de visibilidade com esse tipo de objeto, o que dificultava sua compreensão nos mes- mos termos definidos pelos europeus (GRUZINSKI, 2006). Devido à constatação das diversas formas de visualidade, muitas áreas do conhecimento foram sendo desenvolvidas para pensar seu papel e a função comunicativa da imagem. Sendo assim, a iconologia, a iconografia e a semiótica foram algumas das formas de estudo cien- tífico responsáveis por essa compreensão; todas elas são muito impor- tantes para se compreender o uso das imagens na área da história. Mas, afinal, o que é imagem? Seguindo a etimologia da palavra, en- contramos sua origem no latim imago (HOUAISS, 2009), que indica um tipo de máscara mortuária utilizada em rituais romanos antigos. Por essa designação, podemos perceber como a palavra imagem está liga- da, ao mesmo tempo, a dois aspectos, segundo Didi-Huberman (2015): Uma forma de representação de algo ou alguém que não existe mais: a imagem faz referência à alma de um ancestral, o que a torna ligada à ideia de um substituto para algo ou alguém ausente. Por esse motivo, imago se liga à lembrança ou à memória. Um símbolo utilizado em rituais religiosos, o que demonstra a ligação da imagem com o sagrado. Até aqui podemos perceber que o sentido latino da palavraimagem demonstra que ela se liga diretamente à religiosidade, às crenças, aos mitos. Imagem, portanto, possui em sua origem uma relação muito ín- tima com o culto aos mortos. Por esse motivo, podemos afirmar que as imagens, na antiguidade, possuíam necessariamente um valor sagra- do, pois eram uma forma de ligação entre seres humanos, ancestrais e deuses. História, imagem e visualidade 13 Um dos melhores exemplos do uso das imagens no culto aos mortos são as pinturas e os relevos encontrados nos túmulos do Egito Antigo. Para os egípcios, o culto aos mortos era uma forma es- sencial de preservação da vida e da sociedade. Eles acreditavam que ao menos dois conhecimentos eram fundamentais para a passagem dos mortos ao Duat (o mundo dos mortos, local em que seriam jul- gados pelo tribunal de Osíris): a preservação do cadáver por meio da mumificação e os encantamentos realizados por meio de imagens e símbolos (GRALHA, 2017). De acordo com a crença egípcia, apresentada por Gralha (2017), tudo o que existe no mundo possui uma matriz ou forma original cha- mada Ka (corpo). Uma árvore, uma pessoa, um animal ou um objeto possui, portanto, uma forma essencial no mundo invisível que é an- terior à sua manifestação no mundo visível. Devido a essa crença, os egípcios acreditavam não só na existência de uma essência original que criava a vida, mas também que essa mesma energia poderia ser manipulada para criar a vida no além-túmulo. Assim, acreditavam ser possível projetar nesse mundo o tipo de vida perfeita que desejavam. Para essa finalidade, as imagens eram fundamentais, pois era por meio delas que se poderia projetar magicamente a vida nos campos de junco – o paraíso dos egípcios. Figura 1 Decorações no Templo de Hatshepsut, em Luxor, Egito Pr ze m ys la w "B lu es ha de " I dz ki ew ic z/ W ik im ed ia C om m on s As decorações nesse templo demonstram o uso de imagens em ações mágicas realizadas por sacerdotes em reverência ao deus Rá. 14 História, imagem e visualidade Para os egípcios, as imagens tumulares não eram meras decorações ou simplesmente uma forma de lembrança dos ancestrais, como entre os gregos e os romanos antigos. Tratavam-se, na verdade, de projeções visuais que poderiam concretizar os encantamentos no mundo dos mortos. Mas as imagens também poderiam servir para a realização de encantamentos no mundo dos vivos, sendo usadas como instrumento de comunicação com os deuses (neterus) e como meio para realização de operações mágicas (GRALHA, 2017). A imagem agindo como forma de encantamento é algo, sem dú- vidas, muito mais antigo do que os próprios egípcios; é uma prática que remonta ao período Paleolítico. Inúmeras inscrições rupestres, en- contradas em diversas regiões do mundo, apontam para essa relação íntima entre imagem e magia. É comum encontrarmos cenas de caça em cavernas como Lascaux, na França, ou no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Brasil. Em todo caso, essas imagens apontam para um possível uso da imagem como forma de projeção de uma intenção de manipulação das forças da natureza para o êxito durante a caça. Figura 2 Pinturas rupestres M in is té rio d a Cu ltu ra /W ik im ed ia C om m on s As pinturas rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara registram episódios da vida cotidiana dos povos do Paleolítico e demonstram uma forma de uso das imagens que aponta para a busca de manipulação das forças da natureza. Um segundo aspecto da origem da palavra imagem é que imago vem da raiz latina imitari, que designa a ideia de imitação ou semelhança. Uma terceira ligação aproxima o termo imagem do conceito grego de História, imagem e visualidade 15 mimesis. Essas duas designações, imitari e mimesis, apontam para a no- ção da imagem como representação, assim a imagem não é algo real, nem sequer uma recriação de algo real, mas a imitação de um objeto. Nesse ponto, o conceito de imagem perde a sua conotação mais an- tiga, deixa de ter aquele poder de projeção sobre a realidade e seu poder mágico-religioso, o qual se encontraria no período Paleolítico ou entre os antigos egípcios. Por volta dos séculos V e IV a.C., a palavra mimesis adquire, entre os gregos, o sentido de imitação ilusória, ilusio- nismo ou aparência. Ou seja, trata-se do oposto ao que é real, concre- to e verdadeiro. A imagem como mimesis, portanto, significa que ela é uma aparência ilusória e enganadora do objeto real e verdadeiro o qual ela busca representar (DIDI-HUBERMAN, 2015). Perceba como há uma grande diferença entre esses dois modos de interpretação das imagens. De um lado, vimos como a palavra imago compreende a ideia da imagem como uma substituta do real, sendo dotada de um sentido mágico-religioso e de uma capacidade de pro- jeção mágica sobre o real. Nesse caso, a imagem não se opõe à rea- lidade, mas a apoia, a sustenta e, ainda por cima, é capaz de criar e agir sobre ela. Por outro lado, encontramos na palavra mimesis uma ideia oposta ao conceito de imago. Como mimesis, a imagem é uma aparência irreal, possui uma qualidade enganadora, pois é completa- mente oposta ao real. Contudo, tanto na noção de imago quanto na de mimesis encontramos a ideia da imagem como representação, ou seja, a imagem não é o real que ela informa, mas uma “reapresentação” do real sob uma forma específica, a qual não pode ser confundida com o objeto por ela representado. Note como todas essas reflexões demonstram a diversidade de significados que estão ligados às imagens. O que importa perceber é que as imagens possuem sentidos, significados e finalidades bastante diferentes de um lugar do mundo para outro e de uma época para ou- tra. Isso porque as imagens, como fonte de conhecimento, expressam muito sobre o funcionamento de cada cultura e sociedade. Por sua vez, cada cultura e sociedade atribui funções, entendimentos e significados particulares sobre as imagens que produzem. Um bom exemplo disso é o modo como os portugueses tratavam os povos não cristãos durante a colonização da África, entre os séculos XV e XVIII. Ao ter contato com os africanos na Costa da Guiné, os conquista- dores portugueses, que eram católicos, deram o nome de fetiche para fetiche: objeto ao qual se atribui poder mágico ou sobrenatural e a que se presta culto. Glossário 16 História, imagem e visualidade definir os ídolos de pedra dos povos africanos. Essa palavra, portanto, era uma maneira pejorativa e preconceituosa usada para definir as ima- gens cultuadas pelos povos africanos como uma forma de idolatria. Os portugueses faziam isso, pois eram incapazes de compreender como era possível que os africanos consultassem imagens – ídolos de pedra, argila ou madeira – como se elas fossem um oráculo. Porém, os africanos po- deriam levantar a mesma suspeita sobre o modo como