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O BRASIL E AS OPERAÇÕES DE PAZ Eugenio D in iz 10 . 1 In tr o d u ç ã o O objetivo deste capítulo é com preender os processos e os desafios relacionados à participação brasileira em Operações de Paz da Organiza ção das N ações Unidas (ONU) após a guerra fria1. Para tanto, faz-se um retrospecto da evolução das Operações de Paz, no qual se apresentam al guns im passes e como estes foram solucionados, a partir de docum entos da própria ONU. Em seguida, a participação brasileira nas Operações de Paz é analisada, não em term os de uma discussão de cada uma delas, mas relacio nando essa participação à atuação do Brasil na ONU; ao contexto político no qual ela estava envolvida; ao posicionam ento diplomático brasileiro com relação às próprias Operações de Paz; e às prioridades da política externa brasileira, particularmente após a guerra fria. Na seqüência, exam inam -se as dificuldades da participação brasileira na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Hait (MINUSTAH), liderada pelo Brasil, na qual se identi- 1 Algumas considerações apareceram anteriormente em: DINIZ, Eugênio. O Brasil e a MINUSTAH. Security and Defense Studies Review, v. 5, n. 1, Spring 2005. Dispo nível em: <http://www.ndu.edu/chds/joumal/PDF/2005/Diniz_artide-edited.pdf>. http://www.ndu.edu/chds/joumal/PDF/2005/Diniz_artide-edited.pdf fica iima potencial ruptura da posição tradicional brasileira quanto a Opera ções de Paz. Por fim, na Conclusão, o argumento é retom ado de m odo a pôr em perspectiva o futuro da participação brasileira em Operações de Paz, à luz da política externa brasileira. 1 0 .2 O perações de paz Para alguns, as Operações de Paz (Peacekeeping Operations — PKO) seriam “uma técnica, desenvolvida principalm ente pelas N ações Unidas, para ajudar a controlar e resolver conflitos armados”2, cuja razão de ser de correria da própria concepção de segurança coletiva, que se baseia na idéia de que “a força militar será usada, se necessário, para m anter a paz e a segurança internacional”3. Entretanto, em que p ese a afirmação de que as Operações de Paz se riam inteiram ente consistentes com o ideário de segurança coletiva, o fato é que elas não estavam previstas na Carta da ONU. Sua base jurídica foi sendo construída de forma consuetudinária, a partir de cada caso em par ticular. Indagado sobre a base jurídica para a Primeira Força de Em ergência das Nações Unidas (UNEF I), em Suez, o então Secretário-Geral da ONU, Dag Hammarskjöld, teria respondido que tal base estaria no “Capítulo VI \ 304 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea \ / Volume 2 Acesso em: 11 maio 2005. Agradeço a Antônio Jorge Ramalho Rocha, do Depar tamento de Cooperação da Secretaria de Estudos e Cooperação do Ministério da Defesa, pelo empenho e colaboração. Algumas das idéias foram discutidas anteriormente com John Fishel, Andres Saem, Salvador Ghelfi Raza, Domício Proença Jr., Tiago Campos, Érico Esteves Duarte, Rafael Ávila, Mauro Mosquei- ra, Paulo Brinckmann, Jacqueline Muniz, Wilson Lauria e Marco Cepik. A auto ria do texto, porém, é de minha responsabilidade, principaimente eventuais erros e omissões. 2 GOULDING, Marrack. The evolution of United Nations Peacekeeping. Interna tional Affairs, v. 69, n. 3, July 1993, p. 452; ver também BOUTHROS-GHALI, Bouthros. An Agenda for Peace: preventive diplomacy, peacemaking and pea cekeeping. Report of the Secretary-General pursuant to the statementadopted by the Summit Meeting of the Security Coucnil on 31 January 1992. Organi zação das Nações Unidas, A/47/277 — S/2411, 17 jun. 1992. Disponível em: <http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html>. Acesso em: 26 abr. 2005. § 46. 3 SUTTERLIN, James S. The United Nations and the maintenance of inter national security: a challenge to be met. Westport, Praeger Publishers, 1995. p. 25. http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3 0 5 Capítulo 10 e m eio” — ou seja, as O perações de Paz estariam a m eio caminho entre a “solução pacífica de disputas” (título do Capítulo VI da Carta da ONU) e a “ação com respeito a am eaças à paz, quebras da paz, e atos de agressão” (tí tulo do Capítulo VH — em que se estabelecem , entre outras providências, as condições para o uso da força). Oficialmente, a primeira Operação de Paz da ONU foi a Organização para Supervisão da Trégua das N ações Unidas (UNTSO), estabelecida em 1948 para supervisionar um a trégua entre Israel e seus vizinhos. Contudo, o marco que efetivam ente deu início à dinâmica das Operações de Paz foi o estabelecim ento, em 1956, da U N E FI, desdobrada no Egito após a guerra entre árabes e israelenses naquele ano. Se forem contadas todas as Opera ções de Paz criadas no âmbito da ONU, inclusive aquelas que sucederam m issões anteriores, foram estabelecidas, desde 1948 até abril de 2005, 60 O perações de Paz. Quadro 10.1 — Operações de Paz da ONU — 1948-2005 M i s s a o S lG L A L o c a l I n í c i o F i m United Nations Truce Supervision Organization UNTSO Oriente Médio 1948 United Nations Military Observer Group in India and Pakistan U NM O G IP India / Paquistão 1949 First United Nations Emergency Force 1,1 UNEF 1 Sinai / Faixa de Gaza 1956 1 967 United Nations Observation Group in Lebanon U NO G IL. Líbano 1958 1958 United Nations Operation in the Congo 1-1 O N U C A Congo 1960 1964 United Nations Security Force in West New Guinea UNSF Nova Guiné Ocidental 1962 1963 United Nations Yemen Observation Mission U NYO M lêmen 1963 1964 United Nations Peacekeeping Force in Cyprus 1-1 UNFICYP Chipre 1964 United Nations India-Pakistan Observation Mission rl UNIPO M índia / Paquistão 1965 1966 Mission of the Representative of the Secretary-General in the Dominican Republic 1-1 DOMREP República Dominicana 1965 1966 (continuai \ 2 0 6 2 — 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea Volum e 2 lcontinuaçãoI M i s s ã o S lG L A L o c a l I n í c i o F i m Second United Nations Emergency Force UNEF II Oriente Médio (Suez) 1 9 7 3 19 7 9 United Nations Disengagement Observer Force UNDOF Colinas de Golã 1 9 7 4 United Nations Interim Force in Lebanon UNIFIL Líbano 1 9 7 8 United Nations Iran-lraq Military Observer Group U N IIM O G Irã / Iraque 19 8 8 1 9 9 1 United Nations Good Offices Mission in Afghanistan and Pakistan UNG O M A P Afeganistão / Paquistão 19 8 8 19 9 0 United Nations Angola Verification Mission 1 UNAVEM 1 Angola 19 8 8 1 9 9 1 United Nations Observer Group in Central America 1,1 O N U C A América Central 19 8 9 1 9 9 2 United Nations Transition Assistance Group UNTAG Namíbia 19 8 9 19 9 0 United Nations Iraq-Kuwait Observation Mission U NIK O M Iraque / Kuwait 19 9 1 2 0 0 3 United Nations Advance Mission in Cambodia UNAM IC Camboja 19 9 1 19 9 2 United Nations Observer Mission in El Salvador rl ONUSAL El Salvador 19 9 1 19 9 5 United Nations Angola Verification Mission I I 1-1 UNAVEM II Angola 19 9 1 19 9 5 United Nations Mission for the Referendum in Western Sahara MINURSO Saara Ocidental 19 9 1 United Nations Protection Force UNPROFOR Ex-lugoslávia 19 9 2 19 9 5 United Nations Transitional Authority in Cambodia 1,1 UNTAC Camboja 19 9 2 1 9 9 3 United Nations Operation in Mozambique 1-1 O N U M O Z Moçambique 1 9 9 2 1 9 9 4 United Nations Operation in Somalia 1 U N O S O M 1 Somália 19 9 2 1 9 9 3 United Nations Mission in Haiti a— ------------------------------------------- — U NM IH Haiti 1 9 9 3 19 9 6 (continuai Capítulo 10 Icontinuação) 9 307 :O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z M i s s ä o S lG L A L o c a l I n í c i o F i m United Nations Observer Mission in Liberia rl UNO M IL Libéria 1993 1997 United Nations Assistance Mission for Rwanda ^ UNAMIR Ruanda 1993 1996 United Nations Observer Mission Uganda-Rwanda 1-1 UNO M UR Uganda / Ruanda 1993 1994 United NationsOperation in Somalia II U N O S O M II Somália 1993 1995 United Nations Observer Mission in Georgia U N O M IG Geórgia 1993 United Nations Mission of Observers in Tajikistan U N M O T Tajiquistão 1994 2000 United Nations Aouzou Strip Observer Group1"'1 UNASOG Chade / Líbia 1994 1994 United Nations Mission in Bosnia and Herzegovina1” 1 UNIM IBH Bosnia / Herzegovina 1995 2 0 0 2 United Nations Confidence Restoration Operation 1'11” 1 UNCRO Croácia 1995 1996 United Nations Preventive Deployment force 1*1 UNPREDEP Rep. Ex-lug. da Macedonia 1995 1999 United Nations Angola Verification Mission 1111-1 UNAVEM III Angola 1995 1997 United Nations Transitional Authority in Eastern Slavonia, Baranja and Western Sirmium 1-11” 1 UNTAES Croácia 1996 1998 United Nations Mission of Observers in Prevlaka 1-1 U N M O P Peninsula de Prevakla 1996 2 0 0 2 United Nations Support Mission in Haiti UNSM IH Haiti 1996 1997 United Nations Verification Mission in Guatemala 1,1 M IN U G U A Guatemala 1997 1997 United Nations Transition Mission in Haiti UNTM IH Haiti 1997 1997 United Nations Civilian Police Mission in Haiti M IPO NUH Haiti 1997 2 0 0 0 United Nations Observer Mission in Angola 1-1 M O N U A Angola 1997 1999 (continua, \ 3 0 8 Parte 2 — 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea Volum e 2 (co n tin u a çã o j M i s s â o S lG L A L o c a l I n í c i o F i m United Nations Civilian Support Group UNPSG Croácia 1998 1998 United Nations Mission in the Central African Republic1'"1 MINURCA Rep. Centro-africana 1998 2000 United Nations Observer Mission in Sierra Leone UNOMSIL Serra Leoa 1998 1999 United Nations Transitional Administration in East Timor1' 11” 1 UNTAET Timor Leste 1999 2002 United Nations Interim Administration Mission in Kosovo1” 1 UNM IK Kosovo 1999 United Nations Organization Mission in the Democratic Republic of the Congo M O N U C Rep. Dem. do Congo 1999 United Nations Mission in Sierra Leone1” 1 UNAMSIL Serra Leoa 1999 United Nations Mission in