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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CÂMPUS DE MARÍLIA AS PRÁTICAS MORAIS EM UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA Um estudo do ambiente sociomoral Priscila Ferreira Mazzini MARÍLIA 2018 PRISCILA FERREIRA MAZZINI AS PRÁTICAS MORAIS EM UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA Um estudo do ambiente sociomoral Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação: área de Psicologia da Educação: Processos Educativos e Desenvolvimento humano, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE, sob a orientação da Profª. Drª Patricia Unger Raphael Bataglia. MARÍLIA 2018 Mazzini, Priscila Ferreira. M477p As práticas morais em uma escola democrática: um estudo do ambiente sociomoral / Priscila Ferreira Mazzini. – Marília, 2018. 123 f. ; 30 cm. Orientadora: Patricia Unger Raphael Bataglia. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, 2018. Bibliografia: f. 113-118 1. Educação. 2. Autodeterminação (Educação). 3. Desenvolvimento moral. 4. Escolas – Organização e administração. 5. Gestão democrática. I. Título. CDD 371.2 Ficha catalográfica elaborada por André Sávio Craveiro Bueno Bibliotecário CRB 8/8211 PRISCILA FERREIRA MAZZINI AS PRÁTICAS MORAIS EM UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA Um estudo do ambiente sociomoral Dissertação apresentada à faculdade de filosofia e ciências UNESP-MARÍLIA DATA__/__/__ NOTA_____ BANCA EXAMINADORA: _______________________________________ Prof.ª Dra. Patrícia Unger Raphael Bataglia _______________________________________ Prof.ª Dra. Alessandra de Morais Shimizu _______________________________________ Prof.ª Dra. Rita Melissa Lepre MARÍLIA 2018 Dedico esta dissertação a Aquele que tem me amado todos os dias e que sempre me constrange com tanta alegria e vida Agradecimentos Esta pesquisa só foi possível de ser realizada graças à colaboração e ao apoio de diversas pessoas e instituições. A todos que participaram direta ou indiretamente no desenvolvimento desta, meus sinceros agradecimentos: • A Deus, por me dar força e capacidade para superar dificuldades e demonstrar que os sonhos são possíveis; • À Profª. Drª. Patricia Unger Raphael Bataglia, por acreditar em mim e na relevância da minha pesquisa, por ser um exemplo de profissional e me mostrar o caminho acadêmico e científico; • À minha família e amigos, por todo o apoio, paciência e confiança; • À instituição na qual foi desenvolvida esta pesquisa, que participou diretamente deste trabalho e abriu as portas para muitas possibilidades de pensar sobre educação e sobre as práticas morais; • À Universidade Estadual Paulista, que proporcionou momentos ricos em construções de aprendizagem e possibilitou o contato com pesquisas e pesquisadores; • Aos professores do Mestrado, pelo convívio e aprendizado. RESUMO O tema do trabalho refere-se às práticas morais em uma escola democrática; com este estudo, objetivou-se investigar a relação entre as práticas morais e consciência do educador sobre suas práticas de modo a conduzir à autonomia no ambiente escolar. Especificamente, analisar as práticas adotadas pelos professores de uma escola com práticas democráticas, onde o desenvolvimento do trabalho se dá de uma maneira bastante diferente das escolas tradicionais, permitiu observar que a escola democrática favorece relações de cooperação, diálogo e respeito mútuo, que são base para a construção da autonomia. Os referenciais teóricos usados neste trabalho são Jean Piaget e Jose Maria Puig. Realizou-se uma pesquisa de campo com delineamento de estudo de caso, com uma abordagem de análise qualitativa. A escola foi escolhida intencionalmente, pois se trata de uma instituição pública que apresenta proposta educacional conduzida a partir de práticas democráticas, paralelas àquelas que encontramos em escolas tradicionais. Participaram da pesquisa 10 professores do ciclo II do ensino fundamental, com os quais utilizamos uma entrevista acerca de três eixos temáticos: características do professor, desenvolvimento do trabalho e escola. Pudemos, a partir disto, analisar suas concepções de práticas, escola e educação. Contamos ainda com entrevista com a diretora e observações do cotidiano escolar para conseguir informações que não foram alcançadas nas entrevistas, e pudemos perceber uma concordância da prática com o discurso dos professores. Identificamos uma consciência dos professores sobre a importância de uma escola que seja diferente da escola tradicional, visto que em suas falas, eles apresentaram um olhar voltado à necessidade do desenvolvimento do sujeito como um ser integral, evidenciando uma escola para além de conteúdos curriculares. PALAVRAS-CHAVE: práticas morais; escola democrática; desenvolvimento moral; construção da autonomia, tomada de consciência do professor, ambiente sociomoral. ABSTRACT The subject of the work refers to the moral practices in a democratic school; with this study, the objective was to investigate the relationship between moral practices and the educator's conscience about their practices in order to lead to autonomy in the school environment. Specifically, analyzing the practices adopted by the teachers of a school with democratic practices, where the development of work occurs in a very different way from traditional schools, allowed to observe that the democratic school favors relations of cooperation, dialogue and mutual respect, which are base for the construction of autonomy. The theoretical references used in this work are Jean Piaget and Jose Maria Puig. A field study with a case study design was carried out with a qualitative analysis approach. The school was chosen intentionally, because it is a public institution that presents an educational proposal based on democratic practices, parallel to those found in traditional schools. Ten teachers from cycle II of elementary school participated in the research, with which we used an interview about three thematic axes: teacher characteristics, work development and school. We could, from this, analyze their conceptions of practices, school and education. We also had an interview with the director and observations of the school daily to obtain information that was not reached in the interviews, and we could see a concordance of the practice with the teachers' discourse. We identified a teacher consciousness about the importance of a school that is different from traditional school, since in their speech they presented a view focused on the need of the development of the subject as an integral being, showing a school beyond curricular contents. KEY WORDS: moral practices; democratic school; moral development; autonomy construction, teacher awareness, sociomoral environment. SUMÁRIO Introdução _________________________________________________________ 1 1. Desenvolvimento Moral: Interação social e construção da autonomia ______ 6 1.1 A Tomadade Consciência- ação e conscientização_______________________ 20 2. Práticas Morais e sua importância no trabalho pedagógico________________ 30 2.1 Pesquisas empíricas sobre Práticas Morais ______________________________ 43 3. Escolas Democráticas ______________________________________________ 46 4. Metodologia ______________________________________________________ 57 4.1. Caracterização do local da Pesquisa____________________________________ 61 4.2. Instrumentos e estratégias de coleta de Dados- Participantes da pesquisa ______ 65 4.3. Aspectos Éticos ___________________________________________________ 68 5. Análise e Discussão: Entrevista Observação e Análise Categorial___________ 69 5.2 Primeiro eixo temático – Características dos professores ___________________ 69 5.2 Segundo eixo- temático- O Desenvolvimento do Trabalho __________________ 76 5.3 Terceiro eixo-temático- A escola ______________________________ 85 6. Análise das práticas dos professores __________________________________ 94 6.1 Entrevista com a Diretora __________________________________________ 103 Considerações finais __________________________________________________ 109 Referências _________________________________________________________ 113 Anexo II- Termo de consentimento livre e esclarecido _______________________ 119 Anexo III- Roteiro de entrevista-professores _______________________________ 121 Anexo IV- Roteiro de entrevista-diretor ___________________________________ 122 Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado, só pode ser encorajado. (ALVES, 2004, p.127). 