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2-O Brasil e as Operações de Paz_035

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O BRASIL E AS OPERAÇÕES DE PAZ
Eugenio D in iz
10 . 1 In tr o d u ç ã o
O objetivo deste capítulo é com preender os processos e os desafios 
relacionados à participação brasileira em Operações de Paz da Organiza­
ção das N ações Unidas (ONU) após a guerra fria1. Para tanto, faz-se um 
retrospecto da evolução das Operações de Paz, no qual se apresentam al­
guns im passes e como estes foram solucionados, a partir de docum entos da 
própria ONU. Em seguida, a participação brasileira nas Operações de Paz é 
analisada, não em term os de uma discussão de cada uma delas, mas relacio­
nando essa participação à atuação do Brasil na ONU; ao contexto político 
no qual ela estava envolvida; ao posicionam ento diplomático brasileiro com 
relação às próprias Operações de Paz; e às prioridades da política externa 
brasileira, particularmente após a guerra fria. Na seqüência, exam inam -se 
as dificuldades da participação brasileira na Missão das Nações Unidas para 
Estabilização do Hait (MINUSTAH), liderada pelo Brasil, na qual se identi-
1 Algumas considerações apareceram anteriormente em: DINIZ, Eugênio. O Brasil e a 
MINUSTAH. Security and Defense Studies Review, v. 5, n. 1, Spring 2005. Dispo­
nível em: <http://www.ndu.edu/chds/joumal/PDF/2005/Diniz_artide-edited.pdf>.
http://www.ndu.edu/chds/joumal/PDF/2005/Diniz_artide-edited.pdf
fica iima potencial ruptura da posição tradicional brasileira quanto a Opera­
ções de Paz. Por fim, na Conclusão, o argumento é retom ado de m odo a pôr 
em perspectiva o futuro da participação brasileira em Operações de Paz, à 
luz da política externa brasileira.
1 0 .2 O perações de paz
Para alguns, as Operações de Paz (Peacekeeping Operations — PKO) 
seriam “uma técnica, desenvolvida principalm ente pelas N ações Unidas, 
para ajudar a controlar e resolver conflitos armados”2, cuja razão de ser de­
correria da própria concepção de segurança coletiva, que se baseia na idéia 
de que “a força militar será usada, se necessário, para m anter a paz e a 
segurança internacional”3.
Entretanto, em que p ese a afirmação de que as Operações de Paz se ­
riam inteiram ente consistentes com o ideário de segurança coletiva, o fato 
é que elas não estavam previstas na Carta da ONU. Sua base jurídica foi 
sendo construída de forma consuetudinária, a partir de cada caso em par­
ticular. Indagado sobre a base jurídica para a Primeira Força de Em ergência 
das Nações Unidas (UNEF I), em Suez, o então Secretário-Geral da ONU, 
Dag Hammarskjöld, teria respondido que tal base estaria no “Capítulo VI
\ 304 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea
\ / Volume 2
Acesso em: 11 maio 2005. Agradeço a Antônio Jorge Ramalho Rocha, do Depar­
tamento de Cooperação da Secretaria de Estudos e Cooperação do Ministério 
da Defesa, pelo empenho e colaboração. Algumas das idéias foram discutidas 
anteriormente com John Fishel, Andres Saem, Salvador Ghelfi Raza, Domício 
Proença Jr., Tiago Campos, Érico Esteves Duarte, Rafael Ávila, Mauro Mosquei- 
ra, Paulo Brinckmann, Jacqueline Muniz, Wilson Lauria e Marco Cepik. A auto­
ria do texto, porém, é de minha responsabilidade, principaimente eventuais 
erros e omissões.
2 GOULDING, Marrack. The evolution of United Nations Peacekeeping. Interna­
tional Affairs, v. 69, n. 3, July 1993, p. 452; ver também BOUTHROS-GHALI, 
Bouthros. An Agenda for Peace: preventive diplomacy, peacemaking and pea­
cekeeping. Report of the Secretary-General pursuant to the statementadopted 
by the Summit Meeting of the Security Coucnil on 31 January 1992. Organi­
zação das Nações Unidas, A/47/277 — S/2411, 17 jun. 1992. Disponível em: 
<http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html>. Acesso em: 26 abr. 2005. § 46.
3 SUTTERLIN, James S. The United Nations and the maintenance of inter­
national security: a challenge to be met. Westport, Praeger Publishers, 1995. 
p. 25.
http://www.un.org/Docs/SG/agpeace.html
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3 0 5
Capítulo 10
e m eio” — ou seja, as O perações de Paz estariam a m eio caminho entre a 
“solução pacífica de disputas” (título do Capítulo VI da Carta da ONU) e a 
“ação com respeito a am eaças à paz, quebras da paz, e atos de agressão” (tí­
tulo do Capítulo VH — em que se estabelecem , entre outras providências, 
as condições para o uso da força).
Oficialmente, a primeira Operação de Paz da ONU foi a Organização 
para Supervisão da Trégua das N ações Unidas (UNTSO), estabelecida em 
1948 para supervisionar um a trégua entre Israel e seus vizinhos. Contudo, 
o marco que efetivam ente deu início à dinâmica das Operações de Paz foi o 
estabelecim ento, em 1956, da U N E FI, desdobrada no Egito após a guerra 
entre árabes e israelenses naquele ano. Se forem contadas todas as Opera­
ções de Paz criadas no âmbito da ONU, inclusive aquelas que sucederam 
m issões anteriores, foram estabelecidas, desde 1948 até abril de 2005, 60 
O perações de Paz.
Quadro 10.1 — Operações de Paz da ONU — 1948-2005
M i s s a o S lG L A L o c a l I n í c i o F i m
United Nations Truce Supervision 
Organization UNTSO Oriente Médio 1948
United Nations Military Observer 
Group in India and Pakistan U NM O G IP India / Paquistão 1949
First United Nations 
Emergency Force 1,1 UNEF 1 Sinai / Faixa de Gaza 1956 1 967
United Nations Observation 
Group in Lebanon U NO G IL. Líbano 1958 1958
United Nations Operation 
in the Congo 1-1 O N U C A Congo 1960 1964
United Nations Security Force in 
West New Guinea UNSF Nova Guiné Ocidental 1962 1963
United Nations Yemen 
Observation Mission U NYO M lêmen 1963 1964
United Nations Peacekeeping 
Force in Cyprus 1-1 UNFICYP Chipre 1964
United Nations India-Pakistan 
Observation Mission rl UNIPO M índia / Paquistão 1965 1966
Mission of the Representative 
of the Secretary-General in the 
Dominican Republic 1-1
DOMREP República Dominicana 1965 1966
(continuai
\ 2 0 6 2 — 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea
Volum e 2
lcontinuaçãoI
M i s s ã o S lG L A L o c a l I n í c i o F i m
Second United Nations 
Emergency Force UNEF II Oriente Médio (Suez) 1 9 7 3 19 7 9
United Nations Disengagement 
Observer Force UNDOF Colinas de Golã 1 9 7 4
United Nations Interim Force in 
Lebanon UNIFIL Líbano 1 9 7 8
United Nations Iran-lraq Military 
Observer Group U N IIM O G Irã / Iraque 19 8 8 1 9 9 1
United Nations Good Offices 
Mission in Afghanistan and 
Pakistan
UNG O M A P Afeganistão / Paquistão 19 8 8 19 9 0
United Nations Angola 
Verification Mission 1 UNAVEM 1 Angola 19 8 8 1 9 9 1
United Nations Observer Group 
in Central America 1,1 O N U C A América Central 19 8 9 1 9 9 2
United Nations Transition 
Assistance Group UNTAG Namíbia 19 8 9 19 9 0
United Nations Iraq-Kuwait 
Observation Mission U NIK O M Iraque / Kuwait 19 9 1 2 0 0 3
United Nations Advance Mission 
in Cambodia UNAM IC Camboja 19 9 1 19 9 2
United Nations Observer Mission 
in El Salvador rl ONUSAL El Salvador 19 9 1 19 9 5
United Nations Angola 
Verification Mission I I 1-1 UNAVEM II Angola 19 9 1 19 9 5
United Nations Mission for the 
Referendum in Western Sahara MINURSO Saara Ocidental 19 9 1
United Nations 
Protection Force UNPROFOR Ex-lugoslávia 19 9 2 19 9 5
United Nations Transitional 
Authority in Cambodia 1,1 UNTAC Camboja 19 9 2 1 9 9 3
United Nations Operation 
in Mozambique 1-1
O N U M O Z Moçambique 1 9 9 2 1 9 9 4
United Nations Operation 
in Somalia 1
U N O S O M 1 Somália 19 9 2 1 9 9 3
United Nations Mission in Haiti 
a— ------------------------------------------- —
U NM IH Haiti 1 9 9 3 19 9 6
(continuai
Capítulo 10
Icontinuação)
9
307 :O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z
M i s s ä o S lG L A L o c a l I n í c i o F i m
United Nations Observer Mission 
in Liberia rl UNO M IL
Libéria 1993 1997
United Nations Assistance 
Mission for Rwanda ^ UNAMIR
Ruanda 1993 1996
United Nations Observer Mission 
Uganda-Rwanda 1-1 UNO M UR
Uganda / Ruanda 1993 1994
United NationsOperation in 
Somalia II U N O S O M II
Somália 1993 1995
United Nations Observer Mission 
in Georgia U N O M IG
Geórgia 1993
United Nations Mission of 
Observers in Tajikistan U N M O T
Tajiquistão 1994 2000
United Nations Aouzou Strip 
Observer Group1"'1 UNASOG
Chade / Líbia 1994 1994
United Nations Mission in Bosnia 
and Herzegovina1” 1 UNIM IBH
Bosnia / Herzegovina 1995 2 0 0 2
United Nations Confidence 
Restoration Operation 1'11” 1 UNCRO
Croácia 1995 1996
United Nations Preventive 
Deployment force 1*1 UNPREDEP Rep. Ex-lug. da Macedonia 1995
1999
United Nations Angola 
Verification Mission 1111-1 UNAVEM III Angola 1995 1997
United Nations Transitional 
Authority in Eastern Slavonia, 
Baranja and Western Sirmium 1-11” 1
UNTAES Croácia 1996 1998
United Nations Mission of 
Observers in Prevlaka 1-1 U N M O P
Peninsula de Prevakla 1996 2 0 0 2
United Nations Support Mission 
in Haiti UNSM IH Haiti 1996 1997
United Nations Verification 
Mission in Guatemala 1,1 M IN U G U A Guatemala 1997 1997
United Nations Transition Mission 
in Haiti UNTM IH Haiti 1997 1997
United Nations Civilian Police 
Mission in Haiti M IPO NUH Haiti 1997 2 0 0 0
United Nations Observer Mission 
in Angola 1-1 M O N U A Angola 1997 1999
(continua,
\ 3 0 8 Parte 2 — 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea
Volum e 2
(co n tin u a çã o j
M i s s â o S lG L A L o c a l I n í c i o F i m
United Nations Civilian Support 
Group UNPSG Croácia 1998 1998
United Nations Mission in the 
Central African Republic1'"1 MINURCA Rep. Centro-africana 1998 2000
United Nations Observer Mission 
in Sierra Leone UNOMSIL Serra Leoa 1998 1999
United Nations Transitional 
Administration in East Timor1' 11” 1 UNTAET Timor Leste 1999 2002
United Nations Interim 
Administration Mission in Kosovo1” 1 UNM IK Kosovo 1999
United Nations Organization 
Mission in the Democratic 
Republic of the Congo
M O N U C Rep. Dem. do Congo 1999
United Nations Mission in Sierra 
Leone1” 1 UNAMSIL Serra Leoa 1999
United Nations Mission in 
Ethiopia and Eritrea UNMEE Etiópia / Eritréia 2000
United Nations Mission of 
Support in East Timor rl l” 1 UNMISET Timor Leste 2002
United Nations Mission 
in Liberia l’11” 1 UNMIL Libéria 2 00 3
United Nations Stabilization 
Mission in Haiti MINUSTAH Haiti 2 0 0 4
United Nations Operation 
in Burundi1" 1 ONUB Burundi 2 0 0 4
United Nations Operation 
in Côte d'Ivoire l*, l” 1 UNO CI Côte dTvoire 2 0 0 4
United Nations Mission 
in the Sudan i**1 UNM IS Sudão 2 00 5
(* ) Missões de que o Brasil participou com efetivo policial ou militar.
