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AULA 1 FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS, PEDAGÓGICOS E CIENTÍFICOS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL Profª Lígia Maria Bueno Pereira Bacarin 2 CONVERSA INICIAL Este módulo tem como objetivo apresentar subsídios históricos para a análise do conceito de deficiência. A contextualização histórica se faz necessária para construir os alicerces filosóficos e teóricos da Educação Especial e seus respectivos paradigmas sobre inclusão escolar. Para iniciarmos nosso estudo, questões indispensáveis se fazem presentes: Qual a importância de conhecermos os fundamentos do conceito de deficiência? Qual a relação entre a construção histórica do conceito de deficiência e as teorias filosóficas da Educação Especial? Por que conhecer seus princípios filosóficos, científicos e históricos? Necessariamente, para melhor abarcarmos a proposta da inclusão – e, sobretudo, a Educação Especial –, há necessidade de entender conceitos e conhecer limites históricos importantes da construção do sistema educacional contemporâneo, para assim chegarmos à realidade que procura o acolhimento da diversidade e de uma educação para todos. Ao longo da história, podemos observar diversas maneiras de entender as diferenças físicas, sensoriais e intelectuais entre as pessoas. Aspectos como costumes, crenças, cientificidade e marcos legais influenciam o entendimento do conceito de Educação Especial. Isso porque diferentes épocas produzem suas próprias interpretações do real, ou seja, a realidade do vivido se altera historicamente. Porém, temos de nos atentar para o fato de que, no âmbito das diferenças, as deficiências sempre existirão, independentemente da compreensão que determinada época ou sociedade construa acerca delas. Rodrigues e Maranhe (2010) analisam que a compreensão do outro em suas diferenças, ou o fato de que todos os seres humanos são distintos em diversos níveis significa aceitarmos a busca de opções para nos comunicarmos com interação e, concomitantemente, promovermos o desenvolvimento social coletivo. Nesse sentido, para iniciarmos filosoficamente nosso estudo, devemos nos indagar: Deficiências causam limitações? Essas limitações são absolutas ou relativas? O que realmente significa uma educação inclusiva? A Educação Especial se tornou um direito universal? O que realmente diferencia as pessoas com necessidades especiais das demais pessoas? O que distingue a igualdade de oportunidades e a valorização das diferentes características entre as pessoas? 3 Após essa breve conversa inicial, que objetivou estabelecer a tônica da nossa temática, contextualizaremos os conceitos históricos de deficiência, para que tenhamos arcabouço teórico na discussão sobre Educação Especial. CONTEXTUALIZANDO Consideramos importante, neste módulo, proporcionar um cenário histórico do conceito de deficiência, a fim de que possamos introduzi-lo numa perspectiva científica, combatendo, dessa forma, os mitos e o senso comum a seu respeito, pois mesmo o conhecimento científico (sobre qualquer temática) atrela-se a determinados conjuntos de saberes produzidos em épocas distintas. Assim, traçar a trajetória histórica nos possibilitará compreender as mudanças e permanências deste tema. Desse modo, para termos a estatura da compreensão social sobre a pessoa deficiente, precisamos localizar, nas diferentes épocas, o panorama que se estabeleceu a respeito do conceito das diferenças individuais e que se transformou, por conseguinte, no atual paradigma de recepção desse sujeito – no nosso caso, especificamente no sistema de ensino. Mattos (2002) infere que, na história da humanidade, a caracterização das pessoas deficientes ocorre através de um processo permanente de ressignificação, em decorrência dos fatores econômicos, sociais e culturais. Com base nos estudos de Silva (1987), dividiremos, em linhas gerais e historicamente, o recorte da trajetória do conceito de deficiência em três grandes períodos: 1. Da Antiguidade clássica ao feudalismo; 2. Do absolutismo ao processo da Revolução Industrial, no século XIX; 3. O período contemporâneo. Salientamos que, paulatinamente, na trajetória histórica, sujeitos com necessidades especiais (físicas, sensoriais ou cognitivas) incorporaram-se à estrutura social de maneira irregular, invariável e com rotas individuais. Por conta dessas características, não podemos estabelecer a identificação de um movimento homogêneo de consistência. 