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FUNDAMENTOS E METODOLOGIA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL Paulo Ross E d u ca çã o F U N D A M E N T O S E M E T O D O L O G IA D A E D U C A Ç Ã O E S P E C IA L P au lo R os s Curitiba 2018 Fundamentos e Metodologia da Educacao Especialçã Paulo Ross Ficha Catalográfica elaborada pela Fael. Bibliotecária – Cassiana Souza CRB9/1501 R825f Ross, Paulo Fundamentos e metodologia da educação especial / Paulo Ross. – Curitiba: Fael, 2018. 307 p.: il. ISBN 978-85-5337-035-1 1. Educação especial I. Título CDD 371.9 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem da Capa Shutterstock.com/megaflopp Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao Aluno | 5 1. Educação Especial: conceitos e fundamentos | 9 2. Concepções teóricas: os paradigmas e os olhares sobre a deficiência | 41 3. Políticas públicas para Educação Especial | 69 4. Deficiência intelectual: avaliação e aprendizagem | 99 5. Sujeitos surdos e a educação bilíngue | 123 6. Deficiência visual | 153 7. Deficiência física e neuromotora | 171 8. Deficiência múltipla e surdocegueira | 195 9. Altas habilidades | 221 10. Transtornos do Espectro Autista | 241 11. Atendimento Educacional Especializado (AEE): família, sujeitos e avaliação | 257 Anexos | 283 Referências | 291 Prezado(a) aluno(a), O mundo da diversidade não entrou em nós. Só enxergamos o espelho, o igual a nossas vontades e desejos. O professor é desautorizado a falar sobre o aluno. Não nos importa conhecer sua trajetória. Não nos importa lutar para que ocupe seu lugar de aluno, seu lugar de pessoa, seu lugar de sujeito de direito, seu lugar de potência. Não nos importa autorizar o seu alinhamento com seus pensamentos, seus sentimentos, suas ações, suas fina- lidades, seu viver bem. Ele não é nosso espelho, logo, não preci- samos dar-lhe atenção. Na verdade, nem o enxergamos, pois só enxergamos igualdade, reflexo, formas acabadas. Sabemos ensinar, mas não sabemos sobre o aluno. Não conhecemos nada sobre o sofrimento psíquico, a dor do aban- dono e da segregação. Não nos interessa o “batismo patológico”, pois todos temos sofrimento psíquico. Sofrimento psíquico é uma água morna. Não queremos percebê-lo para não ocupar o lugar da escuta, o lugar do afeto, o lugar do outro, o lugar do amor. Carta ao Aluno – 6 – Fundamentos e Metodologia da Educação Especial Não escolhemos fazer a escola, o trabalho, os encontros como lugares do viver bem, da alegria, da ética da diferença e da ética dos afetos. Assim, você acredita poder contribuir para tornar a escola mais justa e inclusiva? Quais são as barreiras que teremos de enfrentar em favor do aprendizado e da dignidade de cada sujeito da escola e da sociedade? De que maneira as pesquisas, os organizadores de currículos e as famílias podem contribuir para propiciarmos novos canais de comunicação e mais liberdade aos sujeitos que frequentam os espaços escolares? Aqui, você conhecerá as políticas propostas pelo Estado e os para- digmas que dirigem a visão sobre o ser humano, além de fundamentos, tecnologias e recursos que tornam possível a educação da pessoa com deficiência visual, surda, surdocega, com deficiência neuromotora, com autismo, com altas habilidades ou com deficiência intelectual. Mas não podemos continuar com o histórico escolar de abandono desses sujeitos, classificando-os e rotulando-os de incapazes. Se todos são capazes de aprender, então, teremos de dar a eles atenção adequada, e não repetir o que sempre fizemos. Esta obra pretende prover as estratégias para mergulharmos no universo de cada sujeito, para que, juntos, possamos jogar o jogo do aprender e da interação. Se compreendermos a alteração sensorial do sujeito com autismo, então, poderemos ajudá-lo a modular suas necessidades, reduzindo seu estresse, auxiliando a filtrar os estímu- los do ambiente e a focar sua atenção. Mas nada disso terá êxito se não formos conscientes do processamento sensorial, neurológico e simbólico, que se produz quando o sujeito se depara com o professor ou com uma atividade. Só haverá valorização dos “saberes prévios”, se assumirmos a abordagem interativa, responsiva, isto é, se desenvolvermos a prática da atenção compartilhada, a flexibilidade social e a comunicação receptiva e expressiva, gerando em cada sujeito a autoconfiança para aprender e estabelecer as trocas sociais possíveis. As respostas adaptativas de cada sujeito dependerão de rompermos os limites das formas homogêneas de comunicação, colocando-nos como parceiros dos comportamentos, dos jogos simbólicos, das alterações sensoriais, das modulações e das discri- minações mentais dos sujeitos com deficiência. – 7 – Carta ao Aluno Se quisermos mudanças em relação à qualidade da educação que ofertamos, então temos de reestruturar o conhecimento sobre quem somos nós e sobre as crenças e imagens que povoam nosso imaginário. Não podemos mais permitir que nossas mentes trabalhem no automático, usando imagens do passado para justificar o fracasso ou a paralisia do presente. O conhecimento é libertador. Afasta a ansiedade, a paralisia e a protelação. Hoje, não aceitamos mais o rótulo de “incapaz”, nem a ideia de que a “vida não presta”. Mais do que garantir o direito de aprender, a escola tem o dever de identificar os objetivos, as necessidades e de prover os meios para que todos se beneficiem do ambiente escolar. O primeiro passo é auxi- liar os alunos na autorregulação, conferindo-lhes estabilidade psíquica. Só o conhecimento dará ao professor os recursos para caminhar junto ao estudante, afastando-o do caráter ameaçador do mundo, do “perigo” de uma nova experiência. Se houver vínculos e trocas psíquicas desde as respostas de aversão aos primeiros estímulos, então, as imagens negativas darão lugar às interações positivas. Por que precisamos buscar formação? Para nos tornarmos melhores e tornar o mundo melhor. As crianças e os jovens não podem mais ser abandonados pela escola, nem culpabilizados por não aprender. O obje- tivo da escola não é o de fazê-las sofrer. Todos nós temos momentos de impotência e de tristeza, mas temos de superar. A dor será inevitável, mas permanecer no sofrimento é opcional. Somos todos capazes de assumir uma personagem e adentrarmos no imaginário da criança, do jovem, do adulto e do idoso. Quando criarmos o canal de comunicação, teremos um sujeito singular diante de nós, ávido por seguir nossos passos e dar as res- postas que esperamos. Prof. Dr. Paulo Ross 1 Educação Especial: conceitos e fundamentos 1.1 Introdução O objetivo deste livro é compreender o modo como a deficiência foi percebida social e historicamente, estabelecendo relações com os valores e aspectos econômicos, políticos e culturais de cada época, passando pelas concepções sobrena- tural, mística, científica, médico-clínica e social, conforme os períodos da Primitividade, Antiguidade, Medieval, Moderni- dade e Contemporaneidade. O que determina a mudança no modo de pensar? Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 10 – Desde os primórdios da humanidade, em diferentes espa- ços e tempos do planeta, a sociedade formulou varia- das concepções sobre as pessoas com deficiência que se refletiram no modo como estas eram tratadas. As concepções da humanidade não se transformam a par- tir de determinados acontecimentos. Por exemplo, o que separa o período da Primitividade da Antiguidade foi o apa- recimento da escrita. Entretanto, não foi um evento ocor- rido repentinamente, que de um dia para o outro transfor- mou o modo de pensar e agir em todas as sociedades. Por isso, nos diferentes períodos apresentados neste capítulo, as concepções coexistem e as transformaçõesocorrem lentamente. Por sermos humanos, nós expressamos as condições materiais e de existência de cada época. Fomos formando opiniões e identidade acerca do que vivemos com nossos familiares, colegas de escola, professores, enfim, nossas expressões se constituem de uma gama de experiências vivenciadas com outros. É sob essa mesma condição que nós, professores, comunicamos os valores que representam nossa identidade, como parte da sociedade a que pertencemos. Socialmente, propagamos nossos valores, crenças e hábitos. Nossas palavras e ações vão constituindo os seres mais jovens, ou seja, as crianças recebem a influência do comportamento, hábitos e costumes das socie- dades em que estão inseridas. Do mesmo modo, os movimentos socioes- paciais, como turismo, migrações, meios de comunicação, contribuíram para as mudanças de concepções sociais com as trocas de informações em diferentes culturas. Do ponto de vista físico-corporal, hoje, estamos libertos dos sacrifí- cios, da dor, da humilhação, do medo e do castigo. Hoje, lutamos contra todas as formas de discriminação, injustiças e desigualdades sociais e pela garantia dos direitos à dignidade de todas as pessoas. Neste livro, usa- remos o termo “pessoa com deficiência”, porque se trata da forma mais desenvolvida, prevista na Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, aprovada em 2006 e promulgada como Emenda Cons- – 11 – Educação Especial: conceitos e fundamentos titucional n. 6949/2009. Apontaremos as terminologias usadas em outros períodos históricos, indicando os fatores que determinaram a abolição de algumas e a modificação de outras. Relembramos que o que procuramos evidenciar nessas reflexões é o fato de que se há diferentes comporta- mentos em cada época podemos supor que a mesma coisa aconteceu em relação à deficiência. Vejamos. Você já ouviu falar na etapa do extermínio? No período que se estende desde a Primitividade, passando pela Anti- guidade, até o final da Idade Média, as exigências das aptidões físicas contribuíram para a exclusão, a eliminação e o abandono da pessoa com deficiência, e isso representava alternativas de sobrevivência do grupo social, não uma maldade deliberada. Logo, a etapa do extermínio tam- bém se constituía como um momento de luta e sobrevivência, mas aqueles cujas aptidões comprometessem o desenvolvimento do grupo, na maioria nômade, tinha que ser eliminado. As pessoas, suas deficiências, suas capacidades são apreendidas, valoradas de acordo com o desenvolvimento dos instrumentos tecnoló- gicos, o compartilhar dos valores e produtos culturais, a percepção do outro, o respeito aos direitos como ser humano, considerando-se suas necessidades no tempo e lugar em que se localizam. Nesse sentido, não é a deficiência, a perda de uma função biológica, que determina a aceitação ou a exclusão da pessoa. O estágio de formação das pessoas, instituições, programas e direitos à acessibilidade e ao usufruto dos bens culturais vão autorizar ou negar os benefícios das conquistas da civilização. A conquista do direito à vida e a superação daquelas crenças nega- tivas e daqueles limites materiais dependeram de transformações his- tóricas e de lutas políticas, porque nenhum direito nos é concedido espontaneamente. A relação entre a sociedade e a pessoa com deficiência tem produzido transformações em termos de direitos, crenças, pressupostos filosóficos e recursos de acessibilidade. Inicialmente, vamos compreender o modo Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 12 – como a pessoa com deficiência era considerada e as razões que justificavam sua exclusão, ou a ausência da oportunidade de se tornar humano. 