Ethiopia and Eritrea UNMEE Etiópia / Eritréia 2000 United Nations Mission of Support in East Timor rl l” 1 UNMISET Timor Leste 2002 United Nations Mission in Liberia l’11” 1 UNMIL Libéria 2 00 3 United Nations Stabilization Mission in Haiti MINUSTAH Haiti 2 0 0 4 United Nations Operation in Burundi1" 1 ONUB Burundi 2 0 0 4 United Nations Operation in Côte d'Ivoire l*, l” 1 UNO CI Côte dTvoire 2 0 0 4 United Nations Mission in the Sudan i**1 UNM IS Sudão 2 00 5 (* ) Missões de que o Brasil participou com efetivo policial ou militar. ( * * ) Operações baseadas no Capítulo VII da Carta da O N U ou com procedimentos autorizados com base no Capítulo VII. O bservação: as missões sem data de conclusão estavam em curso em 3 0 de abril de 2 00 5 . Fonte: Departamento de Operações de Paz das Nações Unidas (DPKO). Disponível em: <http://www. un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm>. Ao m esm o tem po, uma consideração mais detida da distribuição tem poral do estabelecim ento de Operações de Paz aponta para uma intensa cor relação entre estas e o am biente político predominante. http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm Capítulo 10 Gráfico 10.1 O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z Estabelecimento de Operações de Paz das Nações Unidas por período — 1948-2005 O 1948-1987 0 1988-1999 0 2000-2005 Gráfico 10.2 Média anual de Operações de Paz estabelecidas por período — 1948-2005 2000-2005 Embora tenha havido 60 Operações de Paz ao longo de 57 anos (incom pletos), os gráficos m ostram qne rigorosam ente 2/3 do total foram estabe lecidas entre 1988 e 1999, ou seja, apenas 12 anos, sendo a m édia anual de estabelecim entos de Operações de Paz de 3,33 por ano. Os 40 anos trans corridos entre 1948 e 1987 respondem por pouco mais de 1/5 das Opera ções de Paz, com uma m édia anual exatam ente dez vezes inferior ao perío do 1988-99. Por fim, os aproximadam ente seis anos transcorridos entre 2000 e 2005 viram o estabelecim ento de 11,67% do total das Operações de Paz, com uma m édia anual exatam ente equivalente à m etade da do período 1988-99. Ou seja, durante a guerra fria, houve poucas Operações de Paz; com o arrefecim ento da guerra fria, houve um a explosão de intervenções da ONU; os ataques de 11 de setem bro de 2001 e seus desdobram entos pa recem ter não interrompido o m ovim ento, m as o enfraquecido. Ao longo do tem po, firmou-se o entendim ento de que as Operações de Paz, que envolvem forças dos Estados-m em bros, a serviço das N ações Uni das, seriam caracterizadas pelos seguintes princípios4: a) embora os empregados efetivos nas Operações de Paz pertençam não à ONU, mas aos Estados-m em bros, as Operações de Paz são conduzidas pela ONU, e seus integrantes representam a ela, e não aos Estados-m em bros de origem; b) Operações de Paz só poderiam ser estabelecidas cóm o consenti m ento de todas as partes envolvidas no conflito em questão; c) os membros das Operações de Paz seriam imparciais em relação às partes do conflito; d) os membros das Operações de Paz só poderiam utilizar a força em legítim a defesa. Progressivam ente, contudo, esse entendim ento foi diversas vezes con testado, tanto por necessidades e dificuldades concretas de operações es pecíficas quanto do ponto de vista de seu real significado e im pacto político. A título de exem plo5: a) Se uma Operação de Paz fosse estabelecida a partir de um cessar- fogo, caso um a das partes violasse esse cessar-fogo e atacasse uma outra parte, sem atacar diretam ente as forças a serviço da ONU, o que estas deveriam fazer? A rigor, elas estariam im pedidas de utili zar a força, uma vez que só teriám autorização p a ra em pregá-la em sua legítim a defesa. N esse caso, quais seriam a utilidade e a credibilidade das O perações de Paz com o forma de garantir a paz? \ 32Q Parte 2 — 0 Brasil e os fem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea Volume 2 4 GOULDING, 1993; BRAHIMI, LaMidar. Report of the Panei on United Nations Peaee Operations. Organização das Nações Unidas, A/55/305 — S/2000/809, de 21 de agosto de 2000. Disponível em: <http://www.un.org/peace/reports/pea- ce_operations/docs/a_55_305.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2005. Doravante citado apenas como Relatório Brahimi. 5 A questão foi magistral e sistematicamente explorada tanto por Domício Proença Júnior quanto por Richard Betts, nos quais nossas considerações se inspiram. Trata-se aqui apenas de iluminar alguns pontos, a título de exemplo, para ilustrar as dificuldades e os impasses das Operações de Paz. A respeito, ver PROENÇA JR., Domício. Enquadramento das missões de paz nas teorias da guerra e da po lida. In: BRIGAGÃO, Clóvis; PROENÇA JR., Domício (Org.). Paz e terrorismo. In: http://www.un.org/peace/reports/pea-ce_operations/docs/a_55_305.pdf http://www.un.org/peace/reports/pea-ce_operations/docs/a_55_305.pdf Capítulo 10 b) Altemativarnente, embora as partes não ataquem umas às outras, uma parte ou mais passa a apropriar-se, pela força, da ajuda humanitária que seria distribuída à população por qualquer agência que não as próprias forças a serviço da ONU. Mais uma vez, a restrição de só em pregar a força em legítima defesa impediria as últimas de agir. Tam bém nesse caso, quais seriam a utilidade e a credibilidade das Ope rações de Paz como forma de garantir a segurança da população? c) As partes de um conflito poderiam m anifestar seu consentim ento, de m odo que a Operação de Paz fosse estabelecida. Se, entretanto, essa pausa perm ite o fortalecim ento relativo de um a parte sobre as demais, de tal maneira que, em um segundo m om ento, essa parte retire seu consentim ento, a intervenção das Nações Unidas teria servido apenas p a ra favorecer uma-parte sobre as demais. O que dizer da idéia de imparcialidade n esse caso? d) Se o objetivo for exclusivamente estabelecer a paz, em determinado estágio de um conflito, é bastante plausível que, em algumas circuns tâncias, a maneira mais pragmática de pôr fim à violência seria, então, apoiar a parte mais forte, de m odo que ela, rápida e decisivam ente, se im pusesse sobre as demais; do contrário, pode-se argumentar que a ONU estaria apenas prolongando a luta. Se, no final, a idéia de imparcialidade absoluta for fictícia, não seria, então, o caso de decidir em favor de qual parte a ONU deveria intervir? e) No caso anterior, é evidente que, se as forças a serviço da ONU forem empregadas de maneira a apressar o fim da luta, elas não poderão estar restritas à sua legítim a defesa. Qual deveriam, então, ser os critérios segundo os quais se deveria empregar a força? ' f) No entanto, nada im pede que a parte mais forte em um dado con flito seja a que m enos respeita os Direitos Humanos, ou a que tenha m enos com prom isso com a democracia, ou aquela cujo sucesso po deria implicar maior probabilidade de ocorrência de novos confli tos no futuro. N esse caso, o objetivo da ONU deveria ser o fim das hostilidades, ou o estabelecim ento de uma situação mais favorável aos Direitos Humanos, ou à democracia, ou à estabilidade regional? O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z >. - * * N / SEMINÁRIO DESAFIOS PARA A POLÍTICA DE SEGURANÇA INTERNACIO NAL: MISSÕES DE PAZ DA ONU, EUROPA E AMÉRICAS. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 33-100; BETTS, Richard. The delusion of impartial intervention. Foreign Affairs, v. 73, n. 6, p. 20-33, nov./dez. 1994. \ 222 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea Se isso implicar confrontar a parte m ais forte em um conflito, é evi dente que as forças a serviço da ONU deverão ser mais pesadas, mais bem armadas, mais bem treinadas (e mais caras). g ) Em qualquer das três últimas hipóteses, com o esperar que todas as partes de um conflito m anifestem seu consentim ento? h ) No caso de um conflito intra-estatal ou que envolva, como partes, atores não estatais, a todos os problemas anteriorm ente citados se som a um outro, talvez mais delicado que os dem ais em term os polí ticos e jurídicos: quais partes deveriam m anifestar seu consen timento? Quando se trata de um conflito entre estados, os governos são as partes que podem m anifestá-lo legitim am ente. Mas, digamos, um grupo terrorista ou uma milícia, por não dar seu consentim ento, deve ter poder de veto sobre o estabelecim ento de uma Operação de Paz? Seu consentim ento deve ser buscado — o que implicaria reconhecê-los com o atores políticos válidos? Ao premiar tais grupos com esse reconhecim ento, a ONU não estaria exatam ente sinali zando que, se algum ator quiser ser reconhecido pela ONU, basta recorrer de forma significativa à violência? Isso não seria, antes de mais nada, um estím ulo à vio lência? Bem ou mal, esses problemas foram enfrentados tam bém de maneira consuetudinária, a partir de soluções dadas em casos concretos, em que cada um dos elem entos específicos das Operações de Paz foi ganhando novos sig nificados. Assim, o conceito de legítima defesa, para as forças a serviço da ONU em Operações de Paz, foi deixando de se restringir à defesa de seus in tegrantes para incluir a legítima defesa dos “com ponentes da m issão” (o que incluiria, por exem plo, agências humanitárias) e também a legítima defesa “do mandato da m issão” (significando que as forças a serviço da ONU pode riam ser autorizadas, conforme o caso, a usar da força necessária e suficiente não só para defender a si m esm as e aos outros com ponentes da missão, mas também para executar a missão que lhes foi dada). Por sua vez, a idéia de imparcialidade foi deixando de se referir a uma imparcialidade absoluta com relação às partes de um dado conflito, m as em term os de “conformidade com os princípios” da Carta das N ações Unidas. Por fim, o reconhecim ento de que o consentim ento poderia ser manipulado de inúmeras formas levou à idéia de “Imposição da