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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA HEIDY YILIBETH BELLO MEDINA QUINTAIS URBANOS: LUGARES NA PAISAGEM CULTURAL EM CUIABÁ LINHA DE PESQUISA: COMUNICAÇÃO E MEDIAÇÕES CULTURAIS CUIABÁ – MT 2022 HEIDY YILIBETH BELLO MEDINA QUINTAIS URBANOS: LUGARES NA PAISAGEM CULTURAL EM CUIABÁ Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para obtenção do título de Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração em Estudos Interdisciplinares de Cultura. Linha de pesquisa: Comunicação e mediações culturais Orientador: Prof. Dr. Yuji Gushiken. CUIABÁ – MT 2022 Dedicatória A minha mãe. Grata pelo amor, a sabedoria e a força. “Las ciudades, en su esencia, son secretas. Al menos para el turista. Al extranjero la ciudad se le presenta de una manera diferente al nativo. Quizás mejor, más proteica. Tiene varios rostros. Varias metamorfosis. Cada ciudad presenta a sus visitantes una diferente faceta. Para el extranjero la ciudad es como un enigma. Al menos en un principio. No olvidemos que una ciudad no se da con facilidad. Hay que convivir con ella: habitarla. Hay que descifrar sus oráculos. Valdría la pena aclarar que si uno no se mantiene atento a su ciudad —si no la recorre o no la camina, si no la “reconoce día a día”—termina por convertirse en extranjero de su propio territorio. Y es muy probable que sea así en las megápolis, en las grandes urbes. Lo proteico de la ciudad reside en su movilidad. A cada hora, a cada día las ciudades se moldean de manera diferente.” Vásquez Velásquez, 2002, p. 200. "As cidades, em sua essência, são secretas. Ao menos para o turista. Ao estrangeiro a cidade se apresenta de uma maneira diferente ao nativo. Talvez melhor, mais proteica. Tem vários rostos. Várias metamorfoses. Cada cidade apresenta aos seus visitantes uma faceta diferente. Para o estrangeiro a cidade é como um enigma. Pelo menos no início. Não se esqueça que uma cidade não é fácil de encontrar. Há que conviver com ela: habitá-la. Há que decifrar seus oráculos. Valeria a pena esclarecer que se não se mantém atento a sua cidade -se não a percorre ou não a caminha, se não a "reconhece dia a dia"- acaba por converter-se em estrangeiro de seu próprio território. E é muito provável que seja assim nas megalópoles, nas grandes urbes. O proteico da cidade reside na sua mobilidade. A cada hora, a cada dia as cidades se moldam de maneira diferente." Vásquez Velásquez, 2002, p. 200. AGRADECIMENTOS A Deus. Ao Universo. Ao Amor. A minha mãe Merceditas e minha tia Carmencita por sempre me apoiarem e quererem o melhor para mim. A meu pai, pelo apoio. A minha avó Cecilia, pelas orações. A Catalina, por me aconselhar sempre. A meu tio Serafín (in memoriam), pelo amor de pai. A minha família, gratidão pelo suporte e o amor que me permitiram abraçar a experiência inesquecível da pós-graduação no Brasil. Àqueles seres que me mostram que os amigos são casa e abrigo. Ao meu orientador, Prof. Dr. Yuji Gushiken, gratidão pelo carinho para me guiar e por estar sempre prestes a mostrar que aquilo mais banal é relevante na construção dos lugares. Minha profunda admiração. Ao Prof. Dr. Helsio Amiro Motany de Albuquerque Azevedo, Profa. Dra. Rachel Tegon de Pinho, Prof. Dr. Carlos Eduardo Pereira dos Santos, Profa. Dra. Lucia Helena Vendrúsculo Possari, Profa. Dra. Aline Wendpap Nunes de Siqueira e Profa. Dra. Kátia Terezinha Pereira Ormond, pelas relevantes contribuições e pela participação na banca de defesa desta tese. À CAPES e à Fapemat pelo apoio financeiro e institucional que fizeram viável o desenvolvimento desta pesquisa. Às pessoas que abriram as portas e me permitiram entrar nos seus quintais para conhecer as profundidades de uma paisagem singular, múltipla e afetiva. À UFMT que me recebeu de braços abertos desde 2015. Aos meus professores e professoras do PPG - ECCO pelo carinho e pela construção de espaços de conhecimento nos quais percebi o mundo desde a sombra, mas principalmente da luz, vocês são parte da beleza de estar no mundo. A Marcelo Velasco, pela contribuição e o carinho para me orientar sobre textos, artistas e histórias sobre os quintais. A Jhon Velásquez e Nadya Serrano, por me ajudarem sempre. Agradeço aos colegas de programa que amavelmente me receberam, me orientaram e ao longo desses anos permitiram construir amizades ímpares que levarei sempre no meu coração. Em especial a Vera Lúcia Xavier dos Santos, um presente que o doutorado me deu. Ao grupo de pesquisa em Comunicação e Cidade (Citicom-UFMT) pelos aprendizados e inesquecíveis experiências. Ao pessoal do Arquivo Público de Mato Grosso por me ajudar nessa busca de fontes e imagens, sempre com muita amabilidade. Aos cuiabanos e imigrantes por me mostrarem os universos mais sensíveis desta cidade maravilhosa. Especialmente a Diana Martínez Sánchez por me indicar vários quintais. Aos estudantes estrangeiros da UFMT que percorreram esse caminho comigo, compartilhando vivências inesquecíveis. À “Casa Gorgona” que simbolizou nosso hábitat e foi nosso território intersubjetivo em Cuiabá. À Cuiabá dos ipês, das araras, dos peixes, do pequi, da farofa de banana, do lambadão, das mangas, de São Benedito, do mais lindo pôr do sol, da alegria que me inspirou a encontrar suas singularidades. Gratidão! RESUMO Os quintais são elementos da paisagem ligados ao espaço domiciliar de algumas cidades brasileiras como parte da mestiçagem cultural produzida após a intervenção portuguesa no país. Além de ser reservas de vegetação, ao longo da transformação urbana em Cuiabá, esses espaços tem adquirido formas distintas, funções diversas e vários significados para a população e para a própria cidade. Ao ser considerado um espaço anexo da casa, os quintais tem sido pouco valorizados, outorgando mais importância às àreas construídas, sendo um espaço mais vivido, do que comunicado. A tese tem como objetivo compreender a importância dos quintais na paisagem cultural de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil, levando em consideração três dimensões inter-relacionadas: a cidade, a casa e as pessoas. De caráter qualitativa e em abordagem interdisciplinar, a pesquisa estabeleceu- se na interface entre geografia cultural, comunicação urbana e antropologia urbana, tomando como referência também os trabalhos desenvolvidos em outras disciplinas como a etnobotânica e a arquitetura e urbanismo, para interpretar o quintal como lugar constituinte da paisagem cultural em Cuiabá. Nesse sentido, ponderou-se o entendimento dos quintais como uma construção social que envolve dimensões materiais e simbólicas. Foram realizados vários procedimentos metodológicos como observação direta, entrevista semiestruturada em dez quintais de nove bairros da cidade. Reforçando a dimensão comunicacional do quintal na paisagem cultural da cidade, utilizaram-se procedimentos técnicos de registro e reconstituição imagética dos quintais como fotografias, produção de mapas e elaboração de croquis. A pesquisa permitiu organizar o quintal cuiabano em três categorias: domésticos, coletivos e comerciais, denotando as transformações da própria espacialidade urbana. Na expansão do perímetro urbano e na verticalização da cidade, a presença dos quintais representa, ainda hoje, uma singularidade numa cidade tricentenáriae de origem garimpeira como Cuiabá. Os quintais são acervos vivos da cidade que favorecem a manutenção da biodiversidade, mas também de atividades de socialização e saberes múltiplos favoráveis no inventário cultural da cidade. Observou-se a necessidade, na atualidade, dos quintais como lugares de cuidado e da saúde mental e física, como foi evidenciado a partir da pandemia gerada pela Covid- 19. Palavras-chaves: Paisagem cultural. Comunicação urbana. Quintais urbanos. Cuiabá. ABSTRACT Backyards are elements of the landscape linked to the home space of some Brazilian cities as part of the cultural mixing produced after the Portuguese intervention in the country. Besides being vegetation reserves, along the urban transformation in Cuiabá, these spaces have acquired distinct forms, diverse functions and various meanings for the population and for the city itself. When being considered a space next to house, backyards have been undervalued, giving more importance to the built areas, being a more lived space, than communicated. The thesis aims to understand the importance of backyards in the cultural landscape of Cuiabá, Mato Grosso, Brazil, taking into account three interrelated dimensions: the city, the house and people. Of qualitative character and in interdisciplinary approach, the research was established in the interface between cultural geography, urban communication and urban anthropology, taking as a reference also the works developed in other disciplines as ethnobotanical and architecture and urbanism, to interpret backyard as constituent place of the cultural landscape in Cuiabá. In this regard, the understanding of backyards as a social construction involving material and symbolic dimensions was considered. Several methodological procedures were performed, such as direct observation, semi-structured interview in ten backyards in nine neighborhoods of the city. Reinforcing communicational dimension of backyards in the cultural landscape of the city, technical procedures were used to record and reconstruct imagery of the backyards such as photographs, producing maps and drawing sketches. Research allowed organizing cuiabano backyard in three categories: domestic, collective and commercial, denoting the transformations of the urban spatiality itself. In the expansion of the urban perimeter and verticalization of the city, presence of the backyards