1.2 Deficiência na Primitividade e a concepção sobrenatural A relação da pessoa com deficiência sempre causou estranhamento à sociedade. Na Primitividade, a deficiência era concebida como algo sobre- natural. Naquele período, reinavam as forças da natureza, ou seja, o ser humano se subordinava à determinação natural. A existência humana era obtida mediante o enfrentamento dos limites materiais daquele momento histórico. Diante da necessidade da força física, a pessoa com deficiência apresentava limitações funcionais. Havia a fragilidade do biológico frente às agruras da natureza. Cada sociedade oferece aos membros do grupo os seus próprios limi- tes. Assim, a pessoa com deficiência necessitava ser abandonada, devol- vida à natureza, considerada a mãe superior, aquela que nutria os corpos famintos movidos pelo medo, pelo instinto de lutar e sobreviver ante os riscos do predador iminente. Dica de filme No filme O garoto selvagem (direção de François Truffaut), você poderá entender um pouco mais sobre a relação primitiva entre homem e natureza. O longa narra a história real de Victor de Aveyron, uma criança sel- vagem encontrada em 1798 após ter passado longo período de sua vida longe do convívio da sociedade. Semelhante a um animal em suas maneiras, o garoto é adotado pelo jovem médico Jean Marc Gaspard Itard, encarregado de sua educação e possível reinserção na comunidade. – 13 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Figura 1.1 – Filme O garoto selvagem Fonte: filmes do Estação. Pensar e Produzir Você considera a deficiência um sofrimento resultante de uma culpa, ou um pecado cometido? Você acredita que a deficiência tem a ver com causas sobrenaturais? Justifique sua resposta. É comum ouvirmos relatos sobre a deficiência, como: “ele escolheu nascer com essa deficiência, porque necessitava aprender com essa experiência e, quem sabe, superar um estágio de sua evolução”. Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 14 – É verdade que a condição e a história de vida transformam a sub- jetividade humana. A deficiência era percebida como uma determinação sobrenatural. Os seres humanos mantinham relações diretas com a natu- reza, face ao predomínio do trabalho agrícola, o que os fazia dependentes da terra, de onde a vida era extraída. Os seres humanos endeusavam a natureza, afastando a função da sociabilidade. O Império Romano se des- moronava e deixava um vazio de referências jurídicas, o que permitiu a propagação das crenças metafísicas de mundo e a associação entre a pes- soa com deficiência e a encarnação do mal. Figura 1.2 – A roda dos expostos Fonte: portoarc.com Saiba mais O Brasil passou a adotar a roda dos enjeitados (ou expostos) como uma herança do reino português. O primeiro registro de que se tem notícia de uma Casa de Enjeitados no país é na capital baiana, Salvador (1726); – 15 – Educação Especial: conceitos e fundamentos depois, aparece uma no Rio de Janeiro (1738) e outra no Recife (1791). Segundo o professor de arquivologia Renato Pinto Venâncio, da Uni- versidade Federal de Minas Gerais, durante o Brasil colonial existiram quatro rodas (fora as citadas, havia uma em Campos/RJ). “Mas, após 1840, elas chegaram a ser 14, depois começaram a fechar. A última foi a de São Paulo, que encerrou as atividades em 1950.” Gazeta do Povo (texto publicado na edição impressa de 16 de julho de 2011). Com a ascensão das ideias cristãs, as pessoas com deficiência não poderiam mais ser exterminadas, pois eram tomadas como criaturas de Deus. Havia as crenças necessárias para a formação dos primeiros abrigos, o que se verificou no século XIII. Entretanto, a rigidez ética, centrada na noção de culpa e de respon- sabilidade pessoal, conduziu a uma visão intolerante e pessimista do ser humano, que foi tomado como “uma besta demoníaca, quando lhe venha a faltar a razão ou a graça divina”. Nas palavras de Pintner (1933, apud PESSOTTI, 1984), o final da Idade Média foi a época dos açoites e das algemas na história da deficiência mental. Segundo Lutero, “o homem é o próprio mal quando lhe faleça a razão ou lhe falte a graça celeste a iluminar- -lhe o intelecto. Nesse pensamento, pessoas com deficiência e pecadores são seres diabólicos”, condenados por Deus. As ações consequentementerecomendadas eram o castigo, por meio de aprisionamento e açoitamento, para expulsão do demônio (PESSOTTI, 1984). Se na Antiguidade a pessoa com deficiência não era considerada humana, no Período Medieval, passou a ser entendida como uma pos- sessão do mal, expiadora de culpas alheias, um meio para aplacar a cólera e a vingança celeste (PESSOTTI, 1984). Figura 1.3 – Expulsão do demônio Fonte: DP/CC BY 3.0. Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 16 – Tanto a igreja quanto a burguesia viabilizavam a manutenção de seu poder, promovendo o isolamento e a segregação das pessoas com deficiência ou doentes. Nessas instituições, aplicavam as ações assisten- cialistas, logrando, desse modo, a ampliação de seu grau de influência na sociedade. O poder da igreja produzia conflitos com a burguesia, a qual visava tão somente afastar-se do mundo da miséria. Nesse sentido, confundiam-se as ações de ajuda e a necessidade de reprimir; o dever de caridade e a vontade de punir. A racionalidade integrou a caridade e a repressão, optando pelo isolamento, a institucionalização. Os leprosários da Idade Média, que estiveram vazios durante a Renascença, foram reati- vados durante o século XVII. Figura 1.4 – Período da Renascença Fonte: stacasameneghello.com.br. Saiba mais Nos tempos da Idade Média, os leprosos anunciavam a sua presença portando sinos, obrigatoriamente. Nessa imagem, pintada por Brugel, não apenas leprosos, mas, também, pobres e andarilhos eram obrigados a andar com rabos de raposa afixados nas roupas como marca para dis- tinção dos “normais”. – 17 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Figura 1.5 – Idade Média Fonte: Bruegel, Pieter. Leprosos. Óleo sobre madeira, 18 x 21 cm, 1568, Museu do Louvre, Paris. No Brasil, também existiam leprosários. Os portadores de lepra eram obrigados a viver isolados. O Sanatório Aimorés, em Bauru/SP, e o Hos- pital Curupaiti, em Jacarepaguá/RJ, eram leprosários. 1.3 Idade Moderna: o internamento e o misticismo A racionalidade Moderna reinventou o internamento. A sociedade racional não poderia adaptar-se à natureza, como os antigos, nem se subor- dinar à ordem sobrenatural, como o cristão do medievo, mas criar instru- mentos para regular a liberdade e a ordem. No plano discursivo, porém, a institucionalização congrega as visões da predestinação, do castigo e a resposta à ordem econômica, social e moral. O interno ficaria com a “vir- tude” da paciência para aliviar o juízo imposto por Deus. Paciência, em sua origem latina patiendi, significa aprender a sofrer. Era preciso aceitar a condição da segregação, definida pelo especialista, a autoridade do poder econômico e religioso. Tanto a pobreza quanto a obra de caridade que a socorria não ques- tionavam a condição social daquelas pessoas. A pobreza, a deficiência e a Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 18 – caridade significavam a prova da resignação e da fé enraizada em Deus. Com o movimento da Reforma, os grandes monastérios são convertidos em hospitais e os conventos, em asilos. Seus bens são confiscados para aliviar a miséria social. Saiba mais O termo “hospital” tem sua origem no latim hospitale, adjetivo derivado de hospes (hóspede, viajante, estrangeiro), significando aquele que dá o agasalho ou que hospeda. Do primitivo latim, originaram-se os termos hospital e ospedale, aceitos em diversos países. Entretanto, nos primór- dios da era cristã, a terminologia mais utilizada relacionava-se com o grego latinizado, salientando-se: 2 nosodochium – lugar para receber doentes. 2 ptochotrophium – asilo para pobres. 2 poedotrophium – asilo para crianças. 2 xenotrophium – asilo e refúgio para viajantes estrangeiros. 2 gynetrophium – asilo para velhos. 