Paz”6 ou de “Operações de Paz com plexas”7. Volume 2 6 BOUTHROS-GHALI, 1992 7 Relatório Brahimi. O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3B Capítulo 10 Em 1992, o então Secretário-Geral da ONU, Bouthros Bouthros-Ghali, apresentou um relatório chamado de A genda p a ra a P az8, no qual fixou alguns entendim entos e um a racionalização para as atividades da ONU rela cionadas à sua contribuição para a paz e para a segurança internacional. No relatório, a idéia de “M anutenção da Paz” (Peacekeeping) seria um a entre os quatro tipos daquelas atividades, a saber: a) a diplom acia p reven tiva {preven tive diplomacy'), voltada para evitar que disputas escalassem ou se espalhassem ; b) a. pacificação (peacem aking ) , voltada para a construção de acor dos entre as partes de um conflito, por m eio de m edidas pacíficas, conform e o Capítulo VI da Carta da ONU; c) a m anutenção da p a z (peacekeeping), que envolveria o desdo bramento de “pessoal militar ou policial das N ações Unidas”, com “o consenso de todas as partes envolvidas”; d) a construção da p a z após o conflito (post-conflict peace-buil ding), voltada para a construção de um ordenam ento que evitasse um retom o ao conflito9. Entretanto, a A genda p a ra a P a z introduziu um a inovação conceituai: a idéia de unidades de im posição da p a z (peace enforcement un its), as quais estariam voltadas para restabelecer e m anter cessar-fogos que tives sem sido acordados, m as não cum pridos10. A ONU já vinha sendo chamada a desem penhar essa tarefa, a qual seria m uito mais exigente que as m is sões de M anutenção da Paz, tanto em term os de equipam ento quanto de treinam ento. A questão é que, no seu relatório, o então Secretário-Geral distinguia essa tarefa de “Imposição da Paz” — que ele incluía no título de “Pacificação” (Peacem aking) — da tarefa de “M anutenção da Paz” (Pea cekeeping), ressaltando que a Imposição da Paz envolveria arranjos para colocar perm anentem ente à disposição do Secretário-Geral da ONU forças voltadas para essa atividade, com base em dispositivos do Capítulo VII da Carta da ONU. A proposta da Agenda p a ra a P az coincide no tem po com o novo ati- vismo da ONU, já m encionado, no que se refere ao estabelecim ento de Ope 8 BOUTHROS-GHALI, 1992. 9 Ibid., §§ 20-21. 10 BOUTHROS-GHALI, 1992, §§ 44-45. rações de Paz — possibilitado pelos arrefecim ento e fim da guerra fria; e um crescente número de conflitos domésticos, intra-estatais, nos quais a ONU com eçou a atuar. Entretanto, com a A genda p a ra a P a z , ocorre um novo fenômeno: dado o problema relativo ao consentim ento das partes — que, como já dito, é significativamente maior quando atores não estatais estão envolvidos — , foi aum entando o recurso ao Capítulo VII da Carta da ONU como forma de estabelecer Operações de Paz, a partir de decisões obriga tórias do Conselho de Segurança, até m esm o em conflitos dom ésticos. De fato, das 60 Operações de Paz da ONU, 14 (23,33% ) ou são baseadas no Capítulo VII, ou autorizam determ inados procedim entos com base no Ca pítulo VII. Todas essas 14 são posteriores a 1994 — e, portanto, à Agenda p a ra a Paz. Como, entre 1994 e 2005, foram estabelecidas 27 Operações de Paz da ONU, tem -se que as Operações referidas ao Capítulo VII equiva lem a 51,85% do total do período, ou seja, mais da m etade das O perações de Paz da ONU depois de 1994 podem ser consideradas Operações de Im posição da Paz. Essa convergência de fatores trouxe uma série de resistências. Por um lado, o recurso ao Capítulo VII para as Operações de Imposição da Paz gerou em vários países, inclusive no Brasil, uma forte preocupação quanto à cres cente possibilidade de intervenção em assuntos internos por parte da ONU, por intermédio do Conselho de Segurança. Por outro lado, a sugestão da Agenda p a ra a P azde estabelecer forças perm anentem ente à disposição do Secretário-Geral para Operações de Imposição da Paz causou intenso mal-es tar em vários países. Essa multiplicação de resistências custou ao Secretário- Geral Bouthros-Ghali o seu posto, para o qual não foi reconduzido, e — em bora o termo tenha ficado consagrado na literatura — certa má-vontade de alguns países quanto à idéia de Operações de Imposição da Paz. Ao m esm o tem po, a necessidade de enfrentar os desafios postos pela conjuntura política internacional para as Operações de Paz era inevitável; e, se se tratava de diminuir as resistências a elas no interior da ONU, esses desafios precisavam ser enfrentados no âmbito da Organização. Assim, em março de 2000, o Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, encom endou a um grupo de peritos uma ampla revisão das atividades da ONU relacionadas à paz e à segurança, incluindo “recom endações específicas, concretas e prá ticas” para melhorar a condução dessas atividades no futuro. Então, em 17 de agosto de 2000, o Presidente do Painel sobre as Operações de Paz das N ações Unidas, Lakhdar Brahimi, publicou seu relatório, denom inado Rela- \ 214 P arte 2 — O B rasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea Volume 2 O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 315 e Capítulo 10 tório Brahimi11, que é o m ais im portante docum ento da ONU no que se re fere às O perações de Paz. N esse docum ento, entre outros avanços, foram consolidados os novos entendim entos relacionados ao consentim ento, à imparcialidade e à legítim a defesa m encionados anteriorm ente11 12; assumiu- se abertam ente a necessidade de m andatos para as Operações que fossem com patíveis com seus objetivos e consistentes, do ponto de vista militar, com as reais necessidades de seu su cesso13; propuseram -se critérios para avaliação de desem penho, bem com o m edidas para melhorar o desem pe nho em Operações de Paz, em diversas situações14. Refletindo, porém, as dificuldades políticas manifestadas, o Relatório Brahimi não fala em Operações de Imposição da Paz, mas, sim, em “Operações de Manutenção da Paz com plexas”, as quais se distinguiriam das “Operações de Manutenção da Paz tradicionais”15. Os term os Peacekeeping Operations e Peace-enforcement Operations, ou Operações de Paz e Operações de Im posição da Paz, entretanto, já haviam sido consagrados, e continuaram a ter ampla utilização. Ao m esm o tem po, a mudança de terminologia não foi sufi ciente para neutralizar todas as resistências — até m esm o no Brasil. 1 0.3 A POLÍTICA DE PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NAS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU Com relação a dispositivos e institu ições m ultilaterais, a atuação diplo m ática brasileira é m arcada, ao longo do tem po, por certa am bigüidade, am bivalência, pela tentativa de conciliar parâm etros concorrentes e tam bém , historicam ente, por um a oscilação entre posições e perspectivas conflitantes. D esde o com eço do sécu lo XX, a diplomacia brasileira pauta-se pelos esforços de aumentar a m argem de manobra internacional do País. D esde então, a posição predom inante nos círculos diplomáticos brasileiros é que o Brasil seria am plam ente beneficiado pela efetiva implem entação e vigência do Direito Internacional. A lém da própria defesa do Direito Internacional, outros princípios tradicionais da atuação diplomática brasileira podem ser 11 Relatório Brahimi. 12 Relatório Brahimi, §§ 15-28; §§ 48-53. 13 Relatório Brahimi, §§ 56-64. 14 Por exemplo, Relatório Brahimi, §§ 86-91; §§ 109-117; §§ 118-126. 15 Relatório Brahimi, passim. associados a essa posição: anão-intervenção nos assuntos internos dos esta dos; a defesa da solução pacífica das controvérsias internacionais; e a ênfase no desarmam ento geral. Embora se admita que o desarmam ento geral não deve ser esperado para já, a diplomacia brasileira reluta em aceitar iniciati vas que, na sua visão, contribuem para tom ar essa possibilidade ainda mais distante. Durante um longo tem po, havia, ainda, a ênfase na descolonização — a qual, por m otivos óbvios, foi abandonada, tendo sido substituída, mais recentem ente, por uma ênfase na democracia. Outro tem a constante da atuação diplomática brasileira, que perpassou diferentes governos nas mais diversas conjunturas políticas, é o esforço p e la intensificação da preocupação com o desenvolvim ento na agenda políti ca internacional. Há uma preocupação persistente com a denúncia daquilo que se consideram entraves políticos internacionais ao desenvolvim ento dos países pobres, bem como de m ecanism os, institu ições e comportam en tos que tendam a perpetuar o subdesenvolvim ento. A essa constância de tem as, entretanto, não correspondeu um a única maneira de tentar implementá-los. Também desde o início do sécu lo XX, a política externa brasileira oscila entre duas posturas, que alguns analis tas identificam com o am ericanista e globalista. A postura am ericanista se caracterizaria pelo entendim ento de que o aum ento da m argem de m a nobra internacional do Brasil e a viabilização de suas preocupações cons tantes seriam maxim izados por uma maior aproximação política com os Estados Unidos, resguardadas as diferenças claras de in teresses em pontos específicos; em alguns m om entos, essa postura foi qualificada pelo debate político e acadêm ico, um tanto inapropriadamente, com o “alinhamento au tom ático” com os Estados Unidos. Já a postura globalista se caracterizaria pelo entendim ento contrário: de que a margem de manobra e os interesses internacionais do Brasil seriam atingidos mais facilm ente por uma grande diversificação dos seus relacionam entos políticos. É esse conjunto de elem entos que gera a aludida ambigüidade quanto a dispositivos e a instituições multilaterais: em várias ocasiões, julgou-se que esses estariam consagrando situações que divergiriam dos objetivos inter nacionais do Brasil. E ssa am bigüidade pode ser observada já na Liga das N ações. 