represents, even today, a singularity in a tricentenary city and mining origin as Cuiabá. Yards are living collections of the city that favor the maintenance of biodiversity, but also socialization activities and multiple knowledge favorable in the cultural inventory of the city. We observed the need, nowadays, of backyards as places of care and mental and physical health, as evidenced by the pandemic generated by Covid-19. Keywords: Cultural landscape. Urban communication. Urban backyards. Cuiabá. RESUMEN Los patios son elementos del paisaje ligados al espacio domiciliario de algunas ciudades brasileñas como parte del mestizaje cultural producido tras la intervención portuguesa en el país. Además de ser reservas de vegetación, a lo largo de la transformación urbana en Cuiabá, esos espacios han adquirido formas distintas, funciones diversas y varios significados para la población y para la propia ciudad. Al ser considerado un espacio anexo de la casa, los patios han sido poco valorados, otorgando más importancia a las áreas construidas, siendo un espacio más vivido, que comunicado. La tesis tiene como objetivo comprender la importancia de los patios en el paisaje cultural de Cuiabá, Mato Grosso, Brasil, teniendo en cuenta tres dimensiones interrelacionadas: la ciudad, la casa y las personas. De carácter cualitativo y en enfoque interdisciplinario, la investigación estableció una relación entre la geografía cultural, la comunicación urbana y la antropología urbana, tomando como referencia también los trabajos desarrollados en otras disciplinas como la etnobotánica y la arquitectura y urbanismo, para interpretar el patio como lugar constitutivo del paisaje cultural en Cuiabá. En este sentido, se consideró la comprensión de los patios como una construcción social que involucra dimensiones materiales y simbólicas. Se realizaron varios procedimientos metodológicos como observación directa, entrevista semiestructurada en diez patios en nueve barrios de la ciudad. Reforzando la dimensión comunicacional del patio en el paisaje cultural de la ciudad, se utilizaron procedimientos técnicos de registro y reconstitución de imágenes de los patios como fotografías, producción de mapas y elaboración de croquis. La investigación permitió organizar el patio cuiabano en tres categorías: domésticos, colectivos y comerciales, denotando las transformaciones de la propia espacialidad urbana. En la expansión del perímetro urbano y la verticalización de la ciudad, la presencia de los quintales representa, aún hoy, una singularidad en una ciudad tricentenaria y de origen minera como Cuiabá. Los patios son acervos vivos de la ciudad que favorecen el mantenimiento de la biodiversidad, pero también de actividades de socialización y saberes múltiples favorables en el inventario cultural de la ciudad. Se observó la necesidad, en la actualidad, de los patios como lugares de cuidado y de la salud mental y física, como fue evidenciado a partir de la pandemia generada por la Covid-19. Palabras clave: Paisaje cultural. Comunicación urbana. Patios urbanos. Cuiabá. LISTA DE FIGURAS Introdução Figura 1: Poda de árvores em Cuiabá...............................................................................22 Figura 2: Vista panorâmica de Cuiabá.............................................................................23 Figura 3: Vista panorâmica de Cajicá...............................................................................25 Figura 4: Bananeira e outras árvores frutíferas próximas ao muro de um espaço doméstico.........................................................................................................................34 Figura 5: Mapa de distribuição dos quintais da pesquisa.................................................37 Capítulo I Figura 1: Mapa colorido da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, elaborado a mão pelo português José Manoel de Siqueira, por volta de 1770............................................55 Figura 2. Vista do morro da luz e da torre da Embratel, a partir do Centro Histórico de Cuiabá..............................................................................................................................67 Figura 3. Desenho de Hércules Florence durante a Expedição Langsdorf (1825-1829)...69 Figura 4: “Prospecto da Villa do Bom Jesus de Cuiabá” de 1790, desenhado por Joaquim José Freire ou por José Joaquim Codina. A obra faz parte do Acervo do Museu Botânico Bocage em Lisboa............................................................................................................69 Figura 5: “Vista panorâmica da cidade de Cuyabá” ........................................................70 Figura 6: Telhados de Cuiabá na década de 1930............................................................70 Figura 7: Vista parcial do centro de Cuiabá do alto do Clube Dom Bosco. Década de 1960.................................................................................................................................71 Figura 8: Vista parcial do centro de Cuiabá depois da construção da nova catedral. Destaque da verticalização da cidade aos fundos.............................................................71 Figura 9: Fotomontagem de vista de Cuiabá a partir da torre Embratel, localizada no morro da luz, 2002............................................................................................................72 Figura 10:Obra “A casa de Lulu Cuiabano” ....................................................................74 Figura 11: Obra “Morro da luz (com a “Casa de Luz” e a escola do professor Avelino Ribeiro” ...........................................................................................................................75 Capítulo II Figura 1. A. Foto panorâmica da cidade do Cusco (Peru). B e C. Foto do pátio da casa Museu Botero, localizada no centro histórico de Bogotá (Colômbia)..............................81 Figura 2: Esquema da casa colonial brasileira.................................................................83 Figura 3: Esquema de reconstituição de rua com modelos arquitetônicos de diversas algumas tendências estilísticas do Brasil.........................................................................86 Figura 4: Obra “Abacaxi, Melancias e Outras Frutas” de Albert Eckhout......................90 Figura 5: Vista aérea de bairro CPA-1.............................................................................92 Figura 6: Quintal do Centro Cultural Casa Cuiabana.......................................................93 Capítulo III Figura 1: Mapa de distribuição dos cinco quintais domésticos da pesquisa em Cuiabá, Mato Grosso...................................................................................................................100 Figura 2: Manejo de plântulas para a plantação de espécies no quintal do B. Boa Esperança.......................................................................................................................104 Figura 3: Imagem de satélite no espaço correspondente ao quintal do B. Cidade Alta...105 Figura 4: Imagem de satélite do espaço doméstico B. Lixeira.......................................106 Figura 5: Criação de galos e galinhas no quintal B. Lixeira............................................107 Figura 6. Sagui em mangueira no quintal do B. Jardim Imperial II...............................108 Figura 7: Cão no quintal do B. Cidade Alta....................................................................109 Figura 8. Quintal e suas funções de área de serviço quintal do B. Jardim Universitário..................................................................................................................110 Figura 9: A senhora Sol no quintal do B. Boa Esperança..............................................111 Figura 10: Quintal do B. Cidade Alta com decoração permanente do arraial de junho..............................................................................................................................112 Figura 11: Imagem de satélite do entorno do espaço doméstico do quintal do B. Jardim Universitário..................................................................................................................113 Figura 12. A - Cacau no quintal do B. Cidade Alta. B – Banana e abacaxi no quintal do B. Jardim Universitário. C – Feijão guandu e mexerica no quintal do B. Jardim Imperial II.....................................................................................................................................114 Figura 13: Cará-roxo do quintal do B. Jardim Imperial II..............................................114 Figura 14: Licor de jenipapo e jabuticaba produzidos no lar do B. Cidade Alta............115 Figura 15: Doce de Caju artesanal com a produção do quintal do B. Lixeira................115 Figura 16: Couve, cenoura e outras espécies do quintal do B. Jardim Imperial II.....................................................................................................................................116 Figura 17: Armazenamento de feijão guandu no quintal do B. Jardim Imperial II..........117 Figura 18: Frutas apodrecendo no chão do quintal do B. Jardim Universitário...............117 Figura 19: Mapa de distribuição dos três quintais comerciais da pesquisa em Cuiabá, Mato Grosso............................................................................................................................119 Figura 20: Quintal do restaurante do B. Boa Esperança..................................................121 Figura 21: Ambiente da mangueira no quintal do restaurante do B. Duque de Caxias....122 Figura 