2 hospitum – lugar que recebia enfermos incuráveis ou insanos. Figura 1.6 – Hospital da Idade Média Fonte: mundo.com. – 19 – Educação Especial: conceitos e fundamentos As primeiras iniciativas de caráter educacional aplicadas nas ativi- dades dos regimes de internato limitavam-se a aprender a ler, escrever, contar, comportar-se, ser honesto e decente com os visitantes da casa, ler as santas Escrituras e assistir aos ofícios divinos. Havia que afastar os indivíduos do mundo, pois a fraqueza de que se revestiam seria um convite ao pecado. Era preciso encarná-los de seus anjos da guarda, instruí-los, consolá-los e proporcionar-lhes a salvação. Essa questão religiosa era a nova razão de ser da internação. Esse vínculo entre religião e internamento persistiu ao longo dos anos e se diversificou de tal modo que várias denominações religiosas, pregadores do evangelho e missionários se dirigem a essas instituições com vistas a consolar aque- las almas consideradas sofredoras. A partir da Reforma Protestante, o protestantismo e o catolicismo foram os sistemas políticos e religiosos que concebiam a deficiência como fenômenos metafísicos, de natureza negativa, ligados à rejeição de Deus, atrelados ao pecado, ou à possessão demoníaca. Com o advento do modo de produção capitalista, conforme diz Bian- chetti (1998, p. 36): O corpo começou a ser definido e visto como uma máquina em funcionamento. Dessa visão vai emergir um resultado desastroso para a questão da diferença. Se o corpo é a máquina, a excepcio- nalidade ou qualquer diferença nada mais é que a disfunção de alguma peça dessa máquina, ou seja, se, na Idade Média, a defici- ência estava associada ao pecado, agora, passa a ser relacionada à disfuncionalidade. 1.3.1 Dogma do diagnóstico A ciência apresenta o diagnóstico não para servir de instrumento de luta contra a discriminação, mas para atestar a necessidade da segregação ou a institucionalização das pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência receberam atribuições consideradas cien- tíficas e verdadeiras. O indivíduo com deficiência intelectual passou a ser identificado, no final do século XVIII, pelos médicos Esquirol e Pinel, como idiota, cretino e imbecil, trazendo a marca do irreversível, incurável Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 20 – e inapelável (PESSOTTI, 1984), variando de acordo com a severidade ou a gravidade. A educação passou a obrigar os surdos a aprenderem a língua oral, amarrando seus braços para impedir a expressão gestual, corporal, visual. Dica de filme O homem elefante é um filme britânico e estadunidense de 1980, do gênero drama biográfico, dirigido por David Lynch. Trata-se de uma narrativa sobre a forma como a sociedade lida com a deficiência, evidenciando contextos em que Joseph Merrick é tratado como aberração no circo, até o momento em que passa a ser tratado pela medicina. Figura 1.7 – O homem elefante Fonte: CC BY 3.0. – 21 – Educação Especial: conceitos e fundamentos 1.4 Educação Especial no Brasil A atenção formal às pessoas com deficiência iniciou-se com a cria- ção de internatos, ainda no século XIX, sendo ideia importada da Europa, no período imperial. Segundo Bueno (1993), Januzzi (2004) e Pessotti (1984), foram criados o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atual Ins- tituto Benjamin Constant (IBC), por Dom Pedro II, por meio do Decreto Imperial n. 1.428, de 12 de setembro de 1854, e o Instituto dos Surdos Mudos, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), na então capital do Império, o Rio de Janeiro, em 26 de setembro de 1857. Figura 1.8 – Instituto Nacional de Educação de Surdos Fonte: Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines). Em 1872, no Brasil, existia uma população de 15.848 cegos e 11.595 surdos. Nessa época, havia a atenção mínima às pessoas cegas e surdas e ausência de atendimento às pessoas com deficiência física e intelectual. Eram atendidos ape- nas 35 cegos e 17 surdos (MAZZOTTA, 1996, p. 29). Há que se destacar que a fundação desses dois institutos constitui marco histórico na educação de cegos e de surdos, inspirando, no século XX, a criação de vários outros nas capitais brasileiras. Fundamentose Metodologia da Educação Especial – 22 – Ambos institutos foram criados pela intercessão de pessoas institu- cionalmente próximas ao Imperador. José Álvares de Azevedo, pessoa cega, filho do médico de Dom Pedro II, fora estudar na França. Ao regres- sar, sua capacidade de ler em Braille sensibilizara o Imperador, levando-o a ordenar a criação do Instituto Nacional de Cegos, o primeiro da América Latina. Essa prática da caridade revela o caráter assistencialista que carac- terizou a política e a Educação Especial no Brasil. O caráter assistencia- lista significa que as ações públicas voltadas à sociedade não são expres- são do reconhecimento dos direitos, não promovem a transformação das condições sociais da vida, mas visam à satisfação de interesses pessoais, políticos e econômicos. O assistencialismo, o clientelismo e o patrimonia- lismo são diferentes manifestações da fusão entre o público e o privado presente na cultura brasileira. Entre 1912 e 1913, segundo Januzzi, (2004), foi criado o chamado Laboratório de Pedagogia Experimental ou Gabinete de Psicologia Experi- mental, na Escola Normal de São Paulo, atual Escola Caetano de Campos. Em 1917, foram estabelecidas as normas para a seleção de “anormais”. Na época, havia preocupação com a eugenia da raça, o que provocava o medo da degenerescência e das taras. As crianças com deficiência intelectual eram encaminhadas à educa- dora sanitária, que devia assegurar que a escola só as aceitasse se não atrapa- lhassem o bom andamento da classe. Subordinada à Medicina, a Educação Especial assumia uma concepção voltada para a cura e para a reabilitação. Não havia a pesquisa sobre o conhecimento válido nem sobre as metodolo- gias que valorizassem as diferenças e capacidades singulares. Profissionais da área da Medicina e da Psicologia concediam o laudo para a segregação dos que prejudicavam o bom andamento da escola (BUENO, 1993). Havia duas tendências relacionadas à atenção às pessoas com defi- ciência intelectual: a médico-pedagógica e a psicopedagógica. A tendên- cia médico-pedagógica era centrada no princípio higienizador, resultando na instalação de escolas em hospitais, o que ampliou a segregação e os estigmas negativos da deficiência. Já a tendência psicopedagógica visava a identificação dos graus de severidade da deficiência, mediante a aplica- ção de testes psicológicos e escalas de inteligência, originando a criação de classes ESPECIAIS públicas nas escolas comuns, destinadas aos estu- dantes considerados com deficiência Leve ou moderada, de acordo com – 23 – Educação Especial: conceitos e fundamentos a classificação da época (JANNUZZI, 2004; MENDES, 1995). Sassaki (2005, p. 62) afirma que Ao longo da história, muitos conceitos existiram e a pessoa com esta deficiência já foi chamada, nos círculos acadêmicos, por vários nomes: oligofrênica; cretina; tonta; imbecil; idiota; débil profunda; criança subnormal; criança mentalmente anormal; mongoloide; criança atrasada; criança eterna; criança excepcional; retardada men- tal em nível dependente/custodial, treinável/adestrável ou educável; deficiente mental em nível leve, moderado, severo ou profundo (nível estabelecido pela Organização Mundial da Saúde, 1968); criança com déficit intelectual; criança com necessidades especiais; criança especial, etc. Mas, atualmente, quanto ao nome da condição, há uma tendência mundial (brasileira também) de se usar o termo deficiência intelectual, com o qual concordo por duas razões. A primeira razão tem a ver com o fenômeno propriamente dito. Ou seja, é mais apro- priado o termo intelectual por referir-se ao funcionamento do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo. Em 1926, foi criado o Instituto Pestalozzi, destinado à atenção às pessoas com deficiência intelectual. Em 1945, nesse instituto, foi implantado o serviço de atendimento às pessoas com altas habilidades/superdotação. Em 1954, foi inaugurada a APAE – Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais. Saiba mais Johann Heinrich Pestalozzi foi um pedagogista suíço e educador pio- neiro da reforma educacional. As faculdades do homem têm de ser desenvolvidas de tal forma que nenhuma delas predomine sobre as outras. Figura 1.9 – Faculdade do Homem Fonte: pestalozzi-canoas.org.br. Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 24 – Nos anos 50, ocorreu a expansão de entidades assistenciais, de cará- ter privado, o que desobrigava o poder público de oferecer atendimento educacional especializado. Em 1957, 58 e 60, o sistema público instituiu as campanhas nacionais para a educação dos cegos, dos surdos e da pessoa com deficiência intelectual. São organizados dois sistemas paralelos de educação para os estu- dantes com deficiência: a educação comum, com as classes especiais, e as escolas especiais, com os centros de reabilitação, tendo como objetivo a aquisição de habilidades para a integração social e preparação para o tra- balho. As escolas especiais exerciam um papel revolucionário, pois ofere- ciam o acesso à educação aos sujeitos que não tinham esse direito previsto em lei. Essa é a prova de que a organização social e política é transforma- dora do Estado, do direito, das políticas e do próprio ser humano. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) – Lei n. 4.024/61 – veio explicitar o compromisso do poder público brasileiro com a Educação Especial, nos artigos 88 e 89, no momento em que ocorria um aumento crescente das escolas públicas no País. No Art. 88, a Educação Especial é enquadrada no sistema geral de educação. Ou seja, estudante deve ser integrado na comunidade, quando for possível. No Art. 89, o Estado encarrega-se de conceder subvenção às escolas. Na década de 60, ocorreu forte expansão das escolas especiais, com os centros de reabilitação para todos os tipos de deficiência. Em 1969, o Brasil já contava com mais de 800 escolas especiais, quatro vezes mais do que no início da década. Ocorreu também grande expansão de classes especiais. Os estudantes eram classificados, retirados da escola comum e encaminhados para as classes especiais ou para as escolas especiais, devendo adquirir os pré-requisitos intelectuais e sociais para retornar à escola comum posteriormente. Era o início do Paradigma de Serviços, que visava a aqui- sição de habilidades para a integração social e prepara- ção para o trabalho. O princípio da integração significa que o estudante precisa adaptar-se às exigências da escola, como pré-condição para seu ajustamento social. – 25 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Em 1971, a Lei n. 5.692/71 definiu que os alunos com deficiência física, intelectual ou superdotação, que apresentassem defasagem na idade de matrícula, receberiam tratamento especializado (BRASIL, 1971). O Parecer do Conselho Federal de Educação (CFE) n. 848/72 recomenda a implementação de técnicas e serviços especializados para atender o alu- nado da Educação Especial. Isso significava a ênfase na Educação Espe- cial e não na integração do aluno com deficiência. Entre 1972 e 1974, a Educação Especial é incluída no rol das priorida- des educacionais no País. Em 1972, sob orientação do especialista James Gallagher, constitui-se uma comissão científica para elaborar diagnóstico da Educação Especial. Assim, em 1973, foi criado, por meio do Decreto n. 72.425, de 3 de julho de 1973, o CENESP, Centro Nacional de Educa- ção Especial. Tratava-se do primeiro órgão público federal vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, responsável pelas políticas da Educa- ção Especial, desde a Educação Infantil ao Ensino Superior. Em 1986, o CENESP foi transformado na Secretaria de Educação Especial (SEESP). O CENESP promoveu as seguintes ações: 2 regulamentação de escolas especiais e classes especiais. 2 formação de professores e técnicos no Brasil e no exterior. 2 repasse de recursos pedagógicos e financeiros para Estados e escolas especiais, a maioria da iniciativa privada. 2 gradativamente,os Estados passaram a estabelecer convênios de apoio técnico e financeiro com as entidades mantenedoras, contribuindo com o pagamento dos salários dos professores das escolas especiais, sem fins lucrativos. Em 1977, sob coordenação do CENESP, foi elaborado o I Plano Nacional de Educação Especial, cujo objetivo era ampliar o atendimento educacional das pessoas com deficiência nas escolas especiais e nas esco- las regulares. Em 1979, foi solicitado a algumas universidades a elaboração de pro- postas curriculares com conteúdos atenuados (JANUZZI, 2004). Em 1985, foi elaborada pelo CENESP nova proposta de educação, visando ampliar as oportunidades de acesso à educação por parte das pes- Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 26 – soas com deficiência. Aquela proposta de integração, tal como ocorria na Lei n. 4.024 de 1961, não previa a oferta de apoio especializado (JANU- ZZI, 2004). A institucionalização é “um lugar de residência e de trabalho, onde um grande número de pessoas, excluídas da sociedade mais ampla, por um longo período de tempo, levam juntas uma vida enclausurada e formal- mente administrada” (GOFFMAN, 1962). As críticas a esse paradigma e a esse sistema apontam sua inadequação e ineficiência para realizar o que se propõe: favorecer a preparação, ou a recuperação das pessoas com defici- ência para a integração social. No contexto institucional, haveria práticas descoladas das demandas sociais, o que tornaria a pessoa incapaz para adaptar-se à sociedade. Face às barreiras rígidas da sociedade, nos anos 70, fortaleceram-se os movimentos pela emancipação social e política das pessoas com defi- ciência. Assim, foram criadas centenas de associações de pessoas cegas, de pessoas surdas, de pessoas com deficiência física, as quais voltaram-se para as práticas desportivas, profissionalização, lazer e a empregabilidade. 1981 foi o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência, momento em que os movimentos sociais passaram a debater os problemas da educa- ção, a inserção no mundo do trabalho e a participação social. A sociedade começou a abrir espaços de trabalho e promover eventos esportivos e cul- turais, com apresentações artísticas de danças, teatro, música, artesanato, etc. Despontava o sujeito de direitos, que estava sufocado pelos duros critérios da normalização. Em 1986, foi criada a Coordenadoria Nacional para Integração Social da Pessoa com Deficiência (CORDE). Em 1989, com a promulgação da Lei n. 7.853, a CORDE passou a representar os interesses e assumir res- ponsabilidades relacionadas aos direitos, educação, saúde, trabalho, lazer, previdência social da pessoa com deficiência. Em 1993, com o Decreto n. 914, é proclamada a referida Política Nacional para Integração Social da Pessoa com Deficiência. Em 1994, é publicada a Política Nacional de Educação Especial, defi- nindo o alunado, os objetivos, os fundamentos axiológicos, os conceitos, – 27 – Educação Especial: conceitos e fundamentos as modalidades de atendimento e as diretrizes da Educação Especial. Uma das diretrizes daquela política era a de “desenvolver ações articuladas e integradas, entre as áreas de educação, ação social, saúde e trabalho, para os processos de avaliação, acompanhamento, diagnóstico diferencial, atendimento educacional e preparação para o trabalho” (BRASIL, 1994). Essa política está situada na perspectiva integradora, visando favore- cer a educação do estudante com deficiência, desde que “possua condições de acompanhar e desenvolver as atividades curriculares programadas no ensino comum” (BRASIL, 1994). A partir da década de 90, o Brasil aderiu à Declaração da Educação para Todos, produzida em Jomtien, Tailândia, em 1990, e foi signatário da Declaração de Salamanca, produzida em Salamanca, Espanha, em 1994 (BRASIL, 1994), ambas conferências mundiais da UNESCO. Ao assumir tais compromissos, passou a promover ações políticas, culturais, sociais e pedagógicas, para acolher a todos, indiscriminadamente, com qualidade e igualdade de condições. Desde 1995, o Brasil compromete-se com a construção de um sistema educacional inclusivo. Em 1998, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) vieram nor- tear e orientar os profissionais da educação quanto à relação professor/ aluno no desenvolvimento de um processo de ensino e aprendizagem efi- caz e significativo. Como passo subsequente a essa coletânea, o MEC/ SEESP publicou os PCN – Adaptações Curriculares em Ação, objetivando fortalecer o suporte técnico-científico aos profissionais da educação, de maneira geral. Em 1999, o Decreto n. 3.298 regulamenta a Lei n. 7.853, de 1989, e dispõe as competências da Política Nacional para Integração da Pessoa com Deficiência, fixando-as sob a responsabilidade da CORDE, cuja fina- lidade é elaborar políticas e programas relacionados às necessidades da pessoa com deficiência, orientando e acompanhando sua execução. Nas Políticas Nacionais de Educação Especial, na Perspectiva da Educação Inclusiva, que será analisada no Capítulo 3 deste livro, a Educação Inclusiva [...] constitui um paradigma educacional fun- damentado na concepção de direitos humanos, que conjuga a igualdade e Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 28 – diferença como valores indissociáveis, que avança em relação à ideia de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produ- ção da exclusão dentro e fora da escola (BRASIL, 2008, p. 1). As políticas, a cultura e as pedagogias inclusivas tomam a pessoa humana como sujeito de direitos, com igualdade de oportunidades, igual- dade jurídica, diversidade de condições, recursos de acessibilidade, de comunicação e códigos linguísticos. Figura 1.10 – Direito à diversidade Fonte: Portal MEC. 1.5 Contribuições teórico-metodológicas de alguns autores na área de Educação Especial 1.5.1 Jean Itard (1774-1838) Segundo o médico Jean Itard (1797) “o homem não nasce como homem, mas é construído como homem”. Em 1800, Itard recebeu a – 29 – Educação Especial: conceitos e fundamentos guarda de um menino capturado na floresta e que vivia há 12 anos como selvagem, conhecido como Victor de Aveyron. O menino selvagem de Aveyron, retirado da floresta francesa e levado ao Instituto dos Surdos, em Paris, foi diagnosticado por Pinel como radicalmente incapaz de apren- dizagem, desprovido de recursos intelectuais. Mas Itard acreditava que aquela deficiência era resultado de privações sociais e culturais, o que o levou a implementar um programa educativo. Victor foi educado por Itard e aprendeu hábitos, rudimentos de escrita e resposta a testes de inteligência. O menino apresentava o diagnóstico de deficiência intelectual grave, denominada de profundo, na época. Foi diagnosticado como incapaz de discriminações, mesmo grosseiras, entre odores, ruídos e imagens, incapaz de articular qualquer som vocal humano e fixar sua atenção em um dado objeto ou evento. Ao não aceitar o diagnóstico de Victor, Itard apontou o problema da deficiência intelectual na área da avaliação. O diagnóstico elaborado por Pinel era omisso com relação às causas da deficiência. Analisando- -as, Itard passou a prognosticar a curabilidade da deficiência de Victor, cuja causa foi atribuída por Itard à carência de experiências de exercício intelectual. Assim, Itard investia esforços na educação de Victor por meio da estimulação e ordenação da experiência. Itard prescrevia, também, atendimento psicológico e psiquiátrico, a medicina moral da época, o que consistia em propiciar condições emocionais e ambientais para a ocor- rência de comportamentos desejáveis e para a cessação do não desejado (PESSOTTI, 1984, p. 42). Para obter progressos, Itard explorava uma aquisição como pré- -requisito de outra. Ele aplicava estímulos externos, “excitantes internos ou morais”, objetivando o ajustamento social e emocional de Victor. As fases da pedagogia itardiana – “analisar o repertório comportamen- tal e sua produção; adequar materiaise graduar as instruções aos limiares perceptivos peculiares do órgão sensorial implicado” (PESSOTTI, 1984, p. 50) – estão ainda presentes na Educação Especial. No início do século XIX, a deficiência intelectual é tomada como um problema médico, passível de tratamento, mediante intervenção comportamental. A deficiência intelectual passa das mãos do inquisidor às mãos do médico. Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 30 – A experiência desenvolvida com Victor de Aveyron proporcionou a Itard trabalhar com a educação de surdos, ao longo de quatro décadas, utilizando o método oralista. Figura 1.11 – Cena do filme O garoto selvagem em que o Dr. Itard estimula o menino Victor à oralidade Fonte: educomunicacion.es. 1.5.2 Eduard Séguin (1812-1880) Nasceu na cidade de Clamecy, na França, e viveu na época do Ilu- minismo Francês. Antes de dedicar-se aos estudos de crianças com defi- ciência intelectual, Séguin cursava Direito, mas abandonou sua carreira e iniciou o curso de Medicina na França. De acordo com Mazzota (1996), foi discípulo de Itard aos 25 anos, ocasião em que ajudou nos cuidados de uma criança diagnosticada com idiotismo, denominação utilizada na época para o que hoje chamamos de deficiência intelectual. Entretanto, superou seu mestre ao demonstrar a importância de se abordar aspec- tos sociais e cognitivos, inserindo as crianças no coletivo, destacando a importância de suas experiências e vivências cotidianas, encorajando-as a criarem sua autonomia, com o apoio da família e da escola. Cada aluno era diagnosticado em sua individualidade, sendo considerados os aspectos subjetivos, como o temperamento e o contexto no qual estava inserido. Séguin abandonou os estudos da Medicina para tornar-se um educa- dor e foi o primeiro especialista na atenção à pessoa com deficiência inte- lectual. Por isso, foi considerado um dos fundadores da Educação Especial, – 31 – Educação Especial: conceitos e fundamentos pois sistematizou sua metodologia, por ele denominada método médico- -pedagógico, no qual considerava as anomalias fisiológicas e psicológicas (CAPUL E LEMAY, 2003). Ficou conhecido como “instrutor dos idiotas” e dedicava-se aos estudos com pessoas com síndrome de Down. Ele considerava o professor um pesquisador, e seu objeto de pesquisa eram os alunos e as práticas pedagógicas. Recomendava o uso de um diá- rio para registrar suas impressões e evoluções dos educandos, à medida em que iam superando obstáculos. Defendia o trabalho com sentidos, em que o educando, ao realizar atividades físicas, ia tomando consciência do próprio corpo, pois considerava que as pessoas com deficiência eram sub- metidas ao sedentarismo. Hoje, a coordenação das noções e dos gestos denomina-se movimento psicomotor. Segundo Tezzari (2010), Séguin defendia também um processo de ensino-aprendizagem lúdico e a alfabetização partindo do simples para o complexo, um trabalho coletivo de profissionais. Desenvolveu técnicas educativas, jogos lúdicos e atividades ao ar livre. Ele propunha problemas educativos, não aprendizagens automatizadas, prática comum na época. O fundamental era possibilitar ao aluno a manipulação concreta da reali- dade, explorando todos os sentidos. Isso inspirou Maria Montessori, pos- teriormente. Ele criou a primeira escola de tempo integral para crianças com deficiência intelectual. Posteriormente, em 1848, mudou-se para os Estados Unidos, onde ganhou espaço no meio acadêmico e conseguiu expressar suas ideias. Assim, concluiu o curso de Medicina e influenciou a criação de escolas especiais. Séguin criticou a visão médica organicista de Pinel e Esquirou, que consideravam a deficiência mental sem a possibilidade de mudança do quadro médico. Argumentava que eles não trabalhavam diretamente com os sujeitos, delegando o trabalho a auxiliares. Portanto, publicavam seus artigos baseados em suposições. Séguin também era organicista, pois não negava a questão orgânica de seus pacientes, entretanto, apontava a pos- sibilidade de progressão se houvesse a intervenção, ou seja, um processo educativo do treino sensório-motor. A progressão do paciente dependeria de três fatores: o grau de comprometimento de suas funções orgânicas, o quanto de inteligência que o sujeito com deficiência apresentava e a habi- lidade na aplicação do método. Defendia a existência de uma continuidade Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 32 – dos graus ou níveis de inteligência, sendo possível comparar o desenvol- vimento normal e o atrasado em diferentes áreas da educação, por meio de uma teoria psicogenética (TEZZARI, 2010). Autor de Lê Traité dês Sensations, Deficiência mental e seu trata- mento pelo método fisiológico e de Tratamento moral, higiene e educa- ção dos idiotas, que, segundo Pessotti, apresenta uma concepção teórica e metodológica do que posteriormente foi denominado Educação Especial. Antes, as denominações de idiota, imbecilidade e debilidade eram entendidas como falta de funções intelectuais. Séguin apresentou a nova concepção de enfermidades e etiologias diferentes, o que provocou uma ruptura na área científica voltada para deficiências (CANEVARO E GAU- DREAU, 1989). Apesar de suas ideias avançadas, sua obra não teve o devido reconhe- cimento em sua terra natal. Séguin conseguiu, de certo modo, a inserção de crianças que eram segregadas do convívio social. 1.5.3 Maria Montessori (1870-1952) Maria Montessori nasceu em Chiaravelli, Itália. Conforme aponta Nicolau (2005), aos 12 anos ela decidiu estudar engenharia na Regia Scuela Tecnica Michelangelo Buonarroti, em Roma, mas sofreu precon- ceito por ser a única mulher da turma. Entretanto, Tezzari (2009) relata que, ao ingressar para o ensino superior, decidiu estudar Medicina, con- trariando seu pai, que desejava que sua filha seguisse carreira na área da educação. Segundo Nicolau (2005, p. 6), ela e seu pai não se falavam, em decorrência de sua escolha acadêmica. Por causa da cultura machista pre- dominante na época, Montessori teve que pedir autorização para o Papa XIII para estudar Medicina. Ao iniciar seus estudos, continuou sofrendo com o preconceito de seus colegas. Em 1894, passou a atuar na área da Medicina, ganhou premiações por sua competência e conquistou reconhecimento acadêmico, tornando- -se a primeira médica italiana. Segundo Tezzari (2009, p. 117), passou a atuar na área de psiquiatria e a interessar-se pelos estudos de crianças com deficiência intelectual. Nessa ocasião, conheceu as obras de Itard e Edou- ard Séguin, que influenciou significativamente a elaboração de sua meto- – 33 – Educação Especial: conceitos e fundamentos dologia. Defendeu que as crianças deficientes deveriam ter um professor formado nessa função. Foi convidada para ministrar palestras na área de educação de deficientes intelectuais. Segundo Nicolau (2005, p. 9), Mon- tessori ingressou para o curso de Filosofia e Psicologia experimental na Universidade de Roma para compreender melhor as necessidades educa- cionais das crianças. Ocupou o cargo de educação de crianças carentes, filhos de operários na Casa Dei das Crianças, fundada em 1906, sendo uma instituição pri- vada. Em 1976, Montessori publica o livro intitulado A criança, em que relata com detalhes essa experiência, na qual notou a progressão das crian- ças após desenvolver atividades na aplicação do método desenvolvido por ela. Nele, o educador não impõe o conteúdo a ser ministrado, mas atua como um mediador da aprendizagem. Por isso sua metodologia influen- ciou diretamente a corrente chamada Escola Nova, que posteriormente foi implantada em diversas escolas do mundo. Montessori defende que os materiais devem ficar dispostos em prate- leiras à disposição das crianças, e elas devem ficar livres para escolher o que querem aprender, desde que seja com responsabilidade de respeitar o espaço do outro e trabalhar com cooperação, o que ajuda no desenvolvi- mento da personalidade. A partir de suas experiências, Montessoriclassi- ficou os níveis de desenvolvimento humano: 2 0 a 3 anos – mente absorvente inconsciente, em que a criança desenvolve a língua materna, hábitos, costumes, memória, etc. (ANTUNES, 2005, p. 34). 2 3 a 6 anos – mente absorvente consciente, em que a criança age sobre o ambiente. 2 6 a 12 anos – quando a criança desenvolve sua consciência moral e sua sociabilidade. 2 12 a 15 anos – o indivíduo passa pela puberdade, com transfor- mações abruptas. 2 15 a 18 anos – o indivíduo sente a necessidade de fazer parte de um grupo por afinidade, conquista a independência e autossufi- ciência econômica, entrando para a vida adulta. Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 34 – Montessori aliava a teoria à prática, pesquisou e desenvolveu mate- riais de caráter concreto, voltados para o manuseio da criança e a educação por meio dos sentidos, pois, assim, as crianças “decodificam o mundo ao seu redor” (FERRARI, 2008, p. 32). Por meio do concreto, a criança pode conhecer o abstrato. O educador pode observar o uso dos materiais e, se perceber que a criança faz um mau uso do material, pode em outro momento oferecer o material à criança. Além disso, deve sempre anotar em um diário as observações sobre o aprendizado do aluno, suas dificul- dades, para depois fazer a avaliação de forma processual e individual, de acordo com as especificidades de cada criança. 1.5.3.1 Algumas atividades propostas por Montessori Lição do silêncio A autora defende que as crianças façam um momento de silêncio para proporcionar o aprendizado de concentração e autocontrole. Lição dos três tempos Foi desenvolvida por Séguin e utilizada por Montessori. Primeiro, o professor mostra dois objetos e diz o nome, ou seja, transmite a infor- mação. Segundo, diz o nome de um dos objetos e pede para que o aluno demonstre qual é, ou seja, associa-se o nome ao fato. Terceiro, aponta-se para um dos objetos e pergunta “Qual é este?”, para testar o aprendizado da criança. Você sabia Maria Montessori – Uma vida dedicada às crianças é uma minissérie que mostra os momentos de maior destaque da vida da educadora: a gra- duação em Medicina, a militância feminina, o trabalho pioneiro com crianças deficientes, a fundação da Casa das Crianças, a relação com o filho Mário, entre outros eventos que marcaram a vida dessa mulher inacreditável e extraordinária. Trata-se de uma cinebiografia de Maria Montessori (1870-1952), médica, educadora e pedagoga italiana que criou um método educa- cional revolucionário. – 35 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Figura 1.12 – Método educacional montessoriano Fonte: Versátil Filmes. 