1 Introdução Neste estudo são abordadas questões referentes ao papel da escola e do professor com relação ao desenvolvimento moral dos estudantes. Partimos da premissa de que à escola cabe o papel de mediação entre dos conhecimentos científicos e sociais e o aluno, mas, também, o dever de promover a construção da autonomia de seus estudantes. Dessa maneira, eles podem ser capazes de levar em consideração o outro e de construir nas relações de cooperação, pautadas na justiça e respeito mútuo, uma reflexão ética e valores universalizáveis. O interesse pelo tema surgiu a partir dos estudos realizados na graduação, quando desenvolvemos uma pesquisa de iniciação científica sobre as práticas morais que os professores utilizavam para proporcionar meios de desenvolvimento da autonomia em uma escola tradicional. Como resultado desse trabalho, em As práticas morais e a construção da Autonomia - um estudo com professores e alunos de Ensino Fundamental (MAZZINI, 2015) mostramos que o ambiente escolar pode ser um local que trabalha com o desenvolvimento da moralidade. Observamos nessa amostra que a postura do professor desde seu entendimento sobre o que é educar até a motivação que sente no seu trabalho influencia grandemente nas práticas morais que realiza ou não e consequentemente no desenvolvimento das crianças. Comparamos três professores que coincidentemente apresentavam posturas muito diferentes uns dos outros. A primeira professora, pouco motivada e trabalhando com estratégias bastante tradicionais; a professora do segundo ano, com boa vontade e disposição para a realização de um trabalho inovador, ainda que com dificuldades em função talvez de necessidade de formação continuada e, por fim, o professor do terceiro ano, que aliava a disposição e a motivação a formas criativas de resolução dos problemas. Na sequência, iniciamos uma investigação visando à elaboração de um levantamento das escolas que tinham uma visão diferente da tradicional e à análise do Projeto Político Pedagógico de uma escola democrática para compará-la com uma tradicional no que diz respeito à construção de autonomia e práticas morais. Como resultado, elaboramos um Trabalho de Conclusão de Curso intitulado A construção da autonomia e as práticas morais na escola: um olhar sobre os projetos político- pedagógicos (MAZZINI, 2015). A escola pública e democrática analisada no trabalho 2 de conclusão de curso foi escolhida agora, como objeto de nossos estudos relacionando a consciência dos professores a respeito das práticas morais que empregam. A escola democrática é uma proposta inovadora, ainda que não tão nova, já que nasceu do movimento escolanovista e resulta na transformação da escola em um ambiente de interações de qualidade. Contudo, ressaltamos aqui que, apesar de colocarmos no título escola democrática, entendemos que a escola em questão pode ser considerada uma instituição com práticas democráticas, visto que para ser considerada com escola democrática, ela precisa atender alguns requisitos que esta escola ainda não contempla por completo. Ressaltamos ainda que, a própria palavra democracia é algo difícil de definir, da mesma forma distinguir, por isso, optamos por caracterizá-la como escola com práticas democráticas. No que se refere ao arcabouço teórico da pesquisa, estudamos algumas das obras de Piaget, tais como O juízo moral na criança (1932/1994), A formação do símbolo na criança (1945/1990), A tomada de consciência (1977), Os procedimentos de educação moral (1996); e as de autores atuais no campo da educação moral sobre o desenvolvimento do juízo moral, a construção da autonomia e práticas morais. Ainda que Piaget não tivesse objetivos educacionais com o seu livro O juízo moral na criança, suas contribuições para a educação moral possibilitaram reflexões acerca dessas questões dentro do ambiente escolar. Alguns autores, como Mantovani de Assis (1989), Tognetta (2007), La Taille (2009), Menin (1996) e DeVries (1998) e Vinha (2009) tiveram como base o juízo moral na criança para desenvolver pesquisas que visam à educação como meio de construir autonomia, valores morais e desenvolvimento moral. Com tais pesquisas, a educação moral passou a ser defendida de forma a serem necessárias práticas que possibilitem a sua efetivação. As práticas morais, segundo Puig (1994), são ações cooperativas e reflexivas de forma analítica e rotinizada que possibilitam transformações e evoluções dessas ações, que mudam a forma de pensar dos participantes e estabelecem um novo rumo às tradições, valores morais e éticos e que podem ser analisadas como viabilizadoras do desenvolvimento moral. Portanto, acreditamos que o maior desafio seja conciliá-las com os conteúdos curriculares, haja vista a necessidade de uma educação com o objetivo de construir autonomia e conhecimentos. A defesa da necessidade de uma formação crítico-reflexiva, de métodos para o desenvolvimento amplo dos educandos e a importância da atuação dos educadores 3 como indispensáveis para os resultados dos trabalhos pedagógicos são sopesados por muito pesquisadores, como Libâneo (2006), Zeichner (1993) e Magnani (2000). O fato de o educador pensar sobre suas práticas, permite a ele proporcionar aos estudantes que eles também pensem sobre si, construindo passo a passo, no ritmo de cada um, suas próprias experiências e conhecimentos. Freire (1992) apresenta o professor como mediador do processo ensino-aprendizagem, com o objetivo de construir uma consciência críticaacerca da realidade social. Um dos problemas educacionais pode ser traduzido na possibilidade que tem de fazer com que a escola favoreça a autonomia e a criticidade. Todavia, a equipe escolar algumas vezes não tem a consciência da importância dessas questões, e não toma para si a responsabilidade de propiciar momentos que impulsionem essa construção. Como consequência, podemos considerar que eles pouco farão para que a autonomia se efetive. Existem muitas possibilidades e ambientes que o sujeito entra em contato em toda a sua vida que irão contribuir para o desenvolvimento deste, tais como como a família, a escola, a igreja. Entretanto, os sujeitos passam longos anos de suas vidas na escola, e se essa não oferece um ambiente adequado à construção da autonomia, haverá sem dúvida uma defasagem em sua consecução. O processo de construção da autonomia dentro do ambiente escolar exigirá a reflexão sobre a função da educação e sobre as práticas que os professores lançam mão, pois entendemos que os mecanismos favorecedores do desenvolvimento moral não se estabelecem ou não se consolidam de forma isolada. Pelo contrário, eles vinculam-se a escolhas e a tomada de decisões, tendo em vista as influências de todo o planejamento de atividades que irão envolver os educandos e suas capacidades de tornarem-se autônomos, confrontando-os em suas interações. Nesse sentido, faz-se necessário entender como se organizam as práticas dos professores, qual a consciência que têm de tais práticas, a importância da escola, da postura do professor frente ao desenvolvimento moral dos educandos e as relações entre autonomia discente e autoridade docente. A responsabilidade ética, política e profissional do educador lhe coloca em situação de dever sobre suas práticas, com o que nota-se a importância de discernimento a respeito do planejamento das práticas que serão vivenciadas no âmbito escolar, para cumprir de fato os objetivos educacionais, sendo um deles, a formação do sujeito crítico-reflexivo. 4 Tendo isso em mente, formulamos nossa questão de pesquisa como segue: Qual a consciência que os professores têm a respeito de uma prática pedagógica no que se refere à importância de uma práxis que possibilite a construção da autonomia moral? No sentido que entendemos por práxis, a consideramos como toda a ação pedagógica fundamentada por uma teoria e refletida de forma a executar, cumprir, realizar atos intencionais para se chegar a uma experiência vivida de contemplação reflexiva. O termo práxis deriva de Práttein, que é o infinitivo do verbo grego para designar ação, atividade, realização. Em “Aristóteles trata-se de uma ação na qual o agente, o ato e o resultado da ação são inseparáveis, como partes que existem somente em conjunto.” (TELLES, 2005). Assim, como objetivo principal deste trabalho, estabelecemos, portanto, identificar a consciência que os educadores têm sobre as práticas morais que utilizam no ambiente escolar para que a autonomia se efetive. Os objetivos secundários são: 1) Caracterizar a escola escolhida identificando quais as práticas ou princípios que a fazem democrática; 2) Identificar, descrever e analisar as práticas morais presentes no dia-a-dia; 3) Identificar como as práticas morais definidas por Puig aparecem nas concepções dos professores; 4) Analisar o ambiente da escola democrática em relação às práticas morais. Ao iniciarmos os estudos, pretendemos com a pesquisa que resultou nesta dissertação evidenciar a importância que a prática do professor tem dentro do ambiente escolar e, principalmente, para o desenvolvimento de atividades que visem à moral autônoma. Desta forma, o presente estudo organizou-se da seguinte forma: além dessa introdução, há um capítulo que contém revisão da literatura sobre desenvolvimento moral e autonomia, práticas morais e sua importância na escola juntamente com os valores morais, um capítulo sobre a metodologia, os dados coletados na escola e a análise dos mesmos, as considerações finais e as referências bibliográficas. Acreditamos que as questões aqui abordadas contribuirão para a conscientização da importância do trabalho dos educadores para a construção da autonomia, e proporcionarão debates acerca dos desafios de se trabalhar conteúdos morais na escola. 5 Por fim, ainda colaborarão para a busca de possíveis caminhos para que a formação moral ocorra por meio das práticas morais no cotidiano escolar. Anseia-se que este estudo seja um avanço em direção a uma escola de qualidade que objetiva o desenvolvimento do potencial cognitivo, afetivo, moral e social de seus estudantes, uma escola que vise práticas diferentes das vistas tradicionalmente que possam possibilitar uma formação para cidadania, ética e autonomia de sujeitos que buscam uma sociedade mais igualitária e justa. 