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UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE EESSTTAADDUUAALL PPAAUULLIISSTTAA ““JJÚÚLLIIOO DDEE MMEESSQQUUIITTAA FFIILLHHOO”” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL JOSÉ LUIZ DE CASTRO TTRRAANNSSGGRREESSSSÃÃOO,, CCOONNTTRROOLLEE SSOOCCIIAALL EE IIGGRREEJJAA CCAATTÓÓLLIICCAA NNOO BBRRAASSIILL CCOOLLOONNIIAALL:: GOIÁS, SÉCULO XVIII FRANCA 2009 JOSÉ LUIZ DE CASTRO TTRRAANNSSGGRREESSSSÃÃOO,, CCOONNTTRROOLLEE SSOOCCIIAALL EE IIGGRREEJJAA CCAATTÓÓLLIICCAA NNOO BBRRAASSIILL CCOOLLOONNIIAALL:: GOIÁS, SÉCULO XVIII Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História, da Faculdade de História, Direito e Serviço Social, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito para a obtenção do Título de Doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura. Linha de Pesquisa: História e Cultura Social. ORIENTADORA: Profª. Drª. Dora Isabel Paiva da Costa FRANCA 2009 Castro, José Luiz de Transgressão, controle social e Igreja Católica no Brasil colonial: Goiás, século XVIII / José Luiz de Castro. – Franca: UNESP, 2009 Tese – Doutorado – História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP 1. Igreja Católica – História social – Brasil colonial. 2. Família – Sexualidade – História – Brasil. 3. Goiás – Migra- ção – História, séc. 18. CDD – 981.73 JOSÉ LUIZ DE CASTRO TTRRAANNSSGGRREESSSSÃÃOO,, CCOONNTTRROOLLEE SSOOCCIIAALL EE IIGGRREEJJAA CCAATTÓÓLLIICCAA NNOO BBRRAASSIILL CCOOLLOONNIIAALL:: GOIÁS, SÉCULO XVIII Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História, da Faculdade de História, Direito e Serviço Social, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito para a obtenção do Título de Doutor em História. BANCA EXAMINADORA: Presidente: ________________________________ Profa. Dra. DORA ISABEL PAIVA DA COSTA 1°Examinador: _____________________________ Profa. Dra. ARILDA INÊS MIRANDA RIBEIRO 2°Examinador: _____________________________ Prof. Dr. PAULO EDUARDO TEIXEIRA 3°Examinador: _____________________________ Prof. Dr. LÉLIO LUIZ DE OLIVEIRA 4°Examinador: _____________________________ Prof. Dr. IVAN APARECIDO MANOEL FRANCA, 02 DE SETEMBRO DE 2009 À minha família, meu pai João Nepomuceno de Castro, minha mãe Maria Josselina e meus irmãos. AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS Nossos agradecimentos se dirigem, em primeiro lugar, à professora Dra. Dora Isabel Paiva da Costa, a quem devo a amizade, o incentivo e a orientação deste trabalho; às professoras Dras. Ida LewKowicz e Denise Aparecida Soares de Moura,que, por ocasião do Exame de qualificação, muito contribuíram para o enriquecimento desta pesquisa. Agradecemos ao CNPq, que durante os anos de 2005 a 2008 nos forneceu uma bolsa, possibilitando o custeio de viagem, alimentação, hospedagem e aquisição de equipamentos e materiais para a pesquisa. Somos especialmente gratos a Dom Eugênio Rixen, bispo da diocese de Santa Ana de Goiás, que permitiu a consulta dos registros de batismo de escravos e livres, existentes no arquivo geral da cúria diocesana. Esta consulta foi de vital importância para o estudo das crianças ilegítimas da paróquia de Vila Boa. Agradecemos também a atenção que sempre nos dispensaram todos os funcionários daquele arquivo, em especial Odicéia e Lurdinha. Nossa gratidão se estende a Antônio César Caldas Pinheiro, diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC), pelas ricas orientações para o manuseio das técnicas em paleografia, bem como por sua gentileza em dispor e sugerir os manuscritos do século XVIII. Também agradecemos aos funcionários do IPEHBC, Janira Sodré Miranda, Fabiana de Moraes Bueno e Euzébio Fernandes de Carvalho, que sempre nos acolheram com muita alegria e estima ao longo destes anos. Agradecemos ainda à Profa. Lourdes, diretora do arquivo histórico de Goiás. Somos gratos também aos amigos portugueses que não mediram esforços para nos acolher nas cidades de Lisboa e Porto, onde pudemos desfrutar dos preciosos documentos do arquivo da Torre do Tombo, da Biblioteca Nacional e do arquivo Ultramarino. Queremos mencionar aqui Antônio de Deus Reis e família; Pedrosa, Célia, Vital, Liliane e Valdemar. Não poderíamos deixar de agradecer ao bispo de Itumbiara, Dom Antonio Lino da Silva Dinis, que nos incentivou a pesquisar no arquivo da Torre de Tombo em Lisboa e nos permitiu ausentar dos ofícios eclesiásticos para prosseguirmos os estudos. Agradecemos também a atenção, a paciência e a compreensão que sempre nos dispensaram os fiéis da paróquia Cristo Rei (Itumbiara-GO). Somos gratos as funcionárias: Delma Aparecida de Campos Damaso, Maria Aparecida Vitaliano de Oliveira e Francisca Rodrigues da Costa. Queremos também manifestar a nossa gratidão ao casal José Carlos de Almeida e Vanda Maria pela gentileza com que colocaram a casa de Caldas Novas à nossa disposição. Agrademos ainda à professora Dra. Maria da Conceição Silva (UFG) e ao Prof. padre Luiz Lobo (UCG), com os quais sempre compartilhei as vitórias e os desafios que surgiram na difícil arte de pesquisar. O mesmo vale para Francisco Pascoal Neto que não mediu esforços para colocar seus conhecimentos de Informática a serviço desta pesquisa. Também ao professor Geraldo Faria Campos (UFG) nosso agradecimento pela revisão ortográfica desta tese. Foram muitas pessoas que, de forma direta ou indireta, contribuíram para que esta tese chegasse ao fim: à coordenação de pós-gradução de História da UNESP, na pessoa da professora Dra. Marisa Saenz Leme pelo dinamismo com que vem prestando seus serviços à comunidade. Na seção de pós-graduação e na biblioteca, agradecemos a Maisa Helena, Luzinete Suavino, Laura e Frederico. Recato, humildade e continência eram exigidos da mulher com mais rigor na sociedade patriarcalista, mas essas virtudes cobrava-as de todos a igreja. Tais normas de conduta eram infrigidas pelos homens, contra os códigos da igreja e do estado, pelas mulheres, não só contra estes mas ainda contra o código de honra masculino, férreo embora não escrito. A infração, no seu caso, chocava mais. Ao fim e ao cabo todo mundo transgredia, pecava, desobedecia, violava grande número de normas. E muito mais. Emaneuel Araújo (1997) RREESSUUMMOO Transgressão, Controle Social e Igreja Católica no Brasil Colonial: Goiás século XVIII. A pesquisa aborda alguns aspectos da vida familiar, utilizando a metodologia da demografia histórica na análise dos registros de batismos e casamentos das principais paróquias da Capitania. Além destas fontes há uma variada documentação de processos de inquisição do Arquivo da torre do Tombo e do Arquivo Ultramarino de Lisboa: processos de bigamia, solicitação em confissão, ofícios e pedidos de legitimação de filhos naturais. Estas fontes refletem o cotidiano de uma população que chegou aos sertões de Goiás motivada pelas descobertas do ouro e de outras riquezas minerais nos primórdios do século XVIII. Neste contexto, chegaram também os agentes da Igreja Católica, sob o comando do bispado do Rio de Janeiro, para disseminar, em Goiás, as resoluções do Concílio de Trento. Apesar da aliança da Igreja e da Coroa, por meio do padroado, houve várias infrações contra a instituição familiar, cometidas, inclusive, por alguns elementos do clero que deviam prover os seus fregueses com o “pasto espiritual”. Neste sentido, as visitações diocesanas e os agentes do Santo Ofício investigaram os recantos de Goiás para “desterrar os vícios e combater as heresias”. Nas devassas eclesiásticas o concubinato foi o pecado que teve maior destaqueentre os principais delitos cometidos pela população. No entanto, o livro das “denúncias e o rol dos culpados” aponta várias transgressões cometidas por brasileiros e estrangeiros nas freguesias de Goiás: morte e violência, incesto, usura, bigamia, solicitação de penitentes no confessionário, aborto, sacrilégio etc. Por outro lado, as atas de batismo e casamento indicam importantes vestígios dos relacionamentos ilícitos que foram praticados até mesmo nos recintos das igrejas. Os filhos naturais e as crianças abandonadas nos becos e ruas da paróquia de Santa Ana (Vila Boa) refletem as contradições de uma sociedade, baseada na escravidão africana. Neste sentido, as fontes batismais, cujo objetivo era conduzir o fiel a uma nova vida foram muitas vezes utilizadas para encobrir os pecados cometidos pelos compadres e suas comadres. Palavra chave: Igreja católica no Brasil; vida familiar no século XVIII; transgressão e sexualidade; inquisição; relações de compadrio. AABBSSTTRRAACCTT Transgression, Social Control and the Catholic Church in Colonial Brazil: Goiás century. The research addresses some aspects of family life, using the methodology of historical demography in the analysis of records of baptisms and marriages of the major parishes of the captaincy. In addition to these sources there is a varied documentation of processes of inquiry of the Archives of Torre do Tombo and File Overseas Lisbon: cases of bigamy, solicitation in confession, letters and forms of legitimation of illegitimate children. These sources reflect the daily life of a population that reached the hinterlands of Goiás motivated by the discoveries of gold and other mineral wealth in the early eighteenth century. In this context, the agents also came from the Catholic Church, under the command of the bishop of Rio de Janeiro, to spread in Rio de Janeiro, the resolutions of the Council of Trent. Despite the alliance of Church and Crown, through patronage, there were several offenses against the family institution, committed, even by some members of the clergy who should provide their customers with the "spiritual pastures. In this sense, the diocesan visitations and agents of