0 Brasil participou da Liga desde suas primeiras d iscu ssões, em 1919; foi tam bém o primeiro País a abandoná-la, em 1926, em função da entrada da Alem a- \ 325 Parte 2 — 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea \ y Volume 2 O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 317 Capítulo 10 nha — m as não deixou de colaborar com ela em diversas situações, m esm o depois de sua saída. Do m esm o m odo, o Brasil resistiu aos critérios de com posição do Conselho E xecutivo da Liga, por considerar que se criaria um a desigualdade jurídica entre os estados, contrariamente aos princípios do Direito Internacional; em seguida, cedeu n esse ponto, a fim de fazer parte, como membro temporário, do primeiro grupo que comporia o Conselho, em função do prestígio que isso traria e da possibilidade de defender seus interesses; mas ten tou tam bém se tom ar membro perm anente do m esm o Conselho — reconhecendo e consagrando, portanto, aquela desigualdade que anteriorm ente denunciara16. . Quando da criação da ONU, o Brasil reivindicava um assento perm a nente no Conselho de Segurança, pretensão que foi barrada por oposição do Reino Unido e da União Soviética. Não obstante, fez parte, como m em bro não perm anente, do primeiro Conselho de Segurança da Organização. Entre janeiro de 1946 e dezem bro de 1968, o Brasil foi membro não perm a nente do Conselho de Segurança cinco vezes: em 22 anos de Conselho, o Brasil foi membro durante dez anos. Quadro 10.2 — Presença do Brasil no Conselho de Segurança da ONU — 1946-2005 P e r í o d o I n t e r v a l o e n t r e p a r t ic ip a ç õ e s Jan. 19 46 -D ec . 1 9 4 7 Jan. 1 9 5 1 -Dec. 1 9 5 2 3 6 meses Jan. 19 54 -D e c . 1 9 5 5 12 meses Jan. 19 63 -D e c . 1 9 6 4 8 4 meses Jan. 196 7 -D e c . 1 9 6 8 2 4 meses Jan. 19 88 -D e c . 1 9 8 9 2 2 8 meses Jan. 19 9 3 -D e c . 1 9 9 4 3 6 mesesJan. 1 99 8 -D e c . 1 9 9 9 3 6 meses Jan. 2 0 0 4 -D e c . 2 0 0 5 4 8 meses Fonte: O rg an iza çã o das N açõ es Unidas. Disponível em: < h ttp ://w w w .u n .o rg >. 16 Sobre o Brasil na Liga das Nações: GARCIA, Eugênio Vargas. 0 Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer ou não perder. Porto Alegre/Brasília: Editora da UFRGS/Fundação Alexandre de Gusmão, 2000. http://www.un.org Em seguida, o Brasil ausentou-se do Conselho durante praticamente 20 anos. E sse período coincide com a desconfiança, nos círculos diplomáticos brasileiros, em relação às organizações multilaterais, vistas como instrum en tos do “congelam ento do poder mundial”17, na expressão do influente Em baixador Araújo Castro. A atuação brasileira nos organismos internacionais n esse período m arcou-se tam bém por um a forte ênfase no desenvolvim en to e na redução das desigualdades entre os países. A diplomacia brasileira buscou, então, maximizar sua autonomia e sua influência internacionais por m eio de um distanciam ento çom relação às superpotências e aos organis m os, os quais, segundo se entendia, contribuíam para a preservação da situação diferenciada destas; e tam bém por m eio de um a postura interna cional bastante ativa, particularmente perante países em desenvolvim ento. Analistas da política externa brasileira referem -se a esse período com o o da busca de “autonomia pela distância”18 — com a tem ática geral da defesa do Direito Internacional sem pre perm eando a atuação diplomática brasileira. Entretanto, ao final da década de 1980, essa postura com eçou a mudar. Os acontecim entos políticos na antiga União Soviética e, em seguida, no Leste Europeu sinalizavam uma alteração política substantiva na dinâmica política internacional e, eventualm ente, na própria estrutura política in ternacional. E ssa percepção coincide com a progressiva conscientização acerca do fenôm eno da globalização e, no âmbito político dom éstico, com a consciência do esgotam ento de um a política de desenvolvim ento carac terizada por fortes traços protecionistas. Com eça-se a repensar a inserção internacional do Brasil. Uma primeira inflexão observável na política externa brasileira ocorre ao longo da década de 1990. Trata-se da intensificação da atuação brasileira \ 318 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea \ / ” Volume 2 17 ARAÚJO CASTRO, J. A. O congelamento do poder mundial. In: AMADO, Rodri go (Org.). Araújo Castro. Brasília: Editora da UnB, 1982. p. 197-212. 18 FONSECA JR., Gelson. Alguns aspectos da política externa brasileira contem porânea. In: FONSECA JR., Gelson. A legitimidade e outras questões interna cionais: poder e ética entre as nações. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 353-374; VIGEVANI, Tullo; OLIVEIRA, Marcelo Fernandes. A política externa brasi leira na era FHC: um exercício de autonomia pela integração. Trabalho apre sentado no 4o Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ciência Política, mimeo, 2004. Disponível em: <http://www.cienciapolitica.org.br/RI4-Tullo%20 Vigevani%20e%20Marcelo%20Femandes%20de%2001iveira.pdf>. Acesso em: 4 ago. 2004. http://www.cienciapolitica.org.br/RI4-Tullo%20Vigevani%20e%20Marcelo%20Femandes%20de%2001iveira.pdf http://www.cienciapolitica.org.br/RI4-Tullo%20Vigevani%20e%20Marcelo%20Femandes%20de%2001iveira.pdf O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 319 Capítulo 10 em organismos multilaterais, os quais deixam de ser percebidos com o in s trum entos de perpetuação da dom inação política das potências e passam a ser identificados com o espaço de aum ento da margem de manobra do Brasil, até m esm o relativam ente às potências — postura que analistas vêm chamando de “autonom ia pela participação”19 ou, então, “autonom ia pela integração”20. Com efeito, ruma das primeiras m anifestações dessa m udança de postura foi, claramente, o retom o ao Conselho de Segurança da ONU, em janeiro de 1988, com m andato até dezem bro de 1989. D esde então, o Brasil retom ou ao Conselho de Segurança por mais três períodos: janeiro de 1993 a dezembro de 1994; janeiro de 1998 a dezem bro de 1999; e janeiro de 2004 a dezem bro de 2005. A lém disso, desde o início da década de 1990, o Brasil retom a seu antigo pleito de se tom ar membro perm anente do Conselho de Segurança, na esteira de um processo de reformulação da ONU, o qual com eça a ser identificado com o necessário. Entretanto, essa nova presença perante as N ações Unidas não im plica o abandono de tradicionais reservas da diplomacia brasileira. Dois pontos, em particular, m erecem destaque: de um lado, perm anece a resistência contra qualquer postura ou atitude que implique algum grau de relativização do princípio da não-intervenção em assuntos internos de outros países; de ou tro, a insistência de que as questões do desenvolvim ento e da redução das desigualdades internacionais fossem tratadas, no interior da ONU, de m odo sem elhante às questões de paz e de segurança. E ssas ressalvas podem ser facilm ente observáveis na reação de alguns diplomatas à A genda p a ra a Paz, do então Secretário-Geral da ONU, Bouthros Bouthros-Ghali. De um lado, houve m anifestações em favor de uma “Agenda para o Desenvolvim ento”21; de outro, o Brasil manifestava for tes reservas com relação à idéia de Operações de Imposição da Paz, basea das no Capítulo VII da Carta da ONU, preferindo sempre as Operações de Manutenção da Paz, com consentim ento das partes. No caso das primeiras, o Brasil sempre insistiu em que elas fossem estabelecidas multilateralmen- te, com amplo consenso, e salientando que essa paz seria sempre frágil se 19 FONSECA JR., 1998. 20 VIGEVANI; OLIVEIRA, 2004. 21 Por exemplo: CARDOSO, Afonso José Sena. O Brasil nas Operações de Paz das Nações Unidas. Brasília: Instituto Rio Branco/Fundação Alexandre de Gus mão, 1998.168p; ver também FONSECA JR., 1998. não houvesse o enfrentamento concomitante das questões que, segundo a diplomacia brasileira, seriam as causas do conflito — isto é, o subdesenvolvi m ento, a pobreza e as desigualdades sociais e econômicas. Mesmo com tudo isso em vista, permanece a preocupação quanto à interferência indevida em assuntos internos, bem como a preocupação de que tais m ecanism os fossem utilizados por grandes potências, em particular pelos Estados Unidos, como instrumentos de políticas unilaterais22. Essas considerações explicam um aparente paradoxo. Entre 1956 e 1968, o Brasil participou de seis das oito m issões estabelecidas no período, ou seja, de 75% das Operações de Paz da ONU23. Entre 1968 e 1987 — p e ríodo em que o Brasil não fez parte do Conselho de Segurança — , foram estabelecidas três Operações de Paz, e o País não participou de nenhu ma. De 1988 até 2002, quando o Brasil passou a participar regularmente do Conselho de Segurança, foram estabelecidas 42 novas Operações de Paz, e o Brasil participou de 18, ou seja, de 42% do total. Assim, comparando-se os dois períodos em que o Brasil engajou-se na ONU, sua participação em Operações de Paz é m enor no período em que tem m aiores ambições pe rante a Organização. \ 3 2 0 ^arte 2 - 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea Volume 2 22 A respeito da visão brasileira sobre paz e segurança na ONU, ver MELLO, Va- lérie de Campos. Paz e segurança na ONU: a visão do Brasil. In: BRIGAGÃO, Clóvis; PROENÇA JR., Domício (Org.). O Brasil e o mundo: novas visões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. p. 163-185. 