( * * ) Operações baseadas no Capítulo VII da Carta da O N U ou com procedimentos autorizados com 
base no Capítulo VII.
O bservação: as missões sem data de conclusão estavam em curso em 3 0 de abril de 2 00 5 .
Fonte: Departamento de Operações de Paz das Nações Unidas (DPKO). Disponível em: <http://www. 
un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm>.
Ao m esm o tem po, uma consideração mais detida da distribuição tem ­
poral do estabelecim ento de Operações de Paz aponta para uma intensa cor­
relação entre estas e o am biente político predominante.
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm
Capítulo 10 
Gráfico 10.1
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z
Estabelecimento de Operações de Paz das Nações Unidas por período — 
1948-2005
O 1948-1987 
0 1988-1999 
0 2000-2005
Gráfico 10.2 Média anual de Operações de Paz estabelecidas por período — 
1948-2005
2000-2005
Embora tenha havido 60 Operações de Paz ao longo de 57 anos (incom ­
pletos), os gráficos m ostram qne rigorosam ente 2/3 do total foram estabe­
lecidas entre 1988 e 1999, ou seja, apenas 12 anos, sendo a m édia anual de 
estabelecim entos de Operações de Paz de 3,33 por ano. Os 40 anos trans­
corridos entre 1948 e 1987 respondem por pouco mais de 1/5 das Opera­
ções de Paz, com uma m édia anual exatam ente dez vezes inferior ao perío­
do 1988-99. Por fim, os aproximadam ente seis anos transcorridos entre 
2000 e 2005 viram o estabelecim ento de 11,67% do total das Operações de 
Paz, com uma m édia anual exatam ente equivalente à m etade da do período 
1988-99. Ou seja, durante a guerra fria, houve poucas Operações de Paz;
com o arrefecim ento da guerra fria, houve um a explosão de intervenções 
da ONU; os ataques de 11 de setem bro de 2001 e seus desdobram entos pa­
recem ter não interrompido o m ovim ento, m as o enfraquecido.
Ao longo do tem po, firmou-se o entendim ento de que as Operações de 
Paz, que envolvem forças dos Estados-m em bros, a serviço das N ações Uni­
das, seriam caracterizadas pelos seguintes princípios4:
a) embora os empregados efetivos nas Operações de Paz pertençam 
não à ONU, mas aos Estados-m em bros, as Operações de Paz são 
conduzidas pela ONU, e seus integrantes representam a ela, e não 
aos Estados-m em bros de origem;
b) Operações de Paz só poderiam ser estabelecidas cóm o consenti­
m ento de todas as partes envolvidas no conflito em questão;
c) os membros das Operações de Paz seriam imparciais em relação às 
partes do conflito;
d) os membros das Operações de Paz só poderiam utilizar a força em 
legítim a defesa.
Progressivam ente, contudo, esse entendim ento foi diversas vezes con­
testado, tanto por necessidades e dificuldades concretas de operações es­
pecíficas quanto do ponto de vista de seu real significado e im pacto político. 
A título de exem plo5:
a) Se uma Operação de Paz fosse estabelecida a partir de um cessar- 
fogo, caso um a das partes violasse esse cessar-fogo e atacasse uma 
outra parte, sem atacar diretam ente as forças a serviço da ONU, o 
que estas deveriam fazer? A rigor, elas estariam im pedidas de utili­
zar a força, uma vez que só teriám autorização p a ra em pregá-la 
em sua legítim a defesa. N esse caso, quais seriam a utilidade e a 
credibilidade das O perações de Paz com o forma de garantir a paz?
\ 32Q Parte 2 — 0 Brasil e os fem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea
Volume 2
4 GOULDING, 1993; BRAHIMI, LaMidar. Report of the Panei on United Nations 
Peaee Operations. Organização das Nações Unidas, A/55/305 — S/2000/809, 
de 21 de agosto de 2000. Disponível em: <http://www.un.org/peace/reports/pea- 
ce_operations/docs/a_55_305.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2005. Doravante citado 
apenas como Relatório Brahimi.
5 A questão foi magistral e sistematicamente explorada tanto por Domício Proença 
Júnior quanto por Richard Betts, nos quais nossas considerações se inspiram. 
Trata-se aqui apenas de iluminar alguns pontos, a título de exemplo, para ilustrar 
as dificuldades e os impasses das Operações de Paz. A respeito, ver PROENÇA 
JR., Domício. Enquadramento das missões de paz nas teorias da guerra e da po­
lida. In: BRIGAGÃO, Clóvis; PROENÇA JR., Domício (Org.). Paz e terrorismo. In:
http://www.un.org/peace/reports/pea-ce_operations/docs/a_55_305.pdf
http://www.un.org/peace/reports/pea-ce_operations/docs/a_55_305.pdf
Capítulo 10
b) Altemativarnente, embora as partes não ataquem umas às outras, uma 
parte ou mais passa a apropriar-se, pela força, da ajuda humanitária 
que seria distribuída à população por qualquer agência que não as 
próprias forças a serviço da ONU. Mais uma vez, a restrição de só em­
pregar a força em legítima defesa impediria as últimas de agir. Tam­
bém nesse caso, quais seriam a utilidade e a credibilidade das Ope­
rações de Paz como forma de garantir a segurança da população?
c) As partes de um conflito poderiam m anifestar seu consentim ento, 
de m odo que a Operação de Paz fosse estabelecida. Se, entretanto, 
essa pausa perm ite o fortalecim ento relativo de um a parte sobre as 
demais, de tal maneira que, em um segundo m om ento, essa parte 
retire seu consentim ento, a intervenção das Nações Unidas teria 
servido apenas p a ra favorecer uma-parte sobre as demais. O que 
dizer da idéia de imparcialidade n esse caso?
d) Se o objetivo for exclusivamente estabelecer a paz, em determinado 
estágio de um conflito, é bastante plausível que, em algumas circuns­
tâncias, a maneira mais pragmática de pôr fim à violência seria, então, 
apoiar a parte mais forte, de m odo que ela, rápida e decisivam ente, 
se im pusesse sobre as demais; do contrário, pode-se argumentar 
que a ONU estaria apenas prolongando a luta. Se, no final, a idéia 
de imparcialidade absoluta for fictícia, não seria, então, o caso de 
decidir em favor de qual parte a ONU deveria intervir?
e) No caso anterior, é evidente que, se as forças a serviço da ONU 
forem empregadas de maneira a apressar o fim da luta, elas não 
poderão estar restritas à sua legítim a defesa. Qual deveriam, então, 
ser os critérios segundo os quais se deveria empregar a força? '
f) No entanto, nada im pede que a parte mais forte em um dado con­
flito seja a que m enos respeita os Direitos Humanos, ou a que tenha 
m enos com prom isso com a democracia, ou aquela cujo sucesso po­
deria implicar maior probabilidade de ocorrência de novos confli­
tos no futuro. N esse caso, o objetivo da ONU deveria ser o fim das 
hostilidades, ou o estabelecim ento de uma situação mais favorável 
aos Direitos Humanos, ou à democracia, ou à estabilidade regional?
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z >. - * * N /
SEMINÁRIO DESAFIOS PARA A POLÍTICA DE SEGURANÇA INTERNACIO­
NAL: MISSÕES DE PAZ DA ONU, EUROPA E AMÉRICAS. São Paulo: Hucitec, 
2004. p. 33-100; BETTS, Richard. The delusion of impartial intervention. Foreign 
Affairs, v. 73, n. 6, p. 20-33, nov./dez. 1994.
\ 222 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea
Se isso implicar confrontar a parte m ais forte em um conflito, é evi­
dente que as forças a serviço da ONU deverão ser mais pesadas, mais 
bem armadas, mais bem treinadas (e mais caras).
g ) Em qualquer das três últimas hipóteses, com o esperar que todas as 
partes de um conflito m anifestem seu consentim ento?
h ) No caso de um conflito intra-estatal ou que envolva, como partes, 
atores não estatais, a todos os problemas anteriorm ente citados se 
som a um outro, talvez mais delicado que os dem ais em term os polí­
ticos e jurídicos: quais partes deveriam m anifestar seu consen­
timento? Quando se trata de um conflito entre estados, os governos 
são as partes que podem m anifestá-lo legitim am ente. Mas, digamos, 
um grupo terrorista ou uma milícia, por não dar seu consentim ento, 
deve ter poder de veto sobre o estabelecim ento de uma Operação 
de Paz? Seu consentim ento deve ser buscado — o que implicaria 
reconhecê-los com o atores políticos válidos? Ao premiar tais grupos 
com esse reconhecim ento, a ONU não estaria exatam ente sinali­
zando que, se algum ator quiser ser reconhecido pela ONU, basta 
recorrer de forma significativa à violência? Isso não seria, antes de 
mais nada, um estím ulo à vio lência?