4 TEMA 1 – O CONCEITO DE DEFICIÊNCIA1 Para que possamos compreender a trajetória histórica do conceito de deficiência, e por meio desse embasamento apreendermos entendimentos filosóficos, científicos e pedagógicos sobre a Educação Especial, é necessário dimensionar o que significa deficiência na atualidade, para que o resgate histórico tenha sentido conceitual. Ao longo do século XX ocorreu uma expressiva produção teórica acerca do conceito de deficiência. Nesta aula, destacaremos a Classificação Internacional de Lesão, Deficiência e Handicap (ICIDH), indicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no ano de 1980. Travou-se um debate sobre a descrição da deficiência como uma questão de direitos humanos, e não apenas biomédica. Como resultado, reviu-se a nomenclatura da ICIDH e, em 2001, foi acatada a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). O documento, conhecido como Modelo Social da Deficiência, balizou a legitimação de um novo paradigma, com ênfase nos empecilhos e na restrição de participação social de pessoas com deficiências. A transformação na compreensão da causalidade da deficiência superando a narrativa da desigualdade do corpo para as estruturas sociais possibilitou análises para uma ressignificação do conceito, com o espaço público ganhando significado, sobretudo no que se refere a que tipo de sociedade pode garantir os direitos específicos das pessoas com determinados tipos de deficiências, sem considerá-las incapazes. Nesse sentido, teremos como referencial o conceito estabelecido pela Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos das pessoas com deficiência, de 2008, e os critérios da CIF. No art. 1º dessa convenção, define-se: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. 1 Esclarecemos que, neste primeiro tema, trataremos dos aspectos gerais do conceito de deficiência, e que haverá uma aula própria para tratar as especificidades desse conceito. 5 1. Sequência de conceitos Deficiência: repercussão imediata da doença sobre o corpo, impondo uma alteração estrutural ou funcional ao nível tecidual ou orgânico. Incapacidade: é a redução ou falta de capacidade de realizar uma atividade num padrão considerado normal para o ser humano, em decorrência de uma deficiência. Desvantagem: impedimento resultante de uma deficiência ou incapacidade, que limita ou impede o desempenho de uma atividade considerada normal, tendo em atenção idade, sexo e fatores socioculturais do indivíduo. É importante entender que o Brasil aceitou, como dimensão constitucional, o art. 1º da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, legalizado juridicamente no formato do art. 5º, parágrafo 3º da Constituição Federal. Socialmente, essa inclusão constitucional tem como cerne para distinção da deficiência a relação das barreiras de longo prazo de caráter físico, mental, intelectual ou sensorial com diversos obstáculos, suscitando o assoreamento da participação plena e efetiva do indivíduo na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Em decorrência desse novo conceito, é presumívelque pessoas antes consideradas com deficiência por um juízo crítico meramente médico, seguido até então, deixem de ser assim caracterizadas. A interrupção da proteção constitucional para essas pessoas não provoca um retrocesso na proteção dos sujeitos com deficiência, mas, sim, atribui-lhes maior proteção, afiançando que as políticas afirmativas do Estado serão de fato destinadas àqueles constitucionalmente percebidos como pessoas com deficiência. TEMA 2 – DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA AO FEUDALISMO Silva (1987) observa que, nesse recorte histórico, ocorreram dois movimentos no trato às pessoas com deficiências: 1) a rejeição e a eliminação sem formalidade dos sujeitos e, em oposição, 2) a proteção piedosa e assistencialista. Por exemplo, em Esparta, tanto nobres como plebeus tinham autorização para lançar os recém-nascidos do penhasco ou ao mar. Nessa cidade-estado, as crianças, ao nascerem, eram apresentadas a uma comissão, que avaliava se elas viveriam ou não. As que não eram fortes o suficiente ou 6 plenamente saudáveis não tinham direito à vida, e deveriam ser sacrificadas em nome da pátria. As crianças consideradas perfeitas seriam mantidas com a família durante os primeiros 7 anos; após esse período, o Estado se apropriaria delas e lhes educaria até os 20 anos, sob a responsabilidade de um magistrado incumbido de sua formação física, moral e cívica. Em contraposição, em Atenas, submetida à influência da