the Holy Office investigated the corners of Goias to "banish the vices and combat heresies. In ecclesiastical inquiries, concubinage was the sin that was more prominent among the major crimes committed by the population. However, the book of "complaints and the role of the guilty" points out several transgressions committed by Brazilians and foreigners in towns in the United States: death and violence, incest, usury, bigamy, solicitation of penitents in the confessional, abortion, etc. sacrilege. Moreover, the minutes of baptism and marriage indicate significant traces of illicit relationships that have been practiced even in the precincts of the church. The natural children and abandoned children in alleys and streets of the parish of Santa Ana (Vila Boa) reflect the contradictions of a society based on African slavery. In this sense, the baptismal fonts, whose goal was to lead the faithful to a new life were often used to cover up the sins committed by their cronies and gossips. Keyword: Catholic Church in Brazil; family life in the eighteenth century; transgression and sexuality; inquisition; relations cronyism. RRÉÉSSUUMMÉÉ Transgression, contrôle social et de l'Église catholique dans Colonial Brazil: Goiás siècle. Les recherches porteront sur certains aspects de la vie familiale, en utilisant la méthodologie de la démographie historique dans l'analyse des registres de baptêmes et mariages des grandes paroisses de la capitainerie. En plus de ces sources, il existe une documentation variée des processus de l'enquête des Archives publiques de Torre do Tombo et les cas de dossier d'outre-mer de Lisbonne: la bigamie, la sollicitation en confession, des lettres et des formes de légitimation des enfants illégitimes. Ces sources reflètent la vie quotidienne d'une population qui atteint l'arrière-pays de Goiás motivés par les découvertes d'or et autres richesses minérales dans le début du XVIIIe siècle. Dans ce contexte, ont aussi atteint les agents de l'Église catholique, sous le commandement de l'évêque de Rio de Janeiro, pour diffuser, à Goiás, les résolutions du Conseil de Trente. En dépit de l'alliance de l'Église et la Couronne, par favoritisme, il y avait plusieurs infractions contre l'institution familiale, commis, même par certains membres du clergé qu'ils doivent fournir à leurs clients avec les «pâturages spirituelle. En ce sens, les visites diocésaines et agents du Saint-Office enquêté sur les coins de Goiás pour "bannir les vices et les hérésies de combat. Dans les enquêtes ecclésiastiques, le concubinage était le péché qui était plus importante parmi les crimes les plus graves commis par la population. Cependant, le livre des «plaintes et le rôle du« coupable souligne plusieurs transgressions commises par des Brésiliens et des étrangers dans les villes aux États-Unis: la mort et la violence, l'inceste, l'usure, la bigamie, la sollicitation de pénitents dans le confessionnal, l'avortement, etc sacrilège. En outre, le procès-verbal du baptême et de mariage indiquent d'importantes traces de relations illicites qui ont été pratiquées dans l'enceinte même de l'église. Les enfants naturels et les enfants abandonnés dans les ruelles et les rues de la paroisse de Santa Ana (Vila Boa) reflètent les contradictions d'une société fondée sur l'esclavage africain. En ce sens, les fonts baptismaux, dont l'objectif était de conduire les fidèles à une nouvelle vie ont souvent été utilisés pour couvrir les fautes commises par leurs compères et commères. Mot-clé: Eglise catholique au Brésil, la vie familiale, au XVIIIe siècle, la transgression et la sexualité, l'inquisition, les relations de copinage LLIISSTTAA DDEE TTAABBEELLAASS EE QQUUAADDRROOSS Tabela 1 - Origem geográfica das testemunhas ............................................................... 23 Tabela 2: Origem das testemunhas .................................................................................... 28 Tabela 3 - Descrição dos réus ............................................................................................. 29 Tabela 4 - Procedência de escravos adultos .................................................................... 48 Tabela 5 - Tabela dos Delatores ....................................................................................... 114 Tabela 6 - Casamentos de Teodósio Pereira de Negreiros .......................................... 139 Tabela 7 - Local dos casamentos ...................................................................................... 160 Tabela 8 - População de Meia Ponte ................................................................................ 167 Tabela 9 - Freqüência de casamentos ............................................................................. 169 Tabela 10 - Condição dos noivos ...................................................................................... 173 Tabela 11 - Condição dos inocentes batizados .............................................................. 188 Tabela 12 - Batismo de inocentes por condição e ano .................................................. 193 Tabela 13 - Batismo por idade e sexo .............................................................................. 194 Tabela 14 - Procedência das mães escravas ................................................................. 240 Tabela 15 - Local dos batizados ........................................................................................ 242 Tabela 16 - Batizados de inocentes por condição e sexo ............................................. 246 Tabela 17 - Perfil social dos padrinhos de escravos (inocentes) ................................. 250 Tabela 18 - Alforrias na pia batismal ................................................................................256 Tabela 19 - População adulta de Vila Boa de Goiás ...................................................... 258 Tabela 20 - Perfil social dos padrinhos ............................................................................ 267 Quadro 1: Quadro tipológico de amancebados ......................................................234 LLIISSTTAA DDEE AABBRREEVVIIAATTUURRAASS AGDG - Arquivo Geral da Diocese de Santa Ana de Goiás AFSD - Arquivo Frei Simão Dorvi AHEG - Arquivo Histórico Estadual de Goiás AHU - Arquivo Histórico Ultramarino IAN/TT – Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo BNL - Biblioteca Nacional de Lisboa IPEHBC – Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central SUMÁRIO IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO ........................................................................................................... 12 CCAAPPÍÍTTUULLOO 11:: MMIIGGRRAAÇÇÃÃOO EE FFAAMMÍÍLLIIAA ........................................................................... 19 1.1. A MIGRAÇÃO NOS SERTÕES DE GOIÁS ........................................................................ 19 1.1.1. ASPECTOS GERAIS DA POPULAÇÃO .......................................................................... 19 1.1.2. A MIGRAÇÃO DOS PAULISTAS ..................................................................................... 32 1.1.3. A EMIGRAÇÃO PORTUGUESA ...................................................................................... 37 1.1.4. A MIGRAÇÃO DOS AFRICANOS .................................................................................. 44 1.2. PRESENÇA DA IGREJA CATÓLICA EM GOIÁS ................................................................. 49 1.2.1. O DISCURSO MORAL DO BISPADO DO RIO DE JANEIRO EM GOIÁS ............................ 53 1.2.2. VISITADORES DIOCESANOS: “DESTERRAR OS VÍCIOS E CORRIGIR OS ABUSOS” ....... 64 1.2.3. VIGÁRIO DA VARA E A JUSTIÇA ECLESIÁSTICA ........................................................... 74 CCAAPPÍÍTTUULLOO 22:: OO CCOOMMPPOORRTTAAMMEENNTTOO MMOORRAALL DDAA PPOOPPUULLAAÇÇÃÃOO ........................................ 84 2.1. MORTES E VIOLÊNCIA ................................................................................................... 84 2.2. UM CASO DE USURA ...................................................................................................... 88 2.3. A PROSTITUIÇÃO ........................................................................................................... 92 2.4. OS PECADOS DO CLERO ............................................................................................... 99 CCAAPPÍÍTTUULLOO 33:: SSEEXXUUAALLIIDDAADDEE EE TTRRAANNSSGGRREESSSSÃÃOO ......................................................... 110 3.1. SOLICITAÇÃO NA FREGUESIA DE SANTA CRUZ ........................................................... 110 3.2. BIGAMIA NAS MINAS NOVAS DOS GOYAZES: UM ESTUDO SOBRE THEODÓSIO PEREIRA DE NEGREIROS .................................................................................................................... 131 CCAAPPÍÍTTUULLOO 44:: AA PPOOLLÍÍTTIICCAA PPOORRTTUUGGUUEESSAA EE AASS CCOONNDDIIÇÇÕÕEESS DDOO PPOOVVOOAAMMEENNTTOO .............. 143 4.1. AS MULHERES DA TERRA: ESCRAVIDÃO E MANCEBIA .................................................. 143 4.1.2. A MULHER DA TERRA NA VISÃO DOS VIAJANTES ..................................................... 147 4.2. O CASAMENTO DE ESCRAVOS E LIVRES ...................................................................... 156 4.2.1 LOCAIS E HORAS DAS CELEBRAÇÕES MATRIMONIAIS ............................................... 158 4.2.2. A ORIGEM GEOGRÁFICA DOS NUBENTES ................................................................. 165 4.2.3. O CALENDÁRIO ANUAL DAS CELEBRAÇÕES.............................................................. 170 4.2.4. OS CASAMENTOS DE ESCRAVOS E CASAMENTOS MISTOS....................................... 