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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO DO CERES RANA LETÍCIA OLIVEIRA DE QUEIROZ ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇA COM TEA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA CAICÓ-RN 2021 RANA LETÍCIA OLIVEIRA DE QUEIROZ ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇA COM TEA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito básico para a conclusão do Curso de Peda- gogia. Orientador: Prof. Esp. Diêgo de Lima Santos Silva CAICÓ-RN 2021 RANA LETÍCIA OLIVEIRA DE QUEIROZ ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇA COM TEA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Monografia apresentada ao curso de gradua- ção em Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito par- cial à obtenção do título de Licenciado em Pe- dagogia. Orientador: Prof.º Esp. Diêgo de Lima Santos Silva Aprovada em: ____/____/______ BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________ Prof.º Esp. Diêgo de Lima Santos Silva UFRN/DEDUC Orientador ___________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Jacicleide Ferreira Targino da Cruz Melo UFRN/DEDUC Examinadora ___________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Francileide Batista de Almeida Vieira UFRN/DEDUC Examinadora À minha mãe, Jaqueline Oliveira. AGRADECIMENTOS A Deus, pela oportunidade de concluir o curso e por me dar forças para nunca desistir. À minha mãe, a base de tudo, a que insistiu para que eu entrasse no curso. Me apoiou, me ajudou em tantas tarefas, me ouviu e, principalmente, fez de tudo para que eu chegasse até aqui. Ao meu pai, por dispor de um tempo para me deixar na faculdade, todos os dias. À minha família, por insistir na minha educação, me lembrando de sempre es- tudar. Ao meu namorado, por estar ao meu lado em todos os momentos. Aos professores que passaram em minha vida, em especial o meu professor orientador, Diêgo de Lima Santos Silva, por toda a determinação e ajuda neste longo processo de conclusão de curso. A todos que, direta ou indiretamente, fizeram parte da minha caminhada aca- dêmica até aqui. Um dos maiores danos que se pode causar a uma criança é levá-la a perder a confiança na sua própria capacidade de pensar. Emilia Ferreiro RESUMO O presente trabalho monográfico, intitulado "Alfabetização de criança com TEA: Um relato de experiência”, tem o objetivo de refletir sobre como acontece o processo de alfabetização de uma criança com Transtorno do Espectro Autista na classe comum do ensino regular acompanhada por uma professora da educação especial. Dessa maneira, trata-se de um estudo de caso, qualitativo do tipo relato de experiência, que evidência lados positivos e negativos no processo de alfabetização, para que possibi- lite reflexões e venha a somar em novas pesquisas no âmbito da educação. O estudo contou com a participação de uma profissional da educação de uma escola da rede estadual de Caicó/RN, reconhecida pela comunidade como uma instituição de alto padrão. Para maior embasamento e compreensão, foi apresentado um breve resumo sobre a história e crianças com TEA, com o intuito de ambientar o contexto no qual o trabalho foi desenvolvido. Assim, como também, foram apresentadas algumas consi- derações sobre o processo de alfabetizar e a subjetividade de crianças com TEA, apontando reflexões e estudos de autores da educação, como Cunha (2020); Ferreiro (1986); Serra (2018); Soares (2020); entre outros. Para retratar o contexto da pes- quisa, foi realizada uma pequena apresentação da participante e do aluno, contendo aspectos importantes do seu desenvolvimento, relatados pela profissional. Por meio das ideias apresentadas espera-se contribuir com importantes reflexões sobre a im- portância da alfabetização de crianças com TEA, conduzindo à melhoria das práticas pedagógicas desenvolvidas para essas pessoas. Palavras-chave: Educação Especial; Alfabetização; Profissional da Educação. ABSTRACT This monographic work, entitled "Literacy of children with Autism Spectrum Disorder: An experience report", aims to reflect on how the literacy process of a child with Autism Spectrum Disorder happens in the regular classroom of regular education accompa- nied by a by a teacher from In this way, it is a case study, qualitative, of the experience report type, which highlights positive and negative sides in the literacy process, so that it allows reflections and will add to further research in the field of education. The study included by the participation of an education professional from a school in the state network of Caicó/RN, recognized by the community as a high standard institution. his- tory of autism and children with Autism Spectrum Disorder, with the aim of setting the context in which the work was developed. Thus, as well as some considerations about the process were presented to teach literacy and the subjectivity of children with au- tism, pointing to reflections and studies by authors of education, such as Cunha (2020); Ferreiro (1986); Serra (2018); Soares (2020); between others. To portray the context of the research, a short presentation was made by the participant and the student, containing important aspects of their development, reported by the professional. Through the ideas presented, it is expected to contribute with important reflections on the importance of literacy for children with Autism Spectrum Disorder, leading to the improvement of the pedagogical practices developed for these people. Keywords: Special Education; Literacy; Education Professional. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Alfabeto ..................................................................................................... 41 Figura 2 - Jogo de montar, com variação para contagem e formação de letras........ 41 Figura 3 - Jogo de alfabetização no celular ............................................................... 42 Figura 4 - Atividade de Geografia .............................................................................. 42 Figura 5 - Atividade de Português ............................................................................. 43 Figura 6 - Usando o lápis .......................................................................................... 44 Figura 7 - Folheando caderno ................................................................................... 45 file:///C:/Users/Cliente/Documents/8º%20Período/TEXTOS%20PARA%20A%20MONOGRAFIA/MONOGRAFIA%2012.08.docx%23_Toc79869149 file:///C:/Users/Cliente/Documents/8º%20Período/TEXTOS%20PARA%20A%20MONOGRAFIA/MONOGRAFIA%2012.08.docx%23_Toc79869151 file:///C:/Users/Cliente/Documents/8º%20Período/TEXTOS%20PARA%20A%20MONOGRAFIA/MONOGRAFIA%2012.08.docx%23_Toc79869152 file:///C:/Users/Cliente/Documents/8º%20Período/TEXTOS%20PARA%20A%20MONOGRAFIA/MONOGRAFIA%2012.08.docx%23_Toc79869153 file:///C:/Users/Cliente/Documents/8º%20Período/TEXTOS%20PARA%20A%20MONOGRAFIA/MONOGRAFIA%2012.08.docx%23_Toc79869154 file:///C:/Users/Cliente/Documents/8º%20Período/TEXTOS%20PARA%20A%20MONOGRAFIA/MONOGRAFIA%2012.08.docx%23_Toc79869155 LISTA DE SIGLAS AEE — Atendimento Educacional Especializado. AMA — Associação de Amigos do Autista. CDPD — Convenção Internacional sobre os Direitosdas Pessoas com Deficiência. CID-10 — Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Sa- úde. COVID-19 — Corona Virus Disease DSM-IV-TR — Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais- Quarta Edi- ção. DSM-V — Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais- Quinta Edição. LDB — Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. ONU — Organização das Nações Unidas. PCN — Parâmetros Curriculares Nacionais. PEI — Plano Educacional Individualizado. SEARH — Secretaria de Estado da Administração. SEEC/RN — Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e do Lazer. SIGEDUC — Sistema Integrado de Gestão da Educação. SUESP/RN — Subcoordenaria de Educação Especial. TEA — Transtorno do Espectro Autista. TGD — Transtornos Globais do Desenvolvimento. TID — Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13 1 ABORDAGENS SOBRE TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA – TEA ... 16 1.1 História do TEA ............................................................................................ 16 1.2 A Lei Berenice Piana, de nº 12.764/12 ......................................................... 19 1.3 A família e a escola da criança com TEA ..................................................... 22 2 PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS COM TEA ....................... 25 2.1 Considerações acerca do processo de alfabetizar ....................................... 25 2.2 Alfabetização de crianças com TEA ............................................................. 27 2.3 Tempo e subjetividade da criança com TEA ................................................ 30 3 APRESENTAÇÃO DO ESTUDO DE CASO DE ALFABETIZAÇÃO DE UMA CRIANÇA COM TEA ................................................................................................ 33 3.1 A escola, a professora e a criança com TEA ............................................... 33 3.2 Materiais e métodos utilizados na alfabetização .......................................... 40 3.3 Desafios e êxitos do processo ..................................................................... 43 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 47 5 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 51 APÊNDICE – Roteiro de entrevista ........................................................................... 