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81 Psicologia: Teoria e Pesquisa Jan-Mar 2007, Vol. 23 n. 1, pp. 081-090 sexua�s não-hegemôn�cas, com base em um ‘olhar’ crít�co ao modelo b�oméd�co trad�c�onal, marcado por uma le�tura essenc�al�sta e b�olog�zante sobre a sexual�dade. Para tanto, fo� de fundamental �mportânc�a o estabelec�mento de pontes �nterd�sc�pl�nares que v�ab�l�zaram transcender a nossa for- mação acadêm�ca, s�tuada no contexto da c�ênc�a ps�cológ�ca. Ir além dos conhec�mentos produz�dos pela ps�colog�a é uma necess�dade, cons�derando o caráter em�nentemente �nterd�s- c�pl�nar dos estudos de gênero e sexual�dade. In�c�almente apresentaremos algumas cons�derações sobre a nossa perspect�va teór�ca e sobre os processos �den- t�tár�os, com destaque para as �dent�dades de gênero e as �dent�dades sexua�s. A perspectiva sociocultural construtivista Na at�v�dade de pesqu�sa, sempre part�mos de um refe- renc�al teór�co que or�enta o nosso “olhar” e a nossa ação, enquanto pesqu�sadores(as). Mesmo quando d�alogamos com outras abordagens teór�cas, é fundamental não perdermos de v�sta o nosso ponto de part�da teór�co. Ao real�zarmos um percurso �nterpretat�vo sobre determ�nada temát�ca, encon- traremos uma mult�pl�c�dade de autores(as) e de abordagens teór�cas proven�entes de d�versas áreas do conhec�mento e “(...) Nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos do Estado a um nível muito mais elementar, quotidiano, não forem modi- ficados” (Foucault, 1996, p. 149-150). A part�r da perspect�va soc�ocultural construt�v�sta, o presente art�go tem como objet�vo anal�sar a construção das �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas em jovens adultos na c�dade de Brasíl�a, com base em uma pesqu�sa qual�tat�va que part�u do quest�onamento amplo: como suje�tos concretos dão sent�do às suas v�vênc�as homoerót�cas? Neste art�go, destacamos as relações entre os processos �dent�tár�os e a construção de estratég�as para l�dar com o preconce�to e a d�scr�m�nação no que tange às �dent�dades 1 A pesqu�sa apresentada neste art�go corresponde à D�ssertação de Mestrado da pr�me�ra autora, sob a or�entação da segunda, �nt�tulada A construção das �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas: gênero, l�ngua- gem e const�tu�ção da subjet�v�dade. D�ssertação de Mestrado defend�da no Inst�tuto de Ps�colog�a da Un�vers�dade de Brasíl�a em dezembro de 2000. Apo�o: Conselho Nac�onal de Desenvolv�mento C�entífico e Tecnológ�co - CNPq. 2 Endereço: SHCGN 716, Bloco G, Apto. 312, Brasíl�a, DF, Bras�l 70770- 737. E-mail: afam2001@terra.com.br Identidades Sexuais Não-hegemônicas: Processos Identitários e Estratégias para Lidar com o Preconceito1 Ana Fláv�a do Amaral Madure�ra Angela Mar�a Cr�st�na Uchôa de Abreu Branco Universidade de Brasília RESUMO – A part�r da perspect�va soc�ocultural construt�v�sta, o art�go tem como objet�vo anal�sar a construção das �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas em jovens adultos na c�dade de Brasíl�a, com base em uma pesqu�sa qual�tat�va que part�u do quest�onamento amplo: como suje�tos concretos dão sent�do às suas v�vênc�as homoerót�cas? Part�c�param da pesqu�sa se�s homens e quatro mulheres de classe méd�a de Brasíl�a que se reconhecem como pessoas que apresentam uma or�entação sexual d�st�nta da heterossexual�dade. O estudo �nd�cou a �mportânc�a das estratég�as pessoa�s e colet�vas ut�l�zadas no cot�d�ano para l�dar com o preconce�to e a d�scr�m�nação em relação às �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas. Ta�s estratég�as são const�tut�vas da forma como os(as) part�c�pantes v�venc�am as suas exper�ênc�as homoerót�cas, bem como se pos�c�onam em suas relações soc�a�s e cons�go mesmos(as). Palavras-chave: gênero; sexual�dade; homossexual�dade; �dent�dades sexua�s; preconce�to. Non-hegemonic Sexual Identities: Identity Processes and Coping Strategies Concerning Prejudice ABSTRACT – As from a construct�v�st soc�ocultural perspect�ve, the present art�cle a�ms at analyz�ng the construct�on of non-hegemon�c sexual �dent�t�es �n young adults l�v�ng �n the c�ty of Bras�l�a, based on a qual�tat�ve research start�ng from a broad quest�on�ng: how do �nd�v�duals g�ve mean�ng to the�r homoerot�c exper�ences? S�x m�ddle-class men and four women l�v�ng �n Bras�l�a, who see themselves as non-heterosexually or�ented, part�c�pated �n the research. The results �nd�cate the �mportance of collect�ve and personal strateg�es employed �n da�ly l�fe by the �nd�v�duals to cope w�th prejud�ce and d�scr�m�- nat�on related to non-hegemon�c sexual �dent�t�es. Such strateg�es are const�tuent of the way the part�c�pants l�ve w�th the�r homoerot�c exper�ences, as well as w�th the�r soc�al relat�ons, and w�th themselves. Key words: gender; sexual�ty; homosexual�ty, sexual �dent�t�es; prejud�ce. 82 Ps�c.: Teor. e Pesq., Brasíl�a, Jan-Mar 2007, Vol. 23 n. 1, pp. 081-090 A. F. A. Madureira e A. M. C. U. A. Branco para não nos perdermos nesse percurso é essenc�al expl�c�tar não apenas os nossos objet�vos (aonde desejamos chegar), mas também as nossas bases teór�co-ep�stemológ�cas. De forma ma�s específica, o que caracter�za a perspect�va so- c�ocultural construt�v�sta? Apesar da consc�ênc�a das d�ficuldades �nerentes a qual- quer defin�ção, defin�mos de forma d�dát�ca a perspect�va soc�ocultural construt�v�sta como uma perspect�va teór�ca, �nser�da no contexto das correntes soc�ogenét�cas, que busca, por me�o da síntese cr�at�va das contr�bu�ções da Ps�colog�a H�stór�co-Cultural de Vygotsky e colaboradores e do cons- trut�v�smo p�aget�ano (a part�r da ênfase no papel at�vo e �ntenc�onal do suje�to no seu desenvolv�mento), compreender o desenvolv�mento humano como fenômeno d�nâm�co e complexo (Madure�ra & Branco, 2005a). Cabe destacar que, para esta perspect�va teór�ca, o conce�to de cultura ocupa um lugar de destaque. A cultura não é conceb�da apenas como uma var�ável a ser cons�derada, uma var�ável “externa” que �nfluenc�a as ações, pensamentos e emoções �nd�v�dua�s. A cultura não é uma var�ável, mas s�m o me�o em que v�vem e se desenvolvem os seres humanos (Cole, 1992). Portanto, a cultura não apresenta uma �nfluênc�a apenas �nd�reta, a cul- tura3 const�tu� o própr�o desenvolv�mento humano (Bruner, 1990/1997; Rogoff, 2003). Para Lev Semenov�ch Vygotsky (1978/1991), autor �mportante da perspect�va teór�ca que adotamos, a relação entre o ser humano e o amb�ente não é uma relação d�reta, mas s�m med�ada sem�ot�camente. Nesse sent�do, podemos defin�r a sem�ót�ca como o campo de conhec�mento que estuda os s�gnos que correspondem, em últ�ma �nstânc�a, a “elementos que representam ou expressam outros objetos, eventos, situações (...)” (Ol�ve�ra, 1993, p. 30). Em outras palavras, os s�gnos tornam presentes objetos, eventos ou s�tuações que estão ausentes no aqu� e agora. As operações com s�gnos ampl�am, de forma cons�derá- vel, as poss�b�l�dades de ação humana, tanto no plano �nterp- s�cológ�co como no plano �ntraps�cológ�co, na med�da em que tornam a comun�cação humana ma�s prec�sa, poss�b�l�tando, por exemplo, o planejamento colet�vo da ação, bem como transformando, de forma qual�tat�va, o func�onamento ps�- cológ�co humano (Vygotsky, 1978/1991). Para a ps�colog�a h�stór�co-cultural de Vygotsky e colaboradores, a l�nguagem, enquanto s�stema de med�ação sem�ót�ca, cumpre um papel fundamental na consc�ênc�a humana. O pensamento e a l�nguagem, que refletem a real�dade de uma forma d�ferente daquela da percepção, são a chave para a compreensão da