173 CCAAPPÍÍTTUULLOO 55:: OO CCOONNCCUUBBIINNAATTOO ............................................................................... 180 5.1. OS SIGNIFICADOS DA PALAVRA CONCUBINATO ........................................................... 180 5.2. ILEGÍTIMOS E EXPOSTOS: O RASTRO DO CONCUBINATO ............................................ 183 5.2.1. A ILEGITIMIDADE NA POPULAÇÃO LIVRE ................................................................... 187 5.2.2. A ILEGITIMIDADE NA POPULAÇÃO ESCRAVA ............................................................. 192 5.3. ESTAR E ANDAR AMANCEBADO .................................................................................. 199 5.3.1. O CONCUBINATO ADULTERINO ................................................................................. 210 5.3.2. ALCOVITEIRISMO E CONCUBINATO INCESTUOSO ..................................................... 214 5.4. VIVENDO COMO CASADOS ........................................................................................... 220 CCAAPPÍÍTTUULLOO 66:: BBAATTIISSMMOO EE CCOOMMPPAADDRRIIOO ...................................................................... 236 6.1. O SACRAMENTO DO BATISMO ..................................................................................... 236 6.2. COMPADRIO NA POPULAÇÃO ESCRAVA ....................................................................... 247 6.2.1. AS ALFORRIAS NA PIA BATISMAL............................................................................. 256 6.2.2. OS ESCRAVOS ADULTOS ......................................................................................... 265 CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS FFIINNAAIISS ........................................................................................ 270 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 279 IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO Esta tese é resultado de uma pesquisa que se iniciou em 1998, quando se concluía esta dissertação de mestrado na Universidade Federal de Goiânia. Na análise de alguns registros eclesiásticos do século XVIII, arquivados no Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC), três tipos de documentos despertaram atenção: os editais das visitações diocesanas, o livro de registro das denúncias e o rol dos culpados. Percebeu-se que eles continham informações valiosas sobre os vários tipos de família, que se configuraram na Capitania de Goiás com a “descoberta” da mineração. Esta documentação apresentava os traços nítidos dos crimes que ocorreram contra a instituição da família: concubinato, bigamia, incesto, aborto, solicitação em confissão, prostituição, casais que viviam apartados sem justa causa, usura e alcoviteirice. E, além disso, poucos pesquisadores se aventuraram a investigá-los. A coleta da documentação demandou algum tempo de trabalho que requereu meses no arquivo do IPEHBC e outros locais, que guardam preciosas fontes sobre a história de Goiás. Entre estes, mencionam-se o Arquivo Histórico Estadual de Goiás (AHEG), o Arquivo Geral da Diocese de Santa Ana de Goiás (AGDG), o Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IAN/TT), em Lisboa, o Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e a Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL). Na sede da antiga freguesia de Santa Ana (Vila Boa), fixou-se residência por alguns meses para fazer a compilação das atas de batismo de escravos e livres. Além desta documentação, trabalhou-se com os assentos de casamento da paróquia Nossa Senhora do Rosário de Pirenópolis, cartas pastorais dos bispos do Rio de Janeiro, editais dos vigários das varas eclesiásticas, ofícios e requerimentos dos governadores da capitania às autoridades portuguesas, livros de devassas, pedidos de legitimação de filhos naturais e outros. A pesquisa com este escopo documental fez-se de suma importância paraa proposta inicial, cuja temática versava sobre o Concubinato na Capitania de Goiás (1726 a 1824). Apesar do esforço da Igreja em colocar em prática as resoluções do Concílio de Trento, principalmente, no que INTRODUÇÃO 13 tange ao casamento monogâmico, o concubinato caminhava do lado oposto às aspirações eclesiásticas. Mas o desenvolver da pesquisa e o contato com outras fontes permitiram visualizar melhor o comportamento da população goiana e a atuação da Igreja Católica durante os setecentos. Percebeu-se que, apesar dos esforços da Igreja na tentativa de implantar seus ideais morais nos vilarejos, houve muitas transgressões de conduta por parte da população e do clero. Neste contexto, a proposta inicial em pesquisar o concubinato restringia muito o leque das investigações. Ao encaminhar alguns fragmentos da tese para ser analisada pela nossa orientadora, a doutora Dora Paiva da Costa, esta sugeriu uma nova temática que abarcasse melhor as principais questões até então investigadas. Assim nasceu a temática sobre Transgressão, Controle Social e Igreja Católica no Brasil Colonial: Goiás, século XVIII. O objetivo da pesquisa é estudar as práticas familiares1 e o comportamento de uma população marcada por uma forte corrente migratória, que chegou aos sertões de Goiás com o povoamento e a corrida febril do ouro. Neste contexto, chegou também a Igreja Católica, aliada à Coroa portuguesa com o objetivo de espalhar nas freguesias que iam surgindo, as resoluções do Concílio de Trento. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 foram o referencial teórico e doutrinal para a Igreja no Brasil colocar em prática as resoluções tridentinas. É dentro deste prisma que se deve compreender a presença dos visitadores diocesanos que percorriam as minas de Goiás com o objetivo de “desterrar os vícios e os pecados da população”. Assim o concubinato surgia nas devassas eclesiásticas como o principal pecado, que deveria ser combatido pelos párocos e chefes de família. Embora este pecado tenha se destacado nas devassas eclesiásticas, os bispos tiveram preocupações minuciosas com o rebanho das minas de Goiás. As cartas pastorais, as visitações diocesanas e os editais dos vigários das varas eclesiásticas deixam transparecer um verdadeiro controle social que a Igreja 1 Quanto às práticas familiares, quero chamar atenção para o artigo “Família, Patriarcalismo e Mudanças Sociais no Brasil” de Eni de Mesquita Samara e Dora da Costa (Cedhal). O referido estudo faz uma abordagem da historiografia sobre a família no Brasil. Conforme Samara e Costa, a revisão dos grandes mitos da sociedade patriarcal brasileira ocorrida na década de 70, deu base para que os estudos realizados na década de 80 se caracterizassem por uma maior pluralidade. Esses estudos vão tratar do papel do sexo, do casamento, do concubinato, da sexualidade e do processo de transmissão de fortunas. Foi a partir da década de 1980 que as preocupações destes e outros estudiosos se dirigiram diretamente para a contestação da idéia de família patriarcal de Gilberto Freyre. INTRODUÇÃO 14 Católica no Brasil procurou exercer sobre os seus fiéis. Dentro desta perspectiva fica evidente uma afirmação de Riolando Azzi: [...] o pensamento católico hegemônico, nos três primeiros séculos, estava vinculado intimamente ao projeto colonizador lusitano, servindo com freqüência como suporte ético-religioso para a dominação lusitana não apenas sobre os indígenas e os negros, mas também sobre os próprios colonos que buscassem maior liberdade de pensamento e de ação em sua atividade no Brasil. Sob este aspecto, o pensamento católico se manifesta explicitamente como uma ideologia de cunho marcadamente autoritário e conservador. (1987, p. 13) Esta pesquisa se inicia em 1734 com a presença do primeiro visitador diocesano em solo goiano, o padre Dr. Alexandre Marques do Vale, vigário da paróquia de Santa Ana de Vila Boa (atual Cidade de Goiás). Veja-se o que ele diz referente ao concubinato: Ainda que a concubina seja útil para a sua casa e governo dela, e não seja fácil achar outra mulher com igual préstimo, é obrigado o concubinário primeiro lançá-la fora de casa para ser absoluto, porque da expulsão não perde a fama, nem causa escândalo, antes o causa grande em estar de portas adentro por manceba, nem o préstimo temporal, e que vale o Espiritual que perdem.2 Embora o foco principal da pesquisa seja o século XVIII, optou-se por um recorte cronológico até 1808. Neste período, a Igreja em Goiás passou por uma transição de comando que afetou as suas atividades pastorais: o corte umbilical com o bispado do Rio de Janeiro a partir da tomada de posse do terceiro prelado, D. Vicente Alexandre de Tovar, em 1805, por meio de seu procurador o padre Vicente Ferreira Brandão. A jurisdição episcopal do Rio de Janeiro assistiu o território goiano na parte do sul, desde o seu povoamento até a posse do referido prelado. Durante quase um século, realizaram-se em Goiás dezesseis visitas diocesanas e as 2 COPIA dos capítulos da primeira e ultima vezita, q fez o Doutor Alexandre Maquez do Valle, vezitador q foi destas minas de Goyaz. Vila Boa de Goyaz, 1734. Fotocópia. Acervo documental. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central, Universidade Católica de Goiás, Goiânia. INTRODUÇÃO 15 principais atividades pastorais eram comandadas pelos vigários das varas eclesiásticas. Conforme o historiador Cônego J. Trindade da Fonseca e Silva, o último visitador provisionado pelo bispo do Rio de Janeiro foi o “Cônego Roque da Silva Moreira por provisão de Dom José Joaquim Justiniano Castelo Branco em 1803” (SILVA, J., 2006, p. 91).3 Ainda referente às fontes, menciona-se O Rol dos Culpados4. Foi um documento de suma importância para anotar os crimes que ocorriam no âmbito da justiça eclesiástica. Entretanto, encontraram-se poucos assentos, mas o suficiente para retratar as infrações de ordem moral e os sacrilégios que ocorriam nas pequenas vilas goianas no final dos setecentos. Assim o vigário da vara de Santa Cruz foi acusado pelos seus fregueses de concubinato, de cujo “punível coito” nasceu uma filha. Por outro lado, “Izabel de nação Angola” foi presa na Aldeia de São José por ter expelido uma “hóstia que havia comungado”. Já, “Luiza Preta Mina” foi condenada por permitir concubinato, incesto e abortos dos seus filhos Carlos Pinto e Margarida “Crioula”. O mesmo ocorreu com Luiz Henrique da Silva e sua esposa Antonia Lopes que celebrou casamento clandestino.5 Toda esta documentação, apesar das lacunas, traz à baila as intimidades vividas no interior das famílias, os conflitos das concubinas com seus amásios nos becos e ruas, e certa oposição do catolicismo popular com a hierarquia eclesiástica.6 3 De acordo com os historiadores goianos, Dom Vicente partiu para sua prelazia em 1808, mas com a notícia da vinda da Família Real ao Brasil retorna ao Rio. Porém acaba morrendo em Paracatu em oito de outubro deste mesmo ano. Era natural da Bahia, foi sagrado bispo em 28 de agosto de 1803 na igreja de Loreto em Lisboa, através do Núncio Apostólico Monsenhor Lourenço Callepi, Arcebispo de Nesili. Foram assistentes nesta cerimônia o arcebispo de Adrianópolis Dom Manoel Joaquim da Silva e Dom Joaquim Maria Mascarenhas, bispo de Angola. Sendo cônego reitor da Sé de Faro passou em Goiás e foi vigário da vara eclesiástica e da paróquia de Pilar durante o período de 1791 a 1800. Com a morte de Dom Vicente, o padre Vicente Ferreira Brandão continuou vigário capitular assistido pela prelazia de Cuiabá até 1810 com a nomeação de Dom Antonio Rodrigues de Aguiar (SILVA, J., 2006, p. 91-92). 4 Refere-se ao livro utilizado pelos bispos diocesanos para registraros culpados das devassas eclesiásticas. Mas a Inquisição utilizava também esta mesma expressão. Há uma obra da historiadora Anita Novinsky (1992), intitulada Rol dos Culpados, que aborda os Cristão Novos condenados pelo Santo Oficio. 5 BISPADO DO RIO DE JANEIRO. Rol dos culpados. Livro utilizado pelos bispos diocesanos para registrar os culpados das devassas eclesiásticas. Livro n. 10, 1783-1805. Manuscrito. Acervo documental. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central, Universidade Católica de Goiás, Goiânia. 6 De acordo com Eduardo Hoornaert (1991, p. 16), a inquisição ajudou a formar (ou deformar) a consciência católica no Brasil, criando a impressão de que todos são católicos da mesma forma, obedecendo às mesmas normas e lutando contra os inimigos. Diante do clima de medo criado pelas denunciações, visitações, deportações, repressões e confiscos, os brasileiros reagiram de maneira inteligente: criaram um catolicismo ostensivo, patente aos olhos de todos, praticado, sobretudo nos lugares públicos, bem pronunciado e cheio de invocações ortodoxas a Deus, Nossa Senhora, os santos. Todos tinham que ser “muito católico” para garantir a sua posição na sociedade, e não cair na suspeita de “heresia”. INTRODUÇÃO 16 As famílias geradas pelo concubinato surgiam na sombra do casamento como resultado de adultérios ou se organizaram paralelamente ao matrimônio, a partir de arranjos, consentimentos ou mesmo como resultado de violências. Entretanto, a palavra concubinato fazia referência a um pecado e a um crime quando utilizado pela hierarquia eclesiástica para caracterizar certo tipo de relações não gerado pelo casamento. Como afirma Torres-Londoño (1999, p. 15), “este era fruto de um longo percurso da cristandade que fez do matrimônio monogâmico, indissolúvel e destinado à procriação o único espaço da sexualidade”. Referente aos registros de batismo e casamento procurou-se seguir as orientações da demografia histórica para formar quadros explicativos mais gerais. Observando as orientações metodológicas de Maria Luiza Marcílio, criou-se um banco de dados no programa Excel para explorar melhor os assentos paroquiais. Por meio de variantes como nome, estado civil, condição, origem geográfica, legitimidade, ilegitimidade, exposto, etc.,.. Procurou-se trilhar nos caminhos destas famílias que povoaram as freguesias de Nossa Senhora do Rosário (Perinópolis) e Santa Anna de Vila Boa. Feitas as considerações iniciais sobre Transgressão, Controle Social e Igreja Católica no Brasil Colonial: Goiás, século XVIII, destaca-se a seguir uma pequena síntese dos seis capítulos desta pesquisa para que o leitor tenha uma compreensão global da investigação. O primeiro capítulo, que trata da migração e família, situar-se-á melhor sobre a chegada de imigrantes de algumas regiões do Brasil, da Europa e da África aos sertões de Goiás com a descoberta da mineração. Os mineiros eram, em sua grande maioria, emigrantes solteiros, quando casados, viajavam sozinhos para as minas, para tentar a aventura, com a esperança de poder, mais tarde, uma vez bem sucedidos, chamar suas famílias; ou às vezes vinham para Goiás fugindo da perseguição do Santo Ofício. Juntamente, com os emigrantes chegou também a Igreja Católica em Goiás para difundir nas nascentes freguesias as resoluções do Concílio de Trento. Neste contexto, destacaram-se as cartas pastorais dos bispos do Rio de Janeiro, as visitações diocesanas e os vigários das varas eclesiásticas. No segundo capitulo, analisa-se o comportamento moral da população da capitania marcado de infratores e infrações de aspectos individuais e de grupo: violência, morte, corrupção, prostituição e vários pecados cometidos por alguns elementos do próprio clero que deviam zelar pela moralidade pública. As INTRODUÇÃO 17 cartas dos governadores de Goiás para a Coroa portuguesa não deixaram de ressaltar o comportamento violento desta população, marcado por crimes e vários tipos de “desordem de ordem” moral na visão dos lusitanos. No terceiro capítulo, trata-se das temáticas da sexualidade e transgressão. Com base em dois processos de Inquisição, analisam-se os “crimes” contra a instituição familiar: a solicitação na confissão pelo pároco da freguesia de Nossa Senhora da Conceição (Santa Cruz) e um estudo da bigamia cometida por Theodósio Pereira de Negreiros. Solicitação e bigamia procuram ressaltar ainda mais a aliança do Estado Português e da Igreja Católica, por meio do padroado, no combate aos crimes e pecados, que ferissem os sete sacramentos ordenados pelo Concílio Tridentino. O grande destaque deste capítulo são os delatores de duas devassas ocorridas em Santa Cruz de Goiás, comandada pelo visitador diocesano, o padre Felipe da Silveira, em 1757. Os depoimentos contra o padre Jose de Paiva Vieira, acusado em solicitação e quebra de sigilo em confissão, trazem à baila a intimidade da vida sexual das mulheres que moravam numa região bastante despovoada na segunda metade do século XVIII. No quarto capítulo, abordam-se a política portuguesa e as condições de povoamento em solos goianos. Preencher o vazio do imenso território brasileiro sempre foi um desafio para a colonização portuguesa. Em Goiás, encontram-se diversas correspondências da Coroa para governadores da Capitania, ressaltando a necessidade de povoar os sertões com os “naturais da terra”. Entretanto, as rivalidades e as guerras de extermínio contra os indígenas, no início da ocupação, parecem ter dificultado os enlaces matrimoniais. Os assentos de casamentos da freguesia de Nossa senhora do Rosário (Meia Ponte) apontam pouquíssimos casos de enlaces matrimoniais envolvendo indígenas. Por outro lado, encontram-se importantes correspondências dos bispos do Rio de Janeiro aos vigários das varas eclesiásticas, orientando aos párocos para facilitar o casamento dos seus fregueses “pobres e miseráveis”. No entanto, os viajantes estrangeiros, que percorreram a região no início do século XIX, ficaram chocados com as mancebias. Na visão de Saint-Hilaire, o “mau exemplo do concubinato” partia das autoridades locais e se estendia para a população, pois nenhum governador veio para Goiás casado, preferiam viver rodeados com suas concubinas nos próprios palácios. INTRODUÇÃO 18 O quinto capítulo vai tratar o concubinato, seguindo o rastro dos nascimentos ilegítimos, apontados nas atas de batismo de escravos e livres. Os assentos de batismo de Vila Boa apresentam uma ilegitimidade alta, 73,1%. Mesmo que não se possa provar com exatidão a maioria dos casos das relações de concubinato, ele aparece de uma forma indireta nos livros paroquiais. Houve sempre suspeitas nas histórias de crianças expostas em casa de “fulano de tal”, e nos nascimentos que só apareciam os nomes da mãe e a denominação de “pai incógnito”. No entanto, o concubinato aparece mesmo de uma forma clara no “livro de denúncias” e no “rol dos culpados.” As testemunhas que comparecem ao tribunal eclesiástico narram em detalhes os relacionamentos consensuais e as brigas, que aconteciam nos becos e ruas, motivadas por ciúmes dos amásios com as suas concubinas Além disso, o diálogo com esta documentação permite conhecer alguns aspectos do cotidiano desta outra família que se constituiu ao lado do matrimônio monogâmico. Famílias que freqüentavam as cerimônias religiosas criavam seus filhos e viviam por vários anos de “portas adentro” ao lado de parentes e vizinhos. No sexto capítulo, analisam-se o batismo e as relações sociais do compadrio. Num contexto em que o catolicismo era a religião oficial do Império português, o batismo foi o sacramento que mais obteve sucesso na capitania de Goiás, revelando uma aproximação e afinidade entre a Igreja e a comunidade. Na realidade havia uma grande preocupação dos agentes eclesiásticos para que ninguém morresse sem ele. O batizado conforme