Bem ou mal, esses problemas foram enfrentados tam bém de maneira 
consuetudinária, a partir de soluções dadas em casos concretos, em que cada 
um dos elem entos específicos das Operações de Paz foi ganhando novos sig­
nificados. Assim, o conceito de legítima defesa, para as forças a serviço da 
ONU em Operações de Paz, foi deixando de se restringir à defesa de seus in­
tegrantes para incluir a legítima defesa dos “com ponentes da m issão” (o que 
incluiria, por exem plo, agências humanitárias) e também a legítima defesa 
“do mandato da m issão” (significando que as forças a serviço da ONU pode­
riam ser autorizadas, conforme o caso, a usar da força necessária e suficiente 
não só para defender a si m esm as e aos outros com ponentes da missão, mas 
também para executar a missão que lhes foi dada). Por sua vez, a idéia de 
imparcialidade foi deixando de se referir a uma imparcialidade absoluta com 
relação às partes de um dado conflito, m as em term os de “conformidade 
com os princípios” da Carta das N ações Unidas. Por fim, o reconhecim ento 
de que o consentim ento poderia ser manipulado de inúmeras formas levou 
à idéia de “Imposição da Paz”6 ou de “Operações de Paz com plexas”7.
Volume 2
6 BOUTHROS-GHALI, 1992
7 Relatório Brahimi.
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3B
Capítulo 10
Em 1992, o então Secretário-Geral da ONU, Bouthros Bouthros-Ghali, 
apresentou um relatório chamado de A genda p a ra a P az8, no qual fixou 
alguns entendim entos e um a racionalização para as atividades da ONU rela­
cionadas à sua contribuição para a paz e para a segurança internacional. No 
relatório, a idéia de “M anutenção da Paz” (Peacekeeping) seria um a entre 
os quatro tipos daquelas atividades, a saber:
a) a diplom acia p reven tiva {preven tive diplomacy'), voltada para 
evitar que disputas escalassem ou se espalhassem ;
b) a. pacificação (peacem aking ) , voltada para a construção de acor­
dos entre as partes de um conflito, por m eio de m edidas pacíficas, 
conform e o Capítulo VI da Carta da ONU;
c) a m anutenção da p a z (peacekeeping), que envolveria o desdo­
bramento de “pessoal militar ou policial das N ações Unidas”, com “o 
consenso de todas as partes envolvidas”;
d) a construção da p a z após o conflito (post-conflict peace-buil­
ding), voltada para a construção de um ordenam ento que evitasse 
um retom o ao conflito9.
Entretanto, a A genda p a ra a P a z introduziu um a inovação conceituai: 
a idéia de unidades de im posição da p a z (peace enforcement un its), as 
quais estariam voltadas para restabelecer e m anter cessar-fogos que tives­
sem sido acordados, m as não cum pridos10. A ONU já vinha sendo chamada 
a desem penhar essa tarefa, a qual seria m uito mais exigente que as m is­
sões de M anutenção da Paz, tanto em term os de equipam ento quanto de 
treinam ento. A questão é que, no seu relatório, o então Secretário-Geral 
distinguia essa tarefa de “Imposição da Paz” — que ele incluía no título de 
“Pacificação” (Peacem aking) — da tarefa de “M anutenção da Paz” (Pea­
cekeeping), ressaltando que a Imposição da Paz envolveria arranjos para 
colocar perm anentem ente à disposição do Secretário-Geral da ONU 
forças voltadas para essa atividade, com base em dispositivos do Capítulo 
VII da Carta da ONU.
A proposta da Agenda p a ra a P az coincide no tem po com o novo ati- 
vismo da ONU, já m encionado, no que se refere ao estabelecim ento de Ope­
8 BOUTHROS-GHALI, 1992.
9 Ibid., §§ 20-21.
10 BOUTHROS-GHALI, 1992, §§ 44-45.
rações de Paz — possibilitado pelos arrefecim ento e fim da guerra fria; e 
um crescente número de conflitos domésticos, intra-estatais, nos quais a ONU 
com eçou a atuar. Entretanto, com a A genda p a ra a P a z , ocorre um novo 
fenômeno: dado o problema relativo ao consentim ento das partes — que, 
como já dito, é significativamente maior quando atores não estatais estão 
envolvidos — , foi aum entando o recurso ao Capítulo VII da Carta da ONU 
como forma de estabelecer Operações de Paz, a partir de decisões obriga­
tórias do Conselho de Segurança, até m esm o em conflitos dom ésticos. De 
fato, das 60 Operações de Paz da ONU, 14 (23,33% ) ou são baseadas no 
Capítulo VII, ou autorizam determ inados procedim entos com base no Ca­
pítulo VII. Todas essas 14 são posteriores a 1994 — e, portanto, à Agenda 
p a ra a Paz. Como, entre 1994 e 2005, foram estabelecidas 27 Operações 
de Paz da ONU, tem -se que as Operações referidas ao Capítulo VII equiva­
lem a 51,85% do total do período, ou seja, mais da m etade das O perações 
de Paz da ONU depois de 1994 podem ser consideradas Operações de Im­
posição da Paz.
Essa convergência de fatores trouxe uma série de resistências. Por um 
lado, o recurso ao Capítulo VII para as Operações de Imposição da Paz gerou 
em vários países, inclusive no Brasil, uma forte preocupação quanto à cres­
cente possibilidade de intervenção em assuntos internos por parte da ONU, 
por intermédio do Conselho de Segurança. Por outro lado, a sugestão da 
Agenda p a ra a P azde estabelecer forças perm anentem ente à disposição do 
Secretário-Geral para Operações de Imposição da Paz causou intenso mal-es­
tar em vários países. Essa multiplicação de resistências custou ao Secretário- 
Geral Bouthros-Ghali o seu posto, para o qual não foi reconduzido, e — em­
bora o termo tenha ficado consagrado na literatura — certa má-vontade de 
alguns países quanto à idéia de Operações de Imposição da Paz.
Ao m esm o tem po, a necessidade de enfrentar os desafios postos pela 
conjuntura política internacional para as Operações de Paz era inevitável; 
e, se se tratava de diminuir as resistências a elas no interior da ONU, esses 
desafios precisavam ser enfrentados no âmbito da Organização. Assim, em 
março de 2000, o Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, encom endou a um 
grupo de peritos uma ampla revisão das atividades da ONU relacionadas à 
paz e à segurança, incluindo “recom endações específicas, concretas e prá­
ticas” para melhorar a condução dessas atividades no futuro. Então, em 17 
de agosto de 2000, o Presidente do Painel sobre as Operações de Paz das 
N ações Unidas, Lakhdar Brahimi, publicou seu relatório, denom inado Rela-
\ 214 P arte 2 — O B rasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea
Volume 2
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 315
e
Capítulo 10
tório Brahimi11, que é o m ais im portante docum ento da ONU no que se re­
fere às O perações de Paz. N esse docum ento, entre outros avanços, foram 
consolidados os novos entendim entos relacionados ao consentim ento, à 
imparcialidade e à legítim a defesa m encionados anteriorm ente11 12; assumiu- 
se abertam ente a necessidade de m andatos para as Operações que fossem 
com patíveis com seus objetivos e consistentes, do ponto de vista militar, 
com as reais necessidades de seu su cesso13; propuseram -se critérios para 
avaliação de desem penho, bem com o m edidas para melhorar o desem pe­
nho em Operações de Paz, em diversas situações14.
Refletindo, porém, as dificuldades políticas manifestadas, o Relatório 
Brahimi não fala em Operações de Imposição da Paz, mas, sim, em “Operações 
de Manutenção da Paz com plexas”, as quais se distinguiriam das “Operações 
de Manutenção da Paz tradicionais”15. Os term os Peacekeeping Operations 
e Peace-enforcement Operations, ou Operações de Paz e Operações de Im­
posição da Paz, entretanto, já haviam sido consagrados, e continuaram a ter 
ampla utilização. Ao m esm o tem po, a mudança de terminologia não foi sufi­
ciente para neutralizar todas as resistências — até m esm o no Brasil.
1 0.3 A POLÍTICA DE PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NAS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU
Com relação a dispositivos e institu ições m ultilaterais, a atuação diplo­
m ática brasileira é m arcada, ao longo do tem po, por certa am bigüidade, 
am bivalência, pela tentativa de conciliar parâm etros concorrentes e tam ­
bém , historicam ente, por um a oscilação entre posições e perspectivas 
conflitantes.
D esde o com eço do sécu lo XX, a diplomacia brasileira pauta-se pelos 
esforços de aumentar a m argem de manobra internacional do País. D esde 
então, a posição predom inante nos círculos diplomáticos brasileiros é que o 
Brasil seria am plam ente beneficiado pela efetiva implem entação e vigência 
do Direito Internacional. A lém da própria defesa do Direito Internacional, 
outros princípios tradicionais da atuação diplomática brasileira podem ser
11 Relatório Brahimi.
12 Relatório Brahimi, §§ 15-28; §§ 48-53.
13 Relatório Brahimi, §§ 56-64.
14 Por exemplo, Relatório Brahimi, §§ 86-91; §§ 109-117; §§ 118-126.
15 Relatório Brahimi, passim.
associados a essa posição: anão-intervenção nos assuntos internos dos esta­
dos; a defesa da solução pacífica das controvérsias internacionais; e a ênfase 
no desarmam ento geral. Embora se admita que o desarmam ento geral não 
deve ser esperado para já, a diplomacia brasileira reluta em aceitar iniciati­
vas que, na sua visão, contribuem para tom ar essa possibilidade ainda mais 
distante. Durante um longo tem po, havia, ainda, a ênfase na descolonização 
— a qual, por m otivos óbvios, foi abandonada, tendo sido substituída, mais 
recentem ente, por uma ênfase na democracia.