23 Considerações semelhantes às deste parágrafo foram apresentadas anterior mente por Clóvis Brigagão e Domício Proença Jr. Entretanto, há discrepância entre nossos dados e os apresentados por eles. Essa divergência explica-se por eles incluírem nas suas análises outras missões de que o Brasil participa ou participou, por exemplo, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ao passo que aqui só sãocomputadas as Operações oficialmente reconhecidas pela ONU como tais. A participação brasileira também foi estabelecida com base nos dados da ONU — disponíveis em: <http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text. htm>. Acesso em: 26 abr. 2005. Os dados são recortados e agregados diferen temente aqui. Ver BRIGAGÃO, Clóvis; PROENÇA JR., Domício. Concertação múltipla: a inserção internacional de segurança do Brasil. Rio de Janeiro: Fran cisco Alves, 2002. p. 118-125. Essa diferença explica ainda a discrepância entre as considerações feitas aqui e as apresentadas em outro texto de nossa autoria, no qual nos baseamos diretamente no texto de Brigagão e Proença. A respeito, ver DINIZ, 2005. http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 321 Capítulo 10 \ A questão é que o aum ento das M issões de Paz da ONU desde 1989 coin cide com a entrada em cena das operações de caráter impositivo, baseadas no Capítulo VII da Carta da ONU, a que o Brasil resiste intensam ente. Com efeito, o País só passou a participar de m issões com mandato coercitivo a partir de 1999, no Timor Leste. Isso é bastante sintomático: sobretudo des de 1988, u m a característica da participação brasileira em Missões de P az é que ela se dá priricipalm ente em pa íses da A m érica L atina ou de língua portuguesa. Das 18 O perações de Paz da ONU de que o Brasil participou n esse período, dez — ou seja, 55,6% — foram na América Latina ou em países de língua portuguesa. O Brasil claramente privilegia a partici pação nas áreas que considera prioritárias para a política externa. Ao se pôr em perspectiva o processo de aproximação com os países mencionados, o qual foi acelerado a partir da década de 1990, pode ser cons tatada a conexão, ainda que indireta, entre a participação brasileira em Ope rações de Paz e outras prioridades da política externa brasileira. A outra grande marca da nova postura internacional brasileira a partir da década de 1990 é a sua acelerada e intensa aproximação política com a América Latina. Consciente da necessidade de abrir seus m ercados à com petição internacional, mas tem endo fazê-lo de maneira desordenada e em detrimento à economia do País, além de pressionado pela “Iniciativa para as Américas” QPA), lançada pelo Presidente George H. W. Bush — e que depois se converteria na proposta de uma Área de Livre Comércio das Américas ÇAlca) — , e consoante o disposto na Constituição Brasileira, segundo a qual o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos po.vos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”24, o País inicia um intenso processo de aproximação com os países dessa região, em um exercício bastante proativo de iniciativa política. Na verdade, e sse processo de aproximação tem raízes anteriores. Em 1979, após o equacionam ento da controvérsia das Hidrelétricas de Corpus e Itaipu, e após a Guerra das FalMands-Maivinas em 1982, tem início um forte processo de aproximação entre Brasil e Argentina, outrora rivais históricos no continente25. E sse processo, que envolveu acelerados m ecanism os de 24 Art. 4o, parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil. 25 Sobre a aproximação entre Brasil e Argentina, ver CAMARGO, Sonia de; VAZQUEZ OCCAMPO, José Maria. Autoritarismo e democracia na Argentina e Brasil: \ / ' Volume 2- -.' criação de confiança mútua, até m esm o em questões de defesa e de seguran ça e, particularmente, em assuntos nucleares, resultou em vários tratados de cooperação bilateral, dando um salto multilateral com o Tratado de Assun ção, em 1991, o qual criou o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), que incluía, originalmente, além de Brasil e Argentina, o Paraguai e o Uruguai26. A aceleração da criação do M ercosul refletia o m ovim ento exigido da diplomacia brasileira no início da década de 1990. A consciência do esgota m ento do m odelo anterior de desenvolvim ento exigia um a nova abertura ao com ércio exterior — o que implicava a criação urgente de novos m ercados para produtos brasileiros, de m odo a evitar que um esperado crescim ento das im portações resultasse em déficits desastrosos na balança comercial brasileira. A América Latina parecia, então, o espaço mais evidente e pro missor, uma vez que, como destaca Vaz, a taxa de crescim ento do com ércio intrarregional fora, na década de 1970 e início da década de 1980, superior à taxa de crescim ento do com ércio internacional27. Entretanto, a IPA, anun ciada pelo Presidente dos Estados Unidos em junho de 1990, poderia anular essa oportunidade, uma vez que a prom essa de maior acesso ao m ercado norte-am ericano poderia ser m uito tentadora aos vizinhos latino-america nos do Brasil, o que diminuiria a capacidade de negociação comercial brasi leira. De fato, a proposta de uma Área de Livre Comércio em butida na IPA fora concebida como um conjunto de acordos bilaterais entre os Estados Unidos e cada um dos países da região28. E ssa preocupação era reforçada pela quase sim ultaneidade entre o anúncio da IPA e das negociações entre o M éxico e os Estados Unidos — as quais, posteriorm ente, com a inclusão do Canadá, desembocariam no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que entraria em vigor em Io de janeiro de 199429. A IPA não vingou, mas a idéia de uma Área de Livre Comércio das Am é ricas voltou à tona na I Cúpula Presidencial das Américas, realizada em \ 3 2 2 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea uma década de política exterior (1973-1984). São Paulo: Convívio, 1988 (Cole ção Política e Estratégia). 26 Sobre a construção do Mercosul, ver VAZ, Alcides Costa. Cooperação, inte gração e processo negociador: a construção do Mercosul. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (EBRI), 2002. 27 Ibid.,p. 74. 28 ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. A Alca na política externa brasileira. Política Externa, v. 10, n. 2, p. 7-20, set./out./nov. 2001. VAZ, 2002, p. 103.2 9 Miami em dezembro de 1994. Novam ente, a proposta é recebida M am ente pelo Brasil. A questão da Alca se tom aria um a das mais intensas no debate público em política externa brasileira em todos os tem pos. Entidades na cionais de grande porte, com o a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), apoiaram plebiscitos informais sobre a Alca, e 0 então candidato à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmara, em 2002, que a Alca se assem elharia antes a um a forma de anexação do que de integração30. A percepção generalizada de que a Alca seria contrária aos interesses do País levou, de um lado, à protelação da sua criação e operacionalização, e, de outro, a iniciativas conjuntas que aum entassem a capacidade de nego ciação do Brasil. A intensificação da criação do M ercosul era instrum ental n esse processo, assim com o a assinatura, entre 0 M ercosul e a União Eu ropéia, de um Acordo Quadro de Cooperação Inter-regional, em dezembro de 1995. Entretanto, essa postura de protelação sofre uma inflexão por ocasião da III Cúpula Presidencial das Américas, em Québec, em 2001. Começou a evidenciar-se que a protelação brasileira não impedira o avanço das negocia ções; n esse caso, a pior situação, para o Brasil, não seria a criação da Alca, mas, sim, a criação da Alca sem sua presença, ou sem que o País pudesse garantir alguns de seus interesses na negociação. Além disso, consolidara-se a percepção de que nem todos os segm entos da atividade econôm ica sairiam prejudicados com a criação da Alca; ao contrário, alguns deles claramente se beneficiariam, e ainda poderia haver um resultado agregado benéfico, à medida que os custos de insumos importados caíssem. Por fim, as alternati vas que haviam sido consideradas ao longo desses anos revelaram-se m enos promissorasdo que pareciam à primeira vista31. D esse m odo, a nova posição com relação à Alca exigia do Brasil um renovado esforço de negociação e uma tentativa de reconstrução do seu poder de barganha para essa negociação. Não por acaso, o final do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso foi caracterizado por uma rein- tensificação da aproximação com a América Latina. Quando o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva tom ou posse, em Io de janeiro de 2003, a política externa brasileira parecia retomar praticam ente O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 323 ; Capítulo 10 \ 30 Esse discurso mudou após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva como Presidente da República. Seguiu-se aqui, em linhas gerais, a exposição de ALBUQUERQUE, 2001, p. 15-18.31 \ / ' Volume 2•.. * os m esm os pontos do período im ediatam ente anterior, mas com uma reno vada assertividade, tentando deixar para trás o que se julgava um a postura defensiva da política externa do Presidente Fernando Henrique Cardoso32. Em primeiro lugar, já no seu discurso de posse, o Presidente Lula afir mava que sua política externa seria “orientada por um a perspectiva hum a nista” e “instrum ento de desenvolvim ento nacional”, devendo “contribuir para a m elhoria das condições de vida da m ulher e do hom em brasileiros”. Citando especificam ente, e n essa ordem, as negociações em tom o da Alca, entre o M ercosul e a União Européia e na Organização Mundial do Comér cio (OMC), o Presidente defendia o com bate ao protecionism o, a busca da eliminação dos “escandalosos” subsídios agrícolas dos países desenvolvidos e das restrições às exportações de produtos industriais brasileiros. Em se guida, afirmava claram ente que a principal prioridade de seu governo seria “a construção de um a América do Sul politicam ente estável, próspera e unida, com base em ideais dem ocráticos e de justiça social”, enfatizando que isso exigiria um a “ação decidida de revitalização do M ercosul”, afirma do explicitam ente com o “sobretudo um projeto político”, o qual repousa em alicerces económ ico-com erciais. A partir do M ercosul, e “desde que chama dos e na m edida de nossas responsabilidades”, o Brasil se disporia a con tribuir com vários dos vizinhos na América do Sul que estivessem vivendo situações difíceis, “para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos dem ocráticos e nas normas constitucionais de cada país”, estendendo ainda a todos os países da América Latina esse “em penho de cooperação concreta e de diálogos substantivos”. Além disso, o Presidente Lula afirmou que pretendia ter com os Esta dos Unidos uma “parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito m útuo”; o interesse de aprofundar o entendim ento e cooperação com países desenvolvidos, como os estados-m em bros da União Européia e o Japão; e o interesse de aprofundar as relações com “grandes nações em desenvolvim ento”, como a China, a índia, a Rússia (s ic ) e a África do Sul. Reafirmou, ainda, os laços com o continente africano. Por fim, o Presidente tratou de sua intenção de “estimular os incipien tes elem entos de multipolaridade da vida internacional contem porânea”, defendendo a “democratização das relações internacionais sem hegem o- \ ^ 2 4 PQrte 2 — 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea 32 Ver, por exemplo: VAZ, Alcides Costa. 