as Constituiçõesda Bahia era “porta de entrada” do fiel na Igreja. Por isso as cartas pastorais do Rio de Janeiro procuravam incentivar aos párocos para instruir os seus fregueses, principalmente, as parteiras na forma de batizar. Mas a pia batismal foi usada também pelas mães escravas como instrumento de alforrias de seus rebentos. Por outro lado, o sacramento do batismo serviu, muitas vezes, para encobrir as relações de concubinato dos compadres e as suas comadres. CCAAPPÍÍTTUULLOO 11 MMIIGGRRAAÇÇÃÃOO EE FFAAMMÍÍLLIIAA 1.1. A MIGRAÇÃO NOS SERTÕES DE GOIÁS 1.1.1. ASPECTOS GERAIS DA POPULAÇÃO É importante situar a história da família na Capitania de Goiás num processo de corrida pela conquista do ouro. Mas desde o final do século XVII Goiás já era suficientemente conhecido dos paulistas, devido aos relatos e roteiros elaborados pelas primeiras entradas e bandeiras. A referência do “descobrimento” da região no século XVIII é anacrônica. Contudo, convencionou-se atribuir o “descobrimento” de Goiás à bandeira chefiada por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera (1722-1725), pois, a partir dela, se encontraram as primeiras minas de ouro e se iniciou o processo de povoamento no território goiano. Para Nasr Fayad Chaul (1997), a estrutura familiar na política admintrativa em Goiás, teve suas origens com o Bueno, que era superintendente; seu genro Ortiz, guarda-mor; e Antonio Ferraz, seu sobrinho. A partir deste contexto, a política das famílias tradicionais foi uma grande característica que marcou por longos anos a vida de Goiás. E foi o ouro o principal responsável pelo surto populacional dos sertões de Goiás. Parece que se repetiu neste território o mesmo que ocorreu nas Minas Gerais. Sérgio Buarque de Holanda denominou “sociedade sui generis”. Na visão deste autor, o que marcou a sociedade mineira foi um povoamento com CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 20 elementos de “várias procedências e de todos os estratos” (HOLANDA, 1993, p.282). Na realidade, a mineração trouxe uma nova forma de povoamento “tipo urbano” ao Brasil colonial. Durante os séculos XVI e XVII, o povoamento das Capitanias da costa brasileira dera-se em função da empresa agrícola. Com a mineração, a situação inverteu-se: os núcleos urbanos, surgidos da concentração mineira, congregaram a maioria da população, marcando o ritmo da vida social e das mentalidades. Para Palacin (1995), o descobrimento do ouro em Goiás foi o principal responsável pelo surto populacional: migração para o interior, populações majoritariamente masculinas, surtos de violência, urbanização acelerada e severo controle fiscal por parte do Estado. Já o cronista Antonil, em sua obra Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, fixou a corrida do ouro às Minas Gerais, nos anos iniciais do século XVIII. Cada ano vem nas frotas quantidade portugueses e estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos, pretos e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda condição de pessoas; homens e mulheres; moços e velhos; pobres e ricos; nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa. (ANTONIL, 1982, p. 264) Cunha Mattos (1975, p. 141) chegou contar “dezessete mil escravos e mil e quatrocentos homens brancos europeus, paulistas e mineiros, todos celibatários” num descoberto aurífero em Cocal no ano de 1751. Luís Antônio da Silva e Souza (1978, p. 78-79) buscou na tradição oral a memória desse povoamento colonial, caracterizado pelo excesso de grandeza e riqueza dos primeiros tempos. Num curto período entre 1726 e 1740, estabeleceu-se o mapa básico da mineração em Goiás, constituído por três grandes áreas: a região de Vila Boa (Barra, Ferreiro, Ouro Fino, etc.), contendo Meia Ponte e Santa Cruz ao sul; a região do rio Maranhão (Traíras, São José, Cachoeira, etc.), contendo Crixás a oeste; e a região do norte (Natividade, Ponta, Conceição, etc.). CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 21 Na realidade, as descobertas do ouro iniciam o processo de povoamento da Capitania de Goiás. A mineração foi o principal alvo dos emigrantes que chegavam de todas as regiões do Brasil e do Reino em busca da riqueza. O mapa a seguir retrata os principais arraiais que se formaram nas terras do ouro. Mapa 1 – Goiás: Vilas e Arraiais do Ouro, séculos XVIII e XIX Fonte: NOTÍCIA Geral da Capitania de Goyaz. In: SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira de. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: CEGRAF; Ed. da UFG, 1992. p. 94. CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 22 Não houve aqui, certamente, nenhuma novidade extraordinária, para a generalidade dos países de condição ou formação colonial. A título de comparação, a ocupação dos territórios goianos teve características semelhantes das apontadas por Sérgio Buarque de Holanda (1993), nas Minas Gerais. Um “povoamento com predominação do elemento masculino e mulheres de baixas condições morais”. Para o autor, em outras partes do Brasil, para onde os colonos vieram em menor número, a carência de mulheres européias se supriu pelas índias (HOLANDA, 1993, p. 300). Mas em Goiás muitas nações indígenas haviam sido dizimadas devido às constantes guerras exterminatórias com o homem branco. Por outro lado, a chegada destes imigrantes das diversas regiões do Brasil, da Europa e da África vai interferir profundamente no processo de reprodução biológica, social e étnica da sociedade de Goiás. As atas de batismos, casamentos e as devassas civis e eclesiásticas corroboram com a nossa afirmação. A primeira fase da historia de Goiás, até a sua elevação à Capitania, independente de São Paulo, em 1749, é toda marcada por crimes e violências, em que estavam envolvidos inclusive elementos eclesiásticos. A criação de uma administração própria, com D. Marcos de Noronha, pouco melhoraria a situação. Segundo o testemunho do próprio governante, grande parte dos habitantes era foragida da justiça (apud SANTOS, 1984, p. 148). A tabela das testemunhas que depõem nas devassas eclesiásticas em Vila Boa (cf. Tabela 1) aponta uma grande porcentagem de portugueses, que residiam na Capitania em 1753 em plena fase do ouro com abundância. CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 23 Tabela 1 - Origem geográfica das testemunhas País Cidade Bispado Qtd Brasil 10 Bahia Bahia 2 Rio de Janeiro Rio de Janeiro 6 São Paulo São Paulo 1 Villa de Itu São Paulo 1 Portugal 43 [Corrocedo?] Braga 1 [Corrose] Braga 1 [Reburdoam] Miranda 1 [Villa de Freira] Porto 1 Coimbra - 2 Évora Portugal 1 Freguesia de [Frotas] Porto 1 Ilha de São Miguel Portugal 4 Ilha Terceira Bispado de Angra 2 Ilhas das Caldas Portugal 1 Lisboa Lisboa 5 Ponte do Porto Braga 1 Santa Maria do Outeyro Braga 1 São João de Água Longa Porto 1 São Salvador da Roca Braga 1 Valença do Minho Braga 1 Vila de (Abreu) Patriarcado Lisboa 1 Vila de S. João Del Rei Mariana 1 Vila Rica Mariana 1 Villa da Feira Porto 1 Villa da Marante Braga 1 Villa das Caldas da Rainha Patriarcado de Lisboa 1 Villa de [Marealva] - 1 Villa de [Rocha] Braga 1 Villa de Alcobaça Portugal 1 Villa do Conde Braga 1 Villa do Ovar Porto 1 Villa dos Guimarães Braga 6 Villa Real Braga 1 Total 53 Fonte: BISPADO DO RIO DE JANEIRO. Registro das denúncias. Livro utilizado pelos bispos para registrar as denúncias de devassas eclesiásticas. Livro n. 2. 1753-1794. Manuscrito. Acervo documental. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central, Universidade Católica de Goiás, Goiânia. Pelo que se observa na tabela, das 53 testemunhas que depõem no tribunal eclesiástico de Vila Boa sobre os casos de concubinato, 45 são naturais dos principais bispados de Portugal: Lisboa, Porto, Braga, etc.7 Pena que o livro de 7 Em relação aos crimesapontados no livro de Registro das Denúncias, a grande maioria dos casos são registros de concubinato. Mas encontramos também crimes de usura, prostituição, alcoviteirismo, incesto e sacrilégio. Em relação à origem geográfica dos réus, a documentação não deixa muitas CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 24 Registro de Denúncias não deixa claro o estado civil desta gente, e muitos menos como chegaram aqui. E a documentação ressalta as idades e os ofícios que praticavam em Vila Boa. Quanto à idade, o português mais velho é Caetano Tavares da “Villa de Alcobaça”, 60 anos, que “vive do officio de Pedreiro”; o mais novo é José Tavares da “Ilha de São Miguel”, 24 anos, que “vive do officio de sapateiro”. Em relação aos nascidos nas terras do Brasil são poucas as testemunhas que comparecem no Auto de Denúncia. O mais velho era comerciante, carioca com 77 anos; Já Bento Ferreira de Mello (crioulo forro), natural da Bahia tinha 22 anos e era morador do Arraial do Ferreiro. É importante lembrar que estes depoimentos foram tomados no ano de 1753, em plena fase da abundância do ouro. Na parte religiosa, Goiás era comandado pela Mitra do Rio de Janeiro, cujo bispo era o beneditino D. Antônio do Desterro Malheiros, que proibiu a cobrança de taxas de casamentos e sepultamentos de pobres, escravos e imigrantes; e ao mesmo tempo, renovou a obrigação dos párocos aos assentos paroquiais. Acredita-se que esta última medida foi uma das respostas para o maior número de casos de concubinato registrado na Capitania no ano de 1753; além disto, sendo da ordem de São Bento, a tendência era uma orientação pastoral mais rigorosa. Estes emigrantes, de certa forma, contribuíram com os ideais do Concilio de Trento na difusão do catolicismo no interior do Brasil, uma vez que chegavam às minas e logo edificavam uma capela ou mesmo um oratório para difundir a devoção que praticavam em suas regiões de origem. As diversas confrarias e irmandades praticadas pelos diversos seguimentos da sociedade colonial confirmam a nossa afirmação. Ao observar os templos edificados no Brasil colônia, percebe-se nitidamente a marca de uma sociedade baseada na escravidão do negro e no conflito dos grupos sociais. Daí a edificação da igreja de Nossa senhora do Rosário dos Pretos, São Benedito dos Crioulos, Irmandade da Boa Morte, etc.