1.5.4 Helen Keller (1880-1968) Nasceu em 27 de junho, nos Estados Unidos, na cidade de Tuscum- bia, Alabama, e ficou cega e surda aos 18 meses devido a uma doença que causou febre altíssima, tendo sido provavelmente escarlatina ou sarampo. Até os seis anos, uma criança surdocega permaneceu sem orientação peda- gógica adequada. Escreveu o livro A história de minha vida, publicado em 1903, e O diário de Helen Keller, em 1938. Sua história foi transformada em filme, intitulado Helen Keller e o Milagre de Anne Sullivan. Helen Keller relata que utilizava alguns sinais para comunicação com sua família para apresentar suas necessidades, mas tinha grandes dificuldades. Em 1887, quando Helen tinha seis anos, a professora Anne Sullivan, que trabalhava na escola Perkins School for the Blind, em Boston, foi contratada por indicação de Alexander Graham Bell, que era amigo da família. Anne Sullivan foi uma criança com deficiência visual, tendo recu- perado a visão após nove cirurgias. Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 36 – Helen tinha um comportamento agressivo por não conseguir se comunicar e expressar seus desejos. Sua família pretendia enviá-la para um asilo. A chegada de Anne Sullivan mudou radicalmente a vida e o futuro de Helen Keller, como relata em seu livro: O dia mais importante de toda minha vida foi o da chegada de minha professora Sullivan. Fico profundamente emocionada, quando penso no contraste imensurável das duas vidas que se jun- taram. Ela chegou no dia 3 de março do 1887, três meses antes de eu completar sete anos. Belos dias como estes fazem o coração bater ao compasso de uma música que nenhum silêncio poderá destruir. É maravilhoso ter ouvidos e olhos na alma. Isto completa a glória de viver. Anne Sullivan era rigorosa em seus objetivos de desenvolver auto- nomia na aquisição de habilidades cotidianas, como comer, vestir-se e autocuidado, além de ensinar a comunicar-se. Por isso, resolveu trabalhar com Helen em uma casa em separado, durante algumas semanas, para que pudesse ensiná-la sem a interferência da família. Movida pelo sentimento de pena, a família de Helen Keller a deixava fazer tudo que desejasse, caracterizando a ausência da cultura, das trocas afetivas e comunicativas, instalando-se uma forma de abandono. A metodologia de Anne para a alfabetização era entregar um objeto em sua mão e depois fazer sinais táteis, o alfabeto manual, que represen- tavam o nome do objeto. Assim, conseguiu estabelecer comunicação por meio das mãos, do tato. O primeiro objeto foi uma boneca confeccionada por uma ex-aluna surdocega de Anne Sullivan. Helen tocava a boneca e Anne representava em suas mãos as letras que correspondiam à pala- vra doll. Posteriormente, passou a ensinar outras palavras, como “bolo” e “água”. Conforme Helen ia progredindo no aprendizado das palavras, Anne passou a histórias fictícias e explicações detalhadas, o que motivou Helen a se interessar pela leitura e pelo aprendizado. Após aprender a comunicar-se, Helen modificou seu comportamento de agressividade. Anne Sullivan foi a única professora de Helen Keller, focando todos os seus esforços no seu aprendizado, ajudando-a a superar suas dificulda- des. Posteriormente, Helen aprendeu a ler por meio do sistema Braille e a falar colocando a mão na boca e na garganta de sua professora para sentir o movimento dos lábios e a vibração da voz. Atualmente, esse método – 37 – Educação Especial: conceitos e fundamentos é conhecido como Tadoma. Permaneceram juntas até a morte de Anne Sullivan, em 1935. Helen Keller teve contato com outras crianças com deficiência visual e pôde comunicar-se com outras pessoas além da professora, pois antes Sullivan era a mediadora na comunicação. Ingressou para a universidade Colégio Radcliffe, graduando-se em Filosofia, em 1904. Anne acompanhou Helen durante todo período de sua graduação, transmitindo os livros que não existiam em Braille por meio do alfabeto manual. Helen criticou a quantidade de leituras obrigatórias, que não a permitiam pensar e refletir. Pensava ela que “a experiência humana não seria tão rica e gratificante se não existissem obstáculos a superar”. Considerou que antes a leitura era prazerosa, permitindo compreender o mundo, mas quando se torna uma obrigação, não estabelece uma liga- ção emocional com a imaginação. Após formada, passou a redigir artigos científicos sobre cegueira e fazer conferências em todo o mundo. Figura 1.13 – Cena do filme The miracle worker, quando Helen percebeu que aqueles sinais simbolizavam coisas e palavras Fonte: Playfilm Productions. Anne Sullivan ensinou a Helen o método de comunicação chamado de Tadoma, em que a pessoa toca os lábios e garganta de outras enquanto eles conversam, combinado com soletrar (em alfabeto de Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 38 – linguagem dos sinais) na palma da mão da criança as palavras. Mais tarde, Helen aprendeu Braille e com ele aprendeu não somente a ler em inglês, mas também em alemão, latim, grego e francês. Helen Keller nos ensina a importância de darmos plena atenção ao que fazemos no presente, pois somente nessas condições podemos extrair algum aprendizado. Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão aos que veem – um con- selho àqueles que deveriam fazer completo uso do dom davista: servi-vos dos vossos olhos como se amanhã fosse cegar. O mesmo princípio é válido para o restante dos sentidos. Ouça a música das vozes, o canto de uma ave, os poderosos acordes de uma orquestra, como se amanhã fosse tornar-se surdo. Toque em tudo que desejar, como se amanhã fosse ficar privado do tato. Aspire o perfume das flores, saboreie com deleite os vossos alimentos, como se amanhã fosse perder o olfato e o paladar (SULLIVAN, 2000, p. 98). Helen Keller escreveu um texto denominado Três dias para ver (dis- ponível em: http://www.cerebromente.org.br/n16/curiosidades/helen. htm) que pode ser fonte inspiradora para organização de práticas pedagó- gicas. Por exemplo, o professor pode solicitar a um grupo de alunos que observem o caminho que fazem da casa para a escola, prestando atenção nos aspectos naturais e humanos da paisagem, elaborando um texto como resultado dessas observações. 1.6 História vivida pelo autor deste livro No fim dos anos 70 do século XX, as pessoas com deficiência toma- vam consciência do lugar de tutelados, infantilização e subserviência a que eram submetidas. Fortalecidas pela ideia da emancipação social e política, as pessoas com deficiência mobilizavam-se na fundação de asso- ciações para defesa de seus direitos, expressão de suas vozes, reconheci- mento de suas capacidades, conquista de autonomia e superação da con- dição de dependência e de inferioridade, tal como eram vistas na época. Elas enfrentaram a primeira fronteira da invisibilidade: o isolamento, a aceitação da incapacidade, a naturalização do não acesso aos bens sociais, o medo de tomar decisões e de produzir a nova materialidade jurídica, conceptual, valorativa e estrutural do mundo no qual desejavam viver. – 39 – Educação Especial: conceitos e fundamentos Diante de uma história de tutela, infantilização e silenciamento, a primeira barreira a vencer está localizada na autoimagem de cada pessoa. A crença na própria inferioridade é uma marca doída e dura para ser remo- vida. O sentimento de menos produz um automatismo que anula o pensa- mento e mata o desejo. Essa sensação de inferioridade resulta na natura- lização e na aceitação do isolamento em relação às oportunidades sociais. As pessoas eram cegas e a sociedade não as enxergava. O isolamento e a incapacidade eram uma construção social. Propagavam-se o assisten- cialismo e as limitações laborais da pessoa cega. Era necessário transfor- mar essa carga pesada, essas dificuldades associadas à deficiência visual: a infantilização e a condenação à inferioridade social e política. As pessoas com deficiência eram convencidas a aceitar “contingências” desse mundo. Havia que naturalizar o sofrimento decorrente da deficiência, as perdas e as desigualdades sociais. Então, nós, pessoas com deficiência, organizamo-nos, fundamos associações em diferentes centros urbanos do Brasil. Desde os anos 80, passamos a participar de discussões em âmbito local, regional, nacional e internacional. Compartilhamos experiências entre importantes persona- gens com deficiência visual, tais como: Luiz Geraldo de Mattos, Édson Lemos, Adilson Ventura, Ari Paulo de Souza, Hersem Ildebrandt, Maurí- cio Zeni, Valdomiro Valentim Teodoro e outros companheiros. O profes- sor Valdomiro Valentim Teodoro, presidente da Associação dos Deficien- tes Visuais do Paraná (ADEVIPAR), da qual sou um dos fundadores, era uma das principais lideranças e dizia: “nós queremos ter o direito de errar e assumir as consequências das nossas decisões”. Pessoas com deficiência começavam a entender aquela falsa natu- ralização da desigualdade. Palavras que evidenciam que nós entendemos a necessidade de organizar os eventos sociais, esportivos e educativos. Fomos movidos a planejar e lutar para obtenção da estrutura e das condi- ções materiais. Enfrentando a busca dos próprios objetivos, aos poucos, as pessoas foram tomando consciência de suas próprias necessidades. Reunidos, os mais experientes, movidos pela consciência crítica sobre a deficiência, alimentavam nos mais jovens o sonho de poder lutar em prol da satisfação dos próprios interesses. Na participação social, a palavra simboliza o nascimento da pessoa. Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 40 – Havia a percepção de um abismo que separava as oportunidades sociais, profissionais e a vida segregada das pessoas com deficiência. Ini- cialmente, elas pisaram o próprio chão. Elas pensaram juntas quais eram seus sonhos principais, suas necessidades principais. Elas sentiram o pul- sar do desejo em seus corpos, ávidos por novos encontros e novas expe- riências. Elas enxergaram o lugar que ocupavam. Sentiam-se conduzidas, mas desejavam sua autodeterminação. As pessoas com deficiência visual já frequentavam escolas comuns e já cursavam o Ensino Superior, mas não havia organização social e polí- tica. Não havia a consciência dos próprios direitos. Não havia participa- ção. Então, não havia o desejo de acessos sociais e profissionais para além do universo simbólico das próprias mãos. As mãos permitiam o acesso à leitura em Braille, as mãos propiciavam a realização de certo trabalho, mas aquilo não era nem poderia ser tudo. Assumir o protagonismo social e político significava participar do mundo do trabalho e superar a exploração do trabalho manual precarizado. Era fundamental romper com os estigmas da defici- ência associada a visões sobrenaturais, como a piedade, o pecado, a ausência de vontade, a consciência ingênua, a infantilização da sexualidade, a docilidade, a ignorância, a escuridão, a segrega- ção e a incapacidade para tomar decisões e atuar no mundo. Rompiam-se as crenças estigmatizadas, veiculadas no contexto social em que fomos educados. Rompia-se a tutela dos nossos porta-vozes. Era necessário organizar cursos de formação pro- fissional. Aprendemos a buscar os apoios de que necessitáva- mos para nos tornarmos mais autônomos e independentes. Figura 1.14 – Professor Dr. Paulo Ricardo Ross ministrando palestra Fonte: Agência da Hora/Eduarda Wilhelm Possenti 2 Concepções teóricas: os paradigmas e os olhares sobre a deficiência 2.1 Do modelo biomédico ao direito à diferença A história da atenção da sociedade em relação às pessoas com deficiência é marcada pelas fases da exclusão, segregação institucional, integração e inclusão (SASSAKI, 1997). No longo período de exclusão, as pessoas com deficiência eram rejeitadas, exploradas e aniquiladas de seus direitos e de sua própria vida. Neste capítulo, vamos estudar as teorias inatistas, ambien- talistas, histórico-cultural, considerando as implicações sobre o atendimento educacional prestado às pessoas com deficiência. Vamos analisar o modo como a sociedade vem organizando os serviços, os modelos de atenção às pessoas com deficiência, denominados de paradigma de serviços, constituído com a ide- ologia da normalização social, além do paradigma de suporte, orientado com os princípios da inclusão social e da diversidade. Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 42 – 2.2 O modelo médico-clínico e a prática da segregação Como observamos no primeiro capítulo, durante um longo período da história, as pessoas com deficiência foram inicialmente excluídas e poste- riormente segregadas. No século XVI, a Revolução Burguesa derrubou as monarquias, enfrentou e superou a hegemonia religiosa e implantou um novo modo de produção: o capitalismo mercantil e o industrial. Iniciou-se a formação dos Estados Modernos, instituiu-se o direito positivo, culmi- nando com a proclamação dos Direitos do Homem, em 1789. Consoante com a visão antropocêntrica, durante quinhentos anos, a institucionalização foi o primeiro paradigma que dominou as relações entre a sociedade e a pessoa com deficiência. Um paradigma funda-se em valo- res e ações, concepções filosóficas e práticas sobre determinada estrutura material. Neste modelo, proclamavam-se os valores da incapacidade, da improdutividade, inaptidão para o trabalho.A consequência era a prática da institucionalização, a segregação da pessoa em relação à vida supostamente livre das pessoas consideradas produtivas, aptas para o trabalho. As pessoas com deficiência deixam de ser vistas como endemoniadas ou pecadoras, mas, sob o crivo da autoridade do cientista, passam a ser sumariamente institucionalizadas. A outra consequência é a classificação rígida dos graus de severidade da deficiência. 2.3 A teoria da organicidade e a concepção inatista Você já ouviu as expressões “Pau que nasce torto nunca se endireita” ou “Filho de peixe, peixinho é”? A concepção inatista considera que as pessoas nascem com características que não mudam ao longo da vida. Essas expressões são um exemplo dessa concepção. O modelo organicista instituiu a ideia de que a deficiência resulta de fatores orgânicos, hereditários, congênitos e não espirituais. A deficiência – 43 – Concepções teóricas: os paradigmas e os olhares sobre a deficiência passou a ser percebida como resultado de causas naturais e não sobrena- turais. Foi deslocada do campo teológico para o científico racional, mas permaneceu sendo percebida pela visão inatista do ser humano. A teoria inatista parte do princípio de que nós já nascemos prontos, dotados de características que se potencializam com o amadurecimento. Essa teoria está presente no determinismo biológico, nas teses evolucionistas, no pen- samento teológico, no idealismo filosófico. Na educação, constatamos a visão inatista em certas práticas rela- cionadas a talentos considerados “naturais” em pessoas cegas, superdo- tadas ou com altas habilidades, assim como a agressividade se manifesta em pessoas com certos distúrbios de personalidade. É comum ouvirmos relatos de professores, alegando que o estudante não aprende porque apre- senta uma deficiência sensorial, intelectual. No idealismo, a consciência determina o ser social e não o contrá- rio. Assim, a concepção inatista centra-se primeiro na deficiência como falta, ou disfunção e, depois, como incapacidade para aprender e inca- pacidade social. Na teoria inatista, as dificuldades, as limitações observadas nas pes- soas com deficiência são consequências das caraterísticas herdadas biolo- gicamente. A externalidade é mero fenômeno da internalidade. A teoria inatista dá sustentação ao pensamento pedagógico que toma o diagnóstico médico como um dogma a ser guiado. O laudo médico comunicaria ao professor o “destino individual” de cada aluno com defici- ência. Suas capacidades intelectuais, afetivas e sociais já estariam prontas, pré-fixadas pelo diagnóstico médico. Com o poder da ciência, passava-se a acreditar na cura da deficiência, por meio de tratamento com os especialistas de cada sociedade. Tratava-se de nova forma de negação da pessoa com deficiência. Ela só seria aceita caso fosse curada da deficiência que lhe acometia. A deficiência era capturada pelas ações do assistencialismo e do cien- tificismo. Iniciava-se a crença na educabilidade da pessoa com deficiên- cia. Surgia a classificação da capacidade para o trabalho, gerando nova separação entre as consideradas produtivas e improdutivas. Toda pessoa com capacidade produtiva gozaria da liberdade. A incapacidade produtiva determinaria a segregação social. As atribuições místicas e sobrenaturais Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 44 – da deficiência eram substituídas pela classificação racional, definindo os critérios de produtividade e de severidade da deficiência. A exclusão social das pessoas com deficiência recebia a chancela das instituições, como os hospitais, as casas asilares e as casas de caridade. Pessoas que não se enquadravam na comunidade por não seguirem os padrões de comportamento desejados eram transferidas para o interior das instituições. O projeto da sociedade harmônica afasta aqueles identifica- dos como desviantes, vagabundos, loucos de todo gênero e com deficiên- cia, condenados ao isolamento social. Saiba mais A História da loucura na Idade Clássica, de Michel Foucault, é importante referência no entendimento do processo de transformação da loucura em doença mental e de seu encarceramento nos asilos. No fim do século XVIII, havia um total de 126 casas de correção na Ingla- terra. Anos depois espalham-se por toda a Europa. A própria população ajuda a isolar os insanos, segregando-os e atribuindo-os uma nova pátria. O internamento aparece como algo desumano, que revela que os insanos não podiam responder por si mesmos – visto que, por serem loucos, não tinham consciência dos seus atos; eram predestinados. Figura 2.1 – A História da Loucura na Idade Clássica Fonte: Editora Perspectiva. – 45 – Concepções teóricas: os paradigmas e os olhares sobre a deficiência Contrariamente, a concepção religiosa conferia à pessoa com deficiência uma positividade mística, um bem não percebido pela apa- rência física, uma santidade da alma. Essa concepção especulativa e sobrenatural determinava as aproximações, a proteção, o cuidado, a caridade, a assistência espontânea a certas necessidades básicas das pessoas com deficiência. Já sob os auspícios do especialista, a pessoa com deficiência é consi- derada negativa ao bom funcionamento da sociedade, por isso, há que ser condenada ao enclausuramento. Com a transformação da ciência, da dimensão abstrata para a potên- cia material, criam-se novos instrumentos e máquinas. A produção eco- nômica desloca-se do campo para as cidades. A casa – antigo centro da economia oicos nomus – norma da casa – é desocupada do trabalho e do sacrifício diário. A fábrica é o novo espaço de trabalho. Desde o século XVI, torna-se hegemônico o modelo de institucio- nalização da pessoa com deficiência. Acreditava-se que, em ambientes segregados, as pessoas seriam melhor protegidas da sociedade. As pes- soas com deficiência eram excluídas da sociedade para qualquer atividade. Predominava a concepção utilitarista e economicista do ser humano. Cada pessoa era avaliada em razão de sua capacidade e funcionalidade para o trabalho, tomando-se apenas o corpo orgânico como potencial produtivo. A deficiência era o critério para considerar as pessoas como inválidas, sem utilidade para a sociedade e incapazes para trabalhar. As pesquisas de Pestalozzi (1746-1827), Froebel (1782-1852), Itard (1774-1838), Séguin (1812-1880) e Borneville (seguidor de Séguin), Binet (1905), Maria Montessori (1870-1922) e Decroly (1871-1922) jus- tificam a necessidade material de afastar a deficiência do campo estrita- mente médico. 