22: Quintal do restaurante do B. Quilombo........................................................123 Figura 23: Sistema cachepot para as árvores do quintal do B. Quilombo........................123 Figura 24: Mapa de distribuição dos dois quintais coletivos da pesquisa em Cuiabá, Mato Grosso............................................................................................................................125 Figura 25. Cozinha disposta para a preparação da feijoada no quintal do B. Santa Rosa II.....................................................................................................................................127 Figura 26. Mesa servida com a feijoada e outros acompanhamentos no quintal do B. Santa Rosa II............................................................................................................................128 Figura 27. Dança de lambadão cuiabano durante evento beneficente.............................129 Figura 28. Ensaio de siriri para crianças no quintal do B. Coophema............................130 Figura 29. Dança de siriri do Grupo Flor Ribeirinha no quintal do B. Coophema...........130 Figura 30. Forno de queima para cerâmicas no quintal do B. Coophema.......................131 Capítulo IV Figura 1: Desenho da cidade autossustentável apresentada pelo escritório Guallart Architects para a construção da nova área de Xiong'an a partir da perspectiva de Pós- COVID-19.....................................................................................................................144 Figura 2: Produção de feijão guandu no quintal do bairro Jardim Imperial II.....................................................................................................................................150 Figura 3: Coleta de frutas como mamão e banana no quintal do bairro Cidade Alta................................................................................................................................152 Figura 4. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Boa Esperança.................154 Figura 5. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Lixeira..............................155 Figura 6. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Cidade Alta......................156 Figura 7. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Jardim Universitário........157 Figura 8. Croqui do espaço doméstico localizado no bairro Jardim Imperial II............158 Figura 9: Croqui do espaço comercial (Restaurante) localizado no bairro Quilombo...160 Figura 10: Croquis do espaço comercial (Restaurante) localizado no bairro Boa Esperança.......................................................................................................................161 Figura 11: Croquis do espaço comercial (Restaurante) localizado no bairro Duque de Caxias............................................................................................................................162 Figura 12: Croquis do espaço de caráter coletivo localizado no bairro Santa Rosa II...163 Figura 13: Croquis do espaço de caráter coletivo localizado no bairro Coophema.......164 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Demonstrativo do Inventário de espécies alimentares botânicas na área dos cinco quintais domésticos distribuídos no município de Cuiabá – MT, no ano de 2020...............................................................................................................................102 Tabela 2: Demonstrativo do Inventário de espécies alimentares botânicas na área dos três quintais comerciais distribuídos no município de Cuiabá –MT, no ano de 2020...............................................................................................................................120 Tabela 3: Demonstrativo do Inventário de espécies alimentares botânicas na área dos quintais coletivos distribuídos no município de Cuiabá – MT, no ano de 2020...............................................................................................................................126 Tabela 4: Demonstrativo do Inventário de espécies alimentares botânicas na área dos quintais distribuídos no município de Cuiabá – MT, no ano de 2020...............................................................................................................................148 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................17 A caminho do quintal, uma metodologia interdisciplinar...............................................29 CAPÍTULO I: LUGAR E PAISAGEM CULTURAL: A CIDADE E O QUINTAL.......................................................................................................................39 1.1 Lugar e quintal: tecelagem introdutória....................................................................41 1.2 Paisagem, considerações do olhar geográfico...........................................................44 1.3 Paisagem cultural: conceitos e evolução...................................................................48 1.4 Contexto histórico e transformações da paisagem de Cuiabá...................................52 1.5 Olhar os quintais na cidade: perspectiva comunicacional.........................................64 CAPÍTULO II: O QUINTAL, UMA PAISAGEM DOMÉSTICA............................77 2.1. Casa: lugares e afetos................................................................................................78 2.2. O quintal na construção da casa brasileira................................................................80 2.3. Quintal e a casa cuiabana...........................................................................................90 2.4. Quintais cuiabanos, fazeres, saberes e vida social.....................................................93 CAPÍTULO III: QUINTAIS DA ATUAL CUIABÁ...................................................99 3.1. Quintais domésticos..................................................................................................99 3.2. Quintais comerciais.................................................................................................118 3.3. Quintais coletivos....................................................................................................124 CAPÍTULO IV: REPENSAR O QUINTAL EM TEMPOS DE PANDEMIA........133 4.1 A mudança social gerada a partir da pandemia........................................................135 4.2. “Fique em casa”, a necessidade de pensar o lar em tempos de pandemia..............137 4.3. Arquitetura e pandemia, a importância dos quintais ..............................................142 4.4. Os quintais em Cuiabá, na perspectiva dos novos tempos......................................146 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................165 REFERÊNCIAS...........................................................................................................170 APÊNDICES................................................................................................................178 APÊNDICE A - ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA..................178 APÊNDICE B - TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E DEPOIMENTOS...........................................................................................................180 17 INTRODUÇÃO Os quintais são fragmentos da paisagem anexos às casas que, na paisagem cultural em Cuiabá, formam uma imagem que não corresponde unicamente a uma visualidade, mas a uma polivocalidade, perceptível através de um estudo interdisciplinar sobre a abrangência material e simbólica desta forma de espacialidade humana. Apesar da avançada verticalização da cidade, a presença dos quintais representa, ainda hoje, uma singularidade, mostrando que, a partir de diversas perspectivas, são lugares que mostram uma realidade mais complexa da cidade. Desse modo, sob a análise da paisagem cultural, do lugar e da multiplicidade de caminhos que essas categorias da geografia possibilitam, a tese também se conecta com as perspectivas de pesquisa a partir da comunicação urbana, que apresenta outras ferramentas úteis para a análise da cultura no que concerne ao entendimento sobre objetivo e subjetivo da paisagem. Olhar para os quintais de Cuiabá e sua importância como elemento da paisagem através da presente tese é uma ideia que foi se formando durante um longo processo que partiu da experiência como estrangeira, se centrou no rol como pesquisadora e finalmente adquiriu mais vigor a partir da vivência da pandemia provocada pela COVID-19, que permitiu pensar os espaços habitados em tempos de crise sanitária, social e econômica. O olhar do estrangeiro, do estranho ao familiar A presente tese, produto de uma tecelagem de significações, aborda os quintais de uma maneira compreensível, inicialmente, para a pesquisadora estrangeira ao se inserir em uma cultura diferente e obter dela outras possibilidades de vivências, que envolvem do mesmo modo a razão e a emoção. Apreciar o estranho é um processo para se surpreender com as diversas temporalidades e comportamentos, diferentes topografias e outros elementos que outro território tem para nos ensinar. É assim como o quintal, pequena floresta dentro do espaço residencial, se tornou, para mim, de início, algo estranho em Cuiabá, mas ao mesmo tempo era familiar no que diz respeito àquilo que ao meu ver como estrangeira considerava familiar: a agricultura artesanal com fins de consumo doméstico. 