(CASTRO, 2006). Mas o foco do momento é sobre as testemunhas que compareciam aos Autos de Denúncia no período de 1753 a 1794. Para Laura de Mello e Souza (2006, p. 20-21), as devassas eclesiásticas são documentos de capital importância para estudar a família e os aspectos da vida moral da sociedade colonial. Neste contexto, pistas. Mas há alguns casos que os nomes e sobrenomes dos acusados nos faz suspeitar que se tratasse de estrangeiros. O exemplo de “Pantaliam Rodrigues” que praticava usura em Vila Boa é um destes. CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 25 “as testemunhas que comparecem à Mesa de denúncia falavam muito mais da vida amorosa, da sexualidade, dos costumes de seus semelhantes, do que da sua regularidade no comparecimento às missas e na prática dos jejuns”. Quais os critérios que a igreja utilizava na escolha dos testemunhos? Por que tantas testemunhas do Reino numa Vila Boa coberta de pessoas das várias regiões do Brasil? Parece que o tribunal eclesiástico selecionava as pessoas que tivessem uma vivência exemplar na prática da doutrina e observância dos sacramentos na freguesia que residia. No caso em análise, o único “crioulo forro” que apareceu no Auto de Denuncia como testemunha foi Bento Ferreira do Arraial do Ferreiro por ter salvado o vigário de uma facada. Quanto às outras testemunhas havia muitos comerciantes, taberneiros, alfaiates e sacerdotes seculares. Na realidade estes ofícios tinham muito contato com aquilo que a população comentava a respeito da vida alheia. Ser testemunha no auto do tribunal eclesiástico não dava garantias a ninguém de ser poupado, mediante a acusação de um vizinho ou até mesmo de uma pessoa inimiga. Parece que não era somente o ouro que atraía essa gente, mas também outras atividades que a prática da mineração demandava. Ao se apresentarem no auto da devassa, uma das primeiras questões que respondiam eram nomes, idades, naturalidade, oficio e costumes que praticavam. Os vários ofícios praticados por estes portugueses eram sapateiro, taberneiro, ferreiro, escrevente, sacerdote secular, alfaiate, mercador, roça, negócio, agencia, pedreiro, sapateiro, minerar, alferes, soldado, requerente, mestre de meninos. Para Laura de Mello e Souza (2004), a prática do concubinato não causava preocupações para grande parte da população das Minas Gerais no período da mineração. Geralmente, o que mais incomodava as pessoas eram as brigas nas ruas e no interior das casas, motivadas pelos ciúmes dos parceiros. Assim, o meirinho do juiz eclesiástico, José da Silva Barros, denunciou “Antonio Velho Preto, por andar amancebado há muitos anos com Antonica (sic) Preta Forra e por esta causar brigas na rua em que morava”; o mesmo Meirinho denuncia no juiz eclesiástico, Manuel Fellipe Santiago por “andar concubinado” e ter um filho com sua escrava Rita; José da Rosa que “vive de minerar” em Vila Boa testemunha que nas ocasiões das visitas do Santíssimo Sacramento aos enfermos, o Mulatinho, filho do CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 26 concubinário Manuel Felipe e sua escrava Rita, “vai muitas vezes junto delle”8. No dizer de Laura de Mello, “ato sexual” que homens da centúria praticavam com as várias mulheres eram descritos nas “devassas eclesiásticas como ato pecaminoso” (SOUZA, 2004, p. 227). Outra questão, que merece destaque neste item, diz respeito à mobilidade geográfica da população masculina. A população de Goiás no período colonial apresentava características típicas das regiões mineradoras, ou seja, era predominantemente masculina e solteira. Diferentes fontes, datadas de 1745, atestam para a intensa mobilidade das populações goiana e mato-grossense. “Os habitantes deslocavam-se constantemente à procura de novas jazidas de ouro, fazendo com que arraiais inteiros se despovoassem e a vida se constituísse em constante improvisação” (PALACIN; GARCIA; AMADO, 1995, p. 61). Para Novais (1995) a mobilidade geográfica estava ligada a uma economia colonial “predatória”, que visava o desenvolvimento da Metrópole. Neste contexto era difícil para a população “sedimentar laço de família”. O referido autor concorda com as teses de Gilberto Freyre que a “miscigenação” foi um dos principais encontros do colonizador branco com as escravas e indígenas, e ao mesmo tempo uma forma de dominação do europeu sobre as populações que habitavam o Brasil (NOVAIS, 1997,14-39). Para a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva (1993), as atividades militares, municipais e econômicas, no fim do período colonial, forçavam os homens a passar longos períodos distantes de suas famílias. A atividade econômica forçava uma boa parcela da população para à mobilidade geográfica. Neste sentido, “tropeiros e mascates, sempre em constantes viagens, pouco permaneciam nas suas casas”. Manoel Machado Rocha que depõe na devassa de Pilões e Rio Claro, em 1794, foi uma destas figuras típicas que levava uma vida na itinerância para vender as suas cargas. Quando o juiz de Vila Boa perguntou ao réu o que ele fazia no Rio Claro com instrumentos e ferramentas de minerar, respondeu: 8 BISPADO DO RIO DE JANEIRO. Registro das denúncias. Livro utilizado pelos bispos para registrar as denúncias de devassas eclesiásticas. Livro n. 2. 1753-1794. Manuscrito. Acervo documental. Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central, UniversidadeCatólica de Goiás, Goiânia. fl. 2-5. CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 27 [...] que sahindo (sic) de sua casa de Viamão com cento e vinte animais, para negociar em São Paulo, chegara ao Registro de Curitiba com quarenta e passou na cidade de São Paulo e comprou algumas cargas, que conduzira a esta Capitania, e sendo infeliz na venda dellas pela tardança das cobranças, ser pusera a hir ao Rio Cayapo procurar ouro, [...] e para isso convidara a Manoel de Oliveira, Francisco Soares, Jose Luis, João Pereira, Ignácio de Souza, João Portes, Manoel Antonio e Pedro de Siqueira e com cinco escravos seus por nomes Luis Crioulo, Jose Mina, Teodoro Crioulo, Zeferino e Barnabé Crioulos foram ao Rio Vermelho e ahi fizeram huma canoa para o atravessar, e depois seguiram ate o Rio Claro.9 O texto acima faz parte de um depoimento de devassa em Vila Boa de Goiás em 1794. Após uma acusação verbal foram encontrados nove homens livres e cinco escravos com instrumentos e ferramentas minerais e uma pequenina pedra de ouro. Os mesmos estavam acampados ao “pé do Rio Claro” com vários animais e cinco escravos. Presos pela milícia que comandava a região foram conduzidos para cadeia de Vila Boa. Julgados pelo juiz ordinário daquela comarca foram absolvidos. Na realidade em toda região aurífera dos rios Claros e Pilões, freqüentemente, eram encontrados diamantes, daí o interesse e controle da região pela Coroa portuguesa. Neste processo, várias pessoas foram interrogadas, os militares, os camaradas que acompanhavam Manoel Machado da Rocha e várias pessoas dos arraiais vizinhos, com exceção dos escravos e indígenas. Uma das principais questões feitas pelo Juiz da devassa se referia ao “serviço de minerar no continente10 proibido”. Percebe- se com isso que a instituição ameaçada em seu domínio faz prevalecer as suas normas e leis que dão legitimidade a este poder. De acordo com Kenneth R. Maxwell (2005), a política de Pombal foi muito centralizadora no tocante aos diamantes, colocando esta administração sob o controle direto da Real fazenda. Em Minas Gerais houve uma série de regulamentos que visavam abastecer o mercado europeu. Para o autor, as instruções políticas de Pombal baseavam-se em três prioridades: “garantir a fronteira, povoar de modo que a população pudesse se 9 AUTO de devassa e juntada. Pilões e Rio Claro. Livro n. 30, 1794. Manuscrito. Arquivo Histórico do Estado de Goiás, Goiânia. fl. 19v. 10Havia uma Carta Régia do ano de 1738 que a Coroa Portuguesa proíbe a extração nos rios Claros e Pilões. A intendência de Pilões foi criada em 1748 para resolver o contrabando de Diamantes. O policiamento local era difícil porque os próprios funcionários do governo contribuíam para a violação das ordens legais. Com objetivo de solucionar estas questões, a Coroa fez um contrato com os irmãos Caldeira Brant (1749-1751), mas o empreendimento fracassou. “ As minas foram guardadas com destacamento militar até o ano de 1803, e a região mantida sob a administração de Intendência de Vila Boa” (SALLES, 1992, p. 93-98). CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 28 defender, e fazer uso proveitoso das minas descobertas” (MAXWELL, 2005, p. 64- 65). Mas o que chama atenção nesta devassa de Pilões são os aspectos relacionados à vida familiar dos indivíduos. Se se observar o estado civil de algum deles, constata-se a presença de homens casados ausentes de suas mulheres e filhos (cf. Tabela 2). Tabela 2: Origem das testemunhas Nome Idade Naturalidade Profissão Estado Civil Anacleto Ferreira 37 Vila Boa Meirinho dos Dízimos Solteiro Anselmo Miguel Ribeiro 20 Aldeia do Rio das Pedras Soldado Solteiro Antonio de Siqueira 19 Araial de Crixás Soldado Solteiro Antonio Luis de Oliveira 23 Aldeia do Duro Soldado Solteiro Domingos Jose Valente - - - - Faustino Afonso 37 São João da Ribeira - SP Soldado Casado Francisco de Souza 25 Vila Boa Soldado Casado Ignacio Joaquim 24 Vila Boa Soldado Solteiro Ignacio Lima da Silva 45 Via de Cuiabá Cabo