53 13 INTRODUÇÃO A educação especial nas escolas regulares vem sendo amplamente discutida. Há muito o que se explorar sobre o trabalho desenvolvido nas escolas com o público alvo dessa modalidade de ensino. A preocupação diante da inclusão parece envolver mais intensamente a socialização desses alunos. No entanto, as dificuldades dentro do processo de alfabetização deles também é um dos principais obstáculos enfrenta- dos pelos professores. De acordo com Cunha (2012, p.5), o trabalho na escola en- volve a ação e não se constroem movimentos de aprendizagem sem o valor delas. O Art. 28, III da Lei 13.146/15 determina que a escola regular deve se adaptar ao aluno com TEA. A lei exige a criação de um projeto pedagógico para fornecer as- sistência educacional especializada para atender as necessidades e características de cada criança, e visa capacitar os alunos com TEA a usar os currículos escolares em igualdade de condições. O aluno deve ser olhado em sua excentricidade para ser atendido de forma adequada e que possibilite o seu desenvolvimento. É imprescindí- vel que haja planejamento pedagógico para que sejam verificadas as possibilidades de desenvolvimento, bem como sejam apontadas as necessidades individuais do aluno, em especial, dentro do seu processo de alfabetização. Crianças com TEA apresentam repertório de interesses e atividades restritos e repetitivos, têm dificuldade de lidar com o inesperado e demonstram pouca flexibili- dade para mudar as rotinas (SILVA, 2012, p.12). Alfabetizar tais crianças em ambiente escolar, dependendo do seu nível de TEA, pode ser preciso utilizar meios específicos e característicos dessa criança. No ano de 2015, foi lançado no estado do Rio Grande do Norte o primeiro con- curso para um novo cargo na rede pública de ensino, o de professor da educação especial. Com a convocação desses profissionais, os alunos, público alvo dessa mo- dalidade de ensino, principalmente crianças com TEA, foram contemplados com o acompanhamento individualizado em sala de aula. Assim, o presente trabalho busca fazer o relato de uma experiência vivenciada por uma professora da educação especial, em uma escola pública da rede estadual de ensino, na cidade de Caicó, no processo de alfabetização da criança com TEA que é acompanhado desde o 1º ano do Ensino Fundamental, em 2018, até o momento 14 atual. Quais são as ferramentas que essa profissional utiliza no processo de alfabeti- zação, suas dificuldades e conquistas? Perante essa perspectiva de um novo cargo, faz-se necessária uma reflexão a respeito de como crianças com TEA estão sendo alfabetizadas, as dificuldades de alfabetizar tais crianças, os métodos que estão sendo usados e os resultados obtidos. Considerando esses pontos, é que se propôs a temática do vigente trabalho. Com base nas questões anteriores, esse trabalho tem como objetivo geral iden- tificar e refletir sobre as conquistas e os impasses experimentados por uma professora da educação especial para alfabetizar seu aluno com TEA na classe comum do ensino regular. Tais identificação e reflexão serão realizadas através de um relato de experi- ência vivenciado pela professora participante da pesquisa. Os objetivos específicos desse trabalho são apontar registros realizados pela professora do dia a dia da criança com TEA na escola, analisar como vem se desen- volvendo o processo de alfabetização junto ao aluno em sala de aula, relatar dificul- dades e avanços do processo de alfabetização da criança. Essa pesquisa toma como base os métodos realizados para uma criança com TEA, tendo como finalidade a construção de dados acerca da experiência vivenciada pela professora participante, para evidenciar traços de desenvolvimento do processo de alfabetização. Dessa maneira, trata-se de um estudo descritivo, qualitativo do tipo relato de experiência, na qual, evidencia tantos pontos positivos como negativos da prática da professora, para que essas evidencias possibilitem reflexões. Seja como for, o relato deve trazer considerações (a partir da vivência sobre a qual se relata e reflete) que sejam significativas para a área de estudos em questão. Isto é, é importante que seu relato não fique apenas no nível de descrever uma situação. Ele deve ir além e estabelecer ponderações e refle- xões, embasadas na experiência relatada e no seu respectivo aparato teórico. É esperado que tais experiências possam contribuir para outros pesquisado- res da área, ampliando o efeito da sua experiência como potencial exemplo para outros estudos e vivências. (Universidade Federal de Juíz de Fora, 2016, p.1) A coleta de dados se deu por meio de uma entrevista com a professora pelos aplicativos WhatsApp e Google Meet, devido ao momento pandêmico da COVID-19 vivenciado no ano de 2021. Participaram diretamente da pesquisa apenas a profes- sora da educação especial e a criança com Transtorno do Espectro Autista. A entre- vista foi a forma escolhida, pois mostrou-se como oportunidade de a participante rela- tar sua própria prática pedagógica desenvolvida junto ao aluno. 15 Essa pesquisa torna-se de grande relevância, visto que, possibilita um enten- dimento maior sobre a alfabetização da criança com TEA e sobre o novo cargo de professor da educação especial. O conhecimento destas partessistematiza o pro- cesso de desenvolvimento da educação brasileira. A educação inclusiva nas escolas regulares deve ser vivenciada de forma ampla e sistematizada principalmente na sala de ensino comum favorecendo assim a sociabilidade e a inclusão. Emerge, nesse contexto, a necessidade de maior aprofundamento no assunto, na forma que a do- cente utiliza materiais e métodos para o trabalho com crianças com TEA, visando um ensino-aprendizagem que atenda às necessidades individuais dessa criança. Tudo isso no sentido de que o aprendizado aconteça de forma natural, simplificada e pra- zerosa e que o método de ensino aplicado a criança seja dialogado entre professores. O presente trabalho encontra-se organizado em três capítulos, além desta in- trodução e das considerações finais. A legislação de proteção e inclusão de TEA no ambiente escolar prevê regras claras e assertivas a serem observadas. Dentre elas temos a Lei Berenice Piana de nº 12.764 que, em 2012, reconhece o TEA como defi- ciência, para todos os efeitos legais. Também, falamos um pouco sobre como surgiu o TEA e a importância da escola para essas crianças, tratando-se do primeiro capítulo intitulado “Abordagens histórica sobre transtorno do espectro autista”. Logo após, pas- sou-se a discorrer sobre “Processo de alfabetização de crianças com TEA”, a fim de contextualizar o tema, as dificuldades apresentadas e o vasto caminho que tende a percorrer os profissionais da educação, utilizando como referência Soares (2020), Fer- reiro e Teberosky (1986), Serra (2018), Pereira (2013), Silva, Gaiato e Reveles (2012) e Cunha (2012). Por fim, o terceiro capitulo intitulado “Apresentação do estudo de caso de alfabetização de uma criança com TEA”, é contextualizado todo o material exposto pela professora, suas dificuldades e desafios com a criança, como também, suas vi- tórias. 16 1 ABORDAGENS SOBRE TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA – TEA 1.1 História do TEA Silva, Gaiato e Reveles (2012, p.111) exibem a palavra "autismo" sendo deri- vada da palavra grega "autos", que significa "voltar-se para si mesmo". A primeira pessoa a utilizá-la foi o psiquiatra austríaco Eugen Bleuler, em 1911, para descrever um dos atributos de pessoas com esquizofrenia, se referindo ao isolamento social dos indivíduos acometidos. O psiquiatra infantil austríaco Leo Kanner, em 1943, publicou um artigo intitu- lado “Distúrbios autísticos do contato afetivo”, na qual, observou 11 crianças que apre- sentavam isolamento desde quando nasceram, atividades apoiadas a uma rotina, es- colha por objetos inanimados, desinteresse e inabilidade de se relacionar com outras pessoas, um desenvolvimento inerente da linguagem verbal marcada por ecolalia (re- petição de palavras), estereotipias (repetição de movimentos) e inversão pronominal (chamar-se na terceira pessoa). No ano de 1944, o pesquisador austríaco Hans Asperger publicou um estudo intitulado “Psicopatia Autista da Infância”, na qual, observou 400 crianças, avaliando suas condutas e habilidades. Com a conclusão, descreveu um transtorno de persona- lidade que incluía falta de empatia, baixa capacidade de fazer amizades, foco em as- sunto de interesse especial e dificuldade de coordenação motora (que depois ficou conhecido como síndrome de Asperger). Hans Asperger ressaltou o termo “psicopatia autística” e chamava as crianças de “pequenos mestres”, graças à habilidade de dis- correr sobre um tema detalhista. Segundo Silva, Gaiato e Reveles (2012, p.112), a psiquiatra inglesa Lorna Wing, a partir de 1960, começou a publicar textos importantes para o estudo do TEA, na qual, sua filha apresentava o transtorno. Alguns dos seus documentos publicados foram traduções para o inglês os trabalhos de Hans Asperger, popularizando suas teorias. Em 1979, Lorna Wing foi a primeira pessoa a descrever a tríade de sintomas que consiste em: alterações na sociabilidade, comunicação/linguagem e padrão alte- rado de comportamentos. Foi inserido a ideia de que os sintomas relacionados a qual- quer um dos três domínios citados pode ocorrer em variados graus de intensidade e, portanto, com diferentes manifestações. 