6 1. DESENVOLIMENTO MORAL: Interação social e construção da autonomia As ações e relações do homem com o mundo podem nos ajudar a conceituar moral, pois ela se refere à consciência sobre como devemos agir. A moral associa-se a questionamentos acerca dos juízos sobre as ações dos outros e as próprias. Ao defrontar-se com regras de juízos que pressupõem um sujeito com consciência moral, apto ao entendimento do que é certo ou é errado, a moralidade passa a ser assunto da sociologia, filosofia e psicologia (ANDRADE, 2003). Em relação à moral, Piaget (1932/1994, p. 23) a define como “um sistema de regras” e ressalta que “a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras”. Sabe-se então que a moral pode ser entendida como um conjunto de regras obtidas na cultura, tradição ou educação que orienta o comportamento do sujeito, visto que sua essência deve ser investigada no respeito que ele demonstra por ela. Após estudar o desenvolvimento moral, Piaget descreve em linhas gerais o pensamento infantil sobre situações morais que envolveram o roubo, a mentira e a justiça. Por meio desse estudo, conseguimos compreender que de fato existem duas morais, uma que é exterior ao sujeito, heteronomia, e outra que é orientada pela reflexão das ações e juízos, a autonomia. Assim, nota-se a importância de entender cada uma delas, mas também a necessidade de conceituá-las. O estudo da moral trazido por Piaget nos permite entender os comportamentos dos sujeitos, a partir de uma perspectiva construtivista. Para Kant (1785/1994) a moral equivale a um dever interno: o sujeito se sente moralmente compelido a respeitar regras que lhe são próprias. Segundo ele, a moral seria então a ação boa por dever, e seus princípios são a possibilidade de universalizar as máximas das ações. Ele adverte que, o respeito às regras é o cerne da moral, desta forma, é o que a ciência deve explicar. (LA TAILLE, 2010). Essas regras constituídas pela moral governam a conduta humana e estão relacionadas a valores instituídos coletivamente por meio da consciência de que há a necessidade de distinguir as coisas boas (cooperação, justiça, solidariedade) das ruins (preconceito, violência, roubo), com o objetivo de buscar o bem-estar comum. Toledo (2003) propõe que há uma diferença entre a moral e a obediência inconsciente das regras. Baseando-se em Hegel, Toledo (2003) afirma que a moralidade 7 se relaciona à liberdade em fazer o que é certo pela própria vontade ou consciência. Para ele, a moral está atrelada à vontade consciente de agir buscando o bem de si e do outro. Na idade média e nos períodos anteriores a ela, a conduta moral era diretamente ligada a Deus e a seus dogmas, mas a busca do homem por legitimar sua vontade de viver segundo sua consciência, fez com que os sujeitos buscassem meios que regessem suas condutas morais e, por meio dos valores, tradiçõese cultura, a moral foi se estabelecendo, porém sem uma definição, nem tão pouco um estudo científico sobre ela (GOERGEN, 2005). No início do século XX, Lévy Bruhl, filósofo e sociólogo francês, propôs que a moral fosse estudada como tema de investigação científica para que fosse possível analisá-la e chegar a um conceito sobre o que e fato de fato é moral, o que a rege, e como chegamos à moralidade. Os estudiosos de psicologia e comportamento humano, como Freud, Skinner e Piaget começaram a se dedicar a pensar sobre moral à luz de suas respectivas correntes teóricas. Sabemos que a moral não é um tema exclusivo da psicanálise, nem do construtivismo piagetiano, tão pouco do behaviorismo, contudo, os estudos de Piaget foram base para grandes teorias, como de Lawrence Kohlberg, que estudou sobre educação e desenvolvimento moral (LA TAILLE, 2010). Assim como os escritos de Piaget sobre epistemologia genética deram base para muitas pesquisas acerca da moral e do desenvolvimento cognitivo, esta será também a base para este estudo, principalmente o livro O juízo moral na criança e suas ramificações posteriores a Piaget, pois ela tem gerado debates, reflexões e práticas pedagógicas, que buscam uma ampliação do desenvolvimento acerca da moralidade humana. A psicologia propõe aliar os motivos conscientes, dos quais a filosofia se propôs a estudar, com as motivações inconscientes que levam o sujeito a agir, de forma favorável a acordos mútuos. Para a psicologia, a moral pressupõe uma ação do sujeito que inclui a reflexão, emissão de juízos, e a consideração por princípios como justiça e solidariedade por exemplo. Além disso, pressupõe também a cooperação. Em seus estudos, Piaget percebe nos jogos de regras, um meio propício à análise da moral e as dimensões de seu desenvolvimento. Ressalta que dentro da moral, podemos identificar três comportamentos: os sentimentos, as ações e os juízos. Não se dedicou a investigar a ação, pois, para ele, o sujeito poderia agir de uma forma sem que aquilo condissesse com o que ele de fato pensava. Levantou ainda a ideia de que o pensamento verbal estaria atrasado em relação ao pensamento moral, visto que o 8 segundo é o que o sujeito de fato considera em uma situação de conflito real. Então, se dedicou a investigar o juízo moral, como os sujeitos pensam e julgam as situações morais e as regras que lhes são impostas, ou seja, a consciência moral, Para Piaget (1932/1994), a moral está intimamente ligada com o respeito pelas regras. Relaciona as regras com a prática e a consciência da mesma. Ele aborda a prática das regras como a forma de reproduzi-las, sem que haja necessidade de internalizá-las ou refletir sobre elas. Já a consciência é abordada por ele como uma reflexão, a forma como os sujeitos pensam a obrigatoriedade ou não de uma regra. Na consciência, o sujeito tem capacidade de elaborar novas regras e repensar as já existentes de acordo com a necessidade da sociedade a qual ela está sendo utilizada. “Sua preocupação foi a de descobrir o desenvolvimento do respeito às regras, ou o modo como à consciência se obriga a respeitá-las.” (SOUZA; VASCONCELOS, 2009, p.344). Segundo Piaget, o sujeito em seu desenvolvimento moral parte de um estado de anomia, no qual há ausência de conhecimento de regras. Gradativamente, vai entrando em contato com regras externas a ele, que são seguidas por coação ou obediência ao mais velho; esse é o momento em que há o predomínio de uma tendência heterônoma. Caminha paulatinamente para a possibilidade de consciência das regras, situação na qual o sujeito é capaz de seguir regras nas quais acredite, esse é o predomínio da tendência autônoma. É importante ressaltar que ao falar de moral, Piaget não se refere a estágios como se refere no desenvolvimento cognitivo, mas sobre tendências morais que coexistem ao longo da vida do sujeito. Essa distinção pretende esclarecer que é possível encontrar noções de autonomia em uma criança que seria predominantemente heterônoma e também encontrar noções de heteronomia em sujeitos predominantemente autônomos. Na fase que corresponde à heteronomia, a qual aparece nos primeiros anos de vida, notamos o egocentrismo, que é a incapacidade de descentrar-se do seu pensamento e colocar-se no ponto de vista do outro. Nesse período, as regras são exteriores ao sujeito, pois elas decorrem de uma obrigatoriedade, e não de um pensamento reflexivo, são advindas de autoridades, ou seja, ele estará sujeito à vontade de terceiros. Conforme a criança vai se desenvolvendo, assimilando e acomodando novas regras e vivências, e passa a interagir com outras crianças, ela começa a perceber o outro, ou seja, a partir de uma vida social, em que inicialmente está inserida inconscientemente, ela passa a perceber, por meio das relações, a existência de perspectivas diferentes da sua. Com a percepção do outro, há então a necessidade de 9 reciprocidade no cumprimento das regras, isso já se configura como o início de uma cooperação nascente, a qual se nota o começo de uma interiorização das regras como bem comum. As relações de coação nos fazem refletir sobre a necessidade de outro tipo de relação que irá permitir a construção da autonomia. Essas relações se distinguem pois a relação de coação irá levar o sujeito ao respeito unilateral e que a relação de cooperação proporcionará meios para que o respeito mútuo se desenvolva. Nas relações de cooperação o sujeito passa a distinguir seu eu do pensamento do outro, respeitando assim as diversas posições e opiniões. A cooperação precisa ser praticada, ainda que inicialmente não seja de forma consciente, pois é a partir das relações de cooperação que será possível ao sujeito construir a consciência das regras, e refletir criticamente sobre a importância delas. A consciência nos leva a entender a regra como algo necessário para uma vivência em sociedade. Permite ao sujeito compreender a totalidade das regras e a importância de refletir sobre elas, alterando-as se necessário. Assim, podemos observar o modo com que ocorre o processo de interiorização das regras: no início mostra-se como exterior ao sujeito e sagrado; progressivamente ganha entendimento e expressão livre, desde que um consenso social se estabeleça. Por meio de observações, entrevistas clínicas e até mesmo fazendo uso de jogos de regras, Piaget constatou que existe uma inter-relação entre a prática e a consciência das regras e as duas morais, que seria a moral da coação, referente à heteronomia, e a cooperação, referente à autonomia. Segundo Piaget (1932/1994), a consciência moral pode evoluir da heteronomia para a autonomia. Para ele existe uma relação entre o desenvolvimento cognitivo e o desenvolvimento moral. Para que o sujeito tenha possibilidade de chegar ao patamar da autonomia, é necessário que se desenvolva cognitivamente