educação aristotélica2, os deficientes eram amparados e protegidos socialmente. Sobretudo porque Aristóteles ensinou que “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se injustiça” – existe um consenso entre os estudiosos do tema Educação Especial, entendendo que essa premissa definiu as bases jurídicas deste conceito até hoje. Podemos entender que o modelo adotado na Antiguidade Clássica atrelava os aspectos individuais aos aspectos coletivos e avaliava como cidadão apenas o sujeito que providenciava seus próprios meios de subsistência. Por exemplo, o mito de Hefesto demonstra que a pessoa teria seu lugar na estrutura social a partir da sua utilidade. Entretanto, ao observarmos o conto de Hesíodo a propósito do nascimento de Hefesto, em Teogonia: origem dos deuses, perceberemos que: “Ele [Zeus] da própria cabeça gerou a de olhos glaucos/Atena terrível estrondante guerreira infatigável/soberana a quem apraz fragor, combate e batalha. /Hera por raiva e por desafio a seu esposo/não unida em amor gerou o ínclito Hefesto/nas artes brilho à parte de toda a raça do Céu” (Hesíodo, 1995, v. 924-929, p. 157). Ressaltamos que, na passagem supracitada, há uma associação da articulação entre a deformação física de Hefesto e sua superação através da formidável capacidade artística, convertida no nosso tema pela afirmação dos direitos atribuídos aos deficientes físicos. Em outra passagem, porém, Hesíodo, apresenta a deficiência do deus como uma antítese das obras de arte que produz. Os vulgos a ele relacionados – pés tortos, mutilado, coxo, disforme – comprovam a realidade que vivenciavam as pessoas com deficiências físicas naquele período. À vista disso, o conto mítico exprime a ideia de exclusão praticada, consumando- se a expulsão do deficiente da estrutura social organizada segundo padrões nos quais as imperfeições não tinham espaço. 2 O filósofo grego Aristóteles, que foi aluno de Platão e professor de Alexandre da Macedônia, entendia a educação como forma de preparar as pessoas para viverem em sociedade e como causa da felicidade. Seu fundamento filosófico defendia a ideia de que todas as causas possuem um fim. Ele defendia o homem virtuoso. Não há, dentre as obras do autor, uma específica sobre o tema. Interpretamos os escritos das obras: Ética Nicômaqueia e Política. Nelas, ética, em síntese, seria o bem agir do indivíduo perante a sociedade, além da prática de atos virtuosos. 7 Na Roma Antiga, a deficiência era sinônimo de vergonha e maldição. No código das 12 Tábuas3, há uma clara alusão ao infanticídio. Todavia, devemos esclarecer que, mesmo com essa alusão presente na lei, não ocorreu a prática regular do infanticídio. As crianças consideradas anormais em decorrência de má- formação ou de qualquer outro problema eram postas em cestos adornados com flores e abandonadas nas margens do Rio Tibre. Seus destinos, a partir dali, eram traçados pelos escravos e plebeus paupérrimos da época, que tomavam para si essas crianças abandonadas e as utilizavam para pedir esmolas nas ruas, praças e templos das cidades. Os deficientes cegos, por sua vez, eram usados como remadores nas travessias dos rios; já as meninas eram vendidas aos prostíbulos. Entretanto, os patrícios portadores de deficiências não tiveram o mesmo destino que escravos e plebeus. Muitas vezes, suas deficiências eram escondidas do povo; assim, conseguiram ocupar cargos públicos de destaque. Dessa forma, inferimos que a diferença entre a segregação que as pessoas deficientes sofriam na Grécia Antiga e na Roma Antiga encontrava-se nas relações de poder. Enquanto nas cidades-estados gregas as deficiências, além de serem ignoradas, eram exterminadas, em Roma eram consideradas conforme a classe social à qual pertencia o deficiente. Na Idade Média, por sua vez, os medievos acreditavam que os sujeitos com deficiência eram um castigo divino recaído sobre suas famílias em decorrência de algum pecado cometido, ou de algum feitiço ou bruxaria empreendidos por terceiros para prejudicar a família. Com isso, aproximadamente entre os séculos V e XV, os registros históricos apontam que a vida das pessoas com deficiência era controlada e mantida pelos senhores feudais, que possuíam locais específicos para atendimento e manutenção desses sujeitos. Cabia à Igreja estabelecer o grau de salvação das pessoas com deficiência. Nesse sentido, tomamos como exemplo a epístola aos romanos, de Paulo: a fé era construída ao ouvir a palavra de Cristo. Nessa lógica, as pessoas com deficiência auditiva não tinham direito à salvação. Para compreender essas características do período feudal, devemos considerar que a época foi regida sob a égide da Igreja Católica, que concebe os seres humanos como imagem e semelhança de Deus; os que não eram condizentes com essa perfeição física e mental eram talhados à beira da condição 3 Na Tábua IV, ordenava: Pater filium monstrosum et contra formam generis humanae, recens sibi natum, cito necato (cujo significado é: “Tábua IV – Sobre o Direito do Pai e Direito do Casamento – Lei III - O pai imediatamente matará o filho monstruoso e contrário à forma do gênero humano, que lhe tenha nascido há pouco”). 