Outro tem a constante da atuação diplomática brasileira, que perpassou 
diferentes governos nas mais diversas conjunturas políticas, é o esforço p e ­
la intensificação da preocupação com o desenvolvim ento na agenda políti­
ca internacional. Há uma preocupação persistente com a denúncia daquilo 
que se consideram entraves políticos internacionais ao desenvolvim ento 
dos países pobres, bem como de m ecanism os, institu ições e comportam en­
tos que tendam a perpetuar o subdesenvolvim ento.
A essa constância de tem as, entretanto, não correspondeu um a única 
maneira de tentar implementá-los. Também desde o início do sécu lo XX, 
a política externa brasileira oscila entre duas posturas, que alguns analis­
tas identificam com o am ericanista e globalista. A postura am ericanista 
se caracterizaria pelo entendim ento de que o aum ento da m argem de m a­
nobra internacional do Brasil e a viabilização de suas preocupações cons­
tantes seriam maxim izados por uma maior aproximação política com os 
Estados Unidos, resguardadas as diferenças claras de in teresses em pontos 
específicos; em alguns m om entos, essa postura foi qualificada pelo debate 
político e acadêm ico, um tanto inapropriadamente, com o “alinhamento au­
tom ático” com os Estados Unidos. Já a postura globalista se caracterizaria 
pelo entendim ento contrário: de que a margem de manobra e os interesses 
internacionais do Brasil seriam atingidos mais facilm ente por uma grande 
diversificação dos seus relacionam entos políticos.
É esse conjunto de elem entos que gera a aludida ambigüidade quanto 
a dispositivos e a instituições multilaterais: em várias ocasiões, julgou-se que 
esses estariam consagrando situações que divergiriam dos objetivos inter­
nacionais do Brasil.
E ssa am bigüidade pode ser observada já na Liga das N ações. 0 Brasil 
participou da Liga desde suas primeiras d iscu ssões, em 1919; foi tam bém 
o primeiro País a abandoná-la, em 1926, em função da entrada da Alem a-
\ 325 Parte 2 — 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea
\ y Volume 2
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 317
Capítulo 10
nha — m as não deixou de colaborar com ela em diversas situações, m esm o 
depois de sua saída. Do m esm o m odo, o Brasil resistiu aos critérios de com ­
posição do Conselho E xecutivo da Liga, por considerar que se criaria um a 
desigualdade jurídica entre os estados, contrariamente aos princípios do 
Direito Internacional; em seguida, cedeu n esse ponto, a fim de fazer parte, 
como membro temporário, do primeiro grupo que comporia o Conselho, 
em função do prestígio que isso traria e da possibilidade de defender seus 
interesses; mas ten tou tam bém se tom ar membro perm anente do m esm o 
Conselho — reconhecendo e consagrando, portanto, aquela desigualdade 
que anteriorm ente denunciara16. .
Quando da criação da ONU, o Brasil reivindicava um assento perm a­
nente no Conselho de Segurança, pretensão que foi barrada por oposição 
do Reino Unido e da União Soviética. Não obstante, fez parte, como m em ­
bro não perm anente, do primeiro Conselho de Segurança da Organização. 
Entre janeiro de 1946 e dezem bro de 1968, o Brasil foi membro não perm a­
nente do Conselho de Segurança cinco vezes: em 22 anos de Conselho, o 
Brasil foi membro durante dez anos.
Quadro 10.2 — Presença do Brasil no Conselho de Segurança da ONU — 1946-2005
P e r í o d o I n t e r v a l o e n t r e p a r t ic ip a ç õ e s
Jan. 19 46 -D ec . 1 9 4 7
Jan. 1 9 5 1 -Dec. 1 9 5 2 3 6 meses
Jan. 19 54 -D e c . 1 9 5 5 12 meses
Jan. 19 63 -D e c . 1 9 6 4 8 4 meses
Jan. 196 7 -D e c . 1 9 6 8 2 4 meses
Jan. 19 88 -D e c . 1 9 8 9 2 2 8 meses
Jan. 19 9 3 -D e c . 1 9 9 4 3 6 mesesJan. 1 99 8 -D e c . 1 9 9 9 3 6 meses
Jan. 2 0 0 4 -D e c . 2 0 0 5 4 8 meses
Fonte: O rg an iza çã o das N açõ es Unidas. Disponível em: < h ttp ://w w w .u n .o rg >.
16 Sobre o Brasil na Liga das Nações: GARCIA, Eugênio Vargas. 0 Brasil e a Liga 
das Nações (1919-1926): vencer ou não perder. Porto Alegre/Brasília: Editora 
da UFRGS/Fundação Alexandre de Gusmão, 2000.
http://www.un.org
Em seguida, o Brasil ausentou-se do Conselho durante praticamente 20 
anos. E sse período coincide com a desconfiança, nos círculos diplomáticos 
brasileiros, em relação às organizações multilaterais, vistas como instrum en­
tos do “congelam ento do poder mundial”17, na expressão do influente Em­
baixador Araújo Castro. A atuação brasileira nos organismos internacionais 
n esse período m arcou-se tam bém por um a forte ênfase no desenvolvim en­
to e na redução das desigualdades entre os países. A diplomacia brasileira 
buscou, então, maximizar sua autonomia e sua influência internacionais por 
m eio de um distanciam ento çom relação às superpotências e aos organis­
m os, os quais, segundo se entendia, contribuíam para a preservação da 
situação diferenciada destas; e tam bém por m eio de um a postura interna­
cional bastante ativa, particularmente perante países em desenvolvim ento. 
Analistas da política externa brasileira referem -se a esse período com o o da 
busca de “autonomia pela distância”18 — com a tem ática geral da defesa do 
Direito Internacional sem pre perm eando a atuação diplomática brasileira.
Entretanto, ao final da década de 1980, essa postura com eçou a mudar. 
Os acontecim entos políticos na antiga União Soviética e, em seguida, no 
Leste Europeu sinalizavam uma alteração política substantiva na dinâmica 
política internacional e, eventualm ente, na própria estrutura política in­
ternacional. E ssa percepção coincide com a progressiva conscientização 
acerca do fenôm eno da globalização e, no âmbito político dom éstico, com 
a consciência do esgotam ento de um a política de desenvolvim ento carac­
terizada por fortes traços protecionistas. Com eça-se a repensar a inserção 
internacional do Brasil.
Uma primeira inflexão observável na política externa brasileira ocorre 
ao longo da década de 1990. Trata-se da intensificação da atuação brasileira
\ 318 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea
\ / ” Volume 2
17 ARAÚJO CASTRO, J. A. O congelamento do poder mundial. In: AMADO, Rodri­
go (Org.). Araújo Castro. Brasília: Editora da UnB, 1982. p. 197-212.
18 FONSECA JR., Gelson. Alguns aspectos da política externa brasileira contem­
porânea. In: FONSECA JR., Gelson. A legitimidade e outras questões interna­
cionais: poder e ética entre as nações. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 353-374; 
VIGEVANI, Tullo; OLIVEIRA, Marcelo Fernandes. A política externa brasi­
leira na era FHC: um exercício de autonomia pela integração. Trabalho apre­
sentado no 4o Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ciência Política, 
mimeo, 2004. Disponível em: <http://www.cienciapolitica.org.br/RI4-Tullo%20 
Vigevani%20e%20Marcelo%20Femandes%20de%2001iveira.pdf>. Acesso em: 
4 ago. 2004.
http://www.cienciapolitica.org.br/RI4-Tullo%20Vigevani%20e%20Marcelo%20Femandes%20de%2001iveira.pdf
http://www.cienciapolitica.org.br/RI4-Tullo%20Vigevani%20e%20Marcelo%20Femandes%20de%2001iveira.pdf
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 319
Capítulo 10
em organismos multilaterais, os quais deixam de ser percebidos com o in s­
trum entos de perpetuação da dom inação política das potências e passam 
a ser identificados com o espaço de aum ento da margem de manobra do 
Brasil, até m esm o relativam ente às potências — postura que analistas vêm 
chamando de “autonom ia pela participação”19 ou, então, “autonom ia pela 
integração”20. Com efeito, ruma das primeiras m anifestações dessa m udança 
de postura foi, claramente, o retom o ao Conselho de Segurança da ONU, em 
janeiro de 1988, com m andato até dezem bro de 1989. D esde então, o Brasil 
retom ou ao Conselho de Segurança por mais três períodos: janeiro de 1993 
a dezembro de 1994; janeiro de 1998 a dezem bro de 1999; e janeiro de 2004 
a dezem bro de 2005. A lém disso, desde o início da década de 1990, o Brasil 
retom a seu antigo pleito de se tom ar membro perm anente do Conselho 
de Segurança, na esteira de um processo de reformulação da ONU, o qual 
com eça a ser identificado com o necessário.
Entretanto, essa nova presença perante as N ações Unidas não im plica o 
abandono de tradicionais reservas da diplomacia brasileira. Dois pontos, em 
particular, m erecem destaque: de um lado, perm anece a resistência contra 
qualquer postura ou atitude que implique algum grau de relativização do 
princípio da não-intervenção em assuntos internos de outros países; de ou­
tro, a insistência de que as questões do desenvolvim ento e da redução das 
desigualdades internacionais fossem tratadas, no interior da ONU, de m odo 
sem elhante às questões de paz e de segurança.
E ssas ressalvas podem ser facilm ente observáveis na reação de alguns 
diplomatas à A genda p a ra a Paz, do então Secretário-Geral da ONU, 
Bouthros Bouthros-Ghali. De um lado, houve m anifestações em favor de 
uma “Agenda para o Desenvolvim ento”21; de outro, o Brasil manifestava for­
tes reservas com relação à idéia de Operações de Imposição da Paz, basea­
das no Capítulo VII da Carta da ONU, preferindo sempre as Operações de 
Manutenção da Paz, com consentim ento das partes. No caso das primeiras, 
o Brasil sempre insistiu em que elas fossem estabelecidas multilateralmen- 
te, com amplo consenso, e salientando que essa paz seria sempre frágil se
19 FONSECA JR., 1998.
20 VIGEVANI; OLIVEIRA, 2004.
21 Por exemplo: CARDOSO, Afonso José Sena. O Brasil nas Operações de Paz 
das Nações Unidas. Brasília: Instituto Rio Branco/Fundação Alexandre de Gus­
mão, 1998.168p; ver também FONSECA JR., 1998.
não houvesse o enfrentamento concomitante das questões que, segundo a 
diplomacia brasileira, seriam as causas do conflito — isto é, o subdesenvolvi­
m ento, a pobreza e as desigualdades sociais e econômicas. Mesmo com tudo 
isso em vista, permanece a preocupação quanto à interferência indevida em 
assuntos internos, bem como a preocupação de que tais m ecanism os fossem 
utilizados por grandes potências, em particular pelos Estados Unidos, como 
instrumentos de políticas unilaterais22.