0 governo Lula: uma nova política ex terior? Brasília, 2003, mimeo. Capítulo 10 nias de qualquer espécie”; de valorizar organizações multilaterais, “em espe cial as Nações Unidas”, dizendo que as resoluções do Conselho de Segurança devem ser fielm ente cumpridas e, finalm ente, defendendo “um Conselho de Segurança reformado, representativo da realidade contemporânea, com p a í ses desenvolvidos e em desenvolvim ento das várias regiões do m undo entre os seus membros perm anentes"33. No geral, os m esm os tem as foram retom ados no discurso de p osse do Ministro das R elações Exteriores, Celso Amorim, tam bém em I o de janeiro de 2003. Algumas ênfases, entretanto, são interessantes de destacar. Em primeiro lugar, 0 Chanceler afirmou que 0 Brasil teria “um a política exter na voltada para 0 desenvolvim ento e para a paz”, nessa ordem, afirmando assim a centralidade da questão do desenvolvim ento. Ao falar da África, m encionou explicitam ente Angola e Moçambique, tendo ainda enfatizado, no m esm o parágrafo, que valorizaria a “cooperação no âmbito da Comuni dades dos Países de Língua Portuguesa (a CPLP), inclusive com 0 seu mais novo membro, 0 Timor L este”. Observam-se, então, nítidos traços de continuidade — embora afirmadas de maneira marcadamente assertiva — e algumas nuances significativas. E s tabelece-se claramente a prioridade das negociações comerciais e da intensa atuação política, a partir do Mercosul, nos países da América Latina, agora com uma ênfase especial em seus vizinhos mais imediatos, na América do Sul — embora a expressão não conste nos discursos de posse, após a pos se do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva passa-se, até m esm o, a falar em “liderança brasileira na América do Sul”, sem que isso tenha suscitado, até 0 momento, m anifestações de desagrado significativas por parte dos países vizinhos. Reenfatizam-se os laços com os países africanos e de língua portu guesa, áreas tradicionais de presença política brasileira. Por fim, no âmbito da ONU, afirma-se a prioridade política da Organização e de seu Conselho de Segurança, reformulado para incluir “países em desenvolvim ento das várias regiões do mundo entre seus membros perm anentes” — base da pretensão brasileira a um assento perm anente no Conselho. No que se refere a Operações de Paz, observa-se uma aparente reto m ada da participação brasileira após a p osse do Presidente Lula: das cinco novas O perações de Paz da ONU, o Brasil integrou três — Libéria (TTNMTT.), O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 325 / 33 Discurso de posse do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em Io de janeiro de 2003. Itálicos acrescentados. Côte cTIvoir (UNOCI) e Haiti (MESÍUSTAH). Pareceria pouco para afirmar com certeza um a nova tendência, m as M indícios de um a expansão do interes se brasileiro: embora Libéria e Côte d lvoir estejam na costa ocidental da África, e o Atlântico Sul seja uma tradicional área de in teresse brasileiro, desde a criação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, o Brasil não havia participado, por exem plo, das m issões em Serra Leoa de 1998 e 1999 (UNOMSIL e UNAMSIL, respectivam ente). Por sua vez, as duas Operações de Paz estabelecidas de 2003 em diante sem participação do Brasil foram no Burundi (ONUB) e no Sudão (ONMIS) — países africanos, m as que não pertencem ao Atlântico Sul. Já o latino-americano Haiti estaria claram ente na área prioritária do Brasil. Entretanto, a ONU havia estabelecido anteriorm ente quatro m issões para o Haiti — em 1993, em 1996 e duas em 1997 (respectivamente, UNMIH, UNSMIH, MEPONUH e UNTMIH) — , e o Brasil não havia participado de ne nhuma delas. Mas a participação brasileira na MINUSTAH, de 2004, traz um a inovação realm ente significativa para a política brasileira de participa ção em Operações de Paz: no Haiti, o Brasil aceitou não apenas participar, mas liderar uma Operação de Paz referida ao Capítulo VII da Carta da ONU. O ponto é importante e m erece ser explorado. 10.4 A PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NA MINUSTAH Oficialmente, a participação brasileira na Missão de Estabilização das N ações Unidas no Haiti (MINUSTAH) teria nascido de um convite feito pelo Presidente da França, Jacques Chirac, em 4 de março de 200434. O telefo nem a teria partido do Presidente Lula para tratar de um pedido feito ao Presidente francês de que este avaliasse um a proposta de flexibilização das regras do Fundo Monetário Internacional (FMI) para os países emergentes. Na ocasião, entretanto, o Presidente Chirac teria levantado o tem a da crise \ 3 2 6 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a ag en c ia in ternacional c o n tem p o rân ea Volume 2 34 A legislação que rege a decisão é a seguinte: Lei n. 2.953, de 17 de novembro de 1956, e Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999, cuja redação foi altera da pela Lei Complementar n. 117, de 3 de setembro de 2004. Agradeço a Dorival Bogoni essas indicações. Uma discussão geral do processo decisório brasileiro para Operações de Paz pode ser encontrada em: MATHEUS E SOUZA, André; ZACCARON, Beatriz. A participação do Brasil em missões de manutenção de paz: o caso do Haiti. Trabalho apresentado ao II Encontro Interinstitucional de Análise de Conjuntura Internacional. Rio de Janeiro, 9 e 10 de novembro de 2004. O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3 2 7 e Capítulo 10 no Haiti e teria dito ao Presidente Lula que gostaria de ver nas m ãos do Brasil o comando de um a força de paz das N ações Unidas, a ser criada dali a aproximadam ente três m eses. O Presidente Chirac teria dito ainda que esta era a vontade do Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan. O Presidente Lula teria dito, então, dispor de aproximadam ente 1.100 m ilitares35 que po deriam participar da futura m issão36. Entretanto, três dias antes, em I o de março de 2004, o Brasil já havia m a nifestado in teresse em participar da m issão que seria caracterizada com o de M anutenção da Paz, a qual substituiria a Força Multinacional Provisória estabelecida pela Resolução n. 1.529, de 29 de fevereiro de 2004 — embora não tenha havido, na ocasião, m anifestação pública de in teresse em com an dar a m issão. N essa ocasião, afirmava-se que a decisão final seria tom ada pelo Itamaraty e pelo M inistério da D efesa “nos próxim os dias”37. Sendo assim, o convite do Presidente Chirac, na verdade, parece decorrer de uma m anifestação brasileira in icia l— até porque o Presidente Lula pôde im edia tam ente informar ao Presidente Chirac a disponibilidade de 1.100 militares, o que indica que já houvera consulta prévia ao Ministério da D efesa e ao Ministério das Relações Exteriores. Essa distinção é im portante porque m ostra que a decisão brasileira não decorreu de nenhum constrangim ento que supostam ente pudesse advir da recusa em participar da m issão. Ao contrário, a dinâmica parece revelar antes uma iniciativa brasileira, um in teresse claro em participar, apesar das dificuldades já m encionadas anteriorm ente, particularmente no que se re fere ao problema do Capítulo VII da Carta da ONU. Ao Ministério da D efesa coube ainda o levantam ento dos custos da ope ração, ao passo que ao Ministério do Planejam ento, Orçamento e Gestão coube avaliar a liberação de crédito extraordinário para cobrir as despe 35 Na Mensagem Presidencial enviada à Câmara dos Deputados em 6 de maio de 2004, o Presidente Lula solicita autorização para o envio de 1.200 soldados — 100 a mais, do que o proposto originalmente. 36 BECK, Martha; OLIVEIRA, Eliane. Brasil pode comandar missão no Haiti. O Globo, 5 mar. 2004, p. 38; MONTEIRO, Tânia. Brasil deve comandar força de paz no Haiti. O Estado de S. Paulo, 5 mar. 2004b, p. A-14; WESTIN, Ricardo. Brasil poderá comandar força de paz no Haiti. Folha de S. Paulo, 5 mar. 2004, p. A-12. 