os portugueses rezavam sob os pés de uma cruz ou sob a imagem de uma mulher cha- mada Maria (LATOUR apud DIDI-HUBERMAN, 2015). Percebam como a diferença no modo como portugueses e africanos compreendiam suas imagens foi determinante para gerar desentendimentos e preconceitos que levaram a conflitos e guerras entre culturas diferentes. No mundo contemporâneo, acabamos por herdar algumas concep- ções sobre o significado das imagens. Em todo caso, os antigos mo- delos de imago e de mimesis foram preservados, sofrendo algumas modificações em seu sentido original. Podemos dizer que se manteve preservado o uso de imagens como forma de lembrança dos mortos (vide o uso de fotografias em cemitérios ou no álbum de família), assim como na forma de culto religioso (tal como encontramos na imagem dos santos da Igreja católica). Contudo, houve uma ampliação significativa tanto nos usos quanto nos significados atribuídos à imagem. Desse modo, a fotografia, por exemplo, passou a ser usada, desde o século XIX, como meio de identi- ficação dos cidadãos e até mesmo na identificação de criminosos; pos- teriormente, ela também começou a aparecer nas notíciasdos jornais, assim como a pintura passou a se disseminar no espaço público por meio dos grafites. Podemos incluir no rol de novidades o aparecimento da imagem digital, que amplificou a quantidade de imagens por meio da internet e virtualizou nossos rostos nas redes sociais. Todos esses exemplos têm em comum o fato de a imagem ter se transformado em um dos principais meios de comunicação no mundo contemporâneo. Ao longo do século XX, encontramos o ápice da explosão da cultura de massa, a qual, por meio da fotografia e do cinema, converteu as sociedades modernas naquilo que, a partir de 1960, Guy Debord (1939- 1994) denominou de sociedade do espetáculo (HAGEMEYER, 2012), ou seja, uma sociedade em que a imagem é responsável por mediar (de onde se origina o conceito de mídia) as relações humanas em direção a uma vida pautada no consumo acelerado de bens, serviços, informa- ções e valores estéticos efêmeros. História, imagem e visualidade 17 1.2 A imagem como fonte histórica Vídeo A história como campo das ciências humanas desenvolveu-se no século XIX. Nessa época, era vital para os historiadores elaborarem pesquisas baseadas em fontes escritas, já que os documentos es- critos utilizados eram o reflexo do tipo de objeto de pesquisa que interessava a eles. Grande parte eram documentos oficiais (como leis, tratados, cartas diplomáticas), os quais demonstravam como os assuntos desenvolvidos pelos historiadores deveriam dar conta da história dos Estados nacionais, da sua política, das suas guer- ras, das grandes personalidades e dos grandes acontecimentos. Em suma, a história como área do conhecimento científico nasceu como uma história política baseada em documentos escritos e oficiais (BURKE, 2012). Foi somente com a Escola dos Annales, movimento de renovação da história – iniciado em 1929, na França –, que os historiadores passaram a reconhecer gradativamente a importância das imagens como fonte para a criação de uma outra forma de história. Essa ou- tra forma de escrever a história passou a considerar a cultura, a so- ciedade e a economia como elementos fundamentais para explicar a vida dos seres humanos ao longo dos tempos. Essa guinada de uma história política para uma história social e cultural foi seguida de uma nova posição metodológica na pesquisa dos historiadores com rela- ção às suas fontes. Passa a se compreender, a partir de então, que se a história como campo do conhecimento pretende compreender a totalidade da vida humana, não apenas personalidades ilustres, precisará fazer uso de todos os tipos de fontes possíveis. Chamamos essa transformação no método histórico de ampliação da noção de documento histórico. Sobre esse assunto, os historiadores Cardoso e Mauad (1997, p. 172) afirmam que da Escola dos Annales: para cá, tanto a noção de documento quanto a de texto conti- nuaram a ampliar-se. Agora, todos os vestígios do passado são considerados matéria para o historiador. Dessa forma, novos textos, tais como a pintura, o cinema, a fotografia etc., foram incluídos no elenco de fontes dignas de fazer parte da história e passíveis de leitura por parte do historiador. Tal tendência está promovendo uma aproximação da história com outras disciplinas das ciências humanas, no sentido de desenvolver uma metodologia adequada aos novos tipos de textos. No livro A Escola dos Annales 1929-1989: a revolução francesa da his- toriografia, o historiador Peter Burke apresenta a trajetória das três gera- ções de historiadores que revolucionaram o modo como a escrita da história era desempenhada na França. O autor procura demonstrar as inovações em termos de novos objetos de pesquisa, novas abordagens e problemas, destacando a valorização do conheci- mento histórico com base na ideia de história total, ou seja, história de toda a produção humana ao longo dos tempos. BURKE, P. São Paulo: UNESP, 2012. Livro 18 História, imagem e visualidade Sendo assim, essa ampliação da noção de documento ou fonte histórica teve início com a primeira geração dos Annales, liderada pelos historiadores Marc Bloch (1886-1944) e Lucién Febvre (1878- 1956), no entanto se tornou mais acentuada na segunda e na ter- ceira geração, uma vez que a primeira foi conhecida por ter iniciado esse movimento de abertura, dando espaço para o uso de materiais originalmente pertencentes a outras áreas, como a geografia, a an- tropologia, a economia e a arqueologia. Desse modo, a aproximação entre as áreas fazia parte da propos- ta do movimento de construção de uma história interdisciplinar e foi assim que a história passou a utilizar materiais visuais de diferentes áreas do conhecimento, como a cartografia e seus diferentes mapas; a arqueologia e suas estelas; os utensílios agrícolas; os objetos ritua- lísticos; a numismática e as imagens em moedas; a paleografia me- dieval com seus textos repletos de ilustrações; a arte de um modo geral e suas inúmeras expressões plásticas: a pintura, a escultura e a arquitetura. Nessa mesma época, na década de 1930, um segundo movimen- to denominado Escola de Frankfurt, liderado por intelectuais como Horkheimer (1895-1973), Adorno (1903-1969) e Benjamin (1892- 1940), renovou os estudos no campo das artes, cultura e comuni- cação, analisando o impacto da cultura de massa do capitalismo sobre as sociedades modernas. Esses estudos foram centrais para que as ciências sociais avançassem em territórios novos, tal como as pesquisas sobre a fotografia e o cinema. A Escola de Frankfurt se transformaria em uma referência para inúmeras áreas no cam- po das ciências sociais, a exemplo da história que acolheria, mesmo que tardiamente (nas décadas de 1970 e 1980), os estudos sobre a fotografia e o cinema realizados por Walter Benjamin. Na segunda geração dos Annales (décadas de 1950 e 1960), hou- ve pouco investimento no desenvolvimento das pesquisas com fon- tes visuais, porém, na terceira geração (décadas de 1970 e 1980), emergiu uma preocupação mais interessada em aprofundar o uso das imagens como documento histórico. Dessa forma, a imagem passou a ser debatida entre a condição de documento histórico e a condição de objeto de pesquisa. Com pensamento filosófi- co e sociológico, a Escola de Frankfurt nasceu de um projeto de intelec- tuais da Universidade de Frankfurt - Alemanha em parceria com o Instituto de Pesquisa Social, no início do século XX. Com base na teoria crítica, foi criada uma interpretação do marxismo, da socio- logia e da política, sendo um importante marco na história. Importante História, imagem e visualidade 19 Sendo documento histórico, a imagem passa a ser reconhecida como testemunho do passado, um tipo de testemunho diferenciado em relação aos documentos escritos. Sua particularidade é o fato de se tratar de um tipo de fonte que possui uma linguagem diferen- te dos demais. Nesse sentido, os historiadores passam a buscar os códigos de leitura ou a “gramática” própria a cada tipo de imagem. Logo, a pintura, a fotografia e o cinema passam a exigir dos historia- dores um esforço maior no sentido de ler aquilo que não se encon- tra escrito na forma de palavras. Já como objeto de pesquisa, destacaram-se alguns estudos sobre o cinema e suas formas de influência sobre o comportamento e o imaginário social. O trabalho mais destacado foi o do historiador Marc Ferro (1924-2021), que publicou em 1974 um artigo na obra de três volumes nomeados: História: novos objetos; História: novos problemas; História: novas abordagens. Essa obra representou uma forma de apresentação dos novos objetos, problemas e abordagens propostos pela chamada Nova História (CARDOSO; MAUAD, 1997). O trabalho de Marc Ferro destaca a importância de os historiadores to- marem as imagens tal como elas se apresentam, não buscando nelas a função de ilustração de conteúdos ou a confirmação da veracidade de determinadas informações encontradas em outras fontes. Sendo assim, se tratando de cinema, Ferro defendeo filme como sendo algo entre fonte e objeto: “partir da imagem, das imagens. Não pro- curar somente, nelas, ilustrações, confirmações ou desmentidos de um outro saber, o da tradição escrita. Considerar as imagens tais quais são, mesmo se for preciso apelar para outros saberes para melhor abordá-las” (FERRO, 1992, p. 85). Os saberes a que o autor se refere aqui são a semiótica, a icono- logia e a história da arte. Isso demonstra a perspectiva que atraves- sou as três gerações da Escola dos Annales: produzir uma história interdisciplinar que possa se utilizar de conhecimentos oriundos de inúmeras áreas do saber, as quais deem apoio para ampliar o conhecimento histórico sobre o ser humano ao longo dos tempos. Atualmente, alguns historiadores têm apontado os limites na forma como as imagens foram tratadas pelas últimas gerações de historia- dores dos Annales. Podemos entender melhor essa crítica se perce- bermos como outras áreas do conhecimento, como a antropologia e 20 História, imagem e visualidade a sociologia, estiveram muito à frente da história no aprofundamento teórico e na qualidade do uso das imagens em suas pesquisas. Ain- da hoje, é possível encontrar essas limitações no uso da imagem por parte dos historiadores, principalmente pela prevalência do emprego da imagem como ilustração e como forma de confirmação do que se encontra nas fontes escritas (MENESES, 2003). Contudo, tanto a fotografia quanto o cinema são exemplos de um bom uso da imagem entre os historiadores. Nesses tipos de ima- gens, é notável o avanço metodológico no uso delas como fonte e no reconhecimento do problema da visualidade de modo interdepen- dente ao estudo das imagens. 1.3 O problema da visualidade Vídeo Visualidade e cultura visual são dois conceitos desenvolvidos no interior das áreas de estudos culturais na década de 1980, que só passaram a adentrar na área da história muito timidamente nos anos 2000 (KNAUSS, 2008). Para os historiadores que enxergavam nas imagens apenas seu potencial como fon- te histórica ou objeto de pesquisa, o proble- ma da visualidade e da cultura visual trouxe novas possibilidades, novos objetos, novos problemas e novas perguntas para o ofício da história. Em poucas palavras, o problema da visua- lidade apontava para os aspectos antropoló- gicos da imagem. Ou seja, apontava para os diferentes modos de como os seres humanos manifestavam formas de olhar, de observar e de representar o que viam. Como já mencio- namos anteriormente, as diferentes formas de visualidade são sempre dependentes das características culturais, pois estas informam não apenas valores, crenças e conhecimentos específicos, mas também um modo particular de olhar a realidade. Para esse modo diferen- ciado de observar e descrever a realidade, damos o nome de cultura visual. Figura 3 Alto-relevo egípcio Ch ip da we s/ W ik im ed ia C om m on s A imagem apresenta Seth (deus com cabeça de íbis) e Hórus (deus com cabeça de falcão) adorando Ramsés II. A posição da cabeça, dos braços, das pernas e dos pés aparecem em perfil, enquanto o tronco está defronte. As linhas do desenho prezam pelos ângulos retos. História, imagem e visualidade 21 Podemos demonstrar o problema da visualidade em uma cultura ao observarmos o modo como pes- soas, animais e plantas eram representadas nas pin- turas egípcias e o modo como esses mesmos objetos eram representados na cultura clássica grega. En- quanto egípcios prezavam por modelos de represen- tação antropozoomórficos para retratar seus deuses – isto é, uma mistura entre humano e animal–, os gregos faziam essa representação explorando mui- to mais o caráter humanístico dos deuses. No que diz respeito às formas e às técnicas empregadas, en- quanto os egípcios valorizavam as formas retas e um tipo de perspectiva particular no uso das duas dimen- sões, os gregos exploravam as curvas e certa noção de movimento. Considerando a comparação entre as duas socie- dades, poderíamos afirmar que uma possui um tipo de representação mais realista do que a outra? Cer- tamente, não. O que ocorre é que em cada socieda- de um tipo de visualidade específica foi desenvolvido por sua cultura. O estilo de representação encontra- do na imagem, portanto, revela uma forma de olhar que é específica em cada cultura; isso demonstra que o próprio ideal de uma imagem realista é sempre relativo, de- pendendo da cultura visual que uma sociedade possui. Podemos perceber com os exemplos apresentados como o estu- do sobre a visualidade e a cultura visual são fundamentais para se compreender a produção de imagens ao longo da história. Simul- taneamente, podemos afirmar que se desejamos, na condição de historiadores, compreender a estrutura de funcionamento de uma imagem, precisamos antes compreender qual é o tipo de cultura em que ela está inserida; mais ainda, quais são as formas de representa- ção produzidas, como funcionam e quais são as particularidades da linguagem visual da cultura estudada, ou seja, quais são as formas de leitura e interpretação das imagens. Ao tratarmos, inicialmente, das questões culturais básicas referentes ao modo de vida de uma sociedade, estamos mais aptos a compreender como funciona o sis- tema de comunicação das imagens, isto é, o que elas pretendem Figura 4 Escultura grega Gi or ce s/ W ik im ed ia C om m on s A imagem apresenta a deusa grega Afrodite. A escultura, situada no Museu Arqueológico de Bérgamo, na Itália, procura valorizar as curvas e os movimentos do corpo e do drapeado que o envolve. 22 História, imagem e visualidade comunicar e por qual motivo realizam essa comunicação de uma forma e não de outra. A visualidade não é, entretanto, só um meio para se conhecer melhor o processo de produção das imagens, pois não há dúvidas do quanto ela pode favorecer a compreensão de uma fonte visual; e quando situamos essa fonte no espaço/tempo em que é produzida, compreendemos o tipo de cultura que produz a imagem em ques- tão. Para os historiadores, a visualidade deve ser também um objeto de pesquisa, assim como são as religiões, a política, a economia ou a sexualidade. Dizer que ela é um objeto significa que os historiadores que trabalham com imagens devem também estudar as diferentes formas de olhar produzidas por determinada sociedade. Por sua vez, a visualidade pode ser um importante caminho não só para a compreensão das imagens, mas para a demonstração das ideo- logias que organizam uma sociedade. Ela é, nesse sentido, uma manei- ra de olhar que pode ser dirigida, ordenada, organizada por formas de poder. Isso significa que tanto o modo de olhar e ver quanto a imagem produzida não são expressões neutras ou sem intenção. Pelo contrá- rio, tanto a visualidade quanto a imagem estão envolvidas em relações sociais e podem ser objeto de disputas entre grupos. Uma outra maneira de abordar as relações entre visualidade e poder pode ser encontrada em estudos sobre o chamado regime es- cópico (METZ apud MENESES, 2003), regime de visualidade ou regime visual. A palavra regime