17 Na mesma década, o psicólogo comportamental Ole Ivar Lovaas introduziu a ideia de que as crianças com autismo aprendem habilidades novas através da técnica da terapia comportamental. Seus resultados apresentavam-se de maneira mais efetiva do que as tradicionais terapias psicodinâmicas. Naquela época a psicologia comportamental sofria forte preconceito por parte dos psi- cólogos que seguiam outras linhas teóricas e pela sociedade como um todo. Os psicológicos comportamentais só costumavam ser consultados depois de esgotar as outras modalidades terapêuticas. Sendo assim, o comportamento da criança com autismo tornava-se, muitas vezes, insuportável para os pais e muito danoso para elas próprias. (SILVA, GAIATO E REVELES, 2012, p.112) Até então, o TEA ainda prosseguia como um sub grupo dentro das psicoses infantis, era considerado ainda uma forma de esquizofrenia. A partir da década de 80, o TEA foi retirado da categoria de psicose no DSM-III (Manual Diagnóstico e Estatís- tico de Transtornos Mentais) e CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Do- enças e Problemas Relacionados à Saúde), passando a fazer parte dos Transtornos Globais do Desenvolvimento. No DSM-V, lançado em 2013, para ser diagnosticado com TEA, o indivíduo deve ter apresentado sintomas que comecem na infância e devem comprometer a capacidade do mesmo em função da sua vida e do dia a dia (American Psychiatric Association, 2014). Para o DSM-V, os déficits sociais e de comunicação são: a) Problemas de interação social ou emocional alternativo. Isso pode incluir a dificuldade de estabelecer ou manter o vai e vem de conversas e interações, a incapacidade de iniciar uma interação e problemas com a atenção compar- tilhada ou partilha de emoções e interesses com os outros. b) Graves problemas para manter relações. Isso pode envolver uma completa falta de interesse em outras pessoas, as dificuldades de jogar, fingir e se en- gajar em atividades sociais apropriadas à idade e problemas de adaptação a diferentes expectativas sociais. c) Problemas de comunicação não verbal. O que pode incluir o contato anor- mal dos olhos, postura, expressões faciais, tom de voz e gestos, bem como a incapacidade de entender esses sinais não verbais de outras pessoas. Comportamentos repetitivos e restritivos são: a) apego extremo a rotinas e padrões e resistência a mudanças nas rotinas; b) fala ou movimentos repetitivos e c) interesses intensos e restritivos. Dificuldade em integrar informação sen- sorial ou forte procura ou evitar comportamentos de estímulos sensoriais. (American Psychiatric Association, 2014) Com as mudanças feita pelo DSM, o diagnóstico do TEA veio com níveis de intensidade. Com esses níveis, é de maior facilidade um diagnóstico mais claro, per- mitindo identificar o nível de gravidade dos sintomas. São três níveis intitulados de 18 nível 1, nível 2 e nível 3, capazes de descrever a gravidade dos sintomas que afetam as habilidades sociais e comportamentais das pessoas com TEA. No nível 1, as pessoas que se enquadram nele tem sintomas leves do TEA, podem ter dificuldades em situações sociais, mas necessitam de pouco suporte para ajudá-las em suas atividades. As pessoas no nível 2 precisam de um pouco mais de suporte, é a faixa intermediária do TEA. Geralmente, são pessoas com mais dificulda- des na interação social do que as do nível 1 e podem ou não se comunicar verbal- mente, além de pouco contato visual. O nível 3, também conhecimento como autismo severo, são pessoas que precisam de maior suporte, é a forma mais grave do trans- torno. Elas apresentam dificuldades significativas nas habilidades sociais e comunica- ção. A maioria são pessoas não-verbais,apesar de alguns casos existirem pessoas que podem ser verbais no nível 3. Não lidam com eventos inesperados e apresentam comportamentos restritivos e repetitivos. Em dezembro de 2007, a ONU decretou 2 de abril o Dia Mundial de Conscien- tização do Autismo, comemorando pela primeira vez em 2008. Com apoiantes em diversas partes do mundo, o evento solicita mais atenção aos transtornos do espectro autístico, que afetam cerca de 70 milhões de pessoas em todo o planeta, segundo a organização. De acordo com Khoury et al. (2014), até 2013, os manuais CID-10 e DSM-IV-TR utilizavam os termos Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) e Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID). O CID-10 descreve oito tipos de TGD: Autismo Infantil, Autismo Atípico, Síndrome de Rett, Transtorno Desintegrativo da In- fância, Transtorno com Hipercinesia associada a Retardo Mental e Movimentos Este- reotipados, Síndrome de Asperger, Outros Transtornos Globais do Desenvolvimento e Transtornos Globais do Desenvolvimento Não Especificados. Já o DSM-IV-TR apre- senta cinco tipos clínicos na categoria TID: Transtorno Autista, Transtorno de Rett, Transtorno Desintegrativo da Infância, Transtorno de Asperger e Transtorno Invasivo do Desenvolvimento sem Outra Especificação. Apesar dos manuais anteriormente citados adotarem os termos TGD e TID, há mais de 20 anos que os estudos sobre o TEA utilizam o termo Transtorno do Espectro Autista (TEA), para se referir a apenas três transtornos relacionados aos TGD ou ao TID, que são o Transtorno Autista, o Transtorno de Asperger e o Transtorno Global ou Invasivo do Desenvolvimento Sem Outra Especificação. Ou seja, nem todos os transtornos classificados como TGD ou TID no DSM-IV e na CID-10 são considerados na categoria diagnóstica do TEA. 19 No Brasil, o Dia Mundial de Conscientização do Autismo tem adquirido cada vez mais o envolvimento das pessoas, comprovando isso, em 2010, pela primeira vez, a data foi lembrada no dia 2 de abril com iluminações em azul, cor definida para o TEA, em vários monumentos e prédios ao redor do país. Entre eles estão o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro e o prédio do Senado em Brasília. A primeira organização brasileira foi a Associação de Amigos do Autista (AMA), em São Paulo, fundada em 1983 por um grupo de pais com filhos com TEA. Esses pais tinham como objetivo pesquisar, acolher, informar e capacitar todas as famílias envolvidas e profissionais. A associação tem a missão de “proporcionar à pessoa com autismo uma vida digna: trabalho, saúde, lazer e integração à sociedade” (AMA, 1983). Em novembro de 1984, ocorreu o “I Encontro de Amigos do Autista”, promovido pelo AMA. Esse encontro reuniu pais, médicos e outros profissionais que estudavam o transtorno naquela época. Desde então, a associação investe esforços na formação de profissionais e na busca de mais instrumentos adequados para promover trata- mentos efetivos. 1.2 A Lei Berenice Piana, de nº 12.764/12 De acordo com o site “Autismo e Realidade” (2020), Berenice Piana foi a pri- meira pessoa a conseguir a aprovação de uma lei por meio de iniciativa popular no Brasil. Quando seu terceiro filho nasceu, em meados da década de 90, a palavra au- tismo não era conhecida por ela e por nenhum profissional da saúde em que levara seu filho, que aos 2 anos, apresentava pouco avanço na fala, não olhava nos olhos, não socializava com outras crianças, entre outros sintomas. O diagnóstico do filho de Berenice só apareceu quando a criança tinha 6 anos, graças aos estudos da própria mãe. Diversos médicos insistiam em dizer que a cri- ança era neurotípica (indivíduo que não possui problema de desenvolvimento neuro- lógico). Os médicos não conseguiam perceber nada de errado com o garoto, pois, naquela época, o TEA era muito desconhecido e ainda não havia profissionais capa- citados no diagnóstico do transtorno no Brasil. Após entender do que se tratava e ter confirmação do diagnóstico, Berenice não encontrou apoio do sistema público para o tratamento adequado do seu filho. Além disso, ainda lidou com a falta de proteção jurídica e o despreparo das escolas, onde, a criança não recebia estímulos adequados para seu desenvolvimento. Após 20 muitas frustrações, Berenice encontrou uma clínica-escola onde seu filho tinha acesso à educação de qualidade, serviços de saúde e assistência social, passando a progre- dir e sendo alfabetizado. Após o diagnóstico, seu filho começou a receber o tratamento específico e sua mãe passou a lutar pelos direitos das pessoas com TEA. Foram dois anos e meio na luta pela aprovação da lei que leva o nome de Berenice Piana. Então, em dezembro de 2012, a Lei nº 12.764 entrou em vigor, a luta passou a ser para o seu cumprimento efetivo em todo o Brasil. A partir da promulgação dessa lei, as pessoas com TEA passaram a ter os mesmos direitos das outras pessoas com deficiência e, com isso, enquadraram-se no conceito descrito pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). No Brasil, O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015, trata da inclusão dessas pessoas tendo como defini- ção o art. 2º que diz: Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual, ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Entre todos os benefícios que a Lei 12.764 traz para as pessoas com TEA, destacamos o direito a um acompanhamento especializado. No seu Art. 2º, a lei valida que “em casos de comprovada necessidade, a pessoa com Transtorno do Espectro Autista, incluída nas classes comuns de ensino regular, terá direito a acompanhante especializado” (BRASIL, 2012, Art. 2º). No estado do Rio Grande do Norte, foi realizado pela primeira vez, um concurso destinando vagas para o cargo Pedagogia – Educação Especial, através do Edital nº 001/2015 – SEARH – SEEC/RN, de 3 de novembro de 2015. O referido cargo foi pioneiro no que diz respeito ao acompanhamento especializado em sala de aula para crianças com deficiência, especialmente com TEA. Tais profissionais exercem, atual- mente, suas funções em sala de aula acompanhando o processo de aprendizagem das crianças público alvo da Educação Especial, junto aos professores regentes das turmas. Tal medida, vai de encontro