18 Nesse sentido, Massimo Canevacci (1997), acadêmico italiano e especialista em comunicação urbana no Brasil, considera que a percepção da cidade, a forma como ela será conhecida pelo estrangeiro será de acordo com aquilo que o indivíduo já considera familiar. Minha experiência também seria assim, porque mesmo com as diferencias que os quintais apresentavam, eu via neles a horta do meu avô, na Colômbia, onde ele plantava milho, ervilha e feijão e onde também havia uma figueira e um pé de cereja norte-americana, e lembrava também da horta do meu pai na nossa chácara onde ele plantava uma grande quantidade de espécies como tomate, milho, batata, feijão, ervilha, berinjelas, favas, abobrinhas, couves de Bruxelas, maxixes de vento e diversas frutas da região como tomate de árvore, amora, feijoa, granadilha, fisális, lulo, entre outras. A produção dessa época nos ajudou para sustentar o lar, especialmente, durante um período de tempo em que meu pai ficou desempregado. Os primeiros quintais que conheci em 2015, durante os primeiros meses de morar em Cuiabá, me lembravam alguns pomares de Cajicá, cidade na região metropolitana de Bogotá de aproximadamente 81.099 mil habitantes, conforme estimativas do ano 20181, que não existem mais porque também as casas foram derrubadas, mas que estão presentes na minha memória. Em alguns desses pomares, escondidos por muros, era possível ver árvores frutíferas como pereiras, macieiras e outros pés de papaia-de-montanha e amoras. O processo de urbanização de Cajicá acabou sacrificando hortas, pomares e grandes plantações, gerando mudanças irreversíveis muito visíveis na paisagem de um município que era essencialmente agrícola. No entanto, essas mudanças não seriam unicamente consequências das alterações do mercado imobiliário e de projetos urbanísticos implementados depois de um crescimento urbano acelerado provocadopelo superpovoamento da região metropolitana de Bogotá, mas também das dinâmicas culturais no interior das famílias. No caso da casa dos avôs, o espaço domiciliar foi se modificando após mudanças da própria estrutura familiar, derivadas do matrimônio das filhas e do filho, que, conforme se casavam, recebiam dos pais a oportunidade de construir um “puxadinho” no espaço do lote onde estava localizado o quintal. Esse costume de cessão de bens familiares foi aos poucos gerando a remoção das árvores e logo a concretagem desse espaço, sobrando uma pequena área aberta onde foram colocados varais para a secagem das roupas e onde foram dispostos vasos 1 Conforme estatísticas publicadas pelo jornal La República, Cajicá teve um crescimento populacional de um 78,67% nos últimos anos, passando de ter 45.391 habitantes no ano de 2005 para registrar 81.099 moradores no ano de 2018. Fonte: La República. El nuevo censo poblacional del Dane consolida a las "ciudades dormitorio" del país. 17 jul. 2019. Disponível em: <https://www.larepublica.co/economia/el-nuevo-censo-poblacional-del- dane-consolida-a-las-ciudades-dormitorio-del-pais-2885537>. Acesso em: 21 de ago. 2021. 19 com diversas plantas ornamentais e temperos que evocam vagamente o hábito familiar de plantar e decoram os muros com flores de várias cores e tamanhos. Desse modo, ao me aventurar a estudar os quintais em Cuiabá, eu partia da minha própria experiência de vida, lendo Cuiabá a partir de Cajicá, gerando sempre uma dupla via de análise da paisagem: de um lado, aquela familiar e do outro lado aquela estranha, e as duas conversavam o tempo todo para concretizar a pesquisa e o presente texto. Porém, apesar das semelhanças com as hortas de Cajicá, o quintal em Cuiabá me resultava irreconhecível, iniciando pela visualidade. Desse modo, o processo de interpretação do quintal deveria se iniciar do zero, mas devia considerar minha condição como estrangeira. Nesse sentido, Canevacci (1997, p. 15-16) expõe: Estou convencido de que é possível elaborar uma metodologia da comunicação urbana mais ou menos precisa, com a seguinte condição: a de querer perder-se, de ter prazer nisso, de aceitar ser estrangeiro, desenraizado e isolado, antes de se poder reconstruir uma nova identidade metropolitana. O desenraizamento e o estranhamento são momentos fundamentais que ‒mais sofridos do que predeterminados‒ permitem atingir novas possibilidades cognitivas, através de um resultado “sujo”, de misturas imprevisíveis e casuais entre níveis racionais, perceptivos e emotivos como unicamente a forma-cidade sabe conjugar. As palavras de Canevacci geram reflexões sobre como o perder-se no contexto urbano como estrangeiro permite ir tecendo uma nova compreensão da cidade, de reconstruir um conhecimento a partir da razão e da emoção. Contudo, Canevacci (1997) reconhece que aos poucos o estrangeiro pode se habituar à cidade para reconstruir sua própria identidade. Ainda assim, reconhece Canevacci (1997) que aquele novo habitante estrangeiro, mesmo se introduzindo em uma cultura divergente da sua, será conduzido por uma espécie de critério derivado da educação recebida para interpretar os signos emitidos nesse novo contexto pela comunicação que tem sido tecnicamente reprodutível. No entanto, ele sugere que o observador pode refinar o olhar urbano para absorver aquilo que não é capaz de decifrar sobre o sentido dessa cultura diferente, a partir da atenção nos valores, crenças e nos comportamentos dos sujeitos que habitam a cidade. Canevacci (1997) reconhece a comunicação urbana como uma forma que se expressa, igual à mass mídia, relações de poder entre quem controla as comunicações e quem recebe a informação reduzido ao seu rol de espectador passivo. Apesar disso, o teórico italiano pondera que existem rupturas, sendo uma delas o olhar do estrangeiro que responde à vontade de perceber as diferenças que o olhar habituado não reconhece devido ao excesso de familiaridade. 20 Por isso, é possível contribuir na criação de novas vozes para compeender a cidade que se integrem à multiplicidade de vozes autônomas que conformam uma polifonia. O surgimento da ideia de pesquisa A emergência de iniciativas para pensar outros modos de viver no espaço urbano considerando a constituição de cidades sustentáveis, cidades mais verdes, cidades para pessoas e outros referentes que demandam melhores condições para conseguir otimizar a qualidade de vida nas cidades reunia em Cuiabá, durante 2015 e 2016, a um contingente de pessoas para realizar o festival cidadão 100em1dia Cuiabá. O projeto do festival, que teve origem em Bogotá, na Colômbia e se expandiu pelo mundo, procurava adiantar primeiro um processo de reflexão para conhecer e reconhecer a cidade e assim criar, posteriormente, uma série de iniciativas que fomentassem a ação cidadã sob a base do direito à cidade. O Festival seria realizado durante 24 horas, no dia 03 de abril de 2016, como um modo de presentear a Cuiabá com cem ações de arte e cidadania espalhadas na cidade. Não obstante, a efêmera comemoração, realizada em vésperas do aniversário de Cuiabá, seria resultado de um processo de aproximadamente um ano, durante 2015 e 2016, no qual me envolveria como pesquisadora já no mestrado. Através de uma observação participante, a experiência me aproximaria de maneira mais profunda com a cidade e as diversas percepções sobre Cuiabá como resultado da convivência com os habitantes e agentes. Como parte das dinâmicas próprias do Festival, se organizaram reuniões para que as pessoas conhecessem o projeto e se gerasse uma rede de participantes. Durante os diversos encontros, em vários cenários da cidade, os diálogos entre os atores eram ricos em ideias porque a multiplicidade de interesses gerava longas conversas com respeito à cidade para conhecer as percepções das pessoas e criar, em conjunto e pensando no bem coletivo, iniciativas para mudar situações que as preocupavam sobre a mobilidade urbana, o meio ambiente, a corrupção, a ocupação dos espaços e outras inquietações coletivas do dia-a-dia (MEDINA, 2017; MEDINA, AZEVEDO e GUSHIKEN, 2017). As atividades presenciais se enriqueciam de maneira simultânea com a disposição de outras plataformas, como um grupo no Facebook, através do qual as pessoas se comunicavam entre elas e entravam em contato com outras iniciativas em sintonia com o processo do 21 100em1dia Cuiabá. A possibilidade de as pessoas publicarem informações também permitia conhecer suas preocupações em torno a diversos aspectos. Finalmente, o 100em1dia Cuiabá registrou a realização de mais de 100 ações de várias naturezas em praças, ruas, o hospital universitário, o mercado do porto, museus, colégios, a Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, o viaduto da UFMT etc., espaços ressignificados onde se concretizaram os afetos, desejos e inovações para transformar Cuiabá em um melhor lugar para se viver. Durante o processo de pesquisa do festival, várias questões haviam sido observadas com respeito à percepção das pessoas sobre a cidade. Um dos temas de discussão mais recorrentes, e enunciados pelos participantes, era com relação à arborização urbana, que remetia à ideia de Cuiabá como Cidade Verde, que, conforme aos discursos dos participantes do projeto “não existia mais”. A incessante necessidade de expressar o incômodo sobre as mudanças da paisagem no tocante à vegetação em Cuiabá foi evidenciada diretamente através das colocações dos participantes nos encontros presenciais. Indiretamente, porém, o conteúdo divulgado no grupo no Facebook do projeto fazia menções sobre ruas arborizadas, hortas urbanas nas favelas e cidades europeias, onde os moradores plantavam sua própria horta etc. Posteriormente às convesas, na versão do festival de origem colombiana em Cuiabá, foi recorrente observar uma grande quantidade deatividades como o plantio de espécies arbóreas nativas e frutíferas em diversos espaços e a criação de hortas, que contribuíram para corroborar o desejo das pessoas de tentar restituir uma ideia de Cidade Verde . Não obstante, as qualidades visuais de vegetação urbana que as pessoas procuravam a partir da divulgação de imagens das vilas europeias referenciadas como exemplo na construção dessa cidade verde ideal, eram contrastadas desde minha experiência como estrangeira. A aparência desses hábitats era, para mim, semelhante à distribuição dos espaços domésticos cuiabanos que incluíam os quintais, aos quais tinha acessado graças a amizades que já tinha feito ao longo do mestrado na UFMT. Poderia então se refletir sobre uma cultura dominante das formas materiais e simbólicas ao considerar as paisagens europeias como sustentáveis antes de olhar para a própria cidade, especificamente, para o modelo de moradia casa-quintal? Poderia ser o quintal também um espaço outro, no sentido de Foucault (2013), uma heterotopia? 