37 OLIVEIRA, Eliane. Forças brasileiras só irão num segundo momento. O Globo, 2 mar. 2004, p. 27. sas — m esm o havendo a expectativa de reem bolso parcial das despesas pela ONU38. Além disso, embora não haja referência pública a consultas ao Ministério da Fazenda, é praticam ente im possível que este não tenha sido consultado: tanto a centralidade política do Ministro da Fazenda na atual administração quanto a importância m áxim a atribuída à estabilidade m a croeconôm ica praticam ente im pedem que decisões d esse porte sejam to madas à revelia do Ministro da Fazenda. É tam bém bastante provável que tenha havido consultas com o Ministério da Justiça e/ou com o Advogado- Geral da União a respeito de aspectos jurídicos da questão; entretanto, não há m enção pública ao assunto. A proposta encontrou resistência até m esm o na base govem ista no Congresso Nacional. Alguns congressistas e intelectuais salientavam as acu sações feitas pelo ex-Presidente haitiano e afirmavam que o Brasil estaria legitim ando “a política imperialista e intervencionista de Bush”39. Não obs tante, no dia 6 de maio de 2004, o Presidente Lula encam inhou à Câmara dos Deputados uma M ensagem Presidencial (MSC 205/2004)40 em que so licitou a autorização para enviar 1.200 soldados ao Haiti41. A m ensagem foi debatida em sessão conjunta da Comissão de R elações Exteriores e D efesa Nacional e da Comissão de Constituição e Justiça e encaminhada ao Plená rio da Câmara para votação. Antes dos debates e votação, no dia 12 de maio de 2004, houve uma audiência pública do Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e do então Ministro da Defesa, José Viegas Filho, em sessão conjunta da Comissão de Relações Exteriores e D efesa Nacional da Câmara dos Deputados e do Senado Federal42. Durante o debate, houve críticas da oposição, a qual salientava o fato de o Brasil ir ajudar a m anter a ordem em *. ^ 2 8 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea Volume 2 38 GODOY, Roberto. Brasileiros devem entrar em combate no Haiti. O Estado de S.Paulo, 6 maio 2004, p. A-20. 39 SANTOS, Klécio. Missão do Brasil no Haiti enfrenta resistência no PT. Zero Hora, 21 abr. 2004. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br>. 40 Agradeço imensamente à Sra. Jaci Teixeira Caetano de Almeida, da Subsecre tária de Informações da Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal, a cujas presteza e solicitude devo o acesso às informações acerca da tramitação da Mensagem Presidencial no Senado Federal. 41 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Câmara analisa envio de soldados para o Haiti. A Semana, 10 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. 42 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Ministros defendem envio de soldados para o Haiti. Tempo Real, 12 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. http://www.defesanet.com.br http://www.camara.gov.br http://www.camara.gov.br O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z Capítulo 10 um país estrangeiro, enquanto no Brasil haveria tam bém graves problemas de segurança pública; levantou-se a possibilidade de que o Brasil estaria sendo usado para defender in teresses dos Estados Unidos e da França; e m anifestou-se insatisfação quanto ao fato de as cores da ONU terem sido pintadas nos equipam entos antes da aprovação do Congresso43. Em seguida, houve a votação do requerimento de urgência para a Men sagem 205/2004, no Plenário da Câmara. Na primeira votação, a urgência foi rejeitada por pedido de verificação de quórum realizado pelo D eputa do Fernando Gabeira (na ocasião, sem partido-RJ), contrário ao envio do contingente, por considerar que o Haiti seria área de influência dos Estados Unidos, Canadá e França, e que o dinheiro a ser gasto na m issão deveria ser gasto no Brasil44. Na sessão seguinte, no m esm o dia, entretanto, a urgência foi aprovada45. No dia seguinte, a matéria foi aprovada por votação simbólica — sem registro de votação individual — , m ediante acordo entre os líderes dos par tidos. O Partido da Frente Liberal (PFL), o Partido da Social Dem ocracia Brasileira (PSDB), o Partido Dem ocrático Trabalhista (PDT), da oposição; e o Partido Popular Socialista (PPS) e o Partido Verde (PV), da base gover- nista, votaram contra a aprovação da medida, com base nos argum entos já m encionados46. Aprovada pelo Plenário, a M ensagem foi convertida no Pro jeto de D ecreto Legislativo (da Câmara) n. 1.280/2004 e encaminhado ao Senado Federal. Após exam e da Comissão de Relações Exteriores e D efesa Nacional e da Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa Legislativa,e já convertido no Projeto de D ecreto Legislativo (do Senado) n. 568/2004, o Projeto foi subm etido à votação do Plenário do Senado no dia 19 de maio de 2004, tendo sido, então, aprovado, em um total de 48 votantes, por 38 votos a favor e 10 contra. Foi promulgado, assim, o Decreto Legislativo n. 207, de 43 SCOLESE, Eduardo; SOLIANI, André. Brasil usa soldo para pagar missão no Haiti. Folha de S.Paulo, 13 maio 2004, p. A-15. 44 MADUENO, Denise. Câmara rejeita urgência sobre envio de tropas. O Estado de S.Paulo, 13 maio 2004, p. A-18. 45 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Deputados aprovam urgência para tropas no Haiti. Tempo Real, 12 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. 46 KRAKOVICS, Fernanda et al. Câmara aprova envio de soldados brasileiros ao Haiti. Folha de S.Paulo, 14 maio 2004, p. A-10; MADUENO, Denise. Câmara aprova o envio de tropas ao Haiti. O Estado de S.Paulo, 14 maio 2004, p. A-15; AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Deputados aprovam envio de tropas ao Haiti. Tempo Real, 13 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. http://www.camara.gov.br http://www.camara.gov.br 19 de maio de 2004, que autoriza o envio do contingente de 1.200 militares brasileiros para a M3NUSTAH. À primeira vista, a decisão brasileira de participar da MINUSTAH e de liderá-la, criada pela Resolução n. 1.542, de 30 de abril de 2004, pareceria fácil de entender. O governo brasileiro tem claram ente a intenção de obter um assento perm anente no Conselho de Segurança das N ações Unidas e, embora as autoridades diplomáticas brasileiras relutem em publicam ente relacionar a participação brasileira em tal m issão ao objetivo do assento perm anente no Conselho, há relatos na imprensa de declarações de diplo m atas de outros países que afirmam ser essa participação a “prova de fogo” da candidatura do Brasil ao assento perm anente47. Autoridades militares e m embros do Ministério da D efesa, por sua vez, têm m enos relutância em associar os dois tem as. Também no Congresso Nacional, a associação entre as duas questões é clara, sendo feita explicitam ente por lideranças gover- nistas, por exem plo, o Deputado Professor Luizinho, na ocasião líder do governo na Câmara dos Deputados48. Assim, a decisão brasileira pareceria ser um a decorrência direta, linear, consistente, de um objetivo geral da política externa brasileira. Um olhar mais detido, entretanto, perceberá um delicado jogo de “idas e vindas”, decisões aparentem ente inconsistentes, acentuadas ênfases em sutilezas interpretativas as quais sugerem que a decisão foi mais com plexa do que pareceria à primeira vista. Por exem plo, embora o Brasil tenha vota do a favor da Resolução n. 1.529, de 29 de fevereiro de 2004, que cria a For ça Multinacional Provisória (M ultinational ín terim Force'), não aceitou participar dessa Força, aparentem ente por considerar que tal Resolução teria estabelecido um a Operação de Imposição da Paz (baseada no Capítu lo VII da Carta das N ações Unidas): o Brasil só aceitaria participar de uma Operação de M anutenção da Paz (supostam ente baseada, portanto, no Ca pítulo VI da Carta), em um m om ento posterior49; esse m om ento posterior seria o estabelecido pela Resolução n. 1.542. ' 3 3 0 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternac iona l co n tem p o rân ea Volume 2 47 Ver, por exemplo: CHADE, Jamil. Missão no Haiti pode ajudar País no CS da ONU. O Estado de S.Paulo, 5 maio 2004, p. A-16. 48 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Câmara analisa envio de soldados para o Haiti. A Semana, 10 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/intemet/ agencia/materias.asp?pk=49862&pesq=Haiti>. 49 OLIVEIRA, 2004, p. 27. http://www.camara.gov.br/intemet/agencia/materias.asp?pk=49862&pesq=Haiti http://www.camara.gov.br/intemet/agencia/materias.asp?pk=49862&pesq=Haiti O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 331 Capítulo 10 \ / O problema é que tam bém nesta últim a resolução o Conselho de Segu rança afirma estar agindo com base no Capítulo VH. A interpretação do governo brasileiro é de que não há qualquer inconsistência: na Resolução n. 1.529, a referência ao fato de que o Conselho de Segurança está “agindo com base no Capítulo VII” da Carta é feita já no preâmbulo dessa Resolu ção; já na Resolução n. 1.542, esta referência ao Capítulo VH da Carta é feita apenas no § 7 — o que indicaria, na interpretação do governo brasileiro, que apenas esse parágrafo é baseado no Capítulo VII, e não toda a Resolu ção n. 1.542; de acordo com esta interpretação, portanto, a MINUSTAH não estaria baseada no Capítulo VII, sendo uma Operação de M anutenção da Paz50. Não obstante essa dificuldade, não aceitar a liderança ou não aceitar participar da MINUSTAH talvez fosse um golpe fatal na pretensão brasileira de ocupar um assento perm anente no Conselho de Segurança51. É preciso destacar quanto a situação é potencialm ente embaraçosa para o Brasil: em 31 de julho de 1994, foi votada no Conselho de Segurança a Resolução n. 940, aprovada por 12 votos contra duas abstenções, estan do Ruanda ausente. As abstenções foram China e, ironicamente, o Brasil: o governo brasileiro julgava que a Resolução deveria basear-se no Capítulo VI52. E ssa tensão tem obrigado as autoridades brasileiras a um significativo esforço retórico, que sistem aticam ente relaciona a presença das Forças da ONU a um concom itante engajamento internacional no enfrentam ento das causas do conflito no Haiti: a fom e, a pobreza, a fragilidade das institu ições dem ocráticas53. Além disso, afirma-se, pelo m enos dom esticam ente, a in 50 Um outro exemplo de remissão ao Capítulo VII não nas cláusulas preambulares, mas apenas em um parágrafo posterior, foi a UNMISET, estabelecida para o Ti mor Leste em 2002, de que o Brasil também participa. Entretanto, a UNTAET, estabelecida pela Resolução n. 1.272, de 25 de outubro de 1999, de que o Brasil também participou, foi claramente baseada no Capítulo VH, já nas cláusulas preambulares, em que o Conselho afirma estar “agindo sob o Capítulo VH”, para só depois criar a Operação de Paz. 51 Como disse o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discurso na 59a As- sembléia-Geral da ONU, em 21 de setembro de 2004: “Foi assim que atendemos, o Brasil e outros países da América Latina, à convocação da ONU para contri buir na estabilização do Haiti. Quem defende novos paradigmas nas relações internacionais não poderia se omitir diante de uma situação concreta". 