8 humana, sendo responsabilizados por sua própria deficiência. O temor medieval em relação às pessoas com deficiência estava associado a fatores religiosos, levando o povo a considerar os deficientes perigosos por não terem alma. O saldo era a morte na fogueira ou por apedrejamento. TEMA 3 – DO ABSOLUTISMO AO PROCESSO DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL NO SÉCULO XIX Silva (1987) observa que, durante os séculos XV e XVII, a partir da filosofia humanista renascentista4, ocorreu o advento dos direitos reconhecidos como universais. Nesse sentido, ocorreu uma gradativa e axiomática transformação social e cultural na Europa católica, cujas características principais foram o reconhecimento dos valores individuais, o progresso da ciência e a libertação do obscurantismo medieval. De certa forma, o homem deixou de ser um escravo dos “poderes naturais” ou da ira divina. Esse novo modo de pensar, revolucionário sob muitos aspectos, alteraria a vida do homem menos privilegiado também, ou seja, a imensa legião de pobres, dos enfermos, enfim, dos marginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra de dúvidas, os portadores de problemasfísicos, sensoriais ou mentais (Silva, 1987, p. 226) Diante desse novo cenário, fortaleceu-se a compreensão de que os sujeitos com deficiência careciam de cuidados específicos, não sendo mais enquadrados apenas na categoria da marginalidade. No século XVI, Silva (1987) observa que se constituíram ações cruciais para o avanço do atendimento dos deficientes, sobretudo das pessoas com deficiências auditivas, pois esse foi, desde sempre, o grupo avaliado como “ineducável”. Conforme Carmo (1991), Bauer, por exemplo, que viveu entre 1443 e 1485, faz menção em seu estudo denominado “De Invencione Dialética” a um surdo-mudo que se comunicava por escrito. Este fato possibilitou a Jerônimo Cardan (1501- 1576), médico, matemático, astrólogo [...], questionar o princípio defendido por Aristóteles de que “o pensamento é impossível sem a palavra”. (Também) o médico francês Joubert (1529-1582) inseriu todo um capítulo sobre o ensino de surdos-mudos em sua obra “Erros Populares relativos à Medicina e ao Regime de Saúde”. Defendia o seguinte princípio de Aristóteles: “O homem é um animal social com habilidade para se comunicar com os outros homens”. (Carmo, 1991, p. 25) 4 Trataremos das especificidades filosóficas acerca das deficiências – e, por conseguinte, da educação especial – no próximo módulo. 9 O autor ressalta que, conquanto não existissem manifestações para afastar de fato os deficientes da marginalização, ocorreram mudanças diante do contexto de convivência entre os sujeitos considerados conceitualmente normais e os considerados deficientes. Na Inglaterra, por exemplo, foram sancionadas leis que sujeitavam a população a angariar uma taxa encarregada do apoio de idosos, deficientes e da população menos abastada. Já na França, no ano de 1554, inaugurou-se o Grand Bureau des Pauvres, com o objetivo de recolher, dos ricos e abastados, contribuições para as casas de caridades e hospitais destinados aos deficientes e pobres. Figura 1 – Luís XVI distribui esmolas aos pobres de Versalhes durante o inverno de 1788. Óleo sobre tela. Palácio de Versalhes (Paris). Fonte: Hersent (1817). A imagem acima nos remete ao ano de 1544, quando François I criou o Escritório Geral dos Pobres, marco inicial da atual assistência pública francesa. Cobrava-se dos nobres, do clero, das comunidades de comerciantes e de todos os proprietários uma taxa para a manutenção deste estabelecimento. Percebemos, dessa maneira, um novo olhar do entendimento social sobre a pessoa deficiente, buscando uma razão da sua existência e uma solução para esta, migrando do misticismo cristão medieval ao assistencialismo. Todavia, nesse período ainda predominava a cultura que enquadrava os deficientes, os pobres, os criminosos e os considerados loucos como ofensivos à normalidade social. Isso se comprova quando ressalvamos que, até o final do século XVIII, mesmo com a inexistência de sentenças vinculadas à guilhotina ou ao pelourinho para os deficientes, ocorria um velamento na punição, substituindo-se a espetacularização do corpo do deficiente pelo seu encarceramento. 