22 Foucault (2013) define as heterotopias como lugares reais, lugares efetivos dentro da cultura que podem ser uma espécie de utopias realizadas. Podem ser lugares que estão fora dos padrões de todos os lugares. Embora esses espaços outros estejam em contraposição com as utopias apresentam uma experiência mista com elas. O conceito orientaria a busca desse sentido existencial do quintal para as pessoas. Deste modo, desconhecendo uma relação profunda dos quintais e a ideia da cidade verde, me remeti às contribuições de Michel De Certeau (2012) sobre as práticas espaciais que formam o cotidiano e especificamente possibilitam ver a cidade a partir de duas perspectivas divergentes, segundo a proposta do autor: o caminhar e a altitude. Apesar da relação quase antagónica das duas posições, existe uma espécie de complemento na sua consideração, na medida em que as duas perspectivas oferecem informações intengrantes sobre a cidade nesta pesquisa. A partir de “embaixo” (down), mais do que ver, é possível ponderar a vivência do caminhar. Nessa perspectiva, o corpo considera os cheios e os vazios do entranhado urbano, como menciona Michel De Certeau (2012). Assim, desde a caminhada pelas ruas se contemplou uma constante derrubada de árvores, que no ambiente de Cuiabá, caracterizado por altas temperaturas, impossibilitava a percepção de uma ambiência verde. Foi possível ver vários indícios da ausência/presença das árvores em ruas nos diversos bairros da cidade, graças a alguns resquícios visualmente negativos: buracos, raízes ou árvores que ficaram sem vida após podas que através de práticas inadequadas, talvez voluntárias, conduzem à morte da árvore (Ver figura 1). Figura 1. Poda de árvores em Cuiabá 23 Fonte: A pesquisadora (2019) Por outro lado, em perspectiva vista do alto, a experiência era diferente, porque a altitude permitia conhecer outra perspectiva mais ampla, na qual, como alude De Certeau (2012), é possível “ver o conjunto”. Deste modo, conforme a figura 2, foto panorâmica tirada em um alto prédio lozalicado no bairro Goiabeiras, há, a partir da altitude, do ver do alto, outras informações relevantes. A imagem, registrada com visão do alto, evidencia uma mancha verde, contudo essa proporcão de vegetação, em detalhe, não provém das vias públicas, pois, nas vias por onde transitam automóveis, a presença de árvores é mínima com relação ao interior dos quarteirões, especificamente dos espaços anexos às casas. Figura 2. Vista panorâmica de Cuiabá. Fonte: A pesquisadora (2019) Apesar de distinguir uma notável verticalização da cidade nesta região, a contemplação “do alto” permitiu não só constatar a existência de cobertura verde, mas também perceber que a maioria da contribuição vegetal da chamada “Cidade Verde” era dada pelos quintais, cuja densidade é dada pela presença de grandes árvores no interior dos espaços domésticos, e não por uma arborização das vias públicas como elemento de uma política urbanística. Desse modo, a arborização urbana, em Cuiabá, apresentava uma notória diferença entre os espaços públicos e os privados como duas dimensões a serem pensadas na construção coletiva da Cidade Verde e os quintais adquiriam um valor a ser considerado na pesquisa sobre esses espaços na paisagem de Cuiabá. 24 Quintais para além da vegetação Os questionamentos ainda frequentes em relação à paisagem material, à vegetação urbana e ao espaço doméstico eram orientados em duas direções: sobre a legibilidade e qualidades visuais da cidade e sobre meu olhar de observadora estrangeira. Em primeiro lugar, uma questão: se era ainda visível a existência da mancha urbana verde, por que as pessoas negavam a existência desses atributos? Qual era a importância da pesrpectiva da qual se produz a visão sobre o que era visto e percebido? Portanto, qual a importância deste modo de ver a cidade sobre a paisagem que ponderava aquele discurso, em grande medida no âmbito do senso comum, de a Cidade Verde não ser, propriamente, uma cidade com cobertura verde? A cobertura verde não existe porque não o vejo ou porque não o habito? A visão, então, com que foi possível identificar os quintais como contribuidores significativos da vegetação urbana poderia ser também limitadora para que esse espaço não fosse reconhecido dentro da ordem visual da cidade? Segundo: por que meu olhar estrangeiro conseguia validar a existência desses modos de habitar, embora não tivesse uma história em comum de vivenciar esses espaços domésticos? Tal percepção, então, poderia derivar do conhecimento com base em minha procedência do cenário semirural de Cajicá, um município localizado na Região Andina da Colômbia, mas que por sua proximidade com Bogotá (17 km), capital do país, me permitia conhecer as dinâmicas e contrastes entre a megalópole latino-americana e uma pequena cidade agrícola. O fato de em menos de trinta anos Cajicá se transformar em “cidade dormitório”2 de Bogotá, devido ao acelerado crescimento da capital e da impetuosa venda de projetos imobiliários que promoviam mercadologicamente a ideia de uma vida mais tranquila, mais “campestre”, levou ao desaparecimento da mancha verde dos campos, pátios, hortas e ao aparecimento violento dos edifícios, situação que, considerando as diferenças, me parecia similar com a discussão prévia do quintal e a cidade em Cuiabá, no Brasil. Conforme a figura 3, em fotografia tirada em um prédio localizado no centro de Cajicá, evidencia-se a mudança na paisagem, habitualmente com casas de apenas dois ou três andares. Os prédios mais altos, e também mais recentes, apresentam um valor verticalizante, mudando 2 Termo para definir uma cidade usada para a habitação, enquanto seus moradores realizam suas atividades laborais em outra cidade. 25 a paisagem, transformando o imaginário da cidade, à medida que se distribuem espacialmente, aproximando-se das montanhas, e apenas nelas e nas áreas rurais é possível apreciar as manchas verdes da vegetação nativa. Figura 3. Vista panorâmica de Cajicá. Fonte: A pesquisadora (2021) O quintal é postulado como um espaço representativo na paisagem de Cuiabá em relação à vegetação existente no espaço urbano, mas também como modo de habitar esse espaço singularmente. A partir desta observação, surgiu o problema norteador da tese: como o entendimento de uma paisagem cotidiana e comum como o quintal poderia permitir uma compreensão mais profunda da paisagem cultural da cidade? Assim, o postulado partia de pensar a paisagem como um instrumento comunicacional da cidade, permitindo nesse viés uma análise do quintal quanto a três elementos constituintes: forma, função e estrutura. A ideia de abordar, na condição de estrangeira, um tema tão íntimo da vida privada brasileira, como o quintal nas residências, iniciaria pela compreensãodo mesmo quintal a partir da produção acadêmica, reconhecendo que em maior medida o conhecimento sobre quintais tem sido possível graças às pesquisas em áreas distintas dos campos cultural e comunicacional, como a etnobotânica, que correspondem à compreensão do manejo desses sistemas ecológicos. O viés dessas produções acadêmicas reflete sobre o papel dos quintais rurais e urbanos na manutenção da agricultura de pequena escala, a preservação da biodiversidade, a regulação microclimática, o uso de plantas medicinais, os saberes locais, entre outros. No Brasil, encontrou-se uma grande diversidade de literatura sobre quintais rurais e urbanos, com base em pesquisas localizadas principalmente nas regiões Centro-Oeste, Norte e 26 Nordeste do país. Salientam-se os aportes das pesquisas realizadas no estado de Mato Grosso sobre os quintais, de ampla difusão académica, graças ao trabalho de autores como Brito e Coelho (2000); Guarim Neto e Carniello (2008); Amaral e Guarim Neto (2008), entre outros autores. Apesar de o quintal ser parte do espaço doméstico, há poucos registros científicos da área de Arquitetura e Urbanismo. No entanto, é importante salientar as contribuições de Dourado (2004), Silva (2004), Tourinho; Silva (2016) como referência aos quintais e relevantes para a formação da casa brasileira. No âmbito da pesquisa sobre as relações de afeto e significação, a dissertação de Reis (2015) postula um olhar mais íntimo sobre os quintais para duas gerações de famílias da cidade de Salvador, capital da Bahia, no Brasil. No que se refere, especificamente, aos quintais em Cuiabá, são predominantes os estudos da etnobotânica, nos quais tem se construído perfis florísticos dos quintais, distinguindo as qualidades da vegetação e o uso que as comunidades fazem dos recursos naturais, por exemplo os usos medicinais (PASA, 2011). As pesquisas são caracterizadas, em sua maioria, por serem localizadas em alguns bairros da cidade, com recortes geográficos específicos como Areão e Porto (MOURA et al., 2011), São Gonçalo Beira Rio (MAMEDE et al., 2015) e Jardim Florianópolis (SPILLER et al., 2016). Outros aportes académicos socioculturais sobre quintais de Cuiabá apresentam análises desses espaços a partir de temáticas como a soberania alimentar e sobre a importância dos quintais como centros de abastecimento relevantes na construção do inventário gastronômico da cidade (ORMOND, 2018) e ainda sobre os quintais cuiabanos em relação com a tradicional comemoração das festas de santo, de acordo com Souza e Osorio (2019). As diversas contribuições de autores proporcionam olhares valiosos sobre os quintais, mas, como cada um desses autores postula, o material bibliográfico ainda é reduzido. Eventualmente, também é preciso pensar o quintal como um lugar de grande relevância social, ambiental, cultural, paisagística etc., tanto no Brasil, quanto nas zonas tropicais do mundo, o que significa aumentar as perspectivas de pesquisa. Nesse esforço, a tese é desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, na linha de pesquisa 27 Comunicação e Mediações Culturais e no âmbito do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Cidade (Citicom-UFMT/CNPq). Em perspectiva interdisciplinar, apresenta-se um diálogo entre a comunicação, a geografia cultural e a antropologia urbana no que diz respeito à experiência urbana, a dimensão simbólica do espaço e a cidade como espaço comunicado, objetos que demandam uma aborgadem interdisciplinar. A interação e transferência de métodos e conceitos pode gerar, como sugere Brandão (2016), uma fecundação recíproca entre as disciplinas, favorecendo também a emergência de pesquisas inovadoras benéficas para o progesso científico. O referencial teórico aponta, principalmente, aos estudos sobre a paisagem cultural, levando em consideração as atribuições de sentido coletivas e unitárias que perpassam as mediações do habitat, para ponderar o papel dos quintais inclusive como conteúdo comunicacional da cidade de Cuiabá. Partindo da geografia cultural, que a partir de sua transversalidade tem sido considerada como uma heterotopia, por permitir a construção de caminhos oriundos de diversas matrizes, o trabalho se apoia em autores inscritos nesse campo como Denis Cosgrove (1998, 2002, 2008) e Augustin Berque (2012), que pensam a paisagem e sua significação a partir dos modos de percepção e modos de relação, em palavras de Berque (2012), pensando-a como plurimodal e salientando sua capacidade de comunicar, ideias, valores e poder. Também são considerados os aportes da geografia humanista desenvolvida por Yi-Fu Tuan (1980, 1983, 2015), a partir do conceito de lugar e da análise do jogo afetivo entre o sujeito e o ambiente que criam outras significações através da experiência. A visão de Tuan sobre o elo afetivo entre os sujeitos e o lugar possibilita conhecer a maneira como certas paisagens despertam emoções. No campo da comunicação urbana, foram relevantes duas contribuições: 1) Os aportes de Ferrara (2008, 2012) que propõe enxergar e estranhar as dimensões comunicativas da paisagem, reconhecendo considerar sua materialidade e sua densidade visual, 2) As noções de Reguillo (2007), que reconhece a cidade como uma estrutura de vários eixos e níveis que revelam diversas relações da organização espacial onde é possível conhecer, através da comunicação, a forma como diversos atores percebem, significam e valorizam a cidade. Sendo assim, com o intuito de analisar o quintal como lugar de construção epistêmica na singularidade da paisagem cultural em Cuiabá, a partir da concepção da cidade como um 28 território material e simbólico, propomos considerar os quintais a partir de três dimensões (cidade, casa e pessoas), sempre interrelacionadas com as categorias espaciais de paisagem cultural e lugar. Pensamos o quintal como heterotopia, espécie de montagem, como um conjunto de complexidades dentro da composição da paisagem cultural. O quintal se configura como lugar a ser produzido como parte da casa, e a casa como um modelo arquitetônico brasileiro para responder à necessidade de abastecimento a partir do Brasil colonial, ainda considerando que processo cultural dado após a chegada dos portugueses foi dinâmico e heterogêneo apresentando singularidades em cada cidade que foi sendo conformada a partir desse período. Assim, a partir de múltiplas perspectivas, este trabalho de pesquisa apresenta diversas percepções que partem das diversas experiências dos ocupantes humanos e não-humanos dos quintais. Por exemplo, buscamos anotar algumas destas perspectivas sobre o quintal em um imaginário que ganha evidência: 1) lar e local de trabalho dos escravos, 2) centro de produção dos senhores da casa, 3) território das mulheres da casa, impedidas de sair na rua, 4) ponto de convivência de inúmeras espécies de plantas provenientes da Ásia, África, América e Europa, 5) habitat de animais silvestres, domésticos e sinantrópicos, e 6) refúgio da família perante à pandemia da Covid-19, entre outros exemplos de funções. O desenvolvimento de múltiplas atividades foi possível no quintal a partir da evolução do próprio espaço. A disposição do quintal no conjunto da casa o define como um lugar de diversas funções, que por sua vez vão evidenciando a produção de saberes cotidianos como: 1) manejo de plantas e sementes, 2) criação de animais, como galinhas, porcos etc., 3) desenvolvimento de receitas culinárias a partir dos insumos do local, 4) tratamento medicinal com os produtos do quintal, 5) desenvolvimento de artes como a cerâmica e, 6) espaço de produção intelectual e inspiração, como no caso do escritor mato-grossense Manoel de Barros. Pessoas estabelecem modos de relação com o quintal que gera afetos ímpares com outros espaços do ambiente doméstico. Nesse sentido, salientamosalgumas formas afetivas reconhecidas nestes lugares ao longo da pesquisa como: 1) a relação do quintal como espaço de brincadeira, praticado por crianças como lugar da imaginação, 2) o desenvolvimento da vida familiar cria conexões íntimas com memórias afetivas, 3) lugar de rituais como festas juninas, festas de santo e outras comemorações, 4) local de socialização, 5) espaço de contemplação da natureza e descanso, onde se passam as horas vagas, e 6) espaço verde para atenuar o estresse gerado pela crise sanitária global da Covid-19. 29 Em relação a tais considerações, a tese foi organizada em quatro capítulos. O Capítulo 1, intitulado “Lugar e paisagem cultural: a cidade e o quintal”, apresenta as relações entre os quintais e Cuiabá a partir da consideração da concepção da paisagem e as diversas alterações geradas durante a evolução urbana. Ver as representações da paisagem da cidade a partir do centro histórico como referente visual, assim como através dos relatos de alguns espectadores especiais da cidade evidencia a existência dos quintais como singularidade da paisagem de Cuiabá. O Capítulo 2, “O quintal, uma paisagem doméstica”, aborda o quintal como lugar no seu contexto de espaço doméstico e expõe as características ímpares em relação ao desenvolvimento de outras culturas ocidentais como é ponderado pelos estudos arquitetônicos; nesse sentido, o quintal é pensado a partir de suas funções e características de vegetação. Nesse sentido, foi adiantado o estudo do quintal como elemento tradicional da chamada casa brasileira e da arquitetura popular em Cuiabá. O Capítulo 3, “Quintais da atual Cuiabá”, é produto do trabalho de campo realizado para compreender o espaço em quintais de Cuiabá, e mostra as diversas relações dos quintais com os indivíduos, propondo uma classificação dos quintais de Cuiabá a partir da observação feita. Ademais, foram exibidos os quintais enquanto às características e funções do espaço, ilustrando a experiência de ter e estar em um quintal em Cuiabá. O Capítulo 4, denominado “Repensar o quintal em tempos de pandemia”, apresenta uma reflexão sobre a relevância dos quintais em tempos de pandemia, ponderando sua vigência e vitalidade como modo de habitat no período contemporâneo definido pela aparição do vírus SARS-CoV-2. O capítulo apresenta diversos olhares da pandemia e mostra como alguns discursos explicitam a necessidade de pensar os espaços abertos no contexto da crise sanitária derivada da doença da Covid-19 no tocante a questões como a segurança alimentar e a saúde mental, entre outros. A caminho do quintal, uma metodologia interdisciplinar A metodologia é apresentada como uma espécie de analogia com uma trajetória a caminho do quintal que supõe entrar em contato com as pessoas, abrir várias portas e conhecer o espaço ocupado a partir de várias dimensões e visões. Entendendo o quintal como um 30 fragmento da paisagem cultural de Cuiabá, procuramos conhecer os significados diversos deste espaço tanto para as pessoas quanto para a própria cidade, ainda perante a uma situação específica como a pandemia provocada pela Covid-19, em 2020. A pesquisa, de caráter qualitativo, proporciona horizontes na medida em que através dela torna-se possível a interação e o atravessamento teórico, neste caso, interdisciplinar. Mas também proporciona a oportunidade de localizar o pesquisador dentro do mundo de práticas materiais e interpretativas que permitem conhecer a realidade (DENZIN e LINCOLN, 2006). Inicialmente, foram contempladas várias fontes de consulta, como os relatos de viajantes, livros, álbuns fotográficos, poemas, pinturas, entre outros elementos, que, conforme Corrêa Lobato e Rosendahl (2003), possibilitam o estudo da paisagem cultural para construir a concepção da relevância material e simbólica dos quintais. No entanto, percebemos que não havia um amplo referencial imagético e outros registros que, por sua vez, produzissem indícios mais contundentes sobre os quintais em Cuiabá, em documentos mais recorrentes como álbuns fotográficos, institucionais ou particulares de acervos como o Arquivo Público de Mato Grosso e o Núcleo de Documentação e Informação História Regional da UFMT. Os escassos recursos de representação fotográfica dos quintais orientaram a pesquisa para a construção de registros, pensados a partir das diversas dimensões comunicativas nas quais os quintais poderiam ser levados em consideração não unicamente como um espaço privado, mas como um espaço de interseção, estendendo sua relevância a outros âmbitos públicos (a rua, o bairro, a cidade). Nesse viés, foram pensadas várias estratégias que correspondessem a diversas epistemes comunicacionais para produzir a visualidade: fotografar, desenhar, mapear, entre outras, como um aporte à constituição de uma multiplicidade de perspectivas que nos levasse a perceber o quintal como recurso comunicacional da paisagem da cidade. O hábito de ver a paisagem levou a considerar a prática do recurso fotográfico como instrumento metodológico na investigação social proposto para construir um registro documental da realidade social que permitisse pensar e ver espaços do cotidiano e narrar o mundo social (ECKERT & ROCHA, 2001; BONETTO, 2016). Considerando as diversas perspectivas de percepção espacial como o “alto” e “baixo”, expostas De Certeau (2012). Assim, a função das imagens seria a de ilustrar, mas também de gerar uma reflexão sobre a forma de enxergar os quintais a partir de várias dimensões. 