também, pois para que isso ocorra é necessário que o sujeito ultrapasse o egocentrismo predominante na fase da heteronomia e dos primeiros estágios do desenvolvimento cognitivo. Contudo, ele ressalta que as relações morais irão proporcionar ao sujeito situações de interação cooperativa, solidária e justa, tornando-se instrumento para a capacitação da evolução cognitiva. A relação de coação corresponde ao respeito unilateral, que irá contribuir para a manutenção da heteronomia. Ela está ligada ao sentimento de obrigatoriedade em 10 respeito a leis advindas das autoridades. A necessidade do respeito vem como uma forma de pressão moral que não é construída em bases recíprocas e mútuas. Em contrapartida, a relação de cooperação, corresponde ao respeito mútuo, que irá contribuir para a construção da autonomia. A cooperação é relacionada com a moral autônoma, visto que a autonomia pressupõe relações de igualdade e de respeito mútuo, Piaget (1932/1994) ressalta que “a cooperaçãosó pode nascer entre iguais” (p. 58) e da “[...] prática da reciprocidade, portanto, da universalidade moral e da generosidade em sua relação com companheiros”. Segundo Camargo e Becker (2012), a [...] cooperação inicia sua manifestação com o princípio de igualdade, amparado na noção de justiça – a justiça, como um fator de igualitarismo, é a primeira manifestação da cooperação. Assim: “A adesão aos grupos e a cooperação se convertem em fatores de igualitarismo. A partir daí, a criança colocará a justiça acima da autoridade e a solidariedade acima da obediência” (PIAGET, 1930/1998, p. 31, apud CAMARGO BECKER, p.530, 2012). Portanto, a relação de cooperação é a superação da relação de coação. Os conceitos de coação e cooperação nos permitem analisar uma sociedade já estabelecida, com suas relações unilaterais muitas vezes se sobrepondo às relações mútuas. Inicialmente dizemos que a moral está relacionada com a cultura e a tradição de um determinado lugar. Desse modo, se a sociedade for coercitiva e valorize as posturas autoritárias, de respeito unilateral, acredita-se que a escola muitas vezes reproduzirá os padrões sociais. Dificilmente a escola conseguirá, por si só, ultrapassar essa realidade. Contudo, a educação poderá, sem dúvidas, ajudar a romper com as relações unilaterais que contribuem para que os sujeitos sejam heterônomos em suas relações e possam vivenciar, inicialmente dentro do ambiente escolar, mas depois na sociedade, relações de respeito mútuo e cooperação que irão contribuir para a construção da autonomia. A autonomia é a máxima da moral. Um sujeito moralmente autônomo é capaz de pensar criticamente, debater ideias, agir de acordo com os seus valores, mesmo que estes sejam opostos a uma imposição. Além disso, é capaz de agir conforme acordos mútuos e respeitá-los de forma consciente. Tem a consciência não apenas das regras, mas sabe a real necessidade delas e como aplicá-las em diversas situações. Para Piaget, autonomia seria a capacidade de os sujeitos elaborarem regras que respeitem e que se baseiem no princípio de justiça e nas relações de reciprocidade. 11 No ambiente escolar, a moral é possível de ser trabalhada nas relações entre os indivíduos e na formação que a escola pode proporcionar a eles. A educação deve permitir o desenvolvimento moral para formar sujeitos cooperativos, críticos, e que podem construir nas relações de reciprocidade sua autonomia e personalidade. Essas relações possibilitam o desenvolvimento de valores e conhecimentos. No nível da moral, as concepções de bem ou mal estão ligadas às vivências e às relações que os sujeitos têm dentro de uma determinada sociedade, ou seja, aquilo que os sujeitos pensam ser bom ou ruim vai estar sempre ligado a uma cultura vinda do contexto social ao qual estão inseridos. Por isso, uma educação moral que tem como objetivo desenvolver autonomia não deve se basear no moralismo e nas belas palavras, mas, sim, levar os sujeitos a vivenciarem situações na qual sua autonomia será inevitavelmente exigida. Não há dúvidas de que os estudos de Piaget veem contribuindo para a educação, pois eles nos ajudam a refletir não somente a educação, mas todo um contexto social. O processo de construção do conhecimento acontece por meio da interação entre o indivíduo e o meio, e por meio dessa relação é possível que as estruturas mentais evoluam. Desta forma, o centro do estudo do conhecimento é justamente essa interação, que se ocorre a partir de dois processos simultâneos: a organização interna e a adaptação ao meio. Vale enfatizar que esse processo é exercido pelo sujeito durante toda a vida. (SOEJIMA, 2008). Na medida em que o sujeito vai se desenvolvendo por meio das interações, ele tende a assimilar novas ideias e a organizá-las de maneira precisa com a finalidade de tornar o novo conhecimento comum às suas estruturas. Desse ponto de vista, “O desequilíbrio é fundamental, pois o sujeito tentará novamente o reequilíbrio, com a satisfação da necessidade daquilo que causou o desequilíbrio”. (SOEJIMA, 2008, p.40). Assim, a inteligência não aumenta por acréscimo, mas por reorganização. Desta forma, notamos que o desenvolvimento cognitivo, assim como o desenvolvimento moral, não sofre um acúmulo de conhecimento, isto é, o sujeito não aprende ou se desenvolve por conta de acúmulos de conhecimento, mas em razão do desequilíbrio gerado por um novo conhecimento. O processo de assimilação e de acomodação só é possível em virtude de um novo conhecimento apresentado ao sujeito, o que gerou nele uma necessidade de readaptar-se. Assim, o sujeito entra em contato com o novo conhecimento, assimila, suas estruturas exigem uma readaptação, acontece um desequilíbrio, para que assim elas 12 evoluam, ocorre a acomodação, processo em que as novas estruturas já conseguem dar conta do novo conhecimento. Ao discorrer sobre o desenvolvimento moral, é importante ressaltar que se tratando de moralidade, notam-se níveis de juízo moral mais elevados que outros. Isso implica entender também a existência de níveis de conhecimento que influenciam o processo de evolução (SOUSA, 2006). Piaget dedicou-se a entender como o sujeito constrói conhecimento, e o que ele pôde constatar é que o conhecimento não pode ser visto como algo pré-determinado, nem tampouco vem unicamente das experiências, mas é resultado de uma construção, pautada na interação que o indivíduo tem com o meio, físico e social. As relações que ele terá, irão determinar o seu desenvolvimento tanto cognitivo, quanto moral. Ao estudar o desenvolvimento moral por meio dos jogos de regras, Piaget (1932/1994) ressaltou a importância dos pares no processo de construção da autonomia. Segundo ele, as relações que as crianças têm com a autoridade, favorecem a heteronomia, pois estão pautadas na coação e no respeito unilateral, ou seja, a autoridade tem sempre maior voz e suas regras são indiscutíveis e sagradas. Já a relação com os pares possibilita a construção da autonomia, pois ela permite a cooperação que irá contribuir para a descentração – movimento contrário ao da centração, típica do egocentrismo vista na tendência heterônoma – e possibilitará que a criança seja capaz de colocar-se no lugar do outro. É na relação com pares que surgirão os sentimentos de reciprocidade e respeito mútuo, em que as vozes são ouvidas e respeitadas da mesma forma, característica indispensável para a autonomia (SOUSA, 2006). Os estudos de Piaget, e os pesquisadores que tiveram como base a teoria piagetiana para pensar o desenvolvimento moral, buscaram-se explicar “os processos que orientam a adopção de valores individuais nas diversas esferas da atividade humana” (SOUSA, 2006, p. 2). Desse modo se questionavam como o sujeito, que inicialmente é egocêntrico e incapaz de colocar-se no ponto de vista do outro, e que apenas pratica regras sem ao menos refletir sobre elas, passa a entender o pensamento do outro e a ter consciência das regras? Piaget afirmou que são as construções num processo de assimilação e acomodação acompanhadas de interações e vivências que possibilitam a interiorização de valores e de regras sociais, inicialmente exteriores ao sujeito. 