designa, aqui, a noção de norma ou padrão, ou seja, trata-se de normas, regras ou padrões ensinados socialmen- te, os quais naturalizam um modo geral de como se olhar a realida- de. Nesse caso, é importante notar que esse padrão é o resultado do trabalho de inúmeras instituições (família, escola, exército etc.), responsáveis por orientar o aprendizado sensorial (olhar, apalpar, cheirar etc.) das pessoas em sociedade. Então, compreendemos que o poder não é apenas uma ideologia ou instituição (como o Poder Judiciário, por exemplo), mas é o efeito gerado por qualquer rela- ção social que produza um efeito no comportamento individual e coletivo. Assim, o regime escópico pode ser compreendido como o conjunto de elementos visuais que orientam o olhar de acordo com os tipos de relações sociais a que um indivíduo está sujeito. Uma terceira forma de estudar a visualidade como objeto de pes- quisaé abordar o papel das tecnologias no desenvolvimento da visão No livro A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019), a imagem é, notavelmente, uma estratégia ideológica que é capaz de moldar a vi- sualidade de uma cultura dominada pela cultura dominante. A dominada, nesse caso a indígena, é capaz de produzir táticas de sobrevivência e resis- tência diante da cultura dominante, católica e eu- ropeia. Mas, independen- temente de quem vença a guerra das imagens, na disputa entre essas culturas surge um novo tipo de cultura visual, um novo tipo de visualidade e produção de imagens, o qual é notado ainda hoje na cultura nacional mexicana. GRUZINSKI, S. São Paulo: Cia das Letras, 2006. Livro História, imagem e visualidade 23 e na transformação dos modos de visualização, isto é, como deter- minadas tecnologias foram responsáveis por transformar o regime visual da sociedade moderna. Dessa forma, da criação do microscó- pio ao desenvolvimento da câmera fotográfica, é possível verificar a interferência das tecnologias nas formas de olhar e interpretar o mundo e, mais ainda, na modelação e na orientação da visão. As- sim, podemos afirmar que o surgimento de inúmeras tecnologias modernas não só alterou as formas de representação das imagens, como também criou condições de recodificar a atividade do olho, ordená-la, elevar sua produtividade e impedir sua distração, no con- texto das sociedades capitalistas industrializadas (CRARY, 2012). Contudo, diferentemente de como fazem os antropólogos e so- ciólogos da imagem, essas três abordagens ainda foram pouco apli- cadas entre os historiadores. Considerando esse hiato no campo da história, Meneses (2003, p. 30) sugere três focos que, segundo o autor, merecem a atenção urgente dos historiadores na atualidade, afirmando que eles não podem ser tratados de maneira isolada: a) o visual, que engloba a “iconosfera” e os sistemas de comu- nicação visual, os ambientes visuais, a produção / circulação / consumo / ação dos recursos e produtos visuais, as institui- ções visuais, etc.; b) o visível, que diz respeito à esfera do poder, aos sistemas de controle, à “ditadura do olho”, ao ver/ser visto e ao dar-se/ não-se-dar a ver, aos objetos de observação e às prescrições sociais e culturais de ostentação e invisibilidade, etc.; c) a visão, os instrumentos e técnicas de observação, os papéis do observador, os modelos e modalidades do “olhar”. O visual, o visível e a visão são, portanto, três aspectos centrais para a análise da visualidade no trabalho historiográfico. O visual diz respeito a todo o sistema de comunicação visual, ao ambiente visual que recebe o nome de iconosfera, isto é, à estrutura de produção, ao consumo e ao uso de todo o produto visual. Sendo assim, propagan- das, mídias digitais e de massa ou o próprio mercado de consumo de imagens físicas ou virtuais estão inseridos nesse sistema e são responsáveis não só por fornecerem informações, mas também por produzirem formas de visualidade que influenciam comportamen- tos e hábitos, assim moldando o imaginário social. Por sua vez, o visível diz respeito ao que se deixa ou não ser vis- to em conformidade com perspectivas políticas e ideológicas; ao A noção de regime visual adentrou os estudos visuais com o livro Vigiar e punir: nascimento da prisão. Nele, Foucault analisa o nascimento dos sistemas de controle e vigilância em escolas, exércitos, fábricas e pri- sões, realizados com base em aparelhos de controle visual como o panóptico (mecanismo criado pelo jurista Jeremy Bentham, consistindo em uma torre com um holofote giratório para vigiar o mo- vimento dos presidiários em suas celas). Esse livro inaugurou a concepção de que a visualidade pode envolver formas de poder capazes de padro- nizar comportamentos corporais, gerando uma sociedade disciplinarizada e obediente. FOCAULT, M. Petrópolis: Vozes, 1997. Livro 24 História, imagem e visualidade mesmo tempo, pode se referir aos códigos de diferenciação social, a como são produtos visuais de determinada marca, até mesmo aos padrões de vigilância e controle. Por fim, a visão, como já aponta- mos, é moldada tanto pelos conhecimentos, técnicas e tecnologias criadas em cada contexto histórico, quanto pelas estratégias de con- trole e orientação do olhar por meio de aparelhos tecnológicos como câmeras, aplicativos de smartphones, satélites, microscópios etc. 1.4 Da historiografia à historiofotia: a conversão da história em imagens Vídeo Quando procuramos demonstrar o efeito que uma imagem pode produzir sobre seus observadores, costumamos usar uma antiga ex- pressão atribuída ao filósofo Confúcio: “uma imagem vale mais que mil palavras”. Essa frase possui uma interessante constatação, pois, em primeiro lugar, estabelece uma comparação entre imagem e pa- lavra e, em segundo, conclui que as imagens possuem um poder de demonstração muito superior a qualquer conjunto de palavras. Apesar de essa constatação vigorar na cultura popular, a ima- gem foi, durante muito tempo, relegada à marginalidade, tanto pela ciência ocidental quanto pela disciplina de História. Em parte, esse fato se deve ao logocentrismo, ou seja, à concepção de que a pala- vra possui um grau de importância e de qualidade explicativa maior do que qualquer imagem. Tal concepção foi desenvolvida na Europa por dois fatores fundamentais (DIDI-HUBERMAN, 2015): Em toda a Idade Média, a palavra tinha um alto grau de reconhecimento. Seja pelo cristianismo, religião fundada na palavra escrita da Bíblia, seja pelo valor da palavra falada, base da tradição dos juramentos de honra entre os cavalei- ros e os membros da nobreza (herança da tradição bárbara, a qual não pos- suía leis escritas), a palavra tinha um estatuto de confiabilidade maior do que a imagem. Aliás, a imagem fora utilizada de modo ambíguo na Idade Média, ao mesmo tempo que era utilizada como forma de veneração dos santos e márti- res da Igreja, ou mesmo por sua qualidade pedagógica como elemento central na educação cristã para as populações não letradas, ela fora também bastante empregada como instrumento de controle, por meio do medo do diabo ou das danações do inferno (muitas imagens em catedrais góticas foram utilizadas nesse sentido). Por outro lado, alguns tipos de imagens eram reconhecidos por seu poder de ilusão, por sua capacidade de enganar a consciência dos fiéis, sendo assim assimiladas como obra do diabo. História, imagem e visualidade 25 A partir da Revolução Científica do século XVI, a palavra escrita passa a ser reconhecida como a base principal para a elaboração e a credibilidade do conhecimento científico. Filósofos, como René Descartes, compreendiam que a base de todo o pensamento científico passava pela construção do texto escrito, seja na linguagem gramatical ou na matemática. A história como ciência, por sua vez, produziu a concepção de que as únicas fontes históricas reconhecidas seriam os documentos oficiais escritos. Ao mesmo tempo, herdou uma visão epistemológica oriunda do direito positivista: para provar a autenticidade de um documento histórico, este deveria ser cotejado com base em outros documentos escritos oficiais