Essas considerações explicam um aparente paradoxo. Entre 1956 e 
1968, o Brasil participou de seis das oito m issões estabelecidas no período, 
ou seja, de 75% das Operações de Paz da ONU23. Entre 1968 e 1987 — p e­
ríodo em que o Brasil não fez parte do Conselho de Segurança — , foram 
estabelecidas três Operações de Paz, e o País não participou de nenhu­
ma. De 1988 até 2002, quando o Brasil passou a participar regularmente do 
Conselho de Segurança, foram estabelecidas 42 novas Operações de Paz, 
e o Brasil participou de 18, ou seja, de 42% do total. Assim, comparando-se 
os dois períodos em que o Brasil engajou-se na ONU, sua participação em 
Operações de Paz é m enor no período em que tem m aiores ambições pe­
rante a Organização.
\ 3 2 0 ^arte 2 - 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea
Volume 2
22 A respeito da visão brasileira sobre paz e segurança na ONU, ver MELLO, Va- 
lérie de Campos. Paz e segurança na ONU: a visão do Brasil. In: BRIGAGÃO, 
Clóvis; PROENÇA JR., Domício (Org.). O Brasil e o mundo: novas visões. Rio 
de Janeiro: Francisco Alves, 2002. p. 163-185.
23 Considerações semelhantes às deste parágrafo foram apresentadas anterior­
mente por Clóvis Brigagão e Domício Proença Jr. Entretanto, há discrepância 
entre nossos dados e os apresentados por eles. Essa divergência explica-se por 
eles incluírem nas suas análises outras missões de que o Brasil participa ou 
participou, por exemplo, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ao 
passo que aqui só sãocomputadas as Operações oficialmente reconhecidas pela 
ONU como tais. A participação brasileira também foi estabelecida com base nos 
dados da ONU — disponíveis em: <http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text. 
htm>. Acesso em: 26 abr. 2005. Os dados são recortados e agregados diferen­
temente aqui. Ver BRIGAGÃO, Clóvis; PROENÇA JR., Domício. Concertação 
múltipla: a inserção internacional de segurança do Brasil. Rio de Janeiro: Fran­
cisco Alves, 2002. p. 118-125. Essa diferença explica ainda a discrepância entre 
as considerações feitas aqui e as apresentadas em outro texto de nossa autoria, 
no qual nos baseamos diretamente no texto de Brigagão e Proença. A respeito, 
ver DINIZ, 2005.
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm
http://www.un.org/Depts/dpko/dpko/text.htm
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 321
Capítulo 10 \
A questão é que o aum ento das M issões de Paz da ONU desde 1989 coin­
cide com a entrada em cena das operações de caráter impositivo, baseadas 
no Capítulo VII da Carta da ONU, a que o Brasil resiste intensam ente. Com 
efeito, o País só passou a participar de m issões com mandato coercitivo a 
partir de 1999, no Timor Leste. Isso é bastante sintomático: sobretudo des­
de 1988, u m a característica da participação brasileira em Missões de 
P az é que ela se dá priricipalm ente em pa íses da A m érica L atina ou 
de língua portuguesa. Das 18 O perações de Paz da ONU de que o Brasil 
participou n esse período, dez — ou seja, 55,6% — foram na América Latina 
ou em países de língua portuguesa. O Brasil claramente privilegia a partici­
pação nas áreas que considera prioritárias para a política externa.
Ao se pôr em perspectiva o processo de aproximação com os países 
mencionados, o qual foi acelerado a partir da década de 1990, pode ser cons­
tatada a conexão, ainda que indireta, entre a participação brasileira em Ope­
rações de Paz e outras prioridades da política externa brasileira.
A outra grande marca da nova postura internacional brasileira a partir 
da década de 1990 é a sua acelerada e intensa aproximação política com a 
América Latina. Consciente da necessidade de abrir seus m ercados à com­
petição internacional, mas tem endo fazê-lo de maneira desordenada e em 
detrimento à economia do País, além de pressionado pela “Iniciativa para as 
Américas” QPA), lançada pelo Presidente George H. W. Bush — e que depois 
se converteria na proposta de uma Área de Livre Comércio das Américas 
ÇAlca) — , e consoante o disposto na Constituição Brasileira, segundo a qual 
o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos po.vos 
da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana 
de nações”24, o País inicia um intenso processo de aproximação com os países 
dessa região, em um exercício bastante proativo de iniciativa política.
Na verdade, e sse processo de aproximação tem raízes anteriores. Em 
1979, após o equacionam ento da controvérsia das Hidrelétricas de Corpus e 
Itaipu, e após a Guerra das FalMands-Maivinas em 1982, tem início um forte 
processo de aproximação entre Brasil e Argentina, outrora rivais históricos 
no continente25. E sse processo, que envolveu acelerados m ecanism os de
24 Art. 4o, parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil.
25 Sobre a aproximação entre Brasil e Argentina, ver CAMARGO, Sonia de; VAZQUEZ 
OCCAMPO, José Maria. Autoritarismo e democracia na Argentina e Brasil:
\ / ' Volume 2- -.'
criação de confiança mútua, até m esm o em questões de defesa e de seguran­
ça e, particularmente, em assuntos nucleares, resultou em vários tratados de 
cooperação bilateral, dando um salto multilateral com o Tratado de Assun­
ção, em 1991, o qual criou o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), que 
incluía, originalmente, além de Brasil e Argentina, o Paraguai e o Uruguai26.
A aceleração da criação do M ercosul refletia o m ovim ento exigido da 
diplomacia brasileira no início da década de 1990. A consciência do esgota­
m ento do m odelo anterior de desenvolvim ento exigia um a nova abertura ao 
com ércio exterior — o que implicava a criação urgente de novos m ercados 
para produtos brasileiros, de m odo a evitar que um esperado crescim ento 
das im portações resultasse em déficits desastrosos na balança comercial 
brasileira. A América Latina parecia, então, o espaço mais evidente e pro­
missor, uma vez que, como destaca Vaz, a taxa de crescim ento do com ércio 
intrarregional fora, na década de 1970 e início da década de 1980, superior 
à taxa de crescim ento do com ércio internacional27. Entretanto, a IPA, anun­
ciada pelo Presidente dos Estados Unidos em junho de 1990, poderia anular 
essa oportunidade, uma vez que a prom essa de maior acesso ao m ercado 
norte-am ericano poderia ser m uito tentadora aos vizinhos latino-america­
nos do Brasil, o que diminuiria a capacidade de negociação comercial brasi­
leira. De fato, a proposta de uma Área de Livre Comércio em butida na IPA 
fora concebida como um conjunto de acordos bilaterais entre os Estados 
Unidos e cada um dos países da região28. E ssa preocupação era reforçada 
pela quase sim ultaneidade entre o anúncio da IPA e das negociações entre 
o M éxico e os Estados Unidos — as quais, posteriorm ente, com a inclusão 
do Canadá, desembocariam no Acordo de Livre Comércio da América do 
Norte (Nafta), que entraria em vigor em Io de janeiro de 199429.
A IPA não vingou, mas a idéia de uma Área de Livre Comércio das Am é­
ricas voltou à tona na I Cúpula Presidencial das Américas, realizada em
\ 3 2 2 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea
uma década de política exterior (1973-1984). São Paulo: Convívio, 1988 (Cole­
ção Política e Estratégia).
26 Sobre a construção do Mercosul, ver VAZ, Alcides Costa. Cooperação, inte­
gração e processo negociador: a construção do Mercosul. Brasília: Instituto 
Brasileiro de Relações Internacionais (EBRI), 2002.
27 Ibid.,p. 74.
28 ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. A Alca na política externa brasileira. 
Política Externa, v. 10, n. 2, p. 7-20, set./out./nov. 2001.
VAZ, 2002, p. 103.2 9
Miami em dezembro de 1994. Novam ente, a proposta é recebida M am ente 
pelo Brasil. A questão da Alca se tom aria um a das mais intensas no debate 
público em política externa brasileira em todos os tem pos. Entidades na­
cionais de grande porte, com o a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 
(CNBB), apoiaram plebiscitos informais sobre a Alca, e 0 então candidato 
à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmara, em 2002, que a Alca se 
assem elharia antes a um a forma de anexação do que de integração30.
A percepção generalizada de que a Alca seria contrária aos interesses 
do País levou, de um lado, à protelação da sua criação e operacionalização, 
e, de outro, a iniciativas conjuntas que aum entassem a capacidade de nego­
ciação do Brasil. A intensificação da criação do M ercosul era instrum ental 
n esse processo, assim com o a assinatura, entre 0 M ercosul e a União Eu­
ropéia, de um Acordo Quadro de Cooperação Inter-regional, em dezembro 
de 1995.
Entretanto, essa postura de protelação sofre uma inflexão por ocasião 
da III Cúpula Presidencial das Américas, em Québec, em 2001. Começou a 
evidenciar-se que a protelação brasileira não impedira o avanço das negocia­
ções; n esse caso, a pior situação, para o Brasil, não seria a criação da Alca, 
mas, sim, a criação da Alca sem sua presença, ou sem que o País pudesse 
garantir alguns de seus interesses na negociação. Além disso, consolidara-se 
a percepção de que nem todos os segm entos da atividade econôm ica sairiam 
prejudicados com a criação da Alca; ao contrário, alguns deles claramente 
se beneficiariam, e ainda poderia haver um resultado agregado benéfico, à 
medida que os custos de insumos importados caíssem. Por fim, as alternati­
vas que haviam sido consideradas ao longo desses anos revelaram-se m enos 
promissorasdo que pareciam à primeira vista31.
D esse m odo, a nova posição com relação à Alca exigia do Brasil um 
renovado esforço de negociação e uma tentativa de reconstrução do seu 
poder de barganha para essa negociação. Não por acaso, o final do governo 
do Presidente Fernando Henrique Cardoso foi caracterizado por uma rein- 
tensificação da aproximação com a América Latina.
Quando o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva tom ou posse, em Io de 
janeiro de 2003, a política externa brasileira parecia retomar praticam ente
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 323 ;
Capítulo 10 \
30 Esse discurso mudou após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva como Presidente 
da República.