2.4 Concepção ambientalista A teoria ambientalista é inspirada na filosofia empirista, na qual o conhecimento resulta da experiência, que passa pelos sentidos. O empi- rismo, base do método científico, preconizava a objetividade, a neutra- Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 46 – lidade, a experimentação, a observação e a verificação. A teoria ambien- talista é também conhecida como Behaviorista, ou comportamentalista. Todo comportamento é percebido como consequência das condições ambientais. Essa teoria explicaria a passividade e a agressividade de deter- minadas pessoas, enxergando uma educação de superproteção, o aban- dono e o isolamento social. Essa concepção analisa os comportamentos observáveis e elabora um diagnóstico a partir do observado. Utiliza-se de procedimentos, como o de estímulo X resposta, para experimentar, medir, comparar e controlar comportamentos, habilidades, raciocínio, etc. Para o Behaviorismo, o objeto de estudo da Psicologia é o com- portamento, que é estudado por meio do estímulo-resposta, que provém da interação do indivíduo com o ambiente, ou seja, o ambiente produz um estímulo e o indivíduo responde a ele. Figura 2.2 – Behaviorismo Fonte: www.lejsl.com. Segundo Pessotti (1984), John Locke propôs, em sua obra Essay Concerning Human Understanding (1690), que o homem, ao nascer, é uma tábula rasa, ou seja, um ser absolutamente vazio de informações e de experiências.Segundo o autor, sua mente vai se preenchendo com a experiência, fundamento de todo o saber. A tese do desenvolvimento por meio da estimulação ambiental, proclamada por Locke, contribuiu para as iniciativas de educação, o que viria a acontecer a partir do século XVIII. – 47 – Concepções teóricas: os paradigmas e os olhares sobre a deficiência O conhecimento da medicina favoreceu o diagnóstico médico da deficiência, situando-a no âmbito do funcionamento orgânico, afastando as especulações do misticismo. A Medicina e Psiquiatria acumularam conhecimento acerca da etiologia da deficiência, a identificação das cau- sas orgânicas e biológicas das patologias. Telford e Sawrey organizam um tipo de classificação da deficiência, baseada no “desvio” para mais e para menos em relação ao grau médio de normalidade presente nas pessoas, classificados em: desvio intelectual, desvio motor, desvio sensorial, des- vio funcional, desvio orgânico, desvio de personalidade e desvio social. Cada um desses problemas mencionados, separadamente, levaria uma pessoa a certo grau de marginalização, conforme a qualidade do acesso aos serviços sociais de apoio. No século XX, a pessoa com deficiência sofreu novas formas de exclusão, reforçada pela crença na eugenia da raça humana, defendida por Francis Galton. Com efeito, o termo eugenia vem do grego e signi- fica “bem-nascido”. Trata-se da busca pela melhoria da espécie humana física e mental por meio da escolha de genitores, para se obter um con- trole social. Galton foi influenciado pela teoria da evolução da espécie, de Charles Darwin, e contribuiu para a propagação da concepção conhecida como “darwinismo social”, ou seja, a existência e sobrevivência são pri- vilégio dos sujeitos mais aptos (DIWAN, 2007). Esse pensamento serviu para justificar práticas discriminatórias e racistas, como o antissemitismo e o nazismo de Hitler (MACIEL, 1999). Apesar de o termo “eugenia” ser cunhado por Galton, essa ideia já existia desde a antiga Grécia, onde os recém-nascidos com deficiência eram sacrificados. Esse pensamento levou à segregação de todos os indivíduos que não seguiam os padrões estabelecidos pela sociedade e refletiu-se nas políticas públicas voltadas à educação, como é apontado por Schneider e Meglio- ratti (2012). No Brasil, foi criado o Instituto Brasileiro de Eugenia e publi- cado o Boletim de Eugenia, entre os anos de 1929 e 1933, para divulgar as ideias e práticas. Segundo os defensores da eugenia, os problemas do país teriam origem racial. A educação era identificada como a instância que alcançaria a melhoria racial e social. Era estimulada a educação dos euge- neizados, os considerados bem-nascidos. Já a educação para os disgênicos era considerada dispendiosa, pois não teriam a possibilidade de progredir (MAI e BOARINI, 2002). Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 48 – Na Constituição de 1934, Art. 148, proclamava-se que cabia [...] à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das respectivas leis: a) estimular a educação eugênica; [...] f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impe- çam a propagação das doenças transmissíveis (BRASIL, 1934). A referida higiene social, de forma implícita, pressupunha eliminar da sociedade indivíduos considerados geneticamente inferiores, incluindo as pessoas com deficiência, que eram vistas como um obstáculo para o desenvolvimento da sociedade e para o aperfeiçoamento da raça humana. O pensamento eugenista médico-ambientalista pregava a necessidade da “limpeza ambiental”, que passava por uma “limpeza social”. Figura 2.3 – Ideia de higienismo Fonte: Shuttestock.com/Drawlab19 A ideia de limpeza social alimentava o preconceito em relação às pessoas com deficiência. Segundo Silva (2006, p. 426), “O preconceitu- oso afasta esse “outro”, porque ele põe em perigo sua estabilidade psí- quica. Assim, o preconceito cumpre também uma função social: cons- truir o diferente como culpado pelos males e inseguranças daqueles que são iguais”. – 49 – Concepções teóricas: os paradigmas e os olhares sobre a deficiência Reflexão O conceito de deficiência associado à ideia de desvio não representa os valores atuais, porque não aceitamos mais as estigmatizações, as superstições, o abandono deliberado, a negligência com os direitos à segurança pessoal e proteção social, direito à educação e ao tratamento digno. Não aceitamos a ideia do desvio, porque não somos compará- veis a um ser humano considerado médio. Somos todos singulares, úni- cos e merecedores da atenção social, dos recursos que propiciam bem- -estar físico, psicológico e interações humanas que respeitem as nossas necessidades, nossa capacidade comunicativa. A Psicologia e a Pedagogia observam a importância dos afetos na cons- tituição do psiquismo, o significado da língua, dos signos e dos sím- bolos na formação do pensamento e na produção das relações sociais. Verificamos a importância das mediações humanas, o uso de instru- mentos e recursos de acessibilidade e as adequações para a aprendi- zagem e a autonomia das pessoas com deficiência. Esse conhecimento acumulado, além de outros fatores sociais e políticos, pressiona pela superação desse modelo que reinou como dominante por mais de qui- nhentos anos. 2.5 Paradigma de serviços, normalização e integração social A institucionalização caracterizou-se pela retirada das pessoas com deficiência de suas comunidades de origem e pela manutenção delas em instituições residenciais segregadas ou escolas especiais, frequentemente situadas em localidades distantes de suas famílias. Somente no século XX, por volta de 1960, o paradigma da institucio- nalização começou a ser criticamente examinado. Erving Goffman publi- cou, em 1962, Manicômios, prisões e conventos, publicado em São Paulo/ Fundamentos e Metodologia da Educação Especial – 50 – SP, pela T.A. Queiroz Editor Ltda., trabalho que se tornou uma obra clás- sica de análise das características e efeitos da institucionalização para o indivíduo. Sua definição de instituição total é amplamente aceita até hoje. Com a crise da institucionalização, baseada no insucesso da “recu- peração” e nas dificuldades de inserção produtiva da pessoa com defici- ência, iniciou-se um novo movimento pela desinstitucionalização, que se orientava pela ideologia da normalização, que defendia a necessi- dade de integrar a pessoa na sociedade, desde que adquirisse os padrões de comportamento propagados pela sociedade. Havia que se ajustar à norma. A normalização significava assimilar, agir de acordo com as nor- mas vigentes. Normalizar significa obrigar o outro a inserir-se na norma. Com efeito, norma refere-se a um padrão de comportamento a ser seguido, um automatismo mental. As normas da sociedade mudam conforme o espaço e o tempo. Por exemplo, o modo de vestir-se dos tempos atuais não é o mesmo dos tempos antigos. Assim como as normas que valem para nosso país não são aceitas em outras sociedades. Para ilustrar o conceito de norma, reflita sobre esta história: A metáfora dos cinco macacos (Autor desconhecido) Um grupo de cientistas colocou cinco macacos em uma jaula. No meio da jaula, uma escada e, sobre ela, um cacho de bananas. Quando um macaco subia na escada para pegar as bananas, um jato de água fria era acionado em cima dos que estavam no chão. Depois de um certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros pegavam-no e enchiam-no de pan- cada. Com mais algum tempo, mais nenhum macaco subia a escada, apesar da tentação das bananas. Então, os cientistas substituíram um dos macacos por um novo. A primeira coisa que ele fez foi subir a escada, dela sendo reti- rado pelos outros, que o surraram. Depois de algumas surras, o novo integrante do grupo já não mais subia a escada. Um segundo macaco, veterano, foi substituído, e o mesmo ocor- reu, tendo o primeiro substituto participado,
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