13 As relações de coação não favorecem o desenvolvimento moral, pois se caracterizam por um controle externo que impede a autorregulação. A coação se constitui como reforço para a manutenção da heteronomia. Kamii e De Vries (1970) ressaltam que as regras exteriores ao sujeito só se interiorizarão quando, por meio das relações de igualdade, os sujeitos optem pela construção das regras em liberdade. Quando os sujeitos estão numa relação de cooperação, sentem uma necessidade de lealdade intrínseca, com objetivo de perpetuar o respeito mútuo. A autonomia é construída no decorrer das vivências, passandopor um processo gradual de interação do indivíduo com o meio. La Taille (2007, p.13) destaca que autonomia é um termo polissêmico e afirma: Para a moralidade, dois sentidos devem ser lembrados. O primeiro liga-se à questão de liberdade: é autônomo que goza de liberdade, seja porque suas ações não são decorrentes de uma forma de poder exterior ao sujeito, seja porque não é irremediavelmente determinado por forças internas sobre as quais a vontade não exerce influência alguma (grifo nosso). Neste sentido, autonomia interliga-se à consciência das ações e à consciência das regras, pois há capacidade e liberdade de escolha, e o sujeito autônomo pode decidir modificar as regras tidas como leis por meio do consentimento mútuo. Contudo, a liberdade absoluta não seria desejável, de modo que seria impossível no âmbito da infância, evitar a coação adulta para que assim as crianças pudessem conhecer e respeitar as regras inevitáveis (SOUSA, 2006). Nesse sentido, a autonomia moral seria a capacidade de autorregulação e de reflexão acerca das ações dos sujeitos. A definição de autonomia por Piaget (1932/1994) se aproxima do conceito de Paulo Freire (1975), quando esse autor se refere à condição de oprimido e do opressor. Uma vez que os sujeitos tomam consciência de suas condições, abrem espaço para um processo de reflexão e de análise crítica de suas próprias ações e relações. A capacidade dos sujeitos de construírem sua autonomia a partir das relações torna-se cada vez mais possível à medida que eles tomam consciência das suas ações e escolhas, e assim vão elaborando novos valores e posturas, sendo possível pensar uma sociedade mais humanizada e democrática (SOEJIMA, 2008). Ser autônomo é ter a capacidade de construir, de forma coletiva e cooperativa, sistema de regras necessárias à convivência em sociedade a partir do respeito mútuo. O sujeito se desenvolve rumo à autonomia a partir do processo de desenvolvimento de sua 14 autoconsciência. Nos primeiros anos de vida, a inteligência é estritamente motora e sua relação é egocêntrica; contudo, a partir da interação de qualidade, a dinâmica dos processos de assimilação e de acomodação das ações dos indivíduos no mundo em que vivem possibilita a evolução do pensamento, permitindo a reflexão e a tomada de consciência, por meio da qual se observam relações de cooperação e a construção da autonomia por parte do sujeito. A partir do momento em que as crianças passam a vivenciar as regras do convívio social, elas passam a perceber o outro; nesse ponto, progressivamente, o egocentrismo dá lugar ao pensamento coletivo, que pensa o outro e além de si. Então o processo de construção da autonomia se torna mais amplo e concreto, permitindo que o sujeito se autogoverne, e reflita sobre regras coletivamente estabelecidas. A eventual autogestão só é possível de fato para sujeitos autônomos mediante a cooperação e ao respeito mútuo. Ao analisar uma proposta pedagógica que tenha por intuito desenvolver nos sujeitos capacidades de se relacionarem de forma autônoma, livres das relações de oprimido e opressor, Freire (1975) traz um relevante pensamento acerca da ideia da construção da autonomia dos sujeitos. Ele ressalta a importância da participação dos educandos no processo de produção do conhecimento, para que assim seja possível o desenvolvimento da autoconsciência de uns em relação aos outros, bem como a maneira individual de pensar e de agir. No livro Pedagogia do oprimido, Freire refere-se à conscientização como uma forma de construir autonomia, ou seja, de tornar-se ciente de a sua própria condição para se libertar. Essa condição de libertação pode ser entendida num conceito piagetiano, como uma tomada de consciência para as relações heterônomas, em que predomina o respeito unilateral e, a partir disto, a análise crítica das relações para a construção da autonomia. A partir do momento que o oprimido toma consciência de sua opressão, oferece condições a outros oprimidos e também aos opressores de refletirem sobre um processo inverso a aquele estabelecido, bem como de analisarem as relações onde ambos podem construir uma sociedade mais igualitária. Nesse sentido, uma formação política também vai ao encontro com o pensamento freireano para o desenvolvimento da autonomia. Uma educação que está pautada na busca do desenvolvimento da autonomia dos educandos precisa entender a necessidade de possibilitar as relações que estimulam a 15 tomada de decisão e de responsabilidade com base em relações respeitosas e coletivas (SOEJIMA, 2008). Dessa forma, os adultos exercem pressão sobre as crianças por meio de sanções, poder de linguagem valorativa, autoritarismo. As sanções apresentam formas de se aplicar a justiça. Contudo, conforme o sujeito vai se desenvolvendo e tomando consciência das relações e suas implicações, as noções de justiça vão se afastando da autoridade, e se aproximando das noções de igualdade; desta forma, notamos a prevalência da justiça distributiva sobre a retributiva. A justiça distributiva leva em consideração os motivos e as justificativas para os atos. Por outro lado, a justiça retributiva baseia-se em ações infratoras para aplicar a justiça. E como forma de justiça, com a progressiva evolução da heteronomia para autonomia, os sujeitos tendem a optar por sanções de reciprocidade – as que se relacionam com o ato sancionado – ao invés de sanções expiatórias – que têm valor punitivo e muitas vezes não se relacionam com o ato. Contudo, isso só é possível quando o sujeito alcança um patamar de desenvolvimento moral no qual ele é capaz de pensar de forma crítica, levando em conta o contexto; essas são características próprias da autonomia. O processo moral pelo qual o sujeito passa deve conduzi-lo a sair da anomia, passando pela heteronomia e caminhando gradualmente até a autonomia. Para Puig (1995), a escola é um ambiente propício para o desenvolvimento desse processo, visto que esta é plena de relações entre pares, que dão condições para o desenvolvimento moral. Como mediador das relações e facilitador das mesmas no ambiente escolar, o educador deve estimular o desenvolvimento da ação reflexiva do educando, de modo que este seja capaz de fazer análises críticas de situações vividas em seu cotidiano e que exijam uma determinada postura autônoma. Com isso, auxilia os estudantes a abandonarem seu lado individualista ou egocêntrico para integrarem-se em atividades coletivas por meio da cooperação. Segundo Piaget (1932/1994): E as intervenções da razão que Bovet tão justamente observou, para explicar a autonomia adquirida pela moral, dependem, precisamente, dessa cooperação progressiva. De fato, nossos estudos anteriores nos têm levado a admitir que as normas racionais, e em particular, essa norma tão importante que é a reciprocidade origem da lógica das relações, não podem se desenvolver senão na e pela cooperação (PIAGET, 1994, p.91). 16 Menin (1996) afirma que as regras construídas em concordância com o grupo, tornar-se-iam leis universais, pois levariam em consideração a opinião de todos, de forma democrática, e teria como objetivo o bem comum. Seria também uma ação do pensamento crítico, sobre as regras a que nos submetemos. Essas relações em que estamos inseridos nos permitem compartilham conhecimento, levando em consideração as opiniões dos outros, de uma forma recíproca. No entanto, sabemos que, muitas vezes, ao invés de a escola proporcionar aos estudantes situações que irão confrontá-los a desenvolver sua autonomia, contribui para que eles permaneçam heterônomos em seus pensamentos e suas relações. Num ambiente em que as relações são de coação, em que somente a autoridade tem voz, a heteronomia é o que predomina. Quando, por exemplo, o professor é autoritário e não colabora para o desenvolvimento moraldos estudantes, cria-se uma relação desigual, pautada em medo de falar, agir ou até mesmo pensar, baseada em respeito unilateral, que resulta na heteronomia. Esse respeito é a origem da obrigação moral e do sentimento do dever: toda ordem partindo de uma pessoa respeitada, é o ponto de partida de uma regra obrigatória... São ordens devidas ao adulto e aceitas pela criança. Por consequência, esta moral do dever, sob sua forma original, é essencialmente heterônoma (PIAGET, 1932/1994, p.154). As relações em que apenas exista o respeito unilateral e a coação adulta induz à submissão, o sujeito praticará as regras como forma de dever. Contudo, na ausência da autoridade, essas regras são esquecidas, ou seja, são exteriores ao sujeito, e não o levam à reflexão acerca delas; ou seja, os sujeitos as praticam sem que haja a interiorização da importância que têm ou construção ética de alguma delas. Os efeitos da autonomia e da heteronomia são bem diferentes no que diz respeito à construção da personalidade. Enquanto a heteronomia conduz o sujeito à submissão ao mais forte, a autonomia conduz a construção da criticidade (PIAGET, 1996). De acordo com Soejima (2008, p.42), o egocentrismo característico das relações iniciais de heteronomia, onde a consciência, a verdade e a responsabilidade estão centradas em apenas uma perspectiva, e assim a regra é externa ao sujeito, atrapalha as relações de cooperação no convívio social, pois a consciência centrada no outro anula o individuo com sujeito da ação. Porém, na medida em que a criança vai se 17 desenvolvendo, deixando o egocentrismo de lado e dando lugar as relações sociais, tomando consciência do outro como sujeito de sua própria ação também é possível superar a heteronomia. Dessa forma a educação seria um meio possibilitador de desenvolvimento moral. Mas como seria possível essa transformação sem que os sujeitos fossem formados para um pensamento autônomo e crítico? Para isso, seria então necessária a educação que visasse, de fato, ao desenvolvimento integral como principal objetivo educacional. Puig (2000), quando fala sobre as assembleias escolares com o objetivo de desenvolver espaços de reflexão, ressalta que “mesmo que no currículo escolar constem disciplinas como educação moral/ética (e afins), parece desconhecer-se que não é possível separar a autonomia moral da vida cotidiana”. Sendo assim, não se dissocia moralidade da sociedade, pois uma é resultado da outra, e