e, para ter valor de prova, era fundamental que fosse regido por autoridades de instituições reconhecidas pela lei, a qual, por sua vez, também era escrita. Mesmo em escolas posteriores, em que as fontes adquiriram uma maior amplitude, sendo a própria imagem reconhecida como fonte, a escrita continuou sendo a principal forma de se investigar e de se fazer ciência histórica. A justificativa elementar era e é a de que a história é um tipo de ciência e, como tal, só se desenvolve por meio de análises e críticas, as quais só poderiam fazer sentido na forma da linguagem es- crita. Não é à toa que, quando no campo da história se faz referência a algum estudo científico realizado ou aos procedimentos e métodos da história como ciência, fala-se em historiografia,em escrita da história, não em imagem ou iconografia da história. Evidentemente, não encon- traríamos a imagem como o centro da produção acadêmica da história simplesmente pelo fato de que a palavra escrita sempre foi o seu meio principal de produção, pelos motivos explicitados, e, novamente, pelo fato de que a história como ciência é filha, portanto, do logocentrismo. Mas, afinal, é possível que a história como campo do conhe- cimento científico seja feita por meio de imagens? Dito de outro modo, é possível ou mesmo desejável que a história se liberte do logocentrismo? Sem dúvida, não existe uma resposta absoluta para essas perguntas. O que podemos fazer para melhor respondê-las é verificar o estado da arte, ou seja, quais estudos, debates e expe- riências foram capazes de colocar uma nova condição para a pro- dução do conhecimento histórico por meio de imagens. Podemos iniciar afirmando que grande parte da crítica feita ao uso de imagens para produzir um trabalho histórico esteve cen- 26 História, imagem e visualidade trada no audiovisual. Em segundo lugar, a crítica inicial dos his- toriadores sobre a suposta impossibilidade de produzir história audiovisual está ligada à crítica da narrativa, segundo a qual a fun- ção dos historiadores não seria narrar, mas explicar e analisar. Em último lugar, é importante apontar que até a década de 1980 a comunicação audiovisual não era pensada como tendo o mesmo potencial da comunicação escrita, na medida em que o audiovi- sual seria supostamente limitado à dimensão narrativa no fluxo do tempo, sem atingir a intensidade analítica da comunicação escrita (HAGEMEYER, 2012). Um dos primeiros historiadores a superar essas críticas e traba- lhar a questão da história audiovisual de modo bastante aprofunda- da foi Robert Rosenstone (1936-). Esse historiador norte-americano foi responsável por uma vasta produção historiográfica que pôde ser adaptada na forma de documentário histórico. Para ele, dois aspectos são centrais no debate entre a história escrita e a produ- ção de documentários históricos: a narrativa histórica e a análise dos dados resultantes da pesquisa histórica (HAGEMEYER, 2012). Com base nos estudos de Rosenstone, Hayden White (1928- 2018) produziu o conceito de historiofotia, como demonstração de um tipo de história desenvolvida com base em imagens. Diferente da historiografia, que seria marcada pela centralidade da palavra, a historiofotia é a história feita tendo por recurso principal o uso de imagens, particularmente em sua forma audiovisual. Contudo, a questão central que movimenta os debates sobre a produção da história audiovisual é a sua relação com a ficção e a narrativa. A ficção por ser apontada como o mal do qual todo historiador deve fugir e a narrativa por ser o modo pelo qual a ficção costu- ma ser explorada. Nesse sentido, toda a produção audiovisual se- ria desenvolvida em duas formas possíveis: como filme/ficção ou como documentário. Fomos acostumados a perceber essa divisão como uma maneira de assegurar quando um audiovisual está fa- zendo referência a “fatos reais” ou quando está fazendo referência a uma história fantasiosa ou imaginária. Entretanto, tal divisão entre documentário e filme/ficção impede a percepção de que tanto no caso deste quanto no daquele estão em jogo aspectos ficcionais, como o estilo e a montagem, os quais O filme/documentário Cabra marcado para morrer trata da morte do líder camponês João Pedro Teixeira (1962, Paraíba), que foi assassi- nado por latifundiários. Começou a ser rodado em 1964, foi interrompi- do pela ditadura militar e retomado em 1981. Os atores foram os próprios camponeses moradores do Engenho da Galileia (PB) e a esposa do camponês assassi- nado, Elisabeth Teixeira. Coutinho conseguiu pro- duzir um documentário histórico entre realismo e ficção, influenciado pelo neorrealismo italiano (sem preocupação em esconder o processo de produção dos filmes). Direção: Eduardo Coutinho. Brasil: Mapa Filmes do Brasil, 1964-1984. Documentário História, imagem e visualidade 27 procuram figurar uma remontagem do passado. Da mesma forma, na escrita da história há também um trabalho de montagem (resul- tado da pesquisa, seleção de fontes, tipo de abordagem, tema etc.) e um estilo de escrita. No que diz respeito ao estilo, tanto a história quanto o cinema/documentário trabalham ao modo da linguagem da literatura. Ambos possuem um enredo que pode ser trágico, cô- mico, romanesco ou satírico. Sendo assim, tanto a história escrita (historiografia) quando a história visual (historiofotia) podem con- ter elementos ficcionais e ao mesmo tempo realistas/científicos. Desse modo, Hayden White (2010, p. 219 apud HAGEMEYER, 2012, p. 141) afirma que: nenhuma história, visual ou verbal, “espelha” todos ou mesmo a maior parte dos acontecimentos ou cenas do que ela se propõe a relatar, e isso também é verdade até mesmo para a mais estreitamente restrita “micro-história”. Toda história escrita é produto de um processo de condensação, deslocamento, simbolização e qualificação, exatamente igual àqueles usados na produção de uma representação fílmica. É apenas o meio que difere, não a maneira pela qual as men- sagens são produzidas. Portanto, a diferença estaria mais no meio utilizado para nar- rar e analisar (audiovisual ou escrito) do que entre uma linguagem mais ficcional ou mais realista/científica. Nesse sentido, o debate deveria estar mais preocupado em compreender como cada meio é capaz de extrair efeitos positivos para a reconstrução da história de que se pretende tratar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pudemos observar até aqui, os debates sobre imagem e vi- sualidade têm muito a contribuir para o desenvolvimento do campo da história. Mesmo que grande parte dos historiadores ainda tenha pouca familiaridade com as teorias que orientam o uso das imagens, houve um grande avanço nos últimos anos no sentido de melhorar as possibilida- des de como se escrever a história com base nestas. Mais do que isso, é possível afirmar que as imagens impõem aos historiadores do século XXI a necessidade de reavaliar os métodos da história e por quais meios ela pode ser produzida. 28 História, imagem e visualidade O mundo digital, marcado pela presença constante de imagens, é pro- va dos desafios que os historiadores têm pela frente no que diz respeito ao uso das imagens em seus trabalhos. Desafio que não está apenas na quantidade de imagens e na necessidade de utilizá-las ou de como fazê- -las, mas sim no estudo sobre as transformações nas formas de visua- lidade das sociedades contemporâneas. Ao mesmo tempo, a presença massiva do audiovisual nas plataformas digitais, a construção de inúmeras narrativas históricas por meio do YouTube, a produção de novos filmes e documentários históricos em séries da Netflix têm recolocado aos histo- riadores a necessidade de envolvimento tanto na crítica quanto na produ- ção de materiais audiovisuais. Não só a preocupação em se envolver na produção audiovisual, como também a atenção em debater e problematizar as diversas formas de nar- rativas presentes nesses meios virtuais são, sem dúvidas, o novo papel que o mundo das imagens impõe aos historiadores contemporâneos. Se que- remos estar presentes na construção qualificada de materiais audiovisuais e auxiliar na análise crítica dos diversos tipos de produtos audiovisuais, na sua exploração mercadológica ou nos abusos ideológicos, como o revisio- nismo histórico e as fake news, é importante estarmos habilitados com os instrumentos teóricos necessários para o estudo crítico das imagens. ATIVIDADES 1. Vimos como imago está ligada à lembrança de algo ou alguém ausente. Apresente um exemplo de imagem que possui algum valor afetivo em sua vida e procure verificar quais tipos de lembranças aparecem em sua mente. Procure descrever quais outras imagens mentais surgem associadas a essa primeira imagem. 