52 LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. Futebol, paz e riscos para o Brasil no Haiti. Política Externa, 13 (2), set./out./nov. 2004, p. 79. 53 Ver, por exemplo, “Discurso do Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de formatura dos novos diplomatas”, pronunciado no terpretação de que a MINUSTAH estaria agindo com base no Capítulo VII apenas no que se refere a disposições de segurança. Sendo assim, é nítido o esforço brasileiro de diferenciar a Resolução n. 1.542 da Resolução n. 94054. As autoridades diplomáticas brasileiras tendem a evadir as questões embaraçosas, procurando justificar a participação com base na solidarieda de regional e em questões humanitárias, desvinculando-se de qualquer obje tivo político e descartando as críticas baseadas nas alegações do ex-Presi- dente haitiano de que teria sido deposto. O Embaixador brasileiro na ONU freqüentem ente tem se referido a am eaças de banho de sangue antes da saída do ex-Presidente, e jamais se refere a qualquer vantagem para o Bra sil decorrente da aprovação das R esoluções ou da participação na m issão55. Mesmo aqueles que aludem a eventuais benefícios políticos fazem questão de matizá-los, afirmando que nada estaria garantido56. Adicionalm ente, o Brasil insiste na necessidade de enfrentar, tam bém no Haiti, o subdesenvol vim ento, a pobreza e as desigualdades sociais, chegando m esm o a condicio nar sua participação a esse enfrentam ento.O ponto é que o Brasil entende que uma participação ativa na ONU é um elem ento central de sua busca por maior autonom ia política na cena in ternacional, tanto que pleiteia uma reformulação da Organização de m odo a se tom ar membro perm anente do seu Conselho de Segurança. E sse pleito estaria enfraquecido em decorrência da redução da participação brasileira nas M issões de Paz da Organização, particularmente no período em que se \ 232 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea Volume 2 Palácio do Itamaraty em 20 de abril de 2004; “Discurso do Presidente da Repú blica, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de embarque das tropas militares para missão de paz no Haiti”, pronunciado na Base Aérea de Brasília em 31 de maio de 2004; e o “Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Sil va, no ato inaugural da 18a Cúpula Presidencial do Grupo do Rio”, pronunciado no Rio de Janeiro em 4 de novembro de 2004. 54 Ver, por exemplo, SARDENBERG, Ronaldo. Brasil, política multilateral e Na ções Unidas. Conferência apresentada ao Instituto de Estudos Avançados da , Universidade de São Paulo em 17 de agosto de 2004. Transcrição disponível em: <http://www.usp.br/iea/sardenberg.html>. 53 SARDENBERG, 2004; CELESTINO, Helena. Corpo a corpo: Ronaldo Sarden- berg. O Globo, 10 mar. 2004, p. 33. 56 Ver, por exemplo, declarações do General Augusto Heleno: MONTEIRO, Tâ nia. Batalhão gaúcho comandará missão no Haiti. O Estado de S.Paulo, 6 mar. 2004a, p. A-20. http://www.usp.br/iea/sardenberg.html Capítulo 10 intensifica a presença brasileira no Conselho — o que críticos poderiam entender como significando que o Brasil quer o prestígio, mas não aceita as responsabilidades. D esse ponto de vista, o Haiti apareceria como uma oportunidade ímpar: trata-se de um a situação com grande visibilidade po lítica em um a região de grande prioridade da política externa brasileira, que poderia alavancar ou, p elo m enos, legitimar, de certa forma, a desejada liderança brasileira na Am érica do Sul — na m edida em que o Brasil, por liderar as forças a serviço da ONU, coordenaria a resposta do continente sul-americano a um a crise em região vizinha. Como já visto, esse reconhe cim ento da liderança.brasileira ná América do Sul é percebido com o crucial para o esforço de coordenação política em tom o de negociações comerciais, particularmente no caso da Alca. Com isso, ao contrário do que se vem afirmando, pode-se perceber uma clara vinculação entre a liderança do Brasil na MINUSTAH e demais interes ses políticos brasileiros — e, mais indiretam ente, até m esm o a interesses comerciais. No caso d esses últim os, embora seja m atem aticam ente eviden te que a atuação no Haiti, tom ada isolam ente, implica antes prejuízos que ganhos, poderia haver ganhos econôm icos in d iretos , na m edida em que eventuais reconhecim ento e aceitação da importância da liderança política brasileira na América do Sul viabilizem ou facilitem um esforço de coorde nação política em escala continental voltado para as negociações comerciais multilaterais, principalm ente no caso da Alca, que teve em 2005 um ano decisivo. Não estava claro se essa consideração estava ou não efetivam ente presente quando da decisão do governo brasileiro de integrar e liderar a MINUSTAH, ou se pesou efetivam ente no cálculo dos responsáveis. 1 0 .5 C o n c lu s ã o A decisão brasileira de participar da Missão de Estabilização das Na ções Unidas no Haiti (MINUSTAH) e de liderá-la reflete a dificuldade de se compatibilizarem parâmetros históricos da atuação diplomática do Brasil, dificuldade manifestada claramente na criativa interpretação que o governo brasileiro dá à relação entre a Resolução n. 1.542, de 30 de abril de 2004, e o Capítulo VII da Carta das N ações Unidas. Ao que parece, a decisão do País rompe com um entendim ento tradicional da diplomacia brasileira — que resistia a Operações de Imposição da Paz — em prol do im pacto positivo que se espera quanto à atuação no Haiti: em primeiro lugar, no que se refere O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3̂3 a um objetivo precípuo da atual política externa brasileira, que é o assento perm anente no Conselho de Segurança das N ações Unidas; e, em segundo lugar, para a liderança brasileira na América Latina, com seus eventuais im pactos em negociações comerciais de grande porte em que o Brasil está en volvido, e que são percebidas como cruciais para a econom ia brasileira. Essa decisão abalaria a imagem principista, juridicista, da diplomacia brasileira, e, portanto, vem exigindo um esforço retórico de justificação que não parece totalm ente convincente, ao m enos em alguns círculos políticos. Eventual m ente, a liderança da MINUSTAH pode se revelar, no futuro, um ponto de inflexão na política externa brasileira, mas ainda é cedo para afirmá-lo. As sutilezas interpretativas e a recusa em reconhecer eventuais benefí cios decorrentes da participação na MINUSTAH parecem apenas encobrir, ainda que involuntária e inconscientem ente, a percepção de que, no episódio do Haiti, teriam sido abandonados — ou, ao menos, relativizados— princípios tradicionais da atuação diplomática brasileira, em nom e de um pragma tism o político imediato. D esse ponto de vista, a participação e a liderança brasileira na MINUSTAH podem abrir um importante e significativo prece dente para a diplomacia brasileira. Pode ser que se esteja diante de uma inflexão adicional da política externa brasileira. Embora o envio de forças brasileiras tenha sido aprovado no Congresso Nacional, o debate ocorrido naquela Casa foi mais intenso que o normal, quando se trata de questões de política externa. Isso indica que, contraria m ente ao entendim ento convencional, o Congresso está mais atento a ques tões de política externa e de defesa do que normaJmente se imagina. Por tanto, se a decisão brasileira de liderar a MINUSTAH for, de fato, o primeiro passo de uma postura internacional brasileira mais assertiva quanto ao em prego da força e, particularmente, quanto a Operações de Imposição da Paz e uma tolerância maior com ações baseadas no Capítulo VII da Carta da ONU, é possível que, no futuro, o Poder Executivo encontre crescentes dificuldades perante o Poder Legislativo. Referências AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Câmara analisa envio de soldados para o Haiti. A Semana, 10 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. --------- . Ministros defendem envio de soldados para o Haiti. Tempo Real, 12 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. --------- . Deputados aprovam urgência para tropas no Haiti. Tempo Real, 12 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. \ 234 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea Volume 2 http://www.camara.gov.br http://www.camara.gov.br http://www.camara.gov.br O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3 3 5 Capítulo 10 --------- . Deputados aprovam envio de tropas ao Haiti. Tempo Real, 13 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. A Alca na política externa brasileira. Política Externa, v. 10, n. 2, p. 7-20, set./out./nov. 2001. ARAÚJO CASTRO, J. A. O congelamento do poder mundial. In: AMADO, Rodrigo (Org.). Araújo Castro. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982. p. 197-212. BECK, Martha; OLIVEIRA, Eliane. Brasil pode comandar missão no Haiti. O Globo, 5 mar. 2004, p. 38. BETTS, Richard. The delusion of impartial intervention. Foreign Affairs, v. 73, n. 6, p. 20-33, nov./dez. 1994. BOUTHROS-GHALI, Bouthros .An Agenda for Peace: preventive diplomacy, peacemaking and peacekeeping. Report of the Secretary-General pursuant to the statement adopted by the Summit Meeting of the Security Coucnil on 31 January 1992. Organização das Nações Unidas, A/47/277 — S/2411,17 jun. 1992. Disponível
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