é necessário que existam sempre ações reflexivas sobre elas. As relações sociais possibilitam a construção de regras, contudo, as regras por si só não são importantes. O que é imprescindível é o desenvolvimento moral, que leve o sujeito a não roubar ou matar, por exemplo, não por um medo da consequência da regra, mas por uma consciência do bem do outro. Nisto, percebe-se que os valores morais estão diretamente ligados à interiorização do bem de si e do outro, proporcionadas das relações de cooperação, respeito mútuo e solidariedade. Segundo Lira (2010, p.40) A autonomia significa ser governado por si mesmo, e opõe-se a heteronomia, que significa que o sujeito é governado por outra pessoa. Ora, à medida que o sujeito aprende a governar-se a si mesmo, será menos governado por outras pessoas. A criança não nasce autônoma, pois a autonomia é uma conquista que se alcança com o tempo e a maturidade, tendo a família e a escola um papel importante nesse aprendizado. Ainda que de fato a participação da família seja essencial neste processo, o ambiente escolar é imprescindível para o desenvolvimento moral, pois é nesse espaço que a criança terá a oportunidade de se relacionar mutuamente de forma igualitária, podendo exercer sua capacidade de colocar-se no ponto de vista do outro e de refletir sobre as regras estabelecidas por meio de acordos mútuos. Numa visão construtivista, os meios são tão importantes quanto os fins; não se pode construir cooperação sem práticas que possibilitem a cooperação, não se pode 18 desenvolver noções de justiça sem práticas que levem à reflexão dos meios de resolução de conflitos e não se pode ensinar tolerância sem a prática da conversa e o respeito à opinião do próximo (MENIN, 2002). Assim, por meio das práticas morais, os estudantes e os educadores passariam juntos pelo processo de construção de mecanismos de ação reflexiva que os confrontassem a vivenciar situações de desequilíbrio cognitivo e moral, permitindo trocas por meio da cooperação, solidariedade e respeito mútuo. É importante que os educadores compreendam o modo como os educandos constroem conhecimento, como são baseadas as relações que irão determinar essas construções. Entende-se que existe uma relação mútua entre o indivíduo e o meio, em que o meio influencia o sujeito, que por sua vez influencia o meio, ou seja, ambos são influenciadores e influenciados (SANTOS, 2012). Dessa maneira, é imprescindível conhecer os processos pelos quais os estudantes passam para construir sua moralidade, princípios e valores. Para eles, seus professores são um exemplo a ser seguido, assim, se o professor for heterônomo em suas relações e emitir juízos opostos ao desenvolvimento moral, dificilmente propiciará condições para questionamentos e novas formas de pensamento. Todavia, se o professor puder optar por uma educação moral autônoma, suas atitudes serão base para uma transformação da educação e em seguida da sociedade, implicando em relações autônomas. Então, para o processo de construção da autonomia é necessário que os professores se preocupem primeiramente com uma formação voltada para a reflexão, discussão, resolução de conflitos por meio da interação e do diálogo. As atitudes dos educadores (visto que quando falamos de educadores nos referimos também a diretores e coordenadores, pois estes também estão envolvidos no processo de ensino/aprendizagem) poderão fazer com que o ambiente escolar proporcione aos educandos a construção de valores sociais e morais, de um equilíbrio emocional, da interação cooperativa entre eles e da capacidade de enfrentamento e busca de soluções para conflitos. É preciso salientar que ao falar de autonomia no ambiente escolar não significa que o professor permitirá que os alunos façam o que bem entendam porque são autônomos, mas esses alunos irão construir juntos a autonomia por meio do respeito às regras feitas por eles mesmos em virtude da cooperação e do respeito mútuo (MENIN, 1996, p.99). Nessa perspectiva, a circunstância ideal para a criança libertar-se da 19 submissão do respeito unilateral e da heteronomia depende das relações baseadas na cooperação e no respeito mútuo que estabelecem entre si. Partindo desta hipótese, a escola é o local mais oportuno, pois as crianças podem se relacionar com outras de uma forma igualitária. Portanto, quando falamos de ambiente autônomo, não estamos falando de um ambiente escolar totalmente sem autoridade, mas de um ambiente que permita a participação do aluno em sua própria construção do conhecimento, que otimize trabalhos em grupos e a organização das regras. Sendo assim a prática do professor não se limitaria à sala de aula, seu trabalho iria além, abrangendo o desenvolvimento de projetos coletivamente elaborados, o planejamento de discussões acerca de temas relevantes para a ampliação do pensamento crítico e autônomo dos estudantes. Quando pensamos uma educação que vise à formação autônoma dos educandos, por meio de práticas morais, entendemos que a autonomia é um processo a ser construído com a presença de adultos que se constituem como autoridades competentes a propiciar meios para que no ambiente escolar ocorram relações de cooperação, construção de regras coletivamente elaboradas, processos de tomada de consciência por meio do respeito mútuo e do entendimento do outro. O educador conscientedessa importância irá trabalhar com seus alunos, práticas que os envolvam no pensar, no elaborar e no executar as ações e atividades escolares. Nas reflexões de Paulo Freire (2003) ele apresenta o professor como uma autoridade, que deve ser democrática, no sentido de entender que ele é o mediador, contudo, os educandos também precisam ter voz ativa, evidenciando o respeito mútuo nesta relação, onde a liberdade de expressão e oportunidades de participação são exercidas, e isso deve ser proporcionado a eles. Esta autoridade vai fundamentar-se na certeza da importância da liberdade dos educandos com o preenchimento das lacunas de dependência, fortalecendo assim os processos de construção da autonomia. É difícil conceber a autonomia dos sujeitos em ambientes autoritários ou que pouco possibilitam relações de igualdade, desta forma, para o processo educativo, é necessário entender que é imprescindível a formação de seres humanos democráticos, participativos, reflexivos, solidários e que saibam viver em comunhão com os demais sujeitos (SOEJIMA, 2008). Cabe ao professor favorecer situações potencialmente desequilibradoras ao estudante. Proporcionando ambientes que possibilitem uma tomada de consciência. A 20 autonomia só se constrói com o desenvolvimento da autoconsciência. As estruturas dos sujeitos têm condições de se desenvolverem, porém é necessário dar ao sujeito meios para que a construção da autonomia aconteça. Assim como o processo de desenvolvimento cognitivo ocorre, o desenvolvimento moral também. Então ao professor, juntamente com as instituições educadoras, ficam o papel de propiciar as relações autônomas, ambientes sociomorais e relações de qualidade, que visem à construção da autonomia. 1.1. A Tomada de Consciência-ação e conscientização “A tomada de consciência ocorre por meio da evolução do egocentrismo verbal para um pensamento social maduro [...] A constituição da autonomia se desenvolve juntamente com o desenvolvimento da autoconsciência” (SOEJIMA, 2008, p.42). De acordo com Becker (2001), tomar consciência de algo, é apropriar-se dos mecanismos da própria ação refletida. Ao analisar as relações humanas no âmbito da instituição escolar, Freire (1975) também notou a existência das relações de oprimido e de opressor. De acordo com esse pensamento, o detentor do saber (o professor) teria uma posição de maior valor sobre aqueles que “não sabem nada” (alunos). Essa educação é definida como um ato de depósito, onde o professor unicamente deposita seus conhecimentos de uma forma unilateral, sobre a qual os alunos têm pouco poder participativo e apenas recebem aquilo que lhes foi transmitido, sem que haja reflexão ou uma transformação social a respeito de conceitos, valores ou práticas (SOEJIMA, 2008). Este tipo de educação dificulta a construção da autonomia, e sem dúvidas o desenvolvimento da tomada de consciência tanto do educador, quanto do educando. Uma vez que os estudantes são entendidos como depósito de conteúdos, a escola não abre espaço para outro olhar, o olhar daqueles que também têm seus conhecimentos, suas experiências, e essa troca enriquece o processo de ensino/aprendizagem, pois possibilita o diálogo, a reflexão sobre diversos contextos dentro de uma vivência em sociedade. 21 Ao pensarmos sobre uma educação como meio de desenvolvimento moral, é importante pensarmos sobre a tomada de consciência do educador, para que este tenha entendimento da importância de sua prática, de forma que esta seja para uma educação que vise à construção da autonomia. A educação que esses profissionais devem objetivar é a formação voltada para os valores morais, e isso pode ser possível através da educação democrática, onde os principais pilares são participação crítica, diálogos, e formação política dos estudantes, a cooperação e o respeito à voz do outro, bem como ao que ela representa. Para ter como objetivos da educação a formação para a autonomia, a reflexão, o pensamento crítico, é preciso reconhecer que as práticas dos professores podem fazer a diferença nessa constituição. A formação do educador também se constrói nas relações de reciprocidade tanto com os outros educadores, quanto com os estudantes. Todas as relações que possibilitam uma construção positiva de valores e autonomia apresentam- se como uma troca de experiências, propiciando a evolução enquanto sujeitos psicológicos e a transformação enquanto sujeitos sociais. “O próprio ato de ensinar é característico do ser humano, e, portanto, é político” (SOEJIMA, 2008, p.35). Objetivando a construção da autonomia, a educação precisa ser um ato democrático, visto que este se fundamenta na coletividade, na liberdade de escolha e no entendimento do outro, já que a autonomia envolve não só o professor, mas também o estudante. Não há docente sem discente. Segundo Freire (2003, p.23-24), Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. [...] Ensinar é inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. [...]