de Esquadra Solteiro Joaquim Nunes de Campos 30 Aldeia do Rio das Pedras Soldado Casado Jose Fernandes do Vale 50 Paranhas/Porto Piloto das [Cismarias] Solteiro José Luiz Moreira 40 F. Soneta Conga/Braga Lavouras Casado José Luiz Pereira 46 Aldeia S. Jose e Maria Sargento Solteiro Jose Rodrigues Souto 30 Pilar Forriel/Minerar. Solteiro Leandro da Siqueira Brito 54 Cidade da Bahia Carcereiro Viúvo Leonardo Pires 30 Aldeia do rio das Velhas Soldado Solteiro Lourenço da Silva Martins 60 V. Bemposta /Aveyro Negócio Solteiro Luis Lorenço Gondres 77 Vila de Caminha/Braga Lavouras Casado Manoel da Rocha Magalhães 40 Braga - Casado Manoel de Faria Agrão 64 F. S. Maria de Agrão/Coimbra Alfaiate Solteiro Manoel Jose de Moraes 30 Meia Ponte Matar capados Casado Manoel Rodrigues Lamego 58 Lamego/ [ Coimbra ?] Agência Solteiro Manoel Rodrigues Lopes 56 F. Noronho/ Coimbra Cacheiro Solteiro Manuel Camelo Pinto 40 Porto Comércio Casado Manuel de Sá Pereira 37 Vila Boa Seleiro Solteiro Manuel Martins dos Santos 36 Vila Boa Soldado Casado Miguel Álvares de Oliveira 50 Paracatu/Pernambuco/ Pedreiro Casado Pedro Paes 25 Crixás Soldado Solteiro Placido José Dias 45 Aldeia de Maria - SP Forriel Casado Raimundo Lopes de Morais 33 Meia Ponte Seleiro Casado Salvador Bueno de Morais 33 Vila Boa. Lavouras Solteiro Serafim de Barros 23 Arraial de Trairas Soldado Solteiro Fonte: AUTO de devassa e juntada. Devassa de Pilões e Rio Claro. Livro n. 30, 1794. Manuscrito. Arquivo Histórico do Estado de Goiás, Goiânia. CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 29 O quadro apresentado por meio da tabela 2 demonstra duas questões capitais: as migrações e os ofícios praticados pela população. Na questão das migrações, a tabela 2 aponta alguns estrangeiros que acusam brasileiros de cometer crimes contra os interesses do Reino. Mas o quadro acima retrata também a diversificação das atividades econômicas praticadas no final do século XVIII. Entre as várias testemunhas que prestaram seus depoimentos na devassa, apenas o “forriel José Rodrigues Souto” do arraial do Pilar praticava o “ofício de minerar”. Os ofícios apresentados na tabela 2 sugerem algumas características dos aspectos econômicas de Vila Boa com a freguesia Vila Rica na segunda metade dos setecentos. Conforme Marco Antonio Silveira, os trabalhos comerciais e de ofícios encontravam-se em primeiro e segundo lugares, respectivamente, na ocupação daquela população. O referido pesquisador constatou nos aglomerados urbanos de Vila Rica um intenso mercado interno, em que a maioria das pessoas desempenhava funções relacionadas com os ofícios e o comércio: “viver de loja, venda, fazer cobranças etc.” (SILVEIRA, 1997, p. 89). Por outro lado, as pessoas que foram presas e acusadas de cometer crime no “continente proibido” são homens, de certa forma, jovens que vivem na itinerância. A tabela 3 ressalta também o aspecto civil destes indivíduos que viviam isolados e distantes de suas famílias. Na realidade, a mobilidade geográfica da população facilitava os relacionamentos consensuais e os adultérios. Vejamos a tabela 3 abaixo: Tabela 3 - Descrição dos réus Nome Idade Naturalidade Ofício E. Civil Manoel Machado Rocha 51 Viamão (RS) Negociante Casado Manoel de Oliveira Sarmento - Vila Rica Negociante Solteiro Francisco Soares 40 São Paulo - Solteiro Jose Luiz 20 Vila de Sorocaba Camarada Solteiro João Pereira 25 São Paulo Camarada Casado Ignacio de Souza de Oliveira 52 São Paulo João Portes 40 Mogimirim Camarada Casado Manoel Antonio 43 Mogi das Cruzes Camarada Casado Pedro Antonio 30 Vila de Mogimirim Camarada Casado Fonte: AUTO de devassa e juntada. Devassa de Pilões e Rio Claro. Livro n. 30, 1794. Manuscrito. Arquivo Histórico do Estado de Goiás, Goiânia. CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 30 Geralmente o interrogatório começava da maneira seguinte: E logo pelo dito JuizOrdinário foi perguntado ao Reo preso [...], como se chamava, donde era natural, que idade tinha se era casado ou solteiro, se sabia a causa de sua prisão, donde, e por quem se tinha alguns privilégios.11 Manoel Machado testemunhou que era casado com Bernarda Ribeira Lima na freguesia de Viamão do Rio Grande de São Pedro, Bispado do Rio de Janeiro, tinha 51 anos de idade e que não sabia a causa da sua prisão; Manoel de Oliveira Sarmento, solteiro, natural de Vila Rica, bispado de Mariana, disse que sendo do sertão vinha ao Arraial de Meia Ponte negociar algumas cabeças de gado; Francisco Soares, natural e morador em São Paulo, solteiro, 40 anos, era camarada de Manoel Machado com quem viera da cidade de São Paulo; Ignácio de Souza de Oliveira, natural de São Paulo e morador no Arraial de Santa Rita , distrito de Vila Boa,52 anos; Jose Luiz, Vila de Sorocaba, bispado de São Paulo, solteiro, 20 anos, camarada de seu patrão; Manoel Antonio, natural e casado em Mogi Mirim, homem pardo, 43 anos, camarada que seguia seu Patrão de São Paulo; João Portes, natural de Mogi Mirim, 40 anos, casado,camarada.12 Se se observar a vida destes indivíduos, percebe-se que não tinham residência fixa. Viviam do negócio de gado, porcos e cargas, que traziam de São Paulo e outras regiões. Como ficaria a vida familiar destes homens em constante mobilidade geográfica? Manoel Machado, por exemplo, fez questão de dizer perante o juiz da devassa que era casado com Bernarda Ribeira na “freguesia de Viamão do Rio Grande”. Haveria espaço para fidelidade no matrimônio tão desejado pela Igreja com um esposo que aparecia em casa uma vez ou outra? Talvez a reposta esteja na grande porcentagem de filhos naturais de Vila Boa que vamos analisar em outro capitulo. O livro de batismo de escravos (1764-1808) aponta um alto índice de crianças ilegítimas, 73,1%.13 As devassas apontam também para uma grande porcentagem de solteiros na comarca de Vila Boa. 11 AUTO de devassa e juntada. Devassa de Pilões e Rio Claro. Livro n. 30, 1794. Manuscrito. Arquivo Histórico do Estado de Goiás, Goiânia. 12 AUTO de devassa e juntada. Devassa de Pilões e Rio Claro. Livro n. 30, 1794. Manuscrito. Arquivo Histórico do Estado de Goiás, Goiânia. 13 Atas de batismo de escravos, 1764 a 1808, da Cidade de Goiás, antiga Vila Boa, apresentam um total 2216 inocentes que foram levados a Igreja Matriz e Capelas filiais da paróquia de Santana para o sacramento do batismo. Desse total 73,1% foram classificados como ilegítimos; 25,9% legítimos e CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 31 Estas andanças masculinas tinham como conseqüência mais visível uma vida sexual fora do matrimônio e a procriação de filhos ilegítimos. Além disso, numerosos estudos confirmam que, no fim do período colonial, faltava para muitos indivíduos o apoio da família extensa, incluindo vários graus de parentes. Ao lado das famílias estruturadas segundo a tradição portuguesa, havia numerosos brancos classificados nas listas de população como “vadios ou mendigos”, incapazes de levar uma vida sedentária nas povoações e de aí constituírem família. Em Goiás uma grande parcela da população era formada por pessoas “sem profissão e sem emprego que vegetavam nos arrabaldes das cidades ou, sem rumo, nos caminhos, vivendo de esmolas ou de pequenos furtos, mas nunca de um trabalho fixo (PALACIN, 1994, p. 72)”. De acordo com este autor, o desemprego, a vadiagem e a pobreza durante o século XVIII alcançaram grandes proporções na Europa, Ásia e na América portuguesa. Para Laura de Mello e Souza (2004, p. 163), o grande fantasma que perseguiu as autoridades metropolitanas foi à falta de laços familiares da população no Brasil colonial. No contexto da mineração, os elementos que se dirigiram para Goiás eram solteiros e desenraizados, e muitos se ressentiram da falta de mulheres brancas. Aos poucos foram formando famílias ilegais, à margem do vínculo do matrimônio. Contra a difusão do concubinato, a igreja combateu por meio de uma diversificada documentação, procurando colocar em prática as resoluções do Concilio de Trento. No entanto, entre prática e discurso parece que os ideais andaram distantes, Mattos (1975) e Saint-Hilaire (1975) apontam o desinteresse dos mineradores portugueses na formação de famílias com índias e negras. Veja-se o depoimento de Saint-Hilaire: Os primeiros aventureiros que se embrenharam nesses sertões traziam consigo unicamente mulheres negras, às quais o seu orgulho não permitia que se unissem pelo casamento. A mesma razão impediu-os de desposarem as índias. Em conseqüência, tinham apenas amantes. (1975, p. 53) apenas 1,0% de crianças expostas, ou seja, filhos de país incógnitos. Em alguns anos os números dos bastardos atingiram uma porcentagem muito alta na referida paróquia: em 1768 dos 90 inocentes batizados 80% eram ilegítimos, em 1773 foram batizadas 58 crianças, dessas 87,9% eram ilegítimas. CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 32 Mas o desinteresse pela constituição de família, baseada no matrimonio não era somente questão de aventureiros e da população pobre. Conforme, historiografia goiana o mau exemplo partia dos governadores e dos capitães generais que chegavam a Vila Boa sem suas esposas. No entanto, havia interesses ligados à questão econômica por parte da Coroa portuguesa em relação ao casamento da população. Em Minas Gerais no final do período minerador, chegou haver sugestões para premiar os casados e punir os opositores do matrimônio. Acreditavam que o desinteresse pelo casamento prejudicava a repartição das heranças, pois os bens não se transmitiam de pai para filho. Uma segunda questão ligada ao casamento e de grande preocupação das autoridades coloniais era o povoamento do Brasil. Neste sentido os homens e mulheres casados poderiam dar uma grande contribuição à medida que gerassem filhos e fortalecessem os laços de família (SOUZA, 2004, p. 165). Houve por parte da Coroa várias tentativas para fortalecer os enlaces matrimonias cujo objetivo era o povoamento do Brasil e o abastecimento do reino com as riquezas minerais. Neste contexto surgiram leis que proibiam a volta de mulheres para o reino, ingresso na vida religiosa e incentivo dos casamentos com os indígenas. Contudo, havia uma proibição para não colocar nos filhos os nomes indígenas. 