2. Quais são os problemas encontradospelos historiadores no uso da imagem como ilustração? 3. O que é visualidade e qual é a sua importância no estudo da história? 4. Em sua opinião, a história feita por meio de imagens possui alguma vantagem comunicativa em relação à história escrita? Justifique sua resposta. Vídeo História, imagem e visualidade 29 REFERÊNCIAS BURKE, P. A Escola dos Annales 1929-1989: a revolução francesa da históriografia. São Paulo: UNESP, 2012. CARDOSO, C. F.; MAUAD, A. M. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: História da Arte e anacronismo das imagens. São Paulo: Humanitas, 2015. FERRO, M. O filme, uma contra-análise da sociedade? In: FERRO, M. (org.). Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 79-115. GRALHA, J. C. M. Deuses, faraós e poder: legitimidade e imagem do deus dinástico e do monarca no antigo Egito. Rio de Janeiro: JCG Editor, 2017. GRUZINSKI, S. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019). São Paulo: Cia das Letras, 2006. HAGEMEYER, R. R. História e audiovisual. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. HOUAISS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. KNAUSS, P. Aproximações disciplinares: história, arte e imagem. Anos 90, Porto Alegre, UFRGS, v. 15, n. 28, p. 151-168, dez. 2008. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/ article/view/7964. Acesso em: 26 jul. 2021. MENESES, U. T. B. de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45. p. 11-36, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf. Acesso em: 26 jul. 2021. https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/7964 https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/7964 https://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf 30 Imagem e cultura visual 2 Teorias da imagem e da visão Neste capítulo vamos estudar algumas importantes teorias sobre a arte, a imagem e a visualidade, procurando demonstrar como os pro- cessos de comunicação e leitura das imagens foram compreendidos por alguns historiadores da arte, linguistas, semiólogos e outros. Como você vai perceber, os estudos sobre arte, imagem e visualidade têm um forte caráter interdisciplinar, e é justamente por isso que muitas teorias pude- ram ser desenvolvidas com tanto rigor e qualidade. Como forma de compreender a qualidade expressiva e comunicativa das imagens, vamos começar apresentando os estudos realizados pela linguística e pelo estruturalismo. Vamos acompanhar os esforços não só da linguística como também da semiótica e da iconologia no sentido de desenvolver diferentes formas de estudo das imagens, e assim perceber as particularidades de cada proposta de estudo. Além disso, vamos com- preender a importância da virada visual e dos estudos visuais e culturais, bem como suas contribuições para novos debates, questionamentos e propostas para o estudo das imagens. Este capítulo trará a oportunidade de nos aprofundarmos em al- guns conceitos como sociedade escópica e regime de visualidade. Por fim, verificaremos as tensões epistemológicas no estudo da história da arte e da imagem, traduzidas nos conceitos de realismo e simulacro. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • compreender a imagem como uma forma de linguagem organizada pela cultura visual; • perceber as transformações históricas nos estudos teóricos sobre a imagem; • perceber as diferenças entre iconografia, iconologia e semiótica; • reconhecer as contribuições da virada visual e dos estudos culturais para o estudo das imagens; • dominar os conceitos de oculocentrismo, sociedade escópica e re- gime de visualidade; • compreender a tensão epistemológica entre realismo e simulacro no estudo das imagens. Objetivos de aprendizagem Teorias da imagem e da visão 31 2.1 Linguagem visual e cultura visual Vídeo Quando dizemos que uma imagem é capaz de comunicar, entende- mos por comunicação a ação pela qual uma mensagem é transmitida. Não há dúvidas de que as imagens transmitem algo, por mais subje- tiva que possa ser essa transmissão. O que interessa notar é que, no processo de transmissão de uma mensagem, temos um comunicador (a imagem) e um receptor (quem a observa); entre o comunicador e o receptor algo é comunicado. É esse “algo” – um dado, uma informação, um sentimento, uma lembrança – que concede à imagem o poder de nos tocar, de nos afetar como observadores. Então pensemos bem: se a imagem é capaz de nos tocar, de nos afetar, de nos comunicar algo, não teria ela uma natureza semelhante à da linguagem? Foi pensando dessa forma que muitos estudiosos procuraram compreender a capacidade de comunicação da imagem. Nesse sen- tido, tornou-se comum afirmar que a linguagem não é uma proprie- dade exclusiva da palavra falada ou escrita, mas sim um conjunto de instrumentos de comunicação da qual as imagens também fazem parte. A esse tipo de linguagem fornecida pelas imagens se deu o nome de linguagem visual. Para entendê-la, porém, precisamos an- tes conhecer como se deu a organização dos primeiros estudos da linguagem que influenciariam as formas e os métodos de interpre- tação da linguagem visual. Os estudos da linguagem se tornaram muito influentes sobre as mais diversas áreas das ciências humanas e sociais a partir de 1950. Pelo menos desde a publicação do livro As estruturas elementares do parentesco (1948), do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), a linguagem passou a ganhar espaço central no modo como as so- ciedades humanas e suas criações passaram a ser estudadas por sociólogos, antropólogos, historiadores, filósofos, psicanalistas e ou- tros estudiosos. É possível afirmar que o impacto dessas novas pesquisas centra- das no estudo da linguagem abriu caminho para o movimento que, a partir da década de 1940, na França, foi denominado de estruturalis- mo (CARDOSO; MAUAD, 1997). O estruturalismo era uma designação para essa nova perspectiva metodológica, que muitos pesquisado- res passaram a compartilhar. Em linhas gerais, esse movimento retomava os ensinamentos de Ferdinand de Saussure (1857-1913), Compreendendo a cultura como um sistema de signos compartilha- dos, Claude Lévi-Strauss estudou alguns povos como os aborígenes australianos. Seu obje- tivo era compreender o funcionamento dos sistemas de matrimônio e parentesco, verificando como a linguagem e a nomenclatura permitem definir os círculos de parentes e aliados. Na compreensão do antro- pólogo, existem entre as diversas culturas algumas estruturas inconscientes e universais, que passam pela linguagem, respon- sáveis por organizar comportamentos sociais, a exemplo da interdição do incesto. LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982. Livro 32 Imagem e cultura visual famoso linguista francês que procurou demonstrar, no início do sé- culo XX, como a linguagem era a base de todos os significados e sentidos criados pelos seres humanos em sociedade. Sendo assim, a língua seria responsável por dar sentido a todas as atividades hu- manas e da natureza, a todos os objetos e sujeitos, podendo mesmo se afirmar que ela seria responsável por dar sentido a toda a vida de um modo geral. Se a língua é tão determinante para definir a realidade em que vive- mos, a linguagem (a capacidade de comunicação escrita e verbal) era o primeiro instrumento ou tecnologia desenvolvida pelo ser humano para organizar as diversas línguas existentes. Perceba que, ao falar em