10 No século XIX, com o advento da Revolução Industrial, outro olhar recaiu sobre os sujeitos com deficiências. Silva (1987) ensina: Embora no século XIX ainda não se pensasse na integração do homem deficiente à sociedade aberta ou mesmo à sua família, ele passou a ser visto como ser humano (infeliz, desafortunado e coitado para aquela época, é evidente) dono de seus sentimentos e capaz de viver ou de pretender levar uma vida decente, desde que fossem garantidos meios para isso. (Silva, 1987, p. 184) Com o processo de assalariamento do trabalhador fabril, deu-se atenção especial ao acesso das pessoas com deficiências físicas ao mercado de trabalho, para que pudessem arcar com seus próprios meios de vida. Na Dinamarca, por exemplo, em 1872, criaram-se as Society and Home for Cripples, destinadas ao atendimento profissional de sujeitos considerados incapacitados. No mesmo período, o chanceler alemão Otto von Bismarck estabeleceu a primeira lei trabalhista para acidentes no ofício, bem como o reaproveitamento destes. Entretanto, foi nos Estados Unidos da América que se organizaram vários centros especializados em recuperação dos denominados incapacitados, dentre os quais Silva (1987) destaca, em Boston, o Industrial School for the Crippled and Deformed. Foi nessa fase que a Educação Especial realmente principiou. Todavia, Carmo (1991) salienta que os deficientes seguiam discriminados, marginalizados e excluídos social e familiarmente, e a assistência continuava beneficente e segregacionista. Nesse sentido, a autora observa que, com o escopo de proteger os indivíduos normais dos considerados não normais, nasceu a precisão de escolas e instituições para atender os portadores de necessidades especiais. Inegavelmente, a Educação Especial foi favorecida pelo desenvolvimento técnico e científico, destacando-se os estudos de métodos de tratamento, ensino e avaliação, e também a criação das escolas para deficientes. É importante ressaltar que foi no final do século XIX que os ideais oriundos da Revolução Francesa realmente se efetivaram em ações em prol dos deficientes. Quase um século após a bandeira da Igualdade, Fraternidade e Liberdade se erguer na França, os conceitos humanistas se estenderam ao universo dos sujeitos deficientes, pois, a sociedade percebeu, nesse momento histórico, que esses indivíduos precisavam não apenas de hospitais e abrigos, e sim de atendimento especializado. 11 TEMA 4 – O PERÍODO CONTEMPORÂNEO No início do século XX, os instrumentos desenvolvidos no século anterior, como cadeira de rodas, sistema de ensino para cegos e surdos5, bengalas, dentre outros, foram se aperfeiçoando, mesmo em meio a sucessivas guerras. Na primeira década do século XX, ampliou-se, na Europa, a organização de instituições destinadas ao treinamento e à preparação dos sujeitos deficientes para o mercado de trabalho, bem como a preocupação com as condições de vida e moradia destes. Assim, percebemos que ocorreu uma mudança cultural substancial no que concerne à inserção dos sujeitos deficientes no cotidiano social. Na primeira metade do século XX, especificamente no ano de 1948, no pós- Segunda Guerra Mundial, por intermédio da Organização das Nações Unidas, foi criada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tendo como fundamento norteador a dignidade da pessoa humana, documento que representa um divisor nas concepções tanto educacional como social no que concerne à visibilidade das pessoas com deficiências, principalmente porque estabeleceu direitos e intenções a alcançar entre os países participantes da ONU naquele período. Segundo o documento: Todo ser humano é elemento valioso qualquer que seja a idade, sexo, idade mental, condições emocionais e antecedentes culturais que possui, ou grupo étnico, nível social e credo a que pertença. Seu valor é inerente à natureza do homem e às potencialidades que traz em si; em todas as suas dimensões, é o centro e o foco de qualquer movimento para sua promoção. O princípio é válido tanto para as pessoas consideradas normais ou ligeiramente afetadas como também para as gravemente prejudicadas, que exigem uma ação integrada