Seguiu-se aqui, em linhas gerais, a exposição de ALBUQUERQUE, 2001, p. 15-18.31
\ / ' Volume 2•.. *
os m esm os pontos do período im ediatam ente anterior, mas com uma reno­
vada assertividade, tentando deixar para trás o que se julgava um a postura 
defensiva da política externa do Presidente Fernando Henrique Cardoso32.
Em primeiro lugar, já no seu discurso de posse, o Presidente Lula afir­
mava que sua política externa seria “orientada por um a perspectiva hum a­
nista” e “instrum ento de desenvolvim ento nacional”, devendo “contribuir 
para a m elhoria das condições de vida da m ulher e do hom em brasileiros”. 
Citando especificam ente, e n essa ordem, as negociações em tom o da Alca, 
entre o M ercosul e a União Européia e na Organização Mundial do Comér­
cio (OMC), o Presidente defendia o com bate ao protecionism o, a busca da 
eliminação dos “escandalosos” subsídios agrícolas dos países desenvolvidos 
e das restrições às exportações de produtos industriais brasileiros. Em se ­
guida, afirmava claram ente que a principal prioridade de seu governo seria 
“a construção de um a América do Sul politicam ente estável, próspera e 
unida, com base em ideais dem ocráticos e de justiça social”, enfatizando 
que isso exigiria um a “ação decidida de revitalização do M ercosul”, afirma­
do explicitam ente com o “sobretudo um projeto político”, o qual repousa em 
alicerces económ ico-com erciais. A partir do M ercosul, e “desde que chama­
dos e na m edida de nossas responsabilidades”, o Brasil se disporia a con­
tribuir com vários dos vizinhos na América do Sul que estivessem vivendo 
situações difíceis, “para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com 
base no diálogo, nos preceitos dem ocráticos e nas normas constitucionais 
de cada país”, estendendo ainda a todos os países da América Latina esse 
“em penho de cooperação concreta e de diálogos substantivos”.
Além disso, o Presidente Lula afirmou que pretendia ter com os Esta­
dos Unidos uma “parceria madura, com base no interesse recíproco e no 
respeito m útuo”; o interesse de aprofundar o entendim ento e cooperação 
com países desenvolvidos, como os estados-m em bros da União Européia e 
o Japão; e o interesse de aprofundar as relações com “grandes nações em 
desenvolvim ento”, como a China, a índia, a Rússia (s ic ) e a África do Sul. 
Reafirmou, ainda, os laços com o continente africano.
Por fim, o Presidente tratou de sua intenção de “estimular os incipien­
tes elem entos de multipolaridade da vida internacional contem porânea”, 
defendendo a “democratização das relações internacionais sem hegem o-
\ ^ 2 4 PQrte 2 — 0 Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional co n tem p o rân ea
32 Ver, por exemplo: VAZ, Alcides Costa. 0 governo Lula: uma nova política ex­
terior? Brasília, 2003, mimeo.
Capítulo 10
nias de qualquer espécie”; de valorizar organizações multilaterais, “em espe­
cial as Nações Unidas”, dizendo que as resoluções do Conselho de Segurança 
devem ser fielm ente cumpridas e, finalm ente, defendendo “um Conselho de 
Segurança reformado, representativo da realidade contemporânea, com p a í­
ses desenvolvidos e em desenvolvim ento das várias regiões do m undo 
entre os seus membros perm anentes"33.
No geral, os m esm os tem as foram retom ados no discurso de p osse do 
Ministro das R elações Exteriores, Celso Amorim, tam bém em I o de janeiro 
de 2003. Algumas ênfases, entretanto, são interessantes de destacar. Em 
primeiro lugar, 0 Chanceler afirmou que 0 Brasil teria “um a política exter­
na voltada para 0 desenvolvim ento e para a paz”, nessa ordem, afirmando 
assim a centralidade da questão do desenvolvim ento. Ao falar da África, 
m encionou explicitam ente Angola e Moçambique, tendo ainda enfatizado, 
no m esm o parágrafo, que valorizaria a “cooperação no âmbito da Comuni­
dades dos Países de Língua Portuguesa (a CPLP), inclusive com 0 seu mais 
novo membro, 0 Timor L este”.
Observam-se, então, nítidos traços de continuidade — embora afirmadas 
de maneira marcadamente assertiva — e algumas nuances significativas. E s­
tabelece-se claramente a prioridade das negociações comerciais e da intensa 
atuação política, a partir do Mercosul, nos países da América Latina, agora 
com uma ênfase especial em seus vizinhos mais imediatos, na América do 
Sul — embora a expressão não conste nos discursos de posse, após a pos­
se do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva passa-se, até m esm o, a falar em 
“liderança brasileira na América do Sul”, sem que isso tenha suscitado, até 
0 momento, m anifestações de desagrado significativas por parte dos países 
vizinhos. Reenfatizam-se os laços com os países africanos e de língua portu­
guesa, áreas tradicionais de presença política brasileira. Por fim, no âmbito 
da ONU, afirma-se a prioridade política da Organização e de seu Conselho de 
Segurança, reformulado para incluir “países em desenvolvim ento das várias 
regiões do mundo entre seus membros perm anentes” — base da pretensão 
brasileira a um assento perm anente no Conselho.
No que se refere a Operações de Paz, observa-se uma aparente reto­
m ada da participação brasileira após a p osse do Presidente Lula: das cinco 
novas O perações de Paz da ONU, o Brasil integrou três — Libéria (TTNMTT.),
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 325 /
33 Discurso de posse do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em Io 
de janeiro de 2003. Itálicos acrescentados.
Côte cTIvoir (UNOCI) e Haiti (MESÍUSTAH). Pareceria pouco para afirmar com 
certeza um a nova tendência, m as M indícios de um a expansão do interes­
se brasileiro: embora Libéria e Côte d lvoir estejam na costa ocidental da 
África, e o Atlântico Sul seja uma tradicional área de in teresse brasileiro, 
desde a criação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, o Brasil não 
havia participado, por exem plo, das m issões em Serra Leoa de 1998 e 1999 
(UNOMSIL e UNAMSIL, respectivam ente). Por sua vez, as duas Operações 
de Paz estabelecidas de 2003 em diante sem participação do Brasil foram 
no Burundi (ONUB) e no Sudão (ONMIS) — países africanos, m as que não 
pertencem ao Atlântico Sul.
Já o latino-americano Haiti estaria claram ente na área prioritária do 
Brasil. Entretanto, a ONU havia estabelecido anteriorm ente quatro m issões 
para o Haiti — em 1993, em 1996 e duas em 1997 (respectivamente, UNMIH, 
UNSMIH, MEPONUH e UNTMIH) — , e o Brasil não havia participado de ne­
nhuma delas. Mas a participação brasileira na MINUSTAH, de 2004, traz 
um a inovação realm ente significativa para a política brasileira de participa­
ção em Operações de Paz: no Haiti, o Brasil aceitou não apenas participar, 
mas liderar uma Operação de Paz referida ao Capítulo VII da Carta da ONU. 
O ponto é importante e m erece ser explorado.
10.4 A PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NA MINUSTAH
Oficialmente, a participação brasileira na Missão de Estabilização das 
N ações Unidas no Haiti (MINUSTAH) teria nascido de um convite feito pelo 
Presidente da França, Jacques Chirac, em 4 de março de 200434. O telefo­
nem a teria partido do Presidente Lula para tratar de um pedido feito ao 
Presidente francês de que este avaliasse um a proposta de flexibilização das 
regras do Fundo Monetário Internacional (FMI) para os países emergentes. 
Na ocasião, entretanto, o Presidente Chirac teria levantado o tem a da crise
\ 3 2 6 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a ag en c ia in ternacional c o n tem p o rân ea
Volume 2
34 A legislação que rege a decisão é a seguinte: Lei n. 2.953, de 17 de novembro de 
1956, e Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999, cuja redação foi altera­
da pela Lei Complementar n. 117, de 3 de setembro de 2004. Agradeço a Dorival 
Bogoni essas indicações. Uma discussão geral do processo decisório brasileiro 
para Operações de Paz pode ser encontrada em: MATHEUS E SOUZA, André; 
ZACCARON, Beatriz. A participação do Brasil em missões de manutenção 
de paz: o caso do Haiti. Trabalho apresentado ao II Encontro Interinstitucional 
de Análise de Conjuntura Internacional. Rio de Janeiro, 9 e 10 de novembro de 
2004.
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3 2 7
e
Capítulo 10
no Haiti e teria dito ao Presidente Lula que gostaria de ver nas m ãos do 
Brasil o comando de um a força de paz das N ações Unidas, a ser criada dali 
a aproximadam ente três m eses. O Presidente Chirac teria dito ainda que 
esta era a vontade do Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan. O Presidente 
Lula teria dito, então, dispor de aproximadam ente 1.100 m ilitares35 que po­
deriam participar da futura m issão36.
Entretanto, três dias antes, em I o de março de 2004, o Brasil já havia m a­
nifestado in teresse em participar da m issão que seria caracterizada com o 
de M anutenção da Paz, a qual substituiria a Força Multinacional Provisória 
estabelecida pela Resolução n. 1.529, de 29 de fevereiro de 2004 — embora 
não tenha havido, na ocasião, m anifestação pública de in teresse em com an­
dar a m issão. N essa ocasião, afirmava-se que a decisão final seria tom ada 
pelo Itamaraty e pelo M inistério da D efesa “nos próxim os dias”37. Sendo 
assim, o convite do Presidente Chirac, na verdade, parece decorrer de uma 
m anifestação brasileira in icia l— até porque o Presidente Lula pôde im edia­
tam ente informar ao Presidente Chirac a disponibilidade de 1.100 militares, 
o que indica que já houvera consulta prévia ao Ministério da D efesa e ao 
Ministério das Relações Exteriores.
Essa distinção é im portante porque m ostra que a decisão brasileira não 
decorreu de nenhum constrangim ento que supostam ente pudesse advir da 
recusa em participar da m issão. Ao contrário, a dinâmica parece revelar 
antes uma iniciativa brasileira, um in teresse claro em participar, apesar das 
dificuldades já m encionadas anteriorm ente, particularmente no que se re­
fere ao problema do Capítulo VII da Carta da ONU.
Ao Ministério da D efesa coube ainda o levantam ento dos custos da ope­
ração, ao passo que ao Ministério do Planejam ento, Orçamento e Gestão 
coube avaliar a liberação de crédito extraordinário para cobrir as despe­
35 Na Mensagem Presidencial enviada à Câmara dos Deputados em 6 de maio de 
2004, o Presidente Lula solicita autorização para o envio de 1.200 soldados 
— 100 a mais, do que o proposto originalmente.
36 BECK, Martha; OLIVEIRA, Eliane. Brasil pode comandar missão no Haiti. O 
Globo, 5 mar. 2004, p. 38; MONTEIRO, Tânia. Brasil deve comandar força de 
paz no Haiti. O Estado de S. Paulo, 5 mar. 2004b, p. A-14; WESTIN, Ricardo. 
Brasil poderá comandar força de paz no Haiti. Folha de S. Paulo, 5 mar. 2004, 
p. A-12.
37 OLIVEIRA, Eliane. Forças brasileiras só irão num segundo momento. O Globo, 
2 mar. 2004, p. 27.
sas — m esm o havendo a expectativa de reem bolso parcial das despesas 
pela ONU38. Além disso, embora não haja referência pública a consultas ao 
Ministério da Fazenda, é praticam ente im possível que este não tenha sido 
consultado: tanto a centralidade política do Ministro da Fazenda na atual 
administração quanto a importância m áxim a atribuída à estabilidade m a­
croeconôm ica praticam ente im pedem que decisões d esse porte sejam to ­
madas à revelia do Ministro da Fazenda. É tam bém bastante provável que 
tenha havido consultas com o Ministério da Justiça e/ou com o Advogado- 
Geral da União a respeito de aspectos jurídicos da questão; entretanto, não 
há m enção pública ao assunto.
A proposta encontrou resistência até m esm o na base govem ista no 
Congresso Nacional. Alguns congressistas e intelectuais salientavam as acu­
sações feitas pelo ex-Presidente haitiano e afirmavam que o Brasil estaria 
legitim ando “a política imperialista e intervencionista de Bush”39. Não obs­
tante, no dia 6 de maio de 2004, o Presidente Lula encam inhou à Câmara 
dos Deputados uma M ensagem Presidencial (MSC 205/2004)40 em que so­
licitou a autorização para enviar 1.200 soldados ao Haiti41. A m ensagem foi 
debatida em sessão conjunta da Comissão de R elações Exteriores e D efesa 
Nacional e da Comissão de Constituição e Justiça e encaminhada ao Plená­
rio da Câmara para votação. Antes dos debates e votação, no dia 12 de maio 
de 2004, houve uma audiência pública do Ministro das Relações Exteriores, 
Celso Amorim, e do então Ministro da Defesa, José Viegas Filho, em sessão 
conjunta da Comissão de Relações Exteriores e D efesa Nacional da Câmara 
dos Deputados e do Senado Federal42. Durante o debate, houve críticas da 
oposição, a qual salientava o fato de o Brasil ir ajudar a m anter a ordem em
*. ^ 2 8 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea
Volume 2
38 GODOY, Roberto. Brasileiros devem entrar em combate no Haiti. O Estado de 
S.Paulo, 6 maio 2004, p. A-20.
39 SANTOS, Klécio. Missão do Brasil no Haiti enfrenta resistência no PT. Zero 
Hora, 21 abr. 2004. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br>.
40 Agradeço imensamente à Sra. Jaci Teixeira Caetano de Almeida, da Subsecre­
tária de Informações da Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal, a cujas 
presteza e solicitude devo o acesso às informações acerca da tramitação da 
Mensagem Presidencial no Senado Federal.
41 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Câmara analisa envio de soldados para o 
Haiti. A Semana, 10 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>.
42 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Ministros defendem envio de soldados para 
o Haiti. Tempo Real, 12 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>.
http://www.defesanet.com.br
http://www.camara.gov.br
http://www.camara.gov.br
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z
Capítulo 10
um país estrangeiro, enquanto no Brasil haveria tam bém graves problemas 
de segurança pública; levantou-se a possibilidade de que o Brasil estaria 
sendo usado para defender in teresses dos Estados Unidos e da França; e 
m anifestou-se insatisfação quanto ao fato de as cores da ONU terem sido 
pintadas nos equipam entos antes da aprovação do Congresso43.
Em seguida, houve a votação do requerimento de urgência para a Men­
sagem 205/2004, no Plenário da Câmara. Na primeira votação, a urgência 
foi rejeitada por pedido de verificação de quórum realizado pelo D eputa­
do Fernando Gabeira (na ocasião, sem partido-RJ), contrário ao envio do 
contingente, por considerar que o Haiti seria área de influência dos Estados 
Unidos, Canadá e França, e que o dinheiro a ser gasto na m issão deveria ser 
gasto no Brasil44. Na sessão seguinte, no m esm o dia, entretanto, a urgência 
foi aprovada45.
No dia seguinte, a matéria foi aprovada por votação simbólica — sem 
registro de votação individual — , m ediante acordo entre os líderes dos par­
tidos. O Partido da Frente Liberal (PFL), o Partido da Social Dem ocracia 
Brasileira (PSDB), o Partido Dem ocrático Trabalhista (PDT), da oposição; 
e o Partido Popular Socialista (PPS) e o Partido Verde (PV), da base gover- 
nista, votaram contra a aprovação da medida, com base nos argum entos já 
m encionados46. Aprovada pelo Plenário, a M ensagem foi convertida no Pro­
jeto de D ecreto Legislativo (da Câmara) n. 1.280/2004 e encaminhado ao 
Senado Federal. Após exam e da Comissão de Relações Exteriores e D efesa 
Nacional e da Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa Legislativa,e já convertido no Projeto de D ecreto Legislativo (do Senado) n. 568/2004, 
o Projeto foi subm etido à votação do Plenário do Senado no dia 19 de maio 
de 2004, tendo sido, então, aprovado, em um total de 48 votantes, por 38 votos 
a favor e 10 contra. Foi promulgado, assim, o Decreto Legislativo n. 207, de
43 SCOLESE, Eduardo; SOLIANI, André. Brasil usa soldo para pagar missão no 
Haiti. Folha de S.Paulo, 13 maio 2004, p. A-15.
44 MADUENO, Denise. Câmara rejeita urgência sobre envio de tropas. O Estado 
de S.Paulo, 13 maio 2004, p. A-18.
45 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Deputados aprovam urgência para tropas no 
Haiti. Tempo Real, 12 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>.
46 KRAKOVICS, Fernanda et al. Câmara aprova envio de soldados brasileiros ao 
Haiti. Folha de S.Paulo, 14 maio 2004, p. A-10; MADUENO, Denise. Câmara 
aprova o envio de tropas ao Haiti. O Estado de S.Paulo, 14 maio 2004, p. A-15; 
AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Deputados aprovam envio de tropas ao Haiti. 
Tempo Real, 13 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>.
http://www.camara.gov.br
http://www.camara.gov.br
19 de maio de 2004, que autoriza o envio do contingente de 1.200 militares 
brasileiros para a M3NUSTAH.
À primeira vista, a decisão brasileira de participar da MINUSTAH e de 
liderá-la, criada pela Resolução n. 1.542, de 30 de abril de 2004, pareceria 
fácil de entender. O governo brasileiro tem claram ente a intenção de obter 
um assento perm anente no Conselho de Segurança das N ações Unidas e, 
embora as autoridades diplomáticas brasileiras relutem em publicam ente 
relacionar a participação brasileira em tal m issão ao objetivo do assento 
perm anente no Conselho, há relatos na imprensa de declarações de diplo­
m atas de outros países que afirmam ser essa participação a “prova de fogo” 
da candidatura do Brasil ao assento perm anente47. Autoridades militares e 
m embros do Ministério da D efesa, por sua vez, têm m enos relutância em 
associar os dois tem as. Também no Congresso Nacional, a associação entre 
as duas questões é clara, sendo feita explicitam ente por lideranças gover- 
nistas, por exem plo, o Deputado Professor Luizinho, na ocasião líder do 
governo na Câmara dos Deputados48. Assim, a decisão brasileira pareceria 
ser um a decorrência direta, linear, consistente, de um objetivo geral da 
política externa brasileira.
Um olhar mais detido, entretanto, perceberá um delicado jogo de “idas 
e vindas”, decisões aparentem ente inconsistentes, acentuadas ênfases em 
sutilezas interpretativas as quais sugerem que a decisão foi mais com plexa 
do que pareceria à primeira vista. Por exem plo, embora o Brasil tenha vota­
do a favor da Resolução n. 1.529, de 29 de fevereiro de 2004, que cria a For­
ça Multinacional Provisória (M ultinational ín terim Force'), não aceitou 
participar dessa Força, aparentem ente por considerar que tal Resolução 
teria estabelecido um a Operação de Imposição da Paz (baseada no Capítu­
lo VII da Carta das N ações Unidas): o Brasil só aceitaria participar de uma 
Operação de M anutenção da Paz (supostam ente baseada, portanto, no Ca­
pítulo VI da Carta), em um m om ento posterior49; esse m om ento posterior 
seria o estabelecido pela Resolução n. 1.542.
' 3 3 0 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternac iona l co n tem p o rân ea
Volume 2
47 Ver, por exemplo: CHADE, Jamil. Missão no Haiti pode ajudar País no CS da 
ONU. O Estado de S.Paulo, 5 maio 2004, p. A-16.
48 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Câmara analisa envio de soldados para o Haiti. 
A Semana, 10 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/intemet/ 
agencia/materias.asp?pk=49862&pesq=Haiti>.
49 OLIVEIRA, 2004, p. 27.
http://www.camara.gov.br/intemet/agencia/materias.asp?pk=49862&pesq=Haiti
http://www.camara.gov.br/intemet/agencia/materias.asp?pk=49862&pesq=Haiti
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 331
Capítulo 10 \ /
O problema é que tam bém nesta últim a resolução o Conselho de Segu­
rança afirma estar agindo com base no Capítulo VH. A interpretação do 
governo brasileiro é de que não há qualquer inconsistência: na Resolução 
n. 1.529, a referência ao fato de que o Conselho de Segurança está “agindo 
com base no Capítulo VII” da Carta é feita já no preâmbulo dessa Resolu­
ção; já na Resolução n. 1.542, esta referência ao Capítulo VH da Carta é feita 
apenas no § 7 — o que indicaria, na interpretação do governo brasileiro, 
que apenas esse parágrafo é baseado no Capítulo VII, e não toda a Resolu­
ção n. 1.542; de acordo com esta interpretação, portanto, a MINUSTAH não 
estaria baseada no Capítulo VII, sendo uma Operação de M anutenção da 
Paz50. Não obstante essa dificuldade, não aceitar a liderança ou não aceitar 
participar da MINUSTAH talvez fosse um golpe fatal na pretensão brasileira 
de ocupar um assento perm anente no Conselho de Segurança51.