linguagem, estamos tratando de uma faculdade ou capacidade huma- na, enquanto, ao falarmos de língua, estamos nos referindo a uma es- trutura formal de códigos, símbolos ou caracteres que uma sociedade específicadesenvolveu e que a difere das demais. A língua pode também ser definida pela oralidade, sem necessitar de uma escrita que a organize. No entanto, mesmo assim, ela possui uma estrutura formal, um sistema de sons vocálicos que, nesse caso, tem por base a voz e não a escrita. De um modo ou de outro, temos o fato comum de que toda linguagem possui uma estrutura ou sistema que a organiza. Foi reconhecendo a existência desse sistema ou estrutura que o movimento estruturalista passou a considerar que, para se com- preender qualquer sociedade humana, é necessário antes de tudo en- tender o funcionamento da linguagem dela (CARDOSO; MAUAD, 1997). Mas, afinal, qual é o motivo de começar pela linguagem? Por que a linguagem é tão importante? Por que ela é a primeira referência para se entender uma sociedade? As respostas para essas perguntas estão no fato de que a linguagem é a primeira forma de expressão organizada do pensamento humano. E, se o pensamento é a base racional de toda a criação humana, necessariamente devemos passar pela linguagem se desejamos compreender as criações humanas, sejam elas materiais e tecnológicas, sejam os próprios conhecimentos e técnicas desenvolvi- dos. Em suma, todas as invenções humanas são produto da linguagem. O principal resultado que podemos destacar de todo esse empenho na valorização do poder da linguagem foi o que viria a ser denominado na década de 1960 de virada linguística (linguistic turn) (CARDOSO; MAUAD 1997). Com esse nome, procura-se abarcar todo um movimen- Teorias da imagem e da visão 33 to de intelectuais das mais diversas áreas, os quais estavam antena- dos na importância de mapear os principais efeitos da linguagem na vida social. O psicanalista Jacques Lacan (1901-1981), que definiu o in- consciente como uma forma de linguagem, e o filósofo Michel Foucault (1926-1984), o qual demonstrou com o conceito de discurso que todas as formas de saber constroem a lente ou a grade de leitura pela qual mensuramos e naturalizamos nossa realidade, são alguns exemplos de intelectuais envolvidos de diferentes formas em análises sobre a lin- guagem e seus efeitos sociais, culturais, políticos e psicológicos. Roland Barthes (1915-1980) foi um dos intelectuais franceses que se dedicou a compreender as estruturas da linguagem, inicialmente no campo da literatura, e buscou, posteriormente, compreender os mecanismos envolvidos na produção de imagens, em particular no es- tudo da fotografia (CARDOSO; MAUAD, 1997). Foi nessa oportunidade que Barthes desenvolveu, com base na influência da linguística, os pri- meiros estudos sobre semiótica, isto é, a ciência que estuda os signos visuais e seus significados. Contudo, somente na década de 1980 iniciou-se outra forma de es- tudo das imagens, que era independente dos estudos da linguagem e que, portanto, passava a reivindicar a autonomia da imagem e da visualidade em relação à linguagem simbólica, semiótica ou iconológi- ca (KNAUSS, 2008). Esse movimento teve origem nos EUA e recebeu o nome de estudos visuais, uma espécie de ramificação dos chamados es- tudos culturais e que, em oposição ao movimento da virada linguística, denominou-se visual turn, ou virada visual. A grande crítica lançada por esse movimento foi a de que a imagem não poderia simplesmente ser reduzida ao papel de uma linguagem, tal como proposto pelo movimento estruturalista. Muito embora tenha a capacidade de comunicar, a imagem deveria ser tratada como um elemento autônomo em relação à linguagem falada e escrita. Portanto, seus problemas e implicações não poderiam ser reduzidos às análises baseadas em códigos linguísticos, como signos, caracteres e sons. Sua estrutura de comunicação era outra, suas implicações eram outras, seus problemas e questões eram outros, simplesmente porque se tra- tava de uma outra modalidade de comunicação. Devido a essas críticas, os estudos sobre a imagem adquiriram ou- tros contornos e conteúdos. A imagem passou necessariamente a ser 34 Imagem e cultura visual integrada à noção instrumental da visão, a qual passava a ser objeto de interesse para se estudar adequadamente os problemas da imagem. Unindo imagem e visualidade como elementos interdependentes, nas- ceu uma nova noção de estudo denominada cultura visual. Com esse conceito, buscou-se demonstrar que o estudo das imagens precisava necessariamente passar pelo estudo das diferentes formas de olhar. Entrou em questão, a partir desse momento, a necessidade de enfren- tar o dilema do observador, ou seja, de como as diferentes formas de olhar são construídas socialmente por meio da cultura. São as manei- ras de olhar, os tipos e formas de visão, portanto, que vão deslocar o problema da imagem como uma questão de linguagem para uma questão de visualidade. A imagem passou, assim, a ser compreendida menos como o resul- tado de uma linguagem visual e mais como o resultado de uma cultura visual. Não que a linguagem visual fosse questionada como inexistente, mas, ao fortalecer a ideia de cultura visual, pretendia-se demonstrar a centralidade da cultura e da experiência, muito mais baseada na vi- são, no olhar, do que propriamente na fala ou na escrita. Dessa forma, tornou-se possível demonstrar que mesmo considerando o potencial de comunicação das imagens, isto é, a imagem como uma forma de linguagem, sua compreensão não poderia se limitar aos mesmos mé- todos de análise fornecidos pela linguística e pelo estruturalismo lin- guístico. Seria necessário propor métodos que encarassem as imagens muito mais em seu aspecto não verbal, como um problema relaciona- do à visão e ao seu modo particular de comunicação. 2.2 A iconologia de Erwin Panofsky e a semiótica de Roland Barthes Vídeo Os primeiros e mais consistentes estudos sobre o funcionamento comunicativo das imagens se deram a partir da disciplina de História da Arte. Desde o século XIX, o estudo sobre a pintura era realizado com base em dois aspectos centrais: forma e conteúdo. A forma dizia res- peito ao tipo de representação, à modelagem ou ao estilo dos objetos e personagens presentes nas pinturas. Já o conteúdo se referia aos sig- nificados presentes na pintura e em cada forma representada. De um modo geral, os historiadores da arte deram o nome de iconografia para a atividade de descrição e compreensão das imagens. A palavra icono- Teorias da imagem e da visão 35 grafia, etimologicamente, significa a descrição verbal de um ícone, ou seja, de uma imagem (HOUAISS, 2009). Em linhas gerais, podemos dizer que era exatamente este o tipo de trabalho ao qual os historiadores da arte se dedicavam: descrever verbalmente os significados das imagens. Erwin Panofsky (1892-1968), historiador da arte alemão, desenvol- veu obras como O significado nas artes visuais (1955) que renovaram o estudo das imagens, particularmente da pintura. Em sua análise de- senvolveu o método iconológico, que compreendia que a iconografia era apenas uma das etapas do trabalho de decifração das imagens. Dessa forma, demonstrou que enquanto a iconografia correspondia ao trabalho de descrição dos significados da imagem, a iconologia com- preendia o objetivo final do trabalho de análise: a interpretação da ima- gem, como meio de encontrar o seu significado profundo no interior de uma cultura mais ampla. Assim, dividiu o estudo das imagens em três etapas: pré-iconográfica, análise iconográfica e análise iconológica (PANOFSKY apud DIDI-HUBERMAN, 2015). De acordo com Panofsky, as três etapas do método iconológico po- deriam ser descritas da seguinte forma: Fase primária (nível pré-iconográfico): essa fase ou nível diz respeito ao contato natural que uma pessoa tem diante de uma imagem. Nesse momento, o que conta é a experiência visual, que não supõe nenhum conhecimento prévio sobre os significados da imagem, limitando-se a uma descrição superficial. 