. Não temos dizer que inexiste validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou refazer o ensinado, em que o ensino que não foi aprendido não pode ser realmente aprendido pelo aprendiz. Então, a educação é uma prática que deve ser estabelecida nas relações de autonomia e democracia, embasada pelo pensamento crítico como instrumento para a evolução da ação humana enquanto juízos e valores morais. Fairclough (2001, p. 91, apud LEANDRO, 2012, p. 40) afirma que “[...] o discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.”. Buscamos identificar as diferenças entre o discurso e a prática docente através de estudos relacionados à 22 temática e constatamos que Fairclough (2001, apud LEANDRO, 2012) nos apresenta o discurso como texto, prática discursiva e, por último, como prática social. O que nos interessa é entender o discurso enquanto prática social, pois quando o professor entende que seu discurso enquanto uma prática social pode proporcionar transformação, propiciar evolução cognitiva e moral, ela toma consciência da importância de se trabalhar práticas que irão favorecer o desenvolvimento. O que vemos hoje nas escolas e nos discursos educacionais é o que Fairclough (2001) nos mostra: uma prática discursiva que nem sempre se relaciona com a prática social. A hipótese é que o professor pode nos trazer elementos para a compreensão de suas práticas, sua consciência sobre as mesmas e seus interesses em refletir sobre ambientes antagônicos que se referem à realidade tradicional e democrática. Uma prática em sala de aula deve sempre levar em consideração os agentes envolvidos, não unicamente o professor e aquilo que ele acredita que deve ensinar. O ensino é uma via de mão dupla e exige a necessidade de trocas. Para Pinheiro (2009, p. 75) “Uma aula é a interação entre alunos e professores proporcionando a troca de experiências e vivências. O professor é o mediador, o intérprete, o facilitador para que haja compreensão e que se resulte na construção do conhecimento”. O que acontece hoje em dia em muitas escolas tanto públicas, quanto particulares é a incoerência entre o discurso e a prática. O que é visto em muitos projetos político-pedagógicos é a preocupação com o desenvolvimento da autonomia dos estudantes. Arriscamos a dizer que, de fato, a palavra autonomia aparece em algum momento em todos os projetos educacionais. Contudo, o que se apresenta na prática cotidiana da maioria das escolas é apenas formação para instrução com conteúdos curriculares muitas vezes dissociados da realidade social e culturaldos educandos, e que de não favorecerem a autonomia, o que pode gerar certa defasagem no desenvolvimento cognitivo. É preciso que o professor entenda a importância da formação para a autonomia, para que assim ele possa elaborar suas atividades com base no entendimento de que não existe docente sem discente e de que o ambiente escolar necessita de trocas, de interações que possibilitem o desenvolvimento cognitivo e moral, agrupando as práticas que visam os valores morais que reconhecem o estudante como o centro do seu próprio processo de construção do conhecimento (PINHEIRO, 2009). O discurso do professor leva em consideração a importância desses processos para o desenvolvimento dos estudantes, porém suas práticas, muitas vezes, aparecem 23 como assimétricas e unilaterais, deflagrando uma posição vertical, que revela um pensamento oposto ao que é falado. Algumas vezes ainda encontramos o discurso de lamentações (PINHEIRO, 2009), onde os educadores atribuem aos baixos salários, às condições de trabalho e à desvalorização da profissão as causas para a falta de avanço educacional. Muitas vezes isso pode contribuir para a dificuldade no planejamento das atividades, contudo encontramos experiências educacionais em escolas públicas – como, por exemplo, a em que realizamos esta pesquisa – em que a comunidade escolar é menos favorecida e os professores “abraçam a causa”, se auto afirmam como agentes fundamentais no processo educacional e conseguem desenvolver um trabalho voltado para o desenvolvimento moral, buscando vivências democráticas. Acreditamos que a partir do momento em que os professores tomam para si a responsabilidade que lhes é confiada e assumem o papel social que detêm, eles podem exigir do governo os seus legítimos direitos. Nóvoa (1999) nos auxilia a pensar sobre o os discursos deducionais que escondem uma pobreza nas práticas. O excesso desses discursos em contrapeso às práticas nos revela uma escassez na formação dos profissionais e uma insuficiência de políticas públicas voltadas para a educação. A pobreza das práticas pedagógicas, que muitas vezes se encontram engessadas em um currículo escolar tradicionalmente pensado para individualizar as ações e minimizar as interações de qualidade, propõem as atividades escolares como meros protocolos a serem realizados na escola. Por essa razão, empobrecem a construção e reflexão de meios para romper com esse pensamento, e acabam contribuindo para uma visão negativa da educação e sua decorrência. O papel da escola e também dos educadores é fundamental, uma vez que desempenham função essencial para a formação os sujeitos que compõem a sociedade. Desta forma, se os educadores estiverem preocupados não apenas com um discurso, mas com uma prática que irá favorecer a evolução de sujeitos que sejam capazes de pensar criticamente, sobre aspectos que vão de concepções mais simples as mais complexas, possibilitarão uma transformação social e relacional. (NÓVOA, 1999). É importante analisar o discurso e a prática docente, pois desse modo se torna possível identificar sinais que relevam as distorções entre eles. A partir dessas análises podemos perceber possíveis crises dentro do ambiente escolar. Essas crises de fato 24 existem, mas elas se manifestam muitas vezes pela prática que são opostas aos discursos. Esses dados apontam para a real necessidade da tomada de consciência por parte dos professores que os levem à reflexão profunda sobre o seu papel, que os façam tomar para si a responsabilidade enquanto educadores, pois assim será possível uma transformação da educação. Entendemos a relevância da tomada de consciência do discurso docente para que os educadores reconheçam o papel emancipatório de suas práticas dentro de um processo de evolução da ação pedagógica, o que inclui fazer com que o ambiente escolar e suas práticas tornem-se possibilitadores de emancipação cognitiva e moral. Desta forma, enfatizamos a importância da reflexão dos professores sobre as suas próprias práticas. Para Becker (1993, p. 105), “A tomada de consciência é a ação interiorizada e em forma de pensamento”. É através da interação com o objeto de conhecimento que o sujeito traz para a consciência aquilo que era puramente prático. Becker (1993, apud SALADINI, 2006, p.137) afirma que ao buscar compreender a relação entre ação e pensamento reflexivo, Piaget concluiu que a tomada de consciência se apresenta em três etapas: a primeira é a ação, a segunda a conceituação e a terceira a reflexão do pensamento sobre si mesmo. Segundo Saladini (2006), no início o sujeito encontra-se na fase da ação, mas os esquemas de ação vão se constituindo como complexos esquemas de práticas. Esses esquemas vão evoluindo, progressivamente, conduzindo o sujeito às estruturas operatórias. No começo da construção das estruturas operatórias, as diversas tomadas de consciência irão organizar o que a conceituação trará de novo aos esquemas anteriores. Nessa fase o sujeito passa a interiorizar aquilo que antes se limitava à ação; a linguagem e a imagem mental são alguns exemplos que se apresentam para a formação da conceituação e para a interiorização da ação. “O conceito é a ação interiorizada por meio do pensamento e da linguagem” (SALADINI, 2006, p.138). A última fase caracteriza-se pelas construções conscientes da reflexão do pensamento acerca do mundo, das vivências e tudo que as envolvem. É imprescindível que o sujeito tenha capacidade de refletir sobre as questões que o rodeiam e sobre si mesmo num contexto psicológico e social. A etapa da ação se constitui por atividade e método, em que apenas se vê a prática pela prática e caracteriza-se pela falta de um embasamento teórico, ou uma reflexão acerca dos métodos empregados pela ação docente. A etapa da conceituação 25 caracteriza-se por um domínio de informações e atualizações docentes, que sustentam uma visão para a prática cotidiana. Contudo, não se encontra uma relação entre o discurso e a prática, entende-se então a necessidade de uma prática pedagógica que leve à reflexão, todavia isso não é visto no cotidiano. Já a terceira etapa, que é a reflexão do pensamento, o educador tem um domínio sobre conteúdos teóricos, entende a necessidade de uma ação refletida e ainda contribui para que os seus alunos desenvolvam essa ação reflexiva também. Becker (2001, p.53) trata a tomada de consciência como um importante processo que faz a abstração reflexionante evoluir para a abstração refletida. A abstração reflexionante consiste em retirar qualidades das ações e transferi-las para um patamar mais elevado de coordenação. Consiste em projetar sobre um patamar superior, aquilo que foi retirado de um patamar inferior. A abstração refletida consiste então, em organizar e sistematizar aquilo que foi transferido pela abstração reflexionante, desta forma, ela reorganiza as ações reflexionantes do patamar inferior para o patamar superior. A reflexão é, pois, um “ato mental de reconstrução e reorganização sobre o patamar superior daquilo que foi assim transferido do inferior” (PIAGET, 1977/1995, p. 274-275, apud BECKER, 2014, p. 06). “Neste sentido, o conhecimento como capacidade não surge do nada; surge, sempre, da reorganização do que já havia sido construído previamente (o verdadeiro a priori) no plano da ação” (BECKER, 2014, p.6). A tomada de consciência possibilitará que o sujeito compreenda sua ação, conceitue-a e reflita sobre ela, tornando-a ainda mais poderosa do que era inicialmente (BECKER, 2001). Becker continua sua argumentação afirmando que apesar das três etapas de desenvolvimento da tomada de consciência, muitos professores estagnam apenas na ação e se limitam ao saber, a serem detentores do conhecimento. Contudo, muitas vezes não refletem sobre suas práticas ou sobre aquilo que lhes podem fazer ir além.A necessidade da educação é ter um olhar cuidadoso para o educador, para a formação de quem forma. É pouco provável que a educação seja de fato transformadora, proporcione condições aos educandos de um desenvolvimento da autonomia, se o professor não refletir sobre sua própria prática, sobre aquilo que ele pode e tem o dever de fazer na escola. O principal é disponibilizar meios para que os educadores também tomem consciência de sua prática, para que eles vejam que muitas vezes seus discursos não condizem com suas práticas. Assim, progressivamente, o professor irá evoluir para uma 26 tomada de consciência que entenderá a importância de cada planejamento, de cada atividade, buscando a participação dos estudantes nesse processo. Para entender como se desenvolve a tomada de consciência no sujeito, seja ele o educador ou o educando, faz-se necessário refletir sobre o processo pelo qual se passa para alcançar esse entendimento. Como dito anteriormente, Piaget menciona duas abordagens teóricas, o empirismo e o inatismo contrapondo-se a elas para elaborar sua teoria que pudesse dar conta de explicar como o sujeito constrói conhecimento. Ao observar essas duas correntes teóricas, ele afirma que O conhecimento não poderia ser concebido como algo predeterminado nas estruturas internas do indivíduo, pois essas resultam de uma construção efetiva e contínua, nem nos caracteres preexistentes do objeto, pois que estes só são conhecidos graças à mediação necessária dessas estruturas; e essas estruturas os enriquecem e enquadram (pelo menos situando-os no conjunto dos possíveis). (PIAGET, 1945/1990, p. 03). A construção de conhecimento é descrita como um processo de adaptação com dois polos: assimilação e acomodação. Diante do funcionamento das estruturas deve-se destacar assimilação, processo pelo qual o sujeito entra em contato com um novo conhecimento buscando inserir tal conhecimento às estruturas internas. Caso tais estruturas não sejam próprias para a assimilação desse conteúdo, elas entram em desequilíbrio e podem então se reorganizar e se acomodar para dar conta de um conteúdo mais complexo do que as estruturas anteriores, permitindo que o sujeito o compreenda. Piaget chega à conclusão de que a inteligência é uma “atividade organizadora que ao funcionar prolonga o funcionamento da função biológica e a supera tendo em vista a elaboração de novas estruturas” (SALADINI, 2006). Assimilar um conhecimento irá depender também de sua afetividade para com essa nova experiência. Então, o trabalho da educação é gerar o interesse no estudante, ou seja, a afetividade pelos novos conhecimentos. Então, discutiremos aqui a tomada de consciência no plano do pensamento e no plano da ação, ou seja, como os professores pensam ou discutem a temática da educação, e como eles de fato a estabelecem. Sabe-se que os discursos educacionais abrangem a autonomia como um de seus objetivos. Para muitos educadores, a autonomia se coloca como a capacidade de executar tarefas sem a ajuda de outros, mas o que abordaremos aqui é a autonomia enquanto pensamento reflexivo, que proporciona 27 aos sujeitos a tomada de consciência sobre suas ações e sobre as regras em que estão inseridos e podem elaborar e reelaborar de acordo com os acordos mútuos. É a isso que Piaget (1977, p.13) relaciona a tomada de consciência. A Tomada de Consciência evolui de níveis elementares para níveis mais avançados da prática. É no nível mais elaborado que o sujeito tem consciência e internaliza a importância da reflexão crítica acerca do que é estabelecido. “Portanto o pensamento tem sua gênese na ação do próprio sujeito e sua evolução permite a construção do conhecimento, no plano da reflexão” (SALADINI, 2006, p.92). Em sua teoria sobre a tomada de consciência, Piaget (1977) refere-se a ela como um processo que exige assim como outros conhecimentos a assimilação e acomodação às estruturas do sujeito, e resultam da construção efetiva e contínua das relações do sujeito com o meio físico e social. Para ele, o processo de assimilação e acomodação ocorre tanto na vida biológica quanto na psicológica. Piaget (1977) analisou que é importante explanar as diferenciações apresentadas entre inconsciente e consciente, e nisto é preciso levar em consideração que, A passagem de um ao outro exija reconstruções e não se reduza simplesmente a um processo de iluminação [...] a tomada de consciência de um esquema de ação o transforma num conceito, essa tomada de consciência consistindo, portanto, essencialmente numa conceituação. (PIAGET, 1977, p.197). Axt e Schuch (2001, p.19), nos apresentam esse processo de diferenciação: A tomada de consciência caracterizar-se-á, em especial, na segunda passagem- da ação a representação-conceituação – como um mecanismo formador-transformador instituído por, e ao mesmo tempo instituinte de processos interpretativos em vários níveis de complexidade, dependentes, em diferentes graus, da interação a consciência reflexiva. (apud BIANCAMANO, 2007, p.72). Com isto, Piaget conceitua Tomada de Consciência como um processo de construção de conceitos, os quais vão sendo interiorizados na medida em que a assimilação e a acomodação vão permitindo a evolução das estruturas internas do sujeito, por meio do que novos conhecimentos são incorporados por abstração reflexiva. Assim, de acordo com ele, a tomada de consciência é uma sequência contínua de 28 diferentes graus: da não-consciência à consciência, os quais que vão sendo organizados a partir de reflexões e representações coordenadas. (BIANCAMANO, 2007). Para entendermos a tomada de consciência, é necessário que aprendamos como ocorre sua evolução. Inicialmente, o sujeito apenas pratica e depois ele toma consciência da importância de suas ações. Notemos então que o mecanismo de tomada de consciência destaca-se em todos esses aspectos como um processo de interiorização da ação de forma a tornar o não consciente, consciente, reconstruindo no plano da representação, o que era resultado dos esquemas de ação. Quando a criança nasce, ela está no período do desenvolvimento cognitivo que Piaget chama de sensório-motor. Nessa fase não há uma intencionalidade na ação, ou seja, o que acontece são apenas esquemas de práticas de ação. Contudo, conforme ela vai entrando em contato com novos conhecimentos, ela passa a internalizar o que antes estava apenas no nível da ação. Ainda que a tomada de consciência seja estruturada sobre a prática, ela vai evoluindo seguindo a direção da inteligência refletida, e seus mecanismos fazem com que embora ela tenha sido estruturada sobre a ação, o pensamento torna-se antecessor a ela (SALADINI, 2006). Conforme as estruturas cognitivas vão sofrendo influência do meio, da interação que o indivíduo tem com esse, elas passam por um processo de desenvolvimento que irá propiciar a construção da tomada de consciência. As estruturas cognitivas ampliadas por meio das interações dão à Tomada de consciência uma ampliação do conhecimento e uma consciência por meio de mecanismo de reestruturação, que possibilitam a reflexão sobre a ação. Dissertar sobre a tomada de consciência nos auxilia a pensar sobre a relação sujeito/objeto, pois a construção desta necessariamente está ligada ao entendimento e à reflexão acerca de conceitos e elementos que compõem a realidade em que o sujeito vive. Becker (1999, p. 17) ressalta que, A ação do sujeito simultaneamente assimiladora e acomodadora, produz, passo a passo, um processo de diferenciação. Na exata medida em que o sujeito assimila o objeto, ele acomoda-se [...] o que equivale a transformar-se a si mesmo. Esse trajeto de ação... pode ser visto como tomada de consciência: a partir dos resultados da ação o sujeito vai se apropriando, progressivamente, dos mecanismos íntimos da ação
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