É preciso destacar quanto a situação é potencialm ente embaraçosa 
para o Brasil: em 31 de julho de 1994, foi votada no Conselho de Segurança 
a Resolução n. 940, aprovada por 12 votos contra duas abstenções, estan­
do Ruanda ausente. As abstenções foram China e, ironicamente, o Brasil: o 
governo brasileiro julgava que a Resolução deveria basear-se no Capítulo 
VI52. E ssa tensão tem obrigado as autoridades brasileiras a um significativo 
esforço retórico, que sistem aticam ente relaciona a presença das Forças da 
ONU a um concom itante engajamento internacional no enfrentam ento das 
causas do conflito no Haiti: a fom e, a pobreza, a fragilidade das institu ições 
dem ocráticas53. Além disso, afirma-se, pelo m enos dom esticam ente, a in­
50 Um outro exemplo de remissão ao Capítulo VII não nas cláusulas preambulares, 
mas apenas em um parágrafo posterior, foi a UNMISET, estabelecida para o Ti­
mor Leste em 2002, de que o Brasil também participa. Entretanto, a UNTAET, 
estabelecida pela Resolução n. 1.272, de 25 de outubro de 1999, de que o Brasil 
também participou, foi claramente baseada no Capítulo VH, já nas cláusulas 
preambulares, em que o Conselho afirma estar “agindo sob o Capítulo VH”, para 
só depois criar a Operação de Paz.
51 Como disse o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discurso na 59a As- 
sembléia-Geral da ONU, em 21 de setembro de 2004: “Foi assim que atendemos, 
o Brasil e outros países da América Latina, à convocação da ONU para contri­
buir na estabilização do Haiti. Quem defende novos paradigmas nas relações 
internacionais não poderia se omitir diante de uma situação concreta".
52 LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. Futebol, paz e riscos para o Brasil no Haiti. 
Política Externa, 13 (2), set./out./nov. 2004, p. 79.
53 Ver, por exemplo, “Discurso do Senhor Presidente da República, Luiz Inácio 
Lula da Silva, na cerimônia de formatura dos novos diplomatas”, pronunciado no
terpretação de que a MINUSTAH estaria agindo com base no Capítulo VII 
apenas no que se refere a disposições de segurança. Sendo assim, é nítido o 
esforço brasileiro de diferenciar a Resolução n. 1.542 da Resolução n. 94054.
As autoridades diplomáticas brasileiras tendem a evadir as questões 
embaraçosas, procurando justificar a participação com base na solidarieda­
de regional e em questões humanitárias, desvinculando-se de qualquer obje­
tivo político e descartando as críticas baseadas nas alegações do ex-Presi- 
dente haitiano de que teria sido deposto. O Embaixador brasileiro na ONU 
freqüentem ente tem se referido a am eaças de banho de sangue antes da 
saída do ex-Presidente, e jamais se refere a qualquer vantagem para o Bra­
sil decorrente da aprovação das R esoluções ou da participação na m issão55. 
Mesmo aqueles que aludem a eventuais benefícios políticos fazem questão 
de matizá-los, afirmando que nada estaria garantido56. Adicionalm ente, o 
Brasil insiste na necessidade de enfrentar, tam bém no Haiti, o subdesenvol­
vim ento, a pobreza e as desigualdades sociais, chegando m esm o a condicio­
nar sua participação a esse enfrentam ento.O ponto é que o Brasil entende que uma participação ativa na ONU é 
um elem ento central de sua busca por maior autonom ia política na cena in­
ternacional, tanto que pleiteia uma reformulação da Organização de m odo 
a se tom ar membro perm anente do seu Conselho de Segurança. E sse pleito 
estaria enfraquecido em decorrência da redução da participação brasileira 
nas M issões de Paz da Organização, particularmente no período em que se
\ 232 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea
Volume 2
Palácio do Itamaraty em 20 de abril de 2004; “Discurso do Presidente da Repú­
blica, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de embarque das tropas militares 
para missão de paz no Haiti”, pronunciado na Base Aérea de Brasília em 31 de 
maio de 2004; e o “Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Sil­
va, no ato inaugural da 18a Cúpula Presidencial do Grupo do Rio”, pronunciado 
no Rio de Janeiro em 4 de novembro de 2004.
54 Ver, por exemplo, SARDENBERG, Ronaldo. Brasil, política multilateral e Na­
ções Unidas. Conferência apresentada ao Instituto de Estudos Avançados da 
, Universidade de São Paulo em 17 de agosto de 2004. Transcrição disponível 
em: <http://www.usp.br/iea/sardenberg.html>.
53 SARDENBERG, 2004; CELESTINO, Helena. Corpo a corpo: Ronaldo Sarden- 
berg. O Globo, 10 mar. 2004, p. 33.
56 Ver, por exemplo, declarações do General Augusto Heleno: MONTEIRO, Tâ­
nia. Batalhão gaúcho comandará missão no Haiti. O Estado de S.Paulo, 6 mar. 
2004a, p. A-20.
http://www.usp.br/iea/sardenberg.html
Capítulo 10
intensifica a presença brasileira no Conselho — o que críticos poderiam 
entender como significando que o Brasil quer o prestígio, mas não aceita 
as responsabilidades. D esse ponto de vista, o Haiti apareceria como uma 
oportunidade ímpar: trata-se de um a situação com grande visibilidade po­
lítica em um a região de grande prioridade da política externa brasileira, 
que poderia alavancar ou, p elo m enos, legitimar, de certa forma, a desejada 
liderança brasileira na Am érica do Sul — na m edida em que o Brasil, por 
liderar as forças a serviço da ONU, coordenaria a resposta do continente 
sul-americano a um a crise em região vizinha. Como já visto, esse reconhe­
cim ento da liderança.brasileira ná América do Sul é percebido com o crucial 
para o esforço de coordenação política em tom o de negociações comerciais, 
particularmente no caso da Alca.
Com isso, ao contrário do que se vem afirmando, pode-se perceber uma 
clara vinculação entre a liderança do Brasil na MINUSTAH e demais interes­
ses políticos brasileiros — e, mais indiretam ente, até m esm o a interesses 
comerciais. No caso d esses últim os, embora seja m atem aticam ente eviden­
te que a atuação no Haiti, tom ada isolam ente, implica antes prejuízos que 
ganhos, poderia haver ganhos econôm icos in d iretos , na m edida em que 
eventuais reconhecim ento e aceitação da importância da liderança política 
brasileira na América do Sul viabilizem ou facilitem um esforço de coorde­
nação política em escala continental voltado para as negociações comerciais 
multilaterais, principalm ente no caso da Alca, que teve em 2005 um ano 
decisivo. Não estava claro se essa consideração estava ou não efetivam ente 
presente quando da decisão do governo brasileiro de integrar e liderar a 
MINUSTAH, ou se pesou efetivam ente no cálculo dos responsáveis.
1 0 .5 C o n c lu s ã o
A decisão brasileira de participar da Missão de Estabilização das Na­
ções Unidas no Haiti (MINUSTAH) e de liderá-la reflete a dificuldade de se 
compatibilizarem parâmetros históricos da atuação diplomática do Brasil, 
dificuldade manifestada claramente na criativa interpretação que o governo 
brasileiro dá à relação entre a Resolução n. 1.542, de 30 de abril de 2004, e 
o Capítulo VII da Carta das N ações Unidas. Ao que parece, a decisão do País 
rompe com um entendim ento tradicional da diplomacia brasileira — que 
resistia a Operações de Imposição da Paz — em prol do im pacto positivo 
que se espera quanto à atuação no Haiti: em primeiro lugar, no que se refere
O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3̂3
a um objetivo precípuo da atual política externa brasileira, que é o assento 
perm anente no Conselho de Segurança das N ações Unidas; e, em segundo 
lugar, para a liderança brasileira na América Latina, com seus eventuais im­
pactos em negociações comerciais de grande porte em que o Brasil está en­
volvido, e que são percebidas como cruciais para a econom ia brasileira. Essa 
decisão abalaria a imagem principista, juridicista, da diplomacia brasileira, e, 
portanto, vem exigindo um esforço retórico de justificação que não parece 
totalm ente convincente, ao m enos em alguns círculos políticos. Eventual­
m ente, a liderança da MINUSTAH pode se revelar, no futuro, um ponto de 
inflexão na política externa brasileira, mas ainda é cedo para afirmá-lo.
As sutilezas interpretativas e a recusa em reconhecer eventuais benefí­
cios decorrentes da participação na MINUSTAH parecem apenas encobrir, 
ainda que involuntária e inconscientem ente, a percepção de que, no episódio 
do Haiti, teriam sido abandonados — ou, ao menos, relativizados— princípios 
tradicionais da atuação diplomática brasileira, em nom e de um pragma­
tism o político imediato. D esse ponto de vista, a participação e a liderança 
brasileira na MINUSTAH podem abrir um importante e significativo prece­
dente para a diplomacia brasileira. Pode ser que se esteja diante de uma 
inflexão adicional da política externa brasileira.
Embora o envio de forças brasileiras tenha sido aprovado no Congresso 
Nacional, o debate ocorrido naquela Casa foi mais intenso que o normal, 
quando se trata de questões de política externa. Isso indica que, contraria­
m ente ao entendim ento convencional, o Congresso está mais atento a ques­
tões de política externa e de defesa do que normaJmente se imagina. Por­
tanto, se a decisão brasileira de liderar a MINUSTAH for, de fato, o primeiro 
passo de uma postura internacional brasileira mais assertiva quanto ao em ­
prego da força e, particularmente, quanto a Operações de Imposição da 
Paz e uma tolerância maior com ações baseadas no Capítulo VII da Carta 
da ONU, é possível que, no futuro, o Poder Executivo encontre crescentes 
dificuldades perante o Poder Legislativo.
Referências
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Haiti. A Semana, 10 maio 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>.
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\ 234 Parte 2 — O Brasil e os tem as d a a g e n d a in ternacional c o n tem p o rân ea
Volume 2
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O Brasil e as o p eraçõ es d e p a z 3 3 5
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January 1992. Organização das Nações Unidas, A/47/277 — S/2411,17 jun. 1992. 
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