de responsabilidade e de realizações pluridimensionais; tem direito de reivindicar condições apropriadas de vida, aprendizagem e ação, de desfrutar de convivência condigna e de aproveitar das experiências que lhe são oferecidas para desempenhar-se como pessoa e membro atuante de uma comunidade. Podemos perceber que, no século XX, teve início uma aceitação social, jurídica e educacional da pessoa com deficiência. Entretanto, em decorrência do preconceito e da discriminação historicamente enfrentados pelos deficientes,5 Como exemplo, destacamos a história do Braille. Em 1819, Charles Barbier, capitão do exército francês, a pedido de Napoleão Bonaparte, desenvolveu um código noturno para transmissão de mensagens. Devido à sua complexidade, o sistema foi rejeitado pelos militares. O capitão posteriormente apresentou sua invenção ao Instituto Nacional dos Jovens Cegos de Paris. Durante a apresentação, um jovem cego de 14 anos, chamado Louis Braille, sugeriu modificações, que foram sumariamente rejeitadas pelo militar. Mesmo assim, o adolescente modificou o que achava necessário e criou um sistema de escrita padrão – o Braille. 12 houve a necessidade de políticas de proteção específicas para construir, de fato, condições de igualdade e equidade social. Coll et al. (2004) inferem que, até a primeira metade do século XX, o conceito de deficiência era percebido como uma questão de herança genética. Entendia-se que os portadores de déficit sensorial ou mental estavam condenados a viver com esses entraves sem alterações cognitivas significativas. Concebia-se que as pessoas eram deficientes somente por condições metabólicas. Essa compreensão perpetrou que muitas deficiências ficassem no rol como doenças que precisariam ser catalogadas, divididas em categorias, e diagnosticadas por profissionais vinculados à saúde. Em síntese, o século XX trouxe o paradigma biomédico de deficiência, que a concebia como uma incapacidade a ser superada, vinculando-a diretamente aos modelos de políticas sociais de integração, conceito que transitou para a concepção de deficiência relacionada à inclusão. Na primeira metade do século XXI, estabelece-se o paradigma dos direitos humanos para afiançar a dignidade da pessoa com deficiência, o combate à violência de seus direitos e sua autonomia e acesso a todos os direitos sociais. Em suma, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, diversas instituições intensificaram suas ações para a formação de políticas destinadas aos deficientes. Entretanto, as políticas inclusivas, ainda nesse momento histórico, desenvolveram-se no atendimento aos deficientes, entendo-os a partir de um panorama de ações médicas ou/e terapêuticas e do binômio assistencialismo/protecionismo. Por conta dessas questões, tornou-se imperativo compreender o deficiente como um construto social a partir de uma concepção filosófica própria e com teorias educacionais específicas. TEMA 5 – TRAJETÓRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA DO BRASIL Silva (1987) observa que, tal qual ocorreu no continente europeu, a trajetória das pessoas com deficiência no Brasil seguiu parâmetros de adjetivação pejorativa. Segundo o autor, as menções, quase que na totalidade, referem-se à população em condição de pobreza e miserabilidade com termos pejorativos. Na mesma linha, Figueira (2008, p. 17) analisa que “[...] as questões que envolvem as pessoas com deficiência no Brasil – por exemplo, mecanismos de exclusão, 13 políticas de assistencialismo, caridade, inferioridade, oportunismo, dentre outras – foram construídas culturalmente”. Assim, na formação societária do Brasil, identificam-se as mesmas práticas de exclusão e rejeição das pessoas com deficiência tanto por parte dos povos nativos, denominados de populações indígenas, como dos povos africanos escravizados no período colonial, bem como dos próprios colonos europeus. Acrescenta-se o fato de que, na tríade societária brasileira, desde seus primórdios, relacionou-se deficiência com doença. 