31 Assim, é possível reunir material para a própria pesquisa, e ainda propor o conteúdo para próximas pesquisas relacionadas com o tema. Sobre os aspectos formais da pesquisa, é relevante constatar que os informantes assinaram um termo de uso da imagem (APÊNDICE B), motivo pelo qual são compartilhadas algumas fotos que tem a finalidade de humanizar o quintal. Complementando, com o intuito de conhecer os quintais, não somente na sua materialidade, mas nas atribuições e sentidos como “lugar”, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, a partir de um roteiro preestabelecido (APÊNDICE A) com perguntas abertas que conduzissem a uma conversa sobre o quintal, começando por perguntas sobre os cuidados e as atividades que ali eram realizadas. Realizou-se também uma observação direta que permitiu conhecer as configurações espaciais e os usos do espaço do quintal. A observação direta na pesquisa adquire um sentido vital para a descrição e interpretação de como os sujeitos atribuem significado ao espaço através das práticas sociais (POUPART et al, 2008). A partir da observação também foi possível realizar um processo de inventário em conjunto com os participantes da pesquisa. Os participantes identificaram, a partir do seu próprio conhecimento empírico, a vegetação que “compõe” o quintal, de acordo a sua importância. Além disso, a informação foi corroborada em bases de dados3 de flora brasileira e do mundo para conhecer os nomes científicos e registros das espécies e elaborar tabelas que mostrassem a diversidade que existe nos quintais cuiabanos. De igual modo, o estudo se apoiou na produção de mapas, a partir das informações coletadas. Estes recursos foram elaborados pela geógrafa equatoriana Nadya Serrano Abarca, mestre em recursos hídricos pela UFMT, utilizando a multiplataforma de sistema de informação geográfica QGIS, a partir do uso dos dados de endereço facilitados pelos informantes da pesquisa. Além disso, a disposição gratuita de imagens de satélite e mapas possibilitadas no Google Maps, serviço de pesquisa e visualização na web proporcionado pela companhia estadunidense Google, viabilizaram a consideração de uma visão vertical dos terrenos em uma escala maior. A utilização da ferramenta de georeferenciação permite ver o conjunto 3 Para a elaboração das tabelas foram consultadas as bases de dados WorldFlora Online (worldfloraonline.org), Reflora Brasil (floradobrasil.jbrj.gov.b), Flora Brasiliensis (florabrasiliensis.cria.org.br) e o Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (https://ferramentas.sibbr.gov.br/ficha/bin/view/especie) 32 conseguindo também uma aproximação da imagem com uma boa qualidade visual para conhecer os detalhes do entorno do espaço doméstico. Nesse procedimento, considera-se a perspectiva do alto, espécie de grande plongé (enquadramento cinematográfico em que a câmera é postada no alto, proporcionando ao espectador a vista de cima), como uma dimensão comunicativa dos quintais disponível através de plataformas de uso público. Encontrou-se na criação de croquis a possibilidade de auxiliar a reprodução visual da distribuição dos lotes dos quais os quintais formam parte. Este recurso visual permitiu salientar características que não são reproduziveis nem através de fotografias, nem das imagens de satélite por causa dos ângulos e da qualidade das imagens. Esse proceso funcionou como um caderno de campo visual, para organizar as ideias sobre o quintal, especialmente para explicitar a função dos quintais e sua importância durante o período posterior à declaração da pandemia. Os croquis foram elaborados a partir da observação in situ e se apoiaram nas imagens de satélite para termos uma noção da escala e da distribuição espacial. Os desenhos foram o resultado de um trabalho colaborativo e da utilização de técnicas como lápis de cor sobre papel por John Velásquez, na época mestrando da UFMT, e a finalização da imagem em formato digital pela pesquisadora. Os croquis são propostos como uma espécie de “carta náutica” que mostra a localização dos quintais no espaço urbano de Cuiabá, a partir de detalhes que funcionam como coordenadas para o registro espacial. O exercício mental da criação dos croquis reforça a ideia de comunicar os quintais como espaços polivocais/polissêmicos da cidade, a partir da exposição de suas formas e funções. Além das técnicas citadas, outras estratégias foram necessárias para pensar o espaço do quintal cuiabano, os sujeitos, as atribuições de significado e as práticas imersas no contexto da cidade de Cuiabá. Ao se pensar o quintal em um habitat residencial, a aproximação aos informantes para conhecer esse espaço não poderia se limitar à construção de um questionário de perguntas e uma rápida observação direta. A pesquisa sobre quintal exigia assim priorizar a permanência de um prolongado período de tempo nesses espaços, então produzidos simbolicamente como lugares, em companhia dos informantes. O tempo da conversa permitia a eles expressar os significados do 33 quintal, o que incluí a distribuição espacial de seus componentes (objetos, plantas, animais) e lógicas criadas para esses espaços. Ainda se falando do quintal como unidade espacial, é importante refletir sobre a polissemia do quintal, que não obedece a um único padrão. Deste modo, a produção de documentos próprios da presente pesquisa mostra a necessidade de pensar a relevância dos quintais de um modo interdisciplinar e multidimensional, a partir de uma tessitura de recursos que permitam visar a construção teórica de um espaço cheio de sentidos que permite vários entrecruzamentos discursivos. Caminhar e observar para abordar o quintal A primeira abordagem para a compreensão da cidade e a análise inicial dos quintais foi através da caminhada como uma forma de apreensão do espaço urbano proposta por De Certeau (2012). Como complemento dessa estratégia, foi pensada a implementação da técnica de antropologia urbana (observação flutuante), sugerida por Colette Petonnet (2008) como uma maneira de flanar, de permanecer disponível ao que o espaço urbano tem para nos mostrar, sem colocar atenção a um objeto particular. Deste modo, mantendo-se disponível às paisagens, às formas, aos modos do ato de caminhar, tentávamos fazer um mapeamento preliminar dos quintais, sobre sua localização, modos de acesso e de abordagem dos sujeitos participantes a pesquisa. Ao se olhar o quintal a partir da rua, uma imagem chamou a atenção: a aparência das fachadas das residências, protegidas por muros e cercas elétricas, dentre os quais aparecia, ainda que de maneira tímida, alguns galhos de bananeiras, cajueiros e mangueiras. Em alguns casos foi possível perceber que as frutas podiam cair na rua, devido às frondosas árvores que superavam os limites do espaço doméstico para fazer presença no território das calçadas. Outra situação foi dada a partir da observação dos quintais quando, nessas caminhadas, era possível visualizar os espaços verdes que se anunciavam por trás dos portões, muros e grades. Em alguns desses momentos, precisamente no momento de passagem por uma determinada rua, os portões se abriam para revelar o que, em geral, escondem: o espaço doméstico. Ocultar a casa é uma forma de proteção ao olhar do estranho. O espaço doméstico é revestido de equipamentos de segurança: muros, cercas, câmeras etc., como se pôde registrar 34 na figura 4, onde a bananeira supera o muro e a cerca para florescer no ambiente exterior do espaço doméstico. Figura 4: Bananeira e outras árvores frutíferas próximas ao muro de um espaço doméstico Fonte: A pesquisadora (2019) Licença para entrar no quintal Considerando essa situação, em que a sensação é de insegurança, notável a partir das formas de proteção das casas, foi pensada uma estratégia para abordar os quintais e o espaço doméstico, inicialmente, como parte da pesquisa. A ideia de entrar no território doméstico a partir da recomendação de um amigo ou de um conhecido foi uma forma de aproximação que permitiu liberar o acesso às casas e facilitou criar um ambiente de confiança entre a pesquisadora e os sujeitos da pesquisa, para conhecer a relação afetiva das pessoas com o quintal. Essa estratégia foi denominada “Licença para entrar no quintal”.4 Após um contato inicial com os informantes, quando me apresentava como amiga de alguma pessoa conhecida, as pessoas envolvidas na pesquisa combinavam um horário para me receber em casa. Chegado o momento, me dirigia ao local por meio de transporte particular fornecido por aplicativos, de ônibus ou a pé, dependendo da distância e da disposição de rotas 4 Durante a apresentação de uma comunicação no VII Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades (Coninter) onde foram expostas as preliminares da pesquisa, uma participante mencionou: “As visitas são geralmente recebidas na sala, mas não é todo mundo que entra no quintal”. O que confirmaria a necessidade de elaborar uma rede de contatos que recomendassem a visita da pesquisadora no espaço doméstico. 