ao que garante a Lei 12.764, em seu Art. 2º e ao que defende Cunha sobre o acompanhamento especializado junto ao aluno com TEA: 21 Enquanto o aluno com autismo não adquire a autonomia necessária, é impor- tante que ele permaneça sob o auxílio de um profissional capacitado ou um psicopedagogo para que dê suporte ao professor em sala de aula. Na escola inclusiva, é demasiadamente difícil para um único educador atender a uma classe inteira com diferentes níveis educacionais e, ainda, propiciar uma edu- cação inclusiva adequada. (CUNHA, 2012, p.55) O profissional especializado em educação especial ficou conhecido entre as pessoas como “cuidador”, no entanto, quando se refere ao ambiente escolar e as re- alidades das redes estadual e municipal na cidade de Caicó, esse educador tem for- mação e práticas diferentes. Nas escolas públicas do Estado, como citado anterior- mente, existe o cargo de professor da Educação Especial que tem o papel de acom- panhar a aprendizagem do aluno, público alvo dessa modalidade de ensino, em sala de aula, esses profissionais com formação em Pedagogia. Já na rede Municipal de Caicó, existe um professor auxiliar para acompanhar o aluno com necessidades es- peciais, sendo estes graduandos de Pedagogia, ou seja, tem a função de cuidadores, apenas. Para Cunha, o Acompanhante Especializado é um profissional capacitado no assunto ou com a formação em psicopedagogia (CUNHA, 2012, p.56).Esse despreparo do Acompanhante Especializado está em desavença com a legislação brasileira. A Lei nº 9.394/96 (LDB) diz que os sistemas de ensino assegu- rarão aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação: currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e or- ganização específica, para atender às suas necessidades. Além disso, a mesma lei lembra sobre a necessidade de professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns (BRA- SIL, 1996, Art. 59). Em relação a esses profissionais, no estado do Rio Grande do Norte, existem poucas regulamentações acerca da capacitação dos que atuam na Educação Espe- cial. Um folheto informativo foi produzido pela Subcoordenadoria de Educação Espe- cial – SUESP/RN para orientar e especificar as atribuições de cada um. Nesse docu- mento, o termo cuidador e professor de Educação Especial diferenciam-se, afirmando que: Os profissionais de apoio às atividades de locomoção, higiene, alimentação, prestam auxílio individualizado aos estudantes que não realizam essas ativi- dades com independência. Esse apoio ocorre conforme as especificidades 22 apresentadas pelo estudante, relacionadas à sua condição de funcionalidade e não à condição de deficiência. A demanda de um profissional de apoio se justifica quando a necessidade específica do estudante público alvo da edu- cação especial não for atendida no contexto geral dos cuidados disponibiliza- dos aos demais estudantes. Não é atribuição do profissional de apoio desen- volver atividades educacionais diferenciadas, ao aluno público alvo da edu- cação especial, e nem se responsabilizar pelo ensino deste aluno. (2019, p.59) E dos professores da Educação Especial, entre outras, Acompanhar e orientar o processo de ensino e aprendizagem do estudante com deficiência; colaborar com o professor titular, na mediação do processo de ensino aprendizagem do educando (Resolução, 03/2016 CEE/CEB, art. 09, inciso I); colaborar com o professor titular do ensino comum na elaboração das atividades avaliativas adaptadas para o estudante. (2019, p.61) Em sequência a Lei Berenice Piana, no art. 3º, afirma que são direitos da pes- soa com TEA, I - A vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da per- sonalidade, a segurança e o lazer; II - A proteção contra qualquer forma de abuso e exploração; III - O acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo: a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo; b) o atendimento multiprofissional; c) a nutrição adequada e a terapia nutricional; d) os medicamentos; e) informações que auxiliem no di- agnóstico e no tratamento; IV - O acesso: a) à educação e ao ensino profissionalizante; b) à moradia, inclusive à residência protegida; c) ao mercado de trabalho; d) à previdência social e à assistência social (BRASIL, 12.764/12) Não se pode excluir a responsabilidade do poder público e nem diminuir a dos profissionais, assim como da família na busca do conhecimento, da capacitação e da perspectiva inclusiva na sociedade. A referida lei comprova a inquietação de uma po- lítica para o crescimento integral da pessoa com TEA. A trajetória de Berenice é tam- bém reconhecida internacionalmente. Em 2017, recebeu o título de Embaixadora da Paz pela Organização das Nações Unidas (ONU) e União Europeia. 1.3 A família e a escola da criança com TEA Há muitas possibilidades de o TEA trazer a carga do isolamento social, dor familiar e exclusão escolar. A preocupação dos pais é de muita relevância, pois pode 23 acontecer alterações na relação da família e nem sempre é encontrado maneiras po- sitivas para lidar com as diversas situações. O espaço educativo tem grande relevância, no que tange a conscientização sobre pessoas com TEA. Sendo a escola o local oportuno, para socialização, e opor- tunidade de desenvolvimento. Para isso, é necessário atentar que crianças com TEA, precisam de constante atenção e atendimento especializado. De acordo com Cunha (2012, p.77), as dificuldades de aprendizagem que a criança com TEA pode sofrer durante seu histórico escolar requer um olhar extensivo da família, para uma melhor aplicação de todas as etapas do processo de sua educação. Os pais podem se sentir inseguros para corrigir o filho e acabam buscando meios menos rigorosos para intro- duzir a criança no lar familiar. É interessante ressaltar que para a escola realizar uma educação que atenda às necessidades de uma criança com TEA, além de incluí-lo no meio escolar, deve também incluir sua família nos espaços de atenção e atuação psicopedagógica. Nesse sentido, é de fundamental importância conhecer a realidade familiar ao qual o aluno está inserido para assim, traçar um plano educacional que atenda não somente as necessidades da criança no âmbito escolar, mas que também ele possa com o auxílio da família avançar naquilo que precisa. Ainda que seja normal existir em qual- quer aluno posturas comportamentais diferentes em casa e na escola, no TEA, isto poderá trazer prejuízo. Com isso, é necessário que os pais e os profissionais da escola trabalhem da mesma forma, estabelecendo os mesmos princípios que permitirão uma articulação harmoniosa na educação. A criança com TEA precisa desenvolver uma autonomia que compactue tanto na escola como em casa. Para Cunha, Se, na escola, durante as refeições, ele utiliza os utensílios sem a ajuda de outrem, deverá fazer o mesmo em casa. Se, em casa, os pais o deixam se vestir sozinho, na escola, far-se-á o mesmo. Esses ambientes, apesar de di- ferentes fisicamente, devem ser similares em objetivos e práticas educativas. (CUNHA, 2012, p.89) A possibilidade do modo autônomo, segundo Piaget (1994, p.32), pressupõe desenvolvimento e alcance de conhecimentos, atividades em grupo e entendimento dos pontos de vista de outras pessoas, mostrando que tais atitudes são adquiridas através da experiência com os outros indivíduos e da relação deles com o mundo a 24 sua volta. Visando a independência do estudante, as atividades diárias necessitam ser gerenciadas para o alcance do objetivo. A rotina é uma ferramenta fundamental que pode ajudar a criança com TEA a organizar-se e com autonomia poder realizar suas atividades diárias. Esse apoio precisa ser estabelecido tanto na escola quanto na família para se ter resultados concretos e efetivos. Citamos como exemplo de rotina os relatos de Cunha, Durante as refeições, é importante que o autista aprenda a se servir. Ainda que haja peculiaridades no uso de talheres, copos e pratos, o manejo autô- nomo necessita ser estimulado em razão dos ganhos psicomotores e social. Na medida do possível, todas as rotinhas diárias, como escovar os dentes, devem ser realizadas com independência. Mesmo que, a princípio, o profes- sor ou os pais precisem ajudá-lo, é bom deixar o aprendente. Quando já hou- ver o domínio do último passo, deixar-se-á o penúltimo e assim por diante, até que ele execute a ação de forma inteiramente independente. É extrema- mente relevante para o sucesso desses procedimentos e, também, para a comunicação que cada passo alcançado seja reforçado com elogios e sorri- sos e que os retrocessos, que são normais em qualquer aprendizado, sejam minimizados para que o foco na habilidade a ser adquirida não se perca. (CU- NHA, 2012, p.91) Fica de extrema dificuldade o aprendizado quando a escola e a família não são concordantes no trabalho. O ideal, em qualquer contexto educacional, é a liberdade mediada pela responsabilidade e os limites estabelecidos pela tolerância. Cunha (2012, p.94) salienta que crianças ou adolescentes com TEA nem sem- pre sabem estabelecerum divisor comportamental entre a família e a escola. Normal- mente, seguem o mesmo comportamento nos dois ambientes, o que a escola e a família necessitam fazer é criar momentos afetivos que estimulem o comportamento adequado, com atividades lúdicas e prazerosas. 25 2 PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS COM TEA 2.1 Considerações acerca do processo de alfabetizar A aprendizagem da leitura e da escrita desde longa data tem sido foco de inte- resse de professores, dada a complexidade que percorre esse processo. Trazemos para esse estudo as considerações de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, além dos conceitos difundidos por Magda Soares para chegarmos a uma compreensão sobre o processo de alfabetizar. De acordo com os estudos das primeiras autoras anteriormente citadas a aprendizagem da leitura e da escrita tem ênfase nos processos cognitivos. Dentro deles, tenta-se compreender como a criança elabora hipóteses e constrói o seu pró- prio conhecimento. A partir dessa compreensão, surge a forte influência da teoria de- senvolvida por Ferreiro e Teberosky (1999, p.30), na década de 80, as autoras se atentam para os estágios pelos quais as crianças passam na aquisição do código escrito, caracterizando uma concepção evolutiva na aprendizagem da escrita. As au- toras citadas (1999, p.32) realizam pesquisas com crianças em fase de alfabetização, tendo como objetivo identificar os processos cognitivos no curso de aquisição da es- crita. De acordo com Ferreiro (1995, p.21) a aprendizagem se realiza na construção da própria criança sobre o objeto a ser conhecido, neste caso, a escrita e que a apren- dizagem ocorre na interação entre o objeto do conhecimento (língua escrita) e o su- jeito cognoscente (que quer conhecer). Diante desse conceito, a criança não reproduz a escrita do jeito que se encontra na realidade, mas reinventa esse sistema, num mo- vimento de construção própria, a partir da compreensão pessoal da criança. As hipóteses do processo de aquisição da escrita pesquisadas por Ferreiro e Teberosky (1989, p.12) são iniciadas pelo pré-silábico, na qual, a leitura pode ser: olhar para uma folha de papel virar a página de um livro, falar em voz alta segurando o papel, inventar uma história, ou apenas descrever um desenho. As palavras são vistas como desenhos e um texto inteiro pode ser escrito com apenas uma palavra. A fase pré-silábica é pautada pela ausência da fonetização da escrita. As cri- anças não fazem a relação do som da fala com a escrita (letra e som), não fazem correspondência entre grafema e fonema, por isso não há relação da pauta escrita com a pauta sonora. (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986, p.13) 26 Na continuidade, temos o silábico. A identificação da criança silábica se dá quando ela entende que a palavra é separada por sílabas. Ao ler o que escreveu, a criança separa uma quantidade de letras que correspondem às sílabas das palavras, fazendo relação sonora ou não. Ou seja, nesse nível a criança começa a fazer relação do som da letra com a sua grafia. O próximo nível é o silábico alfabético, a criança passa a aprofundar-se nas sílabas, em vez de representar uma letra para cada uma, percebe que precisa juntar determinadas letras para conseguir o som ideal, embora ainda não perceba todas as sílabas que compõem as palavras. No final do processo de alfabetização temos o alfabético, o estudante ao atingir esse nível, escreve as palavras utilizando uma letra para cada som, mas ainda apre- senta erros ortográficos. Para Magda Soares (2020, p.27) a alfabetização e letramento são processos diferentes, mas indissociáveis; embora se diferenciem quanto às habilidades cogniti- vas que envolvem e, consequentemente, impliquem formas diferentes de aprendiza- gem, são processos simultâneos e interdependentes. A autora afirma que a alfabeti- zação é: Processo de apropriação da "tecnologia da escrita", isto é, do conjunto de técnicas – procedimentos, habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita [...] habilidades motoras de uso de instrumentos de escrita (lápis, caneta, borracha...); [...] aquisição de modos de escrever e de modos de ler – habilidades de escrever ou ler, seguindo convenções da escrita, tais como: a direção correta da escrita na página (de cima para baixo, da esquerda para direita); a organização espacial do texto na página. (SOARES, 2020, p.27). Para Soares (2020, p.19), a língua escrita está disposta em três camadas que se sobrepõem. A primeira camada diz respeito a aprender o sistema de escrita alfa- bética e ela contribui no desenvolvimento da camada seguinte chamada de ler e es- crever textos: uso da escrita. Na última camada, temos os contextos culturais e sociais de uso da escrita, envolvendo o contexto sociocultural, linguística textual e questões de gêneros textuais. Esta última camada é a mais ampla, abrangendo todas as cama- das anteriores e seu foco é referindo-se ao uso competente da leitura e escrita em práticas sociais. A palavra “alfaletrar” usada pela autora, mostra a união entre a alfa- betização e o letramento, com objetivo de os dois processos serem unidos e trabalha- 27 rem juntos. Nesse contexto, a autora chama a atenção para a escolha de textos, afir- mando a importância do trabalho com textos reais, de diferentes gêneros e mostrando que é preciso criar uma motivação para a produção deles. A leitura e a escrita compõem conhecimentos dos mais importantes ao ser hu- mano. A necessidade de ler compreendendo e escrever com clareza faz parte para uma real participação cidadã. A incapacidade de desenvolver esses processos, nas situações sociais, ajuda a limitar o acesso a informações, privando o indivíduo do al- cance de novos conhecimentos, tirando o direito de participar de forma ativa e autô- noma da vida social. Compreende-se o domínio da leitura e escrita como elemento essencial no pro- cesso escolar. Soares (2020, p.61) deixa claro que as crianças desde muito pequenas desenham supondo que estão “escrevendo”, elas ainda não entendem que escrever é representar aquilo que se fala. Com o passar do tempo, vivenciam o uso da escrita em seu contexto familiar, cultural e escolar, vão percebendo que a escrita não é de- senho e sim, rabiscos e traços. É o início de uma evolução que levará a criança, ao longo da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental a compreensão da escrita como representação dos sons da fala. Na educação infantil, quando brincam com sons de palavras, manuseiam ma- teriais escritos, como revistas e gibis, momento em que a professora lê histórias e escreve textos, as crianças estão recebendo informações sobre a escrita. Esse co- nhecimento inicial contribui desde muito cedo a conhecer textos, proporcionando con- tato na sociedade letrada. Quanto a isso, os Parâmetros Curriculares Nacionais ex- põem que cabe a escola viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que cir- culam socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los. (PCN, 1997, p.30) 2.2 Alfabetização de crianças com TEA A alfabetização de uma criança com Transtorno do Espectro Autista gera muita preocupação no seu ambiente familiar e escolar. É um momento que envolve muitas etapas distintas e muita paciência. Quando tratamos desse assunto, há uma ampla diferença de características que cada criança pode oferecer e para que as atuações pedagógicas retornadas à alfabetização possam ser delineadas, é importante conhe- cer cada uma delas. Serra conceitua a primeira etapa: 28 A primeira etapa diz respeito a conhecer quem é seu personagem, quem é esse aluno e quais são as suas características, a fim de entender se já é possível iniciar o processo ou não. Em alguns casos, já se pode entrar com o trabalho vendo os fonemas de imediato, mas em outros tem que se percorrer um longo caminho, construindo uma história até chegarna fase onde vai ser possível decodificar a leitura. (SERRA, 2018, p.2) Diante do exposto, pode-se afirmar que é necessário que o educador conheça quais são as habilidades possíveis de serem trabalhadas com o discente para que ele possa avançar em sua aprendizagem, mesmo que esse avanço não corresponda ao esperado comparado às demais crianças que não apresentam limitações. Pois de acordo com Serra (2018, p.2), no processo de alfabetização de qualquer criança, de- vemos ter ciência das habilidades prévias de cada uma e na criança com TEA não é diferente. Temos como dificuldade no TEA, principalmente, a comunicação e a lingua- gem, dois elementos que são fundamentais para a alfabetização. Desde o nasci- mento, o bebê já apresenta sinais que podem facilitar o processo de alfabetização. Um exemplo disso é quando a criança vocaliza, isso facilita no processo de repetição de fonemas. Algumas habilidades também são notadas como: imitação espontânea, atenção, movimento antecipatório e o uso do apontar e do olhar. Quando algum des- ses precursores não existe ou apresenta alguma falha, significa algum atraso no de- senvolvimento e o risco de TEA. Isso significa que antes de mais nada, para alfabetizar, é preciso desenvolver esses precursores de linguagem, fazendo com que aquilo que não aconteceu naturalmente, aconteça de uma forma artificial por meio de um acompanha- mento terapêutico. Desse modo, é fundamental fazer uma avaliação deta- lhada e fidedigna para que a intervenção e as atividades sejam mais asserti- vas e apropriadas para as necessidades da criança. O trabalho no TEA en- volve sempre o resgate do desenvolvimento, da afetividade e da interação social para que as demais áreas possam ser desenvolvidas. (SERRA, 2018, p.5) Embora se discuta a importância da alfabetização na vida das crianças, ainda não se chegou a um único método a ser aplicado, porque cada criança tem seu tempo e seu modo de vida. Segundo Ferreiro, Nenhuma prática pedagógica é neutra. Todas estão apoiadas de certo modo de conceber o processo de aprendizagem e o objeto dessa aprendizagem. 29 São provavelmente estas práticas (mais do que os métodos em si) que tem efeitos mais duráveis a longo prazo, no domínio da língua escrita como em todos os outros. Conforme se coloque a relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento, e conforme se caracterize a ambos, certas práticas aparece- rão como “normais” ou como “aberrantes” é aqui que a reflexão psicopeda- gógica necessita se apoiar em uma reflexão epistemológica. (FERREIRO, 1995, p.31) Uma ferramenta muito usada por professores para o sucesso da alfabetização da criança com TEA é o método fonético. No meio das pesquisas científicas, há muitos documentos sobre a eficácia do método como uma ótima alternativa voltada para a alfabetização de indivíduos com TEA. Uma dessas pesquisas é o estudo de co-autoria do professor de Stanford, Bruce McCandliss, da Escola de Pós-Graduação em Edu- cação e do Instituto de Neurociências de Stanford. De acordo com seus estudos, o método fônico aumenta a atividade cerebral na área destinada à leitura, o lado es- querdo do cérebro, que engloba as regiões visuais e de linguagem. Esse método pri- oriza o ensino dos sons dos grafemas do alfabeto, começando pelas vogais e depois pelas consoantes, em seguida, utilizá-las para desenvolver sílabas e palavras. Cada letra é estudada como um fonema, ou seja, um som, que, ao ser associado a outras letras, formam sílabas e depois, palavras. O método fônico é baseado no ensino do código alfabético de forma dinâ- mica, ou seja, as relações entre sons e letras devem ser feitas através do planejamento de atividades lúdicas para levar as crianças a aprender a codi- ficar a fala em escrita e a decodificar a escrita no fluxo da fala e do pensa- mento. (PEREIRA et. al., 2013, p.7) Porém, o método fônico não deve ser o único método utilizado no processo de alfabetização. Para uma entrevista concebida ao site “Gazeta do povo”, a pesquisa- dora Scliar-Cabral (2019) afirma que a criança não cai de paraquedas no desenvolvi- mento da consciência fonêmica, sem passar pelo reconhecimento dos grafemas, as quais precisam ser reconhecidas. No contexto da criança com TEA, Serra (2018, p.40) expõe que nas realizações de atividades para essas crianças, há funções específicas que ajudam no melhor de- senvolvimento. Algumas delas são: evitar dar pré comandos como: marque, circule, sublinhe, pinte. O importante é apenas perguntar “quais?”; pronunciar as palavras de forma lenta e enfática, para que a criança identifique o som; falar direcionando a boca para os olhos da criança, depois abaixar a cabeça para que ela repita olhando nos 30 seus olhos; sempre que for pulando as etapas, ter a certeza que a criança aprendeu a etapa anterior do processo. 2.3 Tempo e subjetividade da criança com TEA As crianças com TEA apresentam formas muito individuais das suas dificulda- des e habilidades. Problemas na fala, locomoção, compreensão de comandos, são comuns, mas não são determinantes para todos. Além de haver um acentuado com- prometimento do uso de múltiplos comportamentos não verbais (contato visual, direto, expressão facial, posturas e linguagem corporal) que regulam a interação social e a comunicação, pode ocorrer também atraso ou ausência total do desenvolvimento da linguagem falada (Cunha, 2012, p.27). No entanto, mesmo diante desse vasto mundo destacamos que seja importante que a escola tenha o papel de compreender as par- ticularidades de cada criança para então intervir de forma possível e eficiente. Para que um educador consiga fazer seu papel junto ao aluno com TEA é ne- cessário que ele tenha formação adequada para aplicar conceitos específicos para cada dificuldade da criança e poder desenvolver as habilidades que ela possa apre- sentar. O mundo exterior costuma ser algo estimulador de aprendizagem, com a rela- ção do mundo e a criança, toma-se o conhecimento de nome de objetos, como as coisas são utilizadas e etc. Cunha (2012, p.30) expõe que para a criança com TEA, esses conhecimentos não são adquiridos e os objetos passam a ter apenas funções sensoriais, com pouca contribuição cognitiva, dificuldade para simbolizar, nomear e com isso, prejudicando sua linguagem. Portanto, há uma relação diferente entre o cérebro e os sentidos, as informações nem sempre se tornam em conhecimento. Para Cunha, Os objetos não exercem atração em razão da sua função, mas em razão do estímulo que promovem. Assim, uma tesoura passa a ser apenas um objeto de contato sensorial. A criança precisa aprender a função de cada objeto e o seu manuseio adequado. Quando ela vê uma bola, por exemplo, nem sempre deseja chutá-la ou jogá-la com a mão, como as crianças normalmente apren- dem, mas cria estereotipias e formas incomuns de manuseio. As estereotipias causam atraso no desenvolvimento motor, principalmente nos movimentos finos. Diante disso, tudo passa a ter valor pedagógico: os usos, as habilidades 31 e as atividades mais elementares da vida diária devem ser exercitadas, bus- cando o conhecimento funcional e mais destreza motriz. (CUNHA, 2012, p.32) Levando em consideração ao exposto anteriormente, fica evidente a atração das crianças com TEA por objetos e o uso de acordo com a sua necessidade de estí- mulo. Cunha (2012, p.32) afirma que a professora deve aproveitar o próprio fascínio que os objetos causam sobre a criança e ensinar-lhe o uso correto. Normalmente, a concentração para atividades pedagógicas é muito pequena. Mas, ainda que seja um momento de poucas proporções em que a criança permanece concentrada, deve ser algo constante, de maneira lúdica e agradável, para que não se torne algo entediante, sendo assim, uma nova descoberta para ser experienciada. São raras as vezes que a criança interage com o olhar, mesmo quando a pro- fessorao chama. Serra (2012, p.5) expõe que quando a criança sustenta o olhar para a professora, ela tem a possibilidade de entender sensações e emoções que estão sendo passadas. Entrando em concordância com Cunha (2012, p.34) ao afirmar que receber o olhar do ser com TEA, a professora precisa fisicamente abaixar-se até ela, ficar na altura de seus olhos e assim, atraí-la pelo olhar. Quando a professora faz assim, é possível que a criança a veja, facilitando o processo de comunicação entre os pares. O autor registra que todo processo de aprendizagem, Há interpretações diferentes, feitas por indivíduos diferentes, ainda que sejam em resposta a um mesmo estímulo. O comportamento do seu humano de- pende de como ele percebe o exterior. Na leitura do mundo exterior, há a ingerência de dois mecanismos elementares: a sensação e a percepção. A sensação é o registro imediato fornecido pelos sentidos ao cérebro que irá produzir a percepção, que denota a capacidade de associar, comparar e in- terpretar as sensações. As descobertas do autista são muito influenciadas pelas sensações com pouca inferência cognitiva. Estimular a percepção de uma criança ajuda o desenvolvimento de abstrações, pensamentos e ideias. Construir uma ideia a respeito do que o outro pensa, compreender sentimen- tos, expressões de tristeza e amor, ou perceber o sentido e a subjetividade das ações, torna-se demasiadamente completo no autismo. A dificuldade para reconhecer o afeto de outras pessoas provoca também isolamento. (CU- NHA, 2012, p.35) Para a criança com TEA compreender pontos de vista, ideias, contextos, tudo precisa ter objetivo e possuir alguma função. Cunha apresenta um exemplo, 32 Se alguém parar o carro em um posto de gasolina, poderemos concluir que a finalidade é abastecer o veículo com combustível. No entanto, para o autista, isso não é tão claro e conclusivo assim, pois ele encontra grande dificuldade para organizar informações subjetivas que possibilitem o entendimento dos fatos implícitos e das intenções. (CUNHA, 2012, p.39) Na educação, é relevante que os comandos sejam diretos, as palavras e as frases possuam objetivos claros. Por exemplo, se o adulto disser: “Olha, a porta está aberta”, desejando que uma criança autista feche a porta, ela provavelmente não en- tenderá. O certo será dizer simplesmente: “Feche a porta” (Cunha, 2012, p.40). Ob- servando o exposto, é perceptível que a comunicação com crianças que apresentam TEA deve ser algo a ser prioritariamente trabalhado, já que, a partir dela, é que se pode construir uma ponte entre educador e discente, surgindo assim, possibilidades que permitam um real avanço no processo educacional. O tempo que cada uma leva para aprender é outro ponto bem específico em cada indivíduo com TEA. A criança inventa formas próprias de relacionamento com o meio externo. Não interage normalmente com as pessoas e manuseia objetos de forma incomum, gerando problemas na cognição, com reflexos na fala, na escrita e em outras áreas. Ainda de acordo com Cunha (2012, p.27), a audição, visão, tato, paladar e o olfato ficam comprimidas a uma situação fragmentada, dominado pela repetição e manuseio de materiais e objetos inapropriadamente, em razão do contato sensorial, com pouca ingerência cognitiva. A criança com TEA cria estereotipias com os braços ou com o corpo. Todos esses aspectos nos levam a pensar a complexidade que envolve o aprender de uma criança com TEA, mas também, permite aos educa- dores envolver-se nesse contexto tão particular e individual permitindo buscar nele, condições que possam diversificar sua metodologia e ampliar sua compreensão acerca do processo de ensino-aprendizagem desse público. É nesse sentido que buscamos compreender como se dá esse processo na prática. A partir de observações em relatos escritos de uma professora da rede pública de ensino, tentamos registrar e analisar quais os desafios e as possibilidades encon- tradas pela profissional acerca do processo de alfabetização de uma criança com TEA dentro da sala de aula. Relatórios, fotos e cadernos do aluno desde o 1º até o 4º ano do Ensino Fun- damental foram cedidos pela docente. Tais materiais foram utilizados para os nossos registros e serviram de base para a análise da presente pesquisa. 33 3 APRESENTAÇÃO DO ESTUDO DE CASO DE ALFABETIZAÇÃO DE UMA CRIANÇA COM TEA 3.1 A escola, a professora e a criança com TEA O espaço educacional é um dos fatores importantes no processo de aprendi- zagem da criança, este, precisa ter uma estrutura física adequada e um corpo de fun- cionários que atenda aos discentes de maneira eficaz. É importante ressaltar que no caso de uma criança com TEA, o ambiente precisa ser rico em hipóteses de aprendi- zagens, e o professor precisa considerar tempo e subjetividade de cada estudante. Assim, o estudo de caso deste trato monográfico, deu-se em uma escola que está situada na cidade de Caicó/RN e pertence a rede pública estadual de ensino. Atende cerca de 330 alunos (ano de 2021) do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. Apresenta boa estrutura física com oito salas de aula, um laboratório de informática, uma sala para Atendimento Educacional Especializado – Recursos Multifuncionais, um refeitório, uma cozinha, dois banheiros para os alunos e um para professores e funcionários, uma biblioteca, uma sala para professores, uma secretaria, uma direto- ria, além de amplo espaço externo e um pátio coberto. A referida escola tem um qua- dro de funcionários que são de empresas contratadas pelo Estado para prestar servi- ços de limpeza e produção de merenda. O quadro de professores é composto por servidores efetivos e contratados sendo onze Polivalentes, uma de Educação Física e cinco professoras da Educação Especial. Possui gestão democrática, com eleição a cada dois anos. A professora da Educação Especial que forneceu dados para essa pesquisa, está na referida escola desde o ano 2018 e acompanha, no turno matutino, um aluno com TEA que cursava, naquele período, o 1º ano do Ensino Fundamental, permane- cendo com ele até os dias atuais. Tem graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e especialização em Psicopedagogia Institucional, pela Faculdade Integrada de Patos, tendo seu cargo de professora da Educação Es- pecial efetivado no Estado, em 2017. A criança acompanhada pela professora é um menino com nove anos de idade, atualmente, e apresenta, de acordo com laudo médico, Transtorno do Espectro Au- tista. Antes da chegada da professora de Educação Especial, a criança ficou afastada da escola por decisão da família devido a instituição ter apenas uma professora na 34 turma o que impossibilitava o acompanhamento e atendimento específico que neces- sita uma criança com necessidades educativas especiais. Nos relatos da professora, ela aborda três aspectos do desenvolvimento do aluno (sócio-afetivo, psicomotor e cognitivo), além do trabalho realizado pela escola para a aprendizagem da criança. Iremos sintetizar o primeiro (2018) e o último (2020) de acordo com os mesmos aspectos. Segundo tais relatos, o estudante é criado por sua vó materna, e sua mãe bio- lógica o acompanha também durante a semana, o mesmo conta com aulas particula- res em sua residência, para reforço escolar. Tem acompanhamento extraescolar com psiquiatra, psicólogo e fonoaudiólogo. Inicialmente, no ano de 2018, o discente passou a ser acompanhado pela pro- fessora da Educação Especial em 22 de maio do referido ano. O primeiro desafio encontrado pela docente foi no aspecto sócio-afetivo. O aluno não aceitava permane- cer em sala de aula e a execução das tarefas era difícil no ambiente externo da escola, no qual o aluno aceitava ficar. Em vários momentos o estudante chorou, demons- trando ficar impaciente, correndo de um canto a outro da sala de aula. Por vários momentos, era necessária à sua saídadurante o horário de aulas, retornando ao se acalmar. Ao apresentar essas ações, em algumas vezes, chegava a agredir fisica- mente alguns colegas. Quando isso acontecia era solicitado que usasse as mãos não para bater, mas fazer carinho. A professora então, pegava em sua mão e tocava o aluno agredido de maneira carinhosa para que a criança compreendesse qual a ação mais adequada. No decorrer do tempo, as tentativas para a criança ficar em sala foram em vão, no entanto, a professora observou que o aluno aceitava permanecer no laboratório de informática e realizar as tarefas naquele espaço, mas esse fator foi trabalhado aos poucos no sentido da permanência em sala de aula com os demais alunos, pois ape- sar da aceitação em outro ambiente, de certa forma estava sendo excluído. Por isso, as insistências foram intensificadas dia após dia e aos poucos, ele foi adaptando-se a rotina até sair da sala apenas no horário do recreio. Ao término do primeiro semestre do citado ano, a criança já conseguia despe- dir-se dos colegas ao final da aula, acenando com a mão. Aceitava pegar na mão de alguns para dançar e demonstrava satisfação. Apresentava pouca interação nas brin- cadeiras, atividades em grupo e nas aulas de educação física, nesses momentos não demonstrava interesse em participar e costumava afastar-se. No entanto, era sempre 35 levado a interagir com os demais. Respeitava, em parte, sua vez na fila. Já conseguia guardar o seu material e fechar o zíper da bolsa que antes solicitava ajuda para essa ação. No segundo semestre, o estudante ficou sem a medicação, pois de acordo com o relato da família, ela estava causando problemas cardíacos e por decisão própria suspendeu o seu uso. Depois disso, o aluno foi apresentando certa regressão no que diz respeito à socialização e concentração. Voltou a ficar agitado com mais frequência em sala de aula, sendo preciso ser retirado para que pudesse se acalmar, tomar uma água receber um pouco de vento ao ar livre. Observou-se ainda nos relatos, que essa não era uma constante. Ora a criança tinha dias de tranquilidade, ora de agitação. No aspecto psicomotor, ainda do ano de 2018, a criança apresentava dificul- dade acentuada na coordenação motora fina. Não conseguia segurar o lápis para es- crever ou pintar e poucas vezes aceitava esse estímulo. Realizava com dificuldade recortes com a tesoura e apresentava pouca habilidade ao segurá-la. Não gostava de encaixar blocos, preferia colocá-los um a um dentro da caixa ou fazer pistas com eles. Locomovia-se com autonomia e facilidade na hora do recreio para o refeitório e outros ambientes da escola. Comia sozinho, embora depois da ausência da medicação, por alguns dias, só aceitava comer com ajuda de um adulto. Queria por alguns momentos fazer a refeição na sala de professores, mas aos poucos, aceitou e voltou a fazer no refeitório, utilizando os talheres espontaneamente e de forma independente. Ia ao ba- nheiro acompanhado, mas já conseguia despir-se, vestir-se e lavar as mãos sozinho, embora ainda com ajuda física da professora. No aspecto cognitivo, o discente apresentava grande resistência em segurar o lápis para escrever e para formar palavras com letras móveis. Reconhecia e nomeava a maioria das letras do alfabeto, fazendo a correta correspondência entre elas. Com- preendia pouco a associação de letras iniciais às figuras. Fazia, parcialmente, o seu próprio nome usando as letras móveis. O estudante era não verbal, já que somente falava algumas palavras com dificuldade na pronúncia e não respondia a perguntas. Demonstrava não compreender a contagem até 10. Confundia-se em aplicar os con- ceitos de grosso e fino, maior e menor. Compreendia pouco o registro diário no calen- dário, mas aceitava fazê-lo com frequência. Nomeava e apontava corretamente olhos, boca, nariz, pé e cabeça. Tinha certa resistência em aceitar pintura com lápis, com pincel e tinta. Quando aceitava, ficava nessa atividade por poucos instantes. Apresen- 36 tava dificuldade em realizar o movimento de pinça. Confundia-se pouco no parea- mento das cores primárias e das figuras geométricas planas (quadrado, círculo e tri- ângulo). Após essas descrições sobre cada aspecto do desenvolvimento da criança com TEA, a professora também registra o trabalho de intervenção realizado por ela e de- mais profissionais envolvidos da escola, para cada dificuldade apresentada. O aluno era acompanhado duas vezes por semana, por uma hora, pela professora da Sala de Recursos Multifuncionais. As atividades lá realizadas eram planejadas junto com a professora da Educação Especial. Em sala de aula, ainda em relação ao trabalho desenvolvido pelos profissionais, no aspecto sócio-afetivo, os comportamentos inadequados eram observados constan- temente para que fosse identificado sua função, uma vez identificados, eram propos- tas mudanças de forma gradativa utilizando o verbal, gestual e físico, sempre nessa ordem. Não era incentivada sua permanência na sala dos professores, para que o aluno entendesse que aquele espaço era destinado a outras pessoas e assim a com- preensão sobre o limite e o respeito. Como também, a sua retirada de sala de aula, acontecia somente nos momentos de extrema agitação e irritabilidade. A criança apresentava algumas estereotipias, sendo a sua favorita, o ato de bater, repetidamente, o lápis na mesa. Esse comportamento causava desatenção e perturbação aos demais alunos e estava sendo, constantemente, trabalhado para que ele aprendesse a imitar outras ações e o comportamento mais adequado com o ob- jeto. Foi estimulado a cumprimentar a todos na chegada, saída e a organizar os ma- teriais e brinquedos. No aspecto psicomotor, era trabalhado em conjunto com a professora da edu- cação física. Era incentivado a participar de todas as atividades com os demais alu- nos, na quadra, no parque e na sala de aula. Nos passeios pela escola, era solicitado que andasse por espaços delimitados para que desenvolvesse o equilíbrio corporal; saltasse nos degraus e corresse livremente quando o momento permitia. Era constan- temente oferecido apoio material, como lápis de vários tipos (com engrossamento, personagens preferidos, finos, curtos, com elástico, prendedores...) para desenvolver a coordenação motora fina, além do trabalho através de ajuda física para escrever. No aspecto cognitivo, foi oferecido letras de diversos materiais para que o aluno desenvolvesse a compreensão e a habilidade para a escrita. Apesar de o aluno não 37 demonstrar interesse na leitura de livros da literatura infantil, estes eram frequente- mente oferecidos e, por alguns instantes, lidos para a criança de formas diferentes para obter sua atenção e interesse. Jogos concretos de matemática e de alfabetização e por meio de aplicativos de celular, também faziam parte da rotina da criança em sala de aula. Apesar de ter o maior nível de concentração e interesse do aluno, os vídeos educativos e jogos eletrônicos eram usados com cautela para que essa ferramenta não viesse prejudicar a sua interação social. O discente era incentivado a participar de atividades com pinturas, cartazes, em folha digitada e livro didáticos como os demais alunos, sendo as mesmas adapta- das à sua compreensão e limitação. A partir do segundo semestre ainda de 2018, diante da dificuldade do aluno em pronunciar algumas letras e assim palavras, foi tra- balhado o método fônico por meio de figuras e jogos eletrônicos para intensificar tanto a sua compreensão em relação aos sons de letras e sílabas como também sua pro- núncia. A intensidade, duração e alteração do método foram avaliados de acordo com as respostas da criança. O PEI (Plano Educacional Individualizado) elaborado para o ano letivo em questão, sofreu constantemente alterações de acordo com o desenvolvimento do aluno diante do que foi planejado. Todas as atividades realizadaspor ele na escola são registradas em seu caderno que era enviado, diariamente para casa, incentivando a participação e compreensão da família acerca do que estava sendo trabalhado. Nos relatos finais da professora, do ano de 2020, pudemos conhecer as dificul- dades encontradas tanto por ela quanto pelo aluno com o fechamento das escolas devido a pandemia do COVID-19. Ela descreve que no aspecto sócio-afetivo, nos pri- meiros dias de aula ainda presenciais, a criança apresentou certa resistência para permanecer em sala de aula como acontece todos os anos. Por isso, nesse período, foi trabalhado estratégias (cantiga da professora regente com a turma, jogos de mesa de interesse do aluno, incentivo da professora regente ao chamá-lo até a lousa) que pudessem atraí-lo para ficar dentro da sala. Apresentou uma certa agressividade nos primeiros dias de aula, mas no decorrer do tempo mantinha boa relação com os cole- gas, nesse aspecto houve um significativo avanço no que diz respeito ao comporta- mento em relação a outras crianças desde o seu 1º ano até então. Estava sendo trabalhado no sentido de adquirir mais autonomia em suas ativi- dades escolares, objetivo principal para ser alcançado naquele ano. Era incentivado a sentar sem a presença da professora da Educação Especial ao seu lado, mas sim 38 junto aos colegas. E vinha aceitando muito bem. A presença da professora perto do aluno só se dava em momentos específicos das tarefas. Ao final do período presen- cial, o aluno já demonstrava interesse nas atividades com os colegas, inclusive nas aulas de educação física e permanecia o tempo integral em sala de aula. Participava das apresentações artísticas com a turma, mas ainda com pouca interação nesses momentos. No período não presencial, segundo relatos da família e da professora particular que acompanha o discente em sua residência, ele apresentou muita agitação e irritabilidade nos primeiros meses sem aulas presenciais, pede cons- tantemente para ir à escola. A professora da Educação Especial sentiu a necessidade de visitar o aluno em casa por algumas vezes, para manter o vínculo, já que a criança não conseguia aceitar contato através do celular. Já no final do 4º bimestre, o aluno constantemente faz chamadas de vídeo para a docente, o que ampliou a aproximação professora-aluno. No aspecto psicomotor, ainda apresenta limitações na coordenação motora fina. Já aceitava segurar o lápis (sozinho ou com ajuda física) para escrever ou pintar, mas por poucos instantes, sendo essa o maior obstáculo para o desenvolvimento da escrita que manteve-se desde o 1º ano, em 2018. Demonstra ser bidestro, com predominância para o uso da mão esquerda. Durante o Ensino Remoto, o desenvolvimento da escrita com o uso do lápis foi prejudicado pela recusa do aluno em aceitar as atividades que estimulam o desenvolvimento da coordenação motora fina (amassar papel, recorte com tesoura, pegadas com prendedores de roupa). No aspecto cognitivo, aceitava a colagem (com boa concentração) para a rea- lização das tarefas, com apoio de imagens e recortes de letras para compor palavras, além de outras atividades como jogos para formação de palavras com fichas e figuras. O aluno reconhece e nomeia as letras do alfabeto, fazendo a correta correspondência entre elas. Faz algumas associações de letras iniciais às figuras, por vezes, faz isso corretamente. Continua fazendo o seu nome usando as letras móveis, aceita, por pou- cos instantes, ajuda física para essa escrita com o lápis. Aumentou seu repertório de palavras e frases (curtas – de duas palavras) ao longo do ano letivo, sendo esse o avanço mais significativo do discente durante o período não presencial. Segundo re- latos da professora que o acompanha em casa, ele faz contagens de objetos até 12. Em relação ao trabalho realizado pela escola, os comportamentos inadequados foram trabalhados da mesma forma anteriormente descrita. Diante da recusa do aluno em aceitar a escrita com o lápis, a colagem continuou sendo a opção mais aceita e 39 compreendida por ele. Era incentivado a ler as palavras das tarefas com o dedinho para que compreendesse a direção esquerda para a direita e fazer as associações de imagens à escrita de palavras (sons-grafemas). Apesar de ter o maior nível de con- centração e interesse do aluno, os vídeos educativos e jogos eletrônicos não foram mais usados com tanta frequência tanto no presencial como no Ensino Remoto, de- vido o comportamento do aluno em atirar o aparelho celular sempre que o tempo/limite para atividade com esse instrumento era alcançado. O discente foi incentivado pelas professoras a participar da rotina diária dos demais alunos como correção de tarefas, obedecendo a chamada, além de atividades com pintura, cartazes, em folha digitada e livro didáticos como os demais alunos, sendo todas adaptadas/adequadas a sua compreensão e limitação. O PEI elaborado para o ano letivo de 2020, sofreu alterações bimestrais de acordo com o momento pandêmico. As atividades propostas pela professora regente para a turma foram reelaboradas pela professora da Educação Especial, e continua- ram sendo oferecidas para o discente de acordo com o seu nível de compreensão. O acompanhamento do aluno pela professora particular, durante o ensino remoto, foi limitado a duas vezes por semana, uma hora cada e, devido a isso, alguns pontos foram prejudicados/alterados: atividades (reduzidas) e habilidades (algumas não tra- balhadas devido ao acesso limitado do aluno às tecnologias e materiais didático-pe- dagógicos). Todas as tarefas realizadas pelo discente através do Ensino Remoto fo- ram coladas no caderno dele e a devolutiva foi realizada através de fotos e vídeos enviados a professora da Educação Especial e algumas registradas no SIGEDUC (Sistema Integrado de Gestão de Educação), plataforma de registros utilizada pela rede estadual de educação. Em síntese, pudemos observar através dos relatos contidos nos documentos cedidos que o aluno com TEA vem sendo acompanhado pela mesma professora desde 2018 até os dias atuais e suas limitações que inicialmente eram na fala, escrita e socialização vem tendo avanços ao longo desse período. É interessante destacar que a avaliação da criança é bastante difícil pelo fato dele não responder perguntas e ter um nível de compreensão bastante limitado diante das propostas de trabalho. No entanto, ela é realizada de forma contínua a partir das ações do aluno no decorrer das atividades. Com o distanciamento social, essas observações ficaram limitadas e des- tinadas a outra pessoa, que no caso, foi a professora particular da criança que realiza as tarefas com o aluno seguindo as orientações da professora de Educação Especial. 40 A alfabetização da criança continua em processo, sendo que foi bastante pre- judicada com o fechamento das escolas, devido a pandemia da COVID-19. Ainda no período presencial, os relatos descrevem que a criança demonstrava pouca compre- ensão em relação a leitura. Por vezes, identificava palavras em listas, no entanto, ficava difícil avaliar se a leitura era de memória ou não. Há registros também da difi- culdade em avaliar, já que o aluno não seguia comandos e continuava sem responder perguntas. Outras tentativas de avaliação foram propostas para a professora que acompanha a criança em casa, mas ela também afirmou as mesmas dificuldades. 3.2 Materiais e métodos utilizados na alfabetização Os materiais utilizados para a alfabetização foram escolhidos pela profissional levando em consideração o interesse do aluno, já que poucos objetos dentro do am- biente escolar chamavam sua atenção. Ao perceber que a criança demonstrava inte- resse por certos personagens infantis, resolveu fazer uma rotina com imagens e colar na parede da sala de aula para que ele compreendesse as atividades do dia e a se- quência em que elas aconteciam.