5.1 Populações indígenas, africanos escravizados e colonos europeus Os antropólogos e historiadores estudiosos das populações indígenas consensualmente atestam que, em sua maioria, essas populações tinham condutas, práticas e costumes que levavam à eliminação de crianças com deficiência e/ou à exclusão daquelas que desenvolvessem qualquer espécie de limitação física ou sensorial. Todavia, para não recair no anacronismo, ressaltamos que as práticas de exclusão dos povos indígenas do Brasil não foram iguais às da Antiguidade Clássica da Europa. A especificidade se encontra na explicação para a deficiência: para os nativos, ela era sinônimo de mal presságio para a tribo, e não de castigo divino. Os africanos trazidos em navios negreiros para o trabalho escravo no Brasil Colônia sofreram toda espécie de maus-tratos na travessia entre os continentes. Em consequência, as deficiências físicas e sensoriais acentuaram-se. Silva (1987) demostra que o tráfico negreiro, que ocorria em porões superlotados das embarcações e em condições desumanas, precipitava o desenvolvimento e a disseminação de doenças incapacitantes, causadoras de sequelas severas. As condições de vida nos engenhos de açúcar, e posteriormente nas fazendas de café, não se diferenciavam das sofridas nos navios negreiros: castigos físicos, maus-tratos6, alimentação precária e condições de habitação desumanas nas senzalas. Com a anuência da Igreja e dos senhores da Casa- grande, as punições variavam: desde açoites a mutilações. 6 O Rei D. João V, em alvará datado de 3 de março de 1741, autoriza a amputação de membros do corpo como punição aos africanos escravizados que eram capturados durante as tentativas de fuga para os quilombos. 14 Os portugueses, quando chegaram ao Brasil no século XVI, depararam-se com uma terra de clima totalmente oposto ao europeu, e essas características tropicais refletiram em sua saúde. Figueira analisa que “algumas dessas enfermidades de natureza muito grave chegaram a levá-los à aquisição de severas limitações físicas ou sensoriais” (Figueira, 2008, p. 55). 5.2 A deficiência no Brasil do século XIX A recorrência da deficiência no século XIX, conforme estudou Silva (1987), foi resultado, em certa medida, do aumento dos conflitos militares. Com isso, a partir dos anseios do general Duque de Caixas, o governo Imperial inaugurou em 1868, “Asilo dos Inválidos da Pátria”, que teve como finalidade abrigar e tratar dos soldados mutilados de guerra e também educar os órfãos e filhos dos militares, conforme nos aponta Figueira (2008). Esse asilo funcionou até 1976, quando foi desativado pelo regime militar em vidência no governo brasileiro na época. 5.3 O modelo de deficiência no Brasil do século XX A caracterização dos deficientes nesse período da história brasileira seguiu um modelo embasado nos preceitos da medicina, em decorrência da criação dos hospitais-escolas na década de 1940, propiciando diversos estudos e pesquisas no âmbito da reabilitação. Também foi nesse período que a expressão “crianças excepcionais” foi forjada; esse termo fazia referência, conforme Figueira (2008), àquelas crianças que possuíam desvios em suas características mentais, físicas ou sociais em comparação com outras. Por conseguinte, a interpretação embasada no senso comum, sem cientificidade, compreendia que tais crianças não poderiam ser educadas com as demais, fortalecendo instituições como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) e a Sociedade Pestallozzi. A partir da década de 1980, com o advento da construção do Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD), estabelecido pela ONU, construiu-se uma nova trajetória histórica relacionada às discussões sobre deficientes no Brasil. Sobre essa questão: Se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio, excluída ou segregada em entidades, a partir de 1981 – Ano Internacional da Pessoa Deficiente – tomando consciência de si, passou a se organizar politicamente. E, como consequência, a ser notada na sociedade, atingindo significativas conquistas em pouco mais de 25 anos de militância. (Figueira, 2008, p. 115) 15 A importância fundamental da AIPD refere-se à introdução do conceito de “conscientização” nas discussões, sobretudo na elaboração de ações afirmativas queainda são referências para os trabalhos de combate à invisibilidade social do deficiente. Inferimos que a trajetória histórica da pessoa com deficiência no Brasil caracterizou-se pelo mesmo processo global de eliminação, exclusão e, por fim, de inclusão. Todavia, cada etapa reforçou o estereótipo que considera os deficientes incapazes, sendo essa a principal batalha a ser travada pela Educação Especial na contemporaneidade. FINALIZANDO Nesta aula, apreendemos que os deficientes, ao longo da história ocidental, foram compreendidos como inválidos, anormais, monstros ou degenerados, e seus corpos eram vistos misticamente como resultado da ira ou do milagre divinos. O destino desses sujeitos era a morte. Com o advento da Modernidade, a narrativa