1 Panofsky (apud DIDI-HUBERMAN, 2015) dá o exemplo da imagem de um homem segurando o seu chapéu. Qualquer pessoa que visua- lizeesse homem e a ação que ele realiza saberá identificar tanto o homem quanto o chapéu. Um outro exemplo clássico seria a pintura A Última Ceia, de Leonardo da Vinci (1452-1519). Na fase pré-iconográ- fica da análise dessa obra, basta que se reconheça a presença de tre- ze homens sentados em uma mesa. Poderíamos especificar detalhes como as vestes, os alimentos, os objetos e todos os demais elementos que poderiam ser identificados sem esforço. Perceba que se trata de um modo muito similar ao que uma criança faria ao descrever um qua- dro. Contudo, se chegarmos a definir que se trata de Jesus, seus após- tolos ou mesmo reconhecermos a pintura, já teremos avançado para a fase secundária ou iconográfica. O filme O Código da Vinci apresenta o professor de Iconografia Religiosa e Simbologia da Universi- dade de Harvard, Robert Langdon, interpretado por Tom Hanks. Inspirado no livro homônimo de Dan Brown, o filme retrata Langdon tentando solucionar o assassinato do curador do Museu do Louvre, Jacques Saunière. Como bom semiólogo, o professor procura pistas em quadros de Leonardo da Vinci, como Mona Lisa e A Última Ceia, explorando um thriller de conspiração e mistério, envolvendo ordens secre- tas como o Priorado de Sião e símbolos lendários como o Santo Graal. Direção: Ron Howard. EUA: Columbia Pictures, 2006. Filme 36 Imagem e cultura visual Fase secundária (nível iconográfico): nessa etapa há um notável avanço qualitativo na descrição da imagem. O primeiro aspecto é a identificação do tema, dos personagens, do artista que produziu a obra e uma percepção avançada sobre os significados de cada elemento (personagens, objetos, formas, cores) na composição do quadro. 2 É o momento em que a imagem do homem tirando o chapéu ganha significação. Agora podemos afirmar que o gesto de tirar o chapéu é uma forma de cumprimento, de cavalheirismo, o qual remonta ao período medieval, quando os cavaleiros retiravam seus elmos em sinal de paz (PANOFSKY apud DIDI-HUBERMAN, 2015). Voltando ao exemplo de A Última Ceia, podemos afirmar que, ao identificarmos o pintor Leonardo da Vinci como autor da obra, descrevermos o tema da pintura (a última ceia de Jesus com seus apóstolos) e reconhecermos os símbolos e ícones que per- mitem identificar cada personagem, o ambiente e os significados possíveis de cada elemento da imagem, estamos adentrando no nível iconográfico propriamente dito. A percepção e o estudo so- bre o contexto, valendo-se de outras referências, bibliografias e fontes sobre o autor, a obra e o período em que foi produzida, são também parte dos instrumentos do nível ou método iconográfico. Fase do significado intrínseco ou conteúdo (nível iconológico): esse último nível se trata mais de uma síntese do que propriamente de uma análise da imagem. Considerando que a descrição seja a função da iconografia, a iconologia se vale dos elementos anteriormente apreendidos para então captar o significado último da obra no contexto em que foi criada, verificar que tipo de mensagem a obra transmitiu para seus contemporâneos. Mais ainda, nessa fase entram na análise os elementos extrínsecos à obra. 3 Aqui entram detalhes sobre a vida do artista, sua formação, os motivos que o levaram a pintar tal tema, os fatos envolvidos na confecção da obra, para quem se destinava, o local em que foi pro- duzida ou em que seria exposta. No caso da pintura de A Última Ceia, podemos reconhecer o fato de a pintura ser destinada ao re- feitório do Convento de Santa Maria das Graças em Milão. Assim, podemos apontar para o fato de Leonardo da Vinci ter escolhido o tema do quadro em conformidade com o local ao qual seria desti- nado por seus compradores, o que revela que a escolha do tema Teorias da imagem e da visão 37 da última ceia se relacionava diretamente ao ambiente no qual o quadro deveria ser exposto. Figura 1 Quadro com referência ao local de exposição He llo w or d/ W ik im ed ia C om m on s Fonte: DA VINCI, L. A Última Ceia. 1945. Pintada têmpera e óleo sobre duas camadas de gesso aplicadas em estuque. 460 x 880 cm. Refeitório de Santa Maria delle Grazie, Milão. Apesar de a apresentação do método de Panofsky parecer em um primeiro momento ser organizado em fases distintas e progressivas, é mais adequado compreender essas fases como níveis interdepen- dentes, que podem ser realizados alternadamente em um mesmo tempo. Assim, a análise iconográfica é um nível da análise iconoló- gica, o que significa que a descrição do tema da imagem poderá ser desenvolvida enquanto se analisam as ligações da imagem com a cultura que a torna possível. Um segundo intelectual de grande importância para o estudo das imagens foi Roland Barthes. Diferentemente de Panofsky, que esta- va situado especificamente no campo da História da Arte, Barthes fora professor de Semiologia Literária no Collège de France na dé- cada de 1970. Sua aproximação com a linguística e os estudos li- terários são centrais para compreendermos como sua atuação no campo das imagens, especificamente da fotografia, foi marcada por uma outra forma de análise, absolutamente baseada nas noções de signo, significante e significado presentes na linguística de Ferdinand de Saussure. 38 Imagem e cultura visual Barthes desenvolveu seus estudos com base na semiologia de- senvolvida por Saussure, ou seja, no estudo dos sistemas de signo e comunicação presentes nas sociedades. A semiologia ou semiótica, nesse sentido, pode também ser compreendida como o estudo do sis- tema de significação presente em qualquer suporte comunicativo – na língua ou fala, na escrita do texto, na fotografia, no monumento, no fil- me etc. (CARDOSO; MAUAD, 1997). É possível compreendê-la, portan- to, como o estudo de discursos presentes em qualquer suporte que ofereça a capacidade de construir significados. Esse aspecto da sua metodologia de estudo é muito importante para entendermos como sua análise das imagens é dependente dos estudos sobre a linguagem e as formas de comunicação. Em sua obra A Câmara Clara (Le Chambre Claire – 1980) encontramos Barthes se dedicando a compreender a estrutura de funcionamento da imagem fotográfica. Estudos anteriores, como A mensagem fotográfica (Le Message Photographique – 1961) e Retórica da Imagem (Rhetorique de l’Image – 1964), já exploravam o caráter semiótico da imagem fotográ- fica. Entretanto, na última obra há um intenso investimento na análise desse tipo de imagem, deslocando o modo como as imagens vinham sendo compreendidas pela iconologia até então. Conforme afirmam Cardoso e Mauad (1997, p. 580), citando a visão de Barthes: para ele, “a fotografia impressa é uma mensagem formada por uma fonte emissora, um canal de transmissão com um ponto de recepção”. Tal mensagem assume vários sentidos, dependendo do canal pelo qual foi expressa. Mas o que transmite não é a realidade, mas sim seu analogon. Neste sentido, a imagem fo- tográfica, tal como todas as artes imitativas (desenhos, pintura, cinema e teatro), é uma mensagem sem código, pois, ao invés de transformar a realidade, na verdade a reduz. O processo de re- duzir a realidade múltipla a imagem resulta, entretanto, de uma escolha que, sem dúvida, deverá ser estabelecida com base em critérios ou regras que pressupõem a existência de um código. Vemos aqui que, diferentemente da iconografia e da iconologia, que propõem uma forma de interpretação da imagem em que os códigos de representação podem ser descritos e recolocados pelo historiador da arte em seu contexto original, na semiótica de Barthes a imagem é uma mensagem sem código. O que significa dizer que a mensagem não possui um código? Significa que, diferente do que ocorre na linguagem escrita ou falada, a imagem não é capaz de predicação (WHITE apud Teorias da imagem e da visão 39 HAGEMEYER, 2012). Em outras palavras, a imagem por si só é incapaz de declarar, discursar ou narrar sobre o que nela se passa. Contudo, ela tem a capacidade
Compartilhar