35 do serviço de transporte público, entendendo que, como estrangeira e apenas aprendiz da cidade, não conhecia muitos dos bairros onde a pesquisa se desenvolveu. O desconhecimento desses territórios me permitia explorar a cidade e apreender outros trajetos, reconhecendo diversas configurações da malha urbana, vendo as singularidades onde esses quintais se localizavam. Contemplar a materialidade da paisagem permitiu pensar na necessidade de entender essas ambiências a partir de várias perspectivas, com a finalidade de mostrar as particularidades que o estudo de cada quintal poderia revelar. É de salientar que a metodologia proposta para conhecer os quintais permitiu apreender através de conversas quais são os vínculos materiais e simbólicos dos moradores com a paisagem do quintal, e com as práticas e saberes ali possibilitados, como a culinária, a agricultura em pequena escala, entre outras realidades vividas nesses espaços. Também foi importante o reconhecimento de elementos que faziam parte da construção desse lugar, de acordo com suas necessidades e concepções do mundo. A estratégia, apesar de restringir o conhecimento de umagrande quantidade de quintais, possibilitou apreender os quintais da pesquisa a partir de uma relação de confiança com os donos. Este procedimento permitiu que a observação direta se realizasse durante um tempo prolongado, tendo uma compreensão situada dos assuntos da vida social e cultural destes espaços, despontando as tensões que ali se apresentam. Alguns quintais foram visitados em duas ou mais ocasiões. Em outros momentos, foi possível notar uma reação voluntária dos informantes da pesquisa de entrar em contato dias depois da visita para relatar novidades sobre o dia-a-dia no quintal. Destaca-se que, ainda com fins académicos, não é fácil ingressar nas casas e obter tempo e atenção dos moradores, dados os ritmos da vida na cidade contemporânea, onde o tempo é limitado. A situação seria ainda mais crítica a partir de 2020, sendo declarada a pandemia por causa da Covid-19, uma conjuntura inesperada que interrompeu a realização de diversas atividades de pesquisa, especificamente o trabalho de campo.5 Participação em eventos nos quintais cuiabanos 5 Com a rápida disseminação do vírus e o período de confinamento para frear os contágios, os encontros entre participantes e pesquisadores foram estagnados para cuidar da saúde de todos, a partir da declaração da pandemia em 2020. 36 Durante o percurso da pesquisa apareceram oportunidades de conhecer outros quintais, a partir da participação em eventos que reuniam coletividades para comemorações especiais. Nesse tipo de acontecimento foi possível unicamente a observação direta e o registro fotográfico, sem aceder a conversas com os proprietários ou organizadores. No entanto, a observação permitiu a escrita do diário de campo para perceber as situações dadas no quintal como possibilitador de encontros. O registro desses eventos “banais” que se situam nos quintais representa a vida mais íntima e desperta um olhar mais cuidadoso para as singularidades da cidade que oferecem outras perspectivas dos quintais no que se refere aos seus usos e formas de ocupação, mas também à visualidade e organização espacial. A realização de atividades coletivas nesses espaços permitiu ligar os quintais a atividades culturais conhecendo a importância que esses espaços têm na cidade ao se constituírem como palcos para as diversas manifestações locais. Comer no quintal O quintal e sua polissemia trouxeram em um momento da pesquisa o estranhamento com a ideia de quintal, na medida em que passamos a perceber o funcionamento na cidade de alguns restaurantes que aparecem na tessitura urbana a partir da denominação “quintal de”. Assim, foram realizadas visitas a três restaurantes em Cuiabá. A aproximação foi realizada com os proprietários dos estabelecimentos (in situ) para observar a configuração desses espaços e suas particularidades. A diversidade de contatos estabelecidos possibilitou constatar que cada um dos espaços da pesquisa apresenta características diversas que permitem pensar o quintal desde sua singularidade, devido à sua configuração, distribuição de plantas e modos de uso, e a relação de cada morador ou cuidador com o espaço. De maneira aleatória, durante a pesquisa, foram visitados dez quintais, localizados em diversas regiões da cidade (Ver figura 5), mostrando a reprodução desse tipo de estrutura, apesar da acelerada expansão do tecido urbano que tem suscitado fenômenos como a verticalização e a construção de conjuntos residenciais, como foi exposto por Romancini (2001). Olhar para Cuiabá a partir desses fragmentos permite tecer ideias, como colcha de retalhos, da constituição de um território ímpar, de uma cidade heterogênea que mostra diferentes formas de ser habitada. 37 Figura 5. Mapa de distribuição dos quintais da pesquisa em Cuiabá, Mato Grosso. Fonte: A pesquisadora, 2021. Os dez quintais da pesquisa correspondem por localização geográfica aos bairros da região leste da cidade de Cuiabá: Boa Esperança (2 quintais), Lixeira, Jardim Universitário, Jardim Imperial II; região oeste: Santa Rosa II, Cidade Alta, Duque de Caxias, Quilombo; e 38 região sul: Coophema, que como registrado na Figura 5, representam um valor sobre a superfície da cidade. 39 CAPÍTULO I LUGAR E PAISAGEM CULTURAL: A CIDADE E O QUINTAL O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê; é preciso transver o mundo. Manoel de Barros (2015, p. 83) Quintais são terrenos anexos à casa, caracterizados por albergar cultivos de plantas e criação de animais, para cumprir funções de abastecimento, sombreamento, usos medicinais, ornamentais e de lazer. Os quintais tem sido considerados como relevantes para a conservação da diversidade de espécies (vegetais e animais), a reprodução de saberes, manutenção da cobertura verde urbana e a prática cotidiana de múltiplas atividades familiares e sociais. A presença de quintais na cidade de Cuiabá oferece uma visão sobre os modos de ocupação de antigos assentamentos humanos. A existência dos quintais, ainda hoje, não somente traz uma reflexão sobre uma forma histórica de vida, mas sobre o que implica escavar na materialidade desse espaço o simbolismo das transformações na paisagem da cidade. Nessa escavação, deparamo-nos com a relevância desses fragmentos espaciais urbanos que parecem ter um silenciamento por parte da mídia, mas que insistem em uma permanência na memória coletiva das pessoas que habitam a cidade. A perspectiva da paisagem cultural permite expor o quintal e refletir sobre ele a partir de uma abordagem cultural. Este procedimento permite apresentar o quintal como fragmento de paisagem, a partir de múltiplas perspectivas, ponderando também as qualidades comunicativas da cidade. A perspectiva e a abordagem proporcionam uma ideia sobre a cidade e sua organização espacial, permitindo também pensar nesses discursos dados a partir de diferentes leituras, tanto dos moradores quanto dos estrangeiros. Pensar a cidade exige uma abrangência de posições sobre o lugar e os seres que nela interagem. No entanto, é importante refletir sobre a forma como se olha a cidade e as mediações que constituem esse olhar. Como menciona Reguillo (2007), esse olhar demanda a abordagem da cultura, o que nos situa na análise da presença de instituições, agências, discursos e práticas sociais. 40 Existem múltiplas tensões sobre os olhares das paisagens que configuram o espaço a partir das diversas atividades humanas, o que inclui a relação entre homem e natureza. No tocante à cultura, esta interação, especificamente dada a partir das formas de moradia, pode mostrar as singularidades da experiência urbana a partir das banalidades do cotidiano. Nas cidades, as transformações estéticas e as mudanças da paisagem continuam nos mostrando uma convivência de temporalidades marcante nos hábitos, saberes e afetos. Como menciona Santos (2002), as periodizações mostram a ordem do tempo que reflete sobre a existência de gerações urbanas, que poderiam mostrar como essas cidades foram construídas de várias maneiras, através da utilização de diversos materiais e a partir de diferentes ideologias. Para Santos (2002), cada cidade nasce com características próprias, dadas a partir de suas necessidades e das possibilidades da época, que constituem um presente no presente, conforme se forma o espaço, a partir da materialidade e das relações sociais. Como adição do passado e o presente através das formas das cidades, Santos (2002) pondera que a materialidade é toda do passado porque mostra elementos que já foram construídos. Ele considera que, mesmo estando no presente, estes elementos trazem o passado a partir da representação de suas formas. Nesse sentido, não existiriam como tempo, mas como espaço (SANTOS, 2012). A materialidade constitui, então, um dado primordial na interpretação do espaço, que permite, através das técnicas
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