biomédica superou o discurso religioso, e o deficiente foi conceituado como portador de uma patologia, procurando-se conhecê-la e controlá-la. Em confronto com tal perspectiva, na primeira metade do século XX surgiu o modelo social de deficiência, que tem como foco, até hoje, possibilitar às pessoas com deficiência condições para conquistar liberdade, e autonomia e oportunidade, elevando, com isso, sua qualidade de vida e inserção na estrutura social. Nesse momento, retomamos a questão-problema que introduziu essa aula: Qual a importância de conhecermos os fundamentos do conceito de deficiência? Qual a relação entre a construção histórica do conceito de deficiência e as teorias filosóficas da Educação Especial? Por que conhecer seus princípios filosóficos, científicos e históricos? A inferência para as questões elencadas está na necessidade de construção de uma compreensão teórica, filosófica e social da deficiência como diversidade corporal e funcional e como diferença subjetiva, conforme Diniz (2009). Para este autor, a experiência da “deficiência” proporciona um sentido de comunidade que é aproveitado na intenção de exaltar os valores fundamentais da vida, os direitos humanos e a celebração da diferença. Trata-se da construção do conceito contemporâneo de movimentos de defesa de plena cidadania daqueles que dialogam em nome da diferença. Pessoas com conformações corporais e/ou 16 mentais anteriormente consideradas como patológicas reivindicam o status de singularidades atípicas não apenas patológicas. Nesse sentido, a construção de metodologias para a Educação Especial soma-se à nova necessidade histórica de aceitação cidadã das diferenças entre todos os seres humanos. LEITURA OBRIGATÓRIA Texto de abordagem teórica SILVA, O. M. A epopeia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de hoje. São Paulo: Cedas, 1987. O estudo de Silva (1987) traz a dimensão do entendimento histórico sobre o indivíduo deficiente, pois nos reporta ao passado e nos auxilia a localizar, nas diferentes épocas, o retrato que se fixou culturalmente sobre a ideia das diferenças individuais, e que se converteu, assim, no atual modelo de atendimento pedagógico ao deficiente. Texto de abordagem prática BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 25 ago. 2009. Disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/ convencaopessoascomdeficiencia.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2018. Em 2008, o Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), bem como seu protocolo facultativo. O documento obteve, assim, equivalência de emenda constitucional, valorizando a atuação conjunta entre sociedade civil e governo. Saiba mais DA SILVA, M. F. P. T. B. et al. Deficiências no Brasil: conceito, história e aconselhamento genético. Apae Ciência, [S.l.], v. 3, n. 3, dez. 2013. Disponível em: <http://apaeciencia.org.br/index.php/revista/article/view/50>. Acesso em: 11 jun. 2018. Neste texto, os autores problematizam o processo histórico do conceito de deficiência nos principais períodos da história do Brasil. 17 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria do Desporto. Deficiência física: a realidade brasileira cria, recupera e discrimina. Brasília, DF, 1991. COLL, C.; MARCHESI, A.; PALACIOS, J. Desenvolvimento psicológico e educação: transtornos do desenvolvimento e necessidades educativas especiais. Porto Alegre: ArtMed, 2004. DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. Deficiência, direitos humanos e justiça. Sur, Rev. int. direitos human, v. 6, n. 11, p. 64-77, 2009. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1806-64452009000200004>. Acesso em: 11 jun. 2018. FIGUEIRA, E. Caminhando em silêncio: uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência na história do Brasil. São Paulo: Giz Editorial, 2008. HUGO, V. O corcunda de Notre Dame. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2006. MATTOS, E. A. Deficiência mental: integração/inclusão/exclusão. Videtur, São Paulo; Espanha, 2002. p. 13-20. RODRIGUES, O. M. P. R.; MARANHE, E. A. A história da inclusão social e educacional da pessoa com deficiência. In: CAPELINI, V. L. M. F.; RODRIGUES, O. M. P. R. (Org.). Marcos históricos, conceituais, legais e éticos da educação inclusiva. Bauru: Unesp; MEC, 2010. v. 2. (Coleção Formação de Professores na Perspectiva da Educação). SILVA, O. M. A epopeia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de hoje. São Paulo: Cedas, 1987.
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