1.1.2. A MIGRAÇÃO DOS PAULISTAS No fim do século XVII, o território de Goiás era suficientemente conhecido, tanto em São Paulo como em Belém. Os caminhos de penetração se achavam descritos nos roteiros que corriam de mão em mão, e os rumores sobre suas riquezas auríferas avolumavam-se, apesar do limitado êxitos das bandeiras neste aspecto. Mas foi a bandeira que deu impulso à migração de paulistas, mineiros e portugueses nos primórdios do século XVIII. Conforme Maria Luiza Marcílio (1973), por volta da segunda metade deste mesmo século, os paulistas que haviam se deslocado para a região de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 33 começaram a retomar para a Capitania e para a cidade de São Paulo. De acordo com Afonso Taunay (1850), marcaram muito a vida desta tripulação nos sertões as constantes guerras de genocídio contra o indígena. Entre os vários fatos o referido autor cita um episódio em 1740: Acabavam os moradores do Bonfim de ter em sua vizinhança, a quatro léguas de Vila Boa, uma algazarra terrível de índios que não se sabia se seriam caiapós ou bororós. Dizia o conde d’Alva que haviam vindo “insultar aos roceiros daquelas paragens em suas próprias casas, matando-lhes suas mulheres, filhos, e escravos, e também cavalos, porcos e mais criações, além de lhes queimarem as casas e tulhas.(TAUNAY, 1850, p. 210). Além dos conflitos e guerras com os indígenas, os portugueses e paulistas encontravam no sertão os ataques fulminantes dos quilombos. Para Glória Kok (2004, p. 47), a bandeira do Mestre de Campo, Inácio Correia Pamplona, que perambulou pelo sertão de Goiás em 1769 era formada por escravos, um cirurgião e um grupo de oito músicos com violas, rebecas, trompas e flautas travessas. Conflitos entre aventureiros, indígenas e negros quilombolas foram permanentes durante todo o período de ocupação do território goiano. Quando os grupos não estavam em guerra havia entre eles atritos, medo e desconfiança. Neste contexto de guerra entre o homem branco e as populações nativas, a família coesa era de suma importância para vencer os desafios do cotidiano. Neste sentido, expressava Alcântara Machado: Que vale sozinho, o individuo, num ambiente em que a força desabusada constitui a lei suprema? Agredido, perseguido, oprimido, como há ele de contar, no deserto que o insula, com a proteção do poder público, proteção que, mesmo nos vilarejos policiados da colônia, é duvidosa? E como esperar auxílio de estranhos, se deles está separado materialmente por léguas e léguas de sertão ou moralmente distanciados por dissídios e rivalidades? Para não sucumbir, tem de congregar-se aos que lhe são vizinhos pelo interesse e pelo sangue. É o instinto de conservação que solidariza a parentela. (1972, p. 151) Os arranjos de família foram fundamentais na luta pela sobrevivência nos territórios distantes dos grandes centros em que a urbanização já havia vencido as CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 34 adversidades e as incertezas da vida no sertão. Seja qual for a organização da vida em família, ela foi de capital importância no processo de povoamento na América Portuguesa. De meados do século XVII, tem-se o exemplo do paulista Pedro Vaz de Barros, o Guaçu de alcunha, que nunca foi casado, mas teve filhos bastardos de nove mulheres índias (KOK, 2004, p. 65). No caso especifico de São Paulo, a composição da população mestiça, até meados dos séculos XVIII, era basicamente de descendente de índios e brancos em virtude da presença tardia dos escravos africanos na região. É claro que esta situação contrariava as orientações da igreja que sempre combateu o concubinato e a prole de crianças ilegítimas. Até mesmo, a Coroa portuguesa chegou estimular o casamento interétnico e combater a poligamia vigente na Colônia. Na Capitania de Goiás encontra-se, a partir da primeira metade do século XVIII, a presença de vários ramos paulistas em busca do ouro e da fortuna, conforme nos informa a Nobiliarquia Paulistana. Vários paulistas partiram com a família para as novas minas, como Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1980, p. 19) o fizera, mas a maioria dos mineiros brancos, compostos de celibatários, mantinha relações irregulares com negras, e índias, uniões que o espírito da casta não lhes permitia legalizarem. Entretanto, “os registros de batizados de Meia Ponte apontam numerosos casais legalmente constituídos em 1732 (PALACIN, 1994, p. 79)”. É desnecessário ressaltar o papel desempenhado por João Leite Ortiz e Bartolomeu Paes de Abreu no processo de descoberta e povoamento de Goiás. A partir deles ocorreu a grande onda migratória de famílias paulistas para a Capitania. A vinda de Leonor Corea de Abreu, Irmã de Bartolomeu, com vários filhos e netos confirma a nossa afirmação. Casada com José Dias da Silva, este último era sobrinho do povoador de Santa Catarina, Francisco Dias Velho, e procedia das mais velhas linhagens de S. Paulo. Dos filhos deste casal que passaram às minas de Goiás, o primogênito Estevão Raposo da Silva nelas faleceu, com isso sua viúva Joana da Silva voltou para a terra natal, a Vila de Pindamonhangaba (TAUNAY, 1850, p. 270). Outros membros da mesma família, descendente de Teresa Corrêa da Silva Leite, irmãos de Inácio Dias Paes, também se estabeleceram em Vila Boa. Ainda outra filha de Leonor de Abreu e João Dias da Silva, Maria Leite da Silva, CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 35 passou-se a Goiás com o marido José Álvares fidalgo, português, antigo republicano de São Paulo. Deste casal, númerosos filhos se radicaram em Goiás, como Quitéria Felizarda Leite, casada com o Dr. Francisco Ângelo Xavier de Aguirre, paulistano, que, depois de receber o grau de mestre em artes, teve por letras apostólicas o de doutor em Teologia e Direito canônico e civil. Era homem de relevo intelectual que depois de enviuvar, recebeu ordens sacras e acabou vigário de Paraty e Guaratinguetá, onde morreu em 1784, deixando vários filhos em Goiás (TAUNAY, 1850, p. 272). Vários emigrados de destaque saíram de São Paulo para as terras goianas. Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1980) chama atenção para a família de Domingos da Silva Bueno e seu irmão Manuel de Carvalho da Silva Bueno. Eram ambos os filhos do primeiro Domingos da Silva Bueno, mestre de Campo, cujo nome figura com grande brilho nos primeiros anos da história de Minas Gerais. Passou o segundo Domingos, que era homem de fortuna, a lavrar em Crixás. Dos seus parentes mais ou menos próximos, Taques Pompeu cita o linhagista Paulo Carlos da França, casado com sua prima Escolástica do Amaral, que se fixou nas Minas do Maranhão; Maria Leite de Proença, casada com Brás Lopes de Miranda, mineradores em Meia Ponte; João Pires de Almeida, filho de Francisco de Almeida Lara, um dos mais importantes mineiros de Paracatu e homem muito áspero com os filhos e escravos (LEME, 1980a, p. 202). Outra família que se destacou em Goiás foi os Campos. Felipe Cordeiro de Campos, paraibano que figurou entre os primeiros povoadores, vindo ficar muito abastado com as minas do Ferreiro. Contudo acabou pobre, viúvo e sem filhos. Procurou com resignação servir a Nossa Senhora da Luz tomando o hábito de ermitão. Assim voltou a São Paulo e procurou dedicar sua vida, no mosteiro da luz. Entrou em obras, cercando de muros o sitio, fazendo casa para romeiros e hortaliças (LEME, 1980a, p. 243). Entre os Lemes emigrados às lavras goianas, Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1980a) cita Francisca de Godói, neta de Francisca da Silva, cujo marido era o paulistano Francisco Rodrigues Pimentel. Domingos Jorge da Silva, familiar do Santo Ofício, filho do sertanista Salvador Jorge Velho, opulento vassalo que em 1711 guarnecera Santos, ameaçado pelos Franceses veio a falecer no sertão do Rio Pardo na estrada de Goiás. Ainda entre os Lemes, cita-se um nome de maior CAPÍTULO I – MIGRAÇÃO E FAMÍLIA 36 destaque: o de Antonio Ferraz de Araújo, sobrinho de Fernão Dias Paes e marido de Maria Pires Bueno, irmã do Anhanguera. De seus noves filhos, todos naturais de Parnaíba nenhum se fixou em Goiás. Fato interessante ocorreu com o sertanista Francisco Tavares Cabral, da família dos Lemes, homem prestigioso e de muita fortuna. Era muito gastador, mas ao mesmo tempo protetor da capela de Santana. Fazia com que a padroeira fosse aplaudida com grandeza, não só no recinto da igreja, mas também nos festejos de comédia e banquetes que executavam com toda abundância de iguaria. Para estas festividades convidava “os de primeira nobreza das vilas de Santos e São Vicente”. Uma de suas filhas, Francisca Xavier Tavares, casou-se com Francisco Xavier Pizarro, da família do conquistador do Peru. Partiu para as minas de Goiás no principio de sua grandeza, estabelecendo-se no Ferreiro com numerosa escravatura. Com a queda da produção de ouro deste arraial passou para as Minas do Pilar. Vendo o pai em má situação financeira e com idade avançada o induziu a sair de Santos para Goiás com todos os treze filhos. O pai morreu no caminho, mas toda família transmigrou com as noticias do eldorado goiano. Bento Tavares Cabral, estudante de gramática latina com destino ao estudo sacerdotal, abandonou tudo para acompanhar a família.