natureza da consc�ênc�a humana. As palavras desempenham um papel central não só no desenvol- v�mento do pensamento, mas também na evolução h�stór�ca da consc�ênc�a como um todo. Uma palavra é um m�crocosmo da consc�ênc�a humana. (Vygotsky, 1962/1993) De forma coerente com o referenc�al teór�co adotado (Madure�ra & Branco, 2005a; Vals�ner, 1994, 1998) não poderíamos adotar uma ontolog�a apr�oríst�ca sobre o suje�to e a real�dade, na med�da em que a mesma �mpl�ca em uma compreensão essenc�al�sta,descontextual�zada. Defendemos, portanto, uma ontolog�a h�stór�ca (González Rey, 1997), destacando que tanto o suje�to como os fenômenos soc�a�s estão sempre �nscr�tos em uma temporal�dade que não pode ser s�mplesmente “suspensa” sob o pretexto de buscarmos a sua “essênc�a atemporal”. Não há, portanto, essênc�as supra-h�stór�cas, mas s�m a constante tensão d�alét�ca en- tre organ�zação e processo, estab�l�dade e transformação, cont�nu�dade e ruptura. Tensão que marca a const�tu�ção do suje�to4 e o própr�o desenvolv�mento cultural. É a part�r da �nserção nesse quadro teór�co-conce�tual que podemos afirmar a �mportânc�a do estudo dos s�gn�ficados cultura�s, que med�am tanto a relação das pessoas concretas com o mundo soc�al em que estão �nser�das quanto a relação que estabelecem cons�go mesmas. O estudo dos s�gn�fica- dos cultura�s (Bruner, 1990/1997) é de grande relevânc�a quando focal�zamos os processos �dent�tár�os relac�onados à construção das múlt�plas �dent�dades soc�a�s e, de forma ma�s específica, das �dent�dades sexua�s e das �dent�dades de gênero. Processos identitários: a construção das identidades sexuais e das identidades de gênero O conce�to de �dent�dade soc�al está relac�onado às pos�- ções que o suje�to assume na complexa rede de s�gn�ficações cultura�s, ao sent�mento de pertenc�mento a um determ�nado grupo soc�al de referênc�a (Hall, 1992/1998; Louro, 1998, 1999; Parker, 1999). Cabe destacar que os processos �den- t�tár�os func�onam como coordenadas cultura�s no processo de const�tu�ção da subjet�v�dade, além de pos�c�onarem os suje�tos concretos em suas relações com os d�versos grupos soc�a�s ex�stentes nos contextos cultura�s em que estão �n- ser�dos. No contexto deste art�go focal�zaremos, a part�r do estudo dos processos �dent�tár�os, as �dent�dades de gênero (as múlt�plas formas de tornar-se homem ou mulher) e as �dent�dades sexua�s (as múlt�plas formas como são subjet�- vadas as or�entações sexua�s). É �nteressante notar que, para o senso comum, é perfe�ta- mente compreensível que uma pessoa mude a sua �dent�dade profiss�onal, ou mesmo a sua �dent�dade de classe soc�al. Entretanto, a sua �dent�dade de gênero e a sua �dent�dade sexual são cons�deradas como essênc�as �mutáve�s, como dados apr�oríst�cos que definem o que há de ma�s fundamental no suje�to (Louro, 1999). Nesse sent�do, Quando uma figura de destaque assume, publicamente, sua condição de gay ou de lésbica (...) é freqüentemente vista como protagonizando uma fraude; como se esse sujeito tivesse indu- zido os demais a um erro, a um engano. A admissão de uma nova identidade sexual ou de uma nova identidade de gênero é considerada uma alteração essencial, uma alteração que atinge a “essência” do sujeito. (Louro, 1999, p. 12-13) 3 Para uma d�scussão ma�s aprofundada sobre o conce�to de cultura na perspect�va soc�ocultural construt�v�sta, consultar: Vals�ner (1989, 1994, 1997, 1998) e Madure�ra e Branco (2005a). 4 Para uma d�scussão ma�s aprofundada sobre a noção de suje�to na c�ênc�a ps�cológ�ca, bem como sobre o papel da l�nguagem, enquanto s�stema de med�ação sem�ót�ca, na const�tu�ção da subjet�v�dade, consultar: Madure�ra e Branco (2005b). 83Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2007, Vol. 23 n. 1, pp. 081-090 Identidades Sexuais Não-hegemônicas e Preconceito As �dent�dades de gênero e as �dent�dades sexua�s, tra- d�c�onalmente, são cons�deradas como ent�dades estát�cas �ntrapsíqu�cas. Ma�s do que �sso, são cons�deradas como o que, realmente, define a “natureza essenc�al” de uma pessoa. Nesse sent�do, coerente com tal lóg�ca essenc�al�sta, são cons�deradas como marcas �nscr�tas nos corpos, não apre- sentando nenhuma relação com os contextos soc�ocultura�s em que o suje�to se �nsere. Não é de se estranhar, portanto, a obsessão de �números c�ent�stas e do públ�co em geral em encontrar o gene (a “marca genét�ca”) responsável pela homossexual�dade. Cur�osamente, tal obsessão está c�rcuns- cr�ta às or�entações sexua�s d�st�ntas da norma heterossexual, como se apenas o que é cons�derado soc�almente “desv�ante” merecesse expl�cações. No século XX, pr�nc�palmente em suas últ�mas déca- das, �númeras mudanças, contudo, v�eram a perturbar esse cenár�o de suposta tranqü�l�dade e s�mpl�c�dade na compre- ensão da relação entre suje�to, sexual�dade e gênero, como, por exemplo, a entrada da mulher no mercado de trabalho, novas tecnolog�as reprodut�vas, o mov�mento fem�n�sta, os mov�mentos de gays e lésb�cas, novas estruturas fam�l�ares, etc. O que era cons�derado exclus�vamente como objeto de estudo das c�ênc�as b�oméd�cas, d�ante dessa mult�pl�c�dade de mudanças relat�vas à sexual�dade e ao gênero, tornou-se, cada vez ma�s, objeto de �nteresse das c�ênc�as humanas e soc�a�s nas últ�mas décadas (Parker & Barbosa, 1996). Neste contexto, um dos autores que têm �nsp�rado �números trabalhos nas c�ênc�as soc�a�s sobre a temát�ca relac�onada à sexual�dade é o filósofo francês M�chel Foucault (1926- 1984), autor de grande �mpacto nas formulações atua�s das c�ênc�as soc�a�s (Hall, 1992/1998; He�lborn, 1996; Louro, 1998, 1999; Weeks, 1999). Cons�derando as l�m�tações de espaço de um art�go abordaremos algumas questões levantadas por Foucault em suas últ�mas obras (publ�cadas na década de 1970 e 1980), referentes à genealog�a do poder e à hermenêut�ca do suje�- to. Ta�s obras �nfluenc�aram não só os estudos de d�versos c�ent�stas soc�a�s, mas também mov�mentos organ�zados da soc�edade c�v�l, como o mov�mento fem�n�sta atual e o mov�mento de gays e lésb�cas. Segundo Foucault (1976/1997), a part�r do final do século XVII, o sexo não é “conv�dado a se calar”, ao contrár�o, o sexo é colocado em d�scurso, é �nc�tado a se man�festar. Não é de se estranhar, portanto, que no século XIX seja s�stemat�zada uma scientia sexualis, voltada para a produção de verdades sobre o sexo (antes do século XIX nem mesmo ex�st�a o termo sexual�dade). A emergênc�a de uma scientia sexualis está �ntr�nseca- mente relac�onada ao surg�mento da noção de população, no final do século XVIII na Europa, como um problema polít�co, econôm�co, demográfico e san�tár�o (Foucault, 1976/1997). Em outros termos, o surg�mento da população, enquanto problemát�ca mult�facetada, cr�ou a necess�dade de um �nvest�mento d�sc�pl�nar não apenas sobre o corpo �nd�v�dual, mas também sobre o corpo soc�al. Tornou-se necessár�o um controle sobre a v�da, a elaboração de uma b�opolít�ca que garant�sse, duplamente, a produção de corpos dóce�s e saudáve�s, �nd�v�dualmente, e a produção de uma população também dóc�l e saudável (Foucault, 1976/1997). A sexual�dade, portanto, const�tu�u-se em um d�spos�t�vo h�stór�co de poder nas soc�edades oc�denta�s modernas. Ma�s do que uma questão de preocupação moral, a sexual�dade tornou-se um foco de produção de d�scursos pretensamente verdade�ros sobre o suje�to. Antes do século XIX as preocu- pações com o sexo eram preocupações referentes à rel�g�ão ou à filosofia moral. Com o surg�mento da sexolog�a, o sexo, ou melhor, a sexual�dade (como passou a ser denom�nado no século XIX), tornou-se objeto de estudo c�entífico, bem como configurou-se em uma preocupação general�zada de espec�al�stas, da med�c�na, de profiss�ona�s e reformadores mora�s (Weeks, 1999). É neste contexto h�stór�co que surge o termo “homossexu- al”, ut�l�zado pela pr�me�ra vez na segunda metade do século XIX (Fry & MacRae, 1985). Antes do esforço class�ficatór�o da sexolog�a, ta�s pessoas eram t�das como pertencentes a uma categor�a geral e mal-defin�da denom�nada de sodom�ta, que se refer�a a todos aqueles que apresentavam um “poten- c�al de natureza pecadora”, e não a uma at�v�dade própr�a de um t�po específico, del�m�tado, de pessoas (Weeks, 1999). Em outras palavras, como observou Foucault (1976/1997), o sodom�ta era cons�derado como uma “aberração temporár�a”, enquanto o homossexual faz�a parte de uma espéc�e própr�a, com característ�cas defin�doras. De“pecado”, “cr�me”, as relações afet�vo-sexua�s entre pessoas do mesmo sexo passam – com o surg�mento h�stó- r�co do conce�to de homossexual�dade – a ser cons�deradas “doença” e, por extensão, necess�tam de tratamento e cura. Em outras palavras, buscou-se a del�m�tação “verdade�ra” das �dent�dades sexua�s. Nesse sent�do, procurou-se defin�r, por exemplo, os atr�butos (fís�cos, mora�s, dentre outros) que ser�am “defin�dores da homossexual�dade”. É �nteressante notar que as pessoas, gu�adas pelo senso comum, acred�tam ex�st�r uma d�v�são mu�to nít�da e s�mples entre as �dent�dades sexua�s. Nesse sent�do, haver�a os “nor- ma�s” (heterosssexua�s) e os “anorma�s” (os homossexua�s e os b�ssexua�s) (Weeks, 1999). Ma�s do que �sso, as �dent�- dades sexua�s ser�am o cerne das ma�s profundas verdades sobre o �nd�víduo. Através da expl�c�tação da �dent�dade sexual �nd�v�dual ser�a possível prever, um dos grandes �dea�s da c�ênc�a moderna, as suas qual�dades mora�s, bem como se ser�a possível (ou não) a sua fel�c�dade. Portanto não é de se estranhar a crença d�fund�da na atual�dade de que uma pessoa homossexual é �moral, promíscua e dest�nada à �nfel�c�dade. Sobre essa relação �mplíc�ta entre �nfel�c�dade e homossexual�dade, Foucault afirma que: As pessoas dizem: “o prazer passa, a juventude acaba. Que eles tenham prazer, afinal sabemos que isso não os levará muito longe. Pagarão bem caro por esse prazer, com sofrimento e dor, com solidão, com rupturas, com disputas, com ódio ou com ciúme”, em suma, sabe-se que o prazer é compensado, e por conseguinte ele não incomoda. Mas a felicidade... A felicidade não é resgatada por nenhuma infelicidade fundamental... Então, as coisas se tornam intoleráveis. (Foucault c�tado por Er�bon, 1994/1996, p. 168). A del�m�tação das �dent�dades sexua�s faz parte, portanto, de um amplo processo h�stór�co e cultural de normat�zação da sexual�dade, ou seja, de �nst�tuc�onal�zação da heterossexu- 84 Ps�c.: Teor. e Pesq., Brasíl�a, Jan-Mar 2007, Vol. 23 n. 1, pp. 081-090 A. F. A. Madureira e A. M. C. U. A. Branco al�dade como a ún�ca forma “normal” de �dent�dade sexual. Nesse processo, a defin�ção do que const�tu� a anormal�dade é essenc�al para se defin�r o que vem a ser a normal�dade. Os do�s esforços class�ficatór�os estão, portanto, �ntr�nseca- mente relac�onados (Louro, 1998, 1999, 2003; Weeks, 1999). Cabe enfat�zar, também, que o processo de normat�zação da �dent�dade heterossexual pressupõe um processo constante de est�gmat�zação das �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas. Em outros termos, ta�s �dent�dades passam a ser cons�deradas como �dent�dades deter�oradas que escondem uma “falha fundamental” (Goffman, 1963/1988). Uma das prem�ssas do modelo b�oméd�co acerca da sexual�dade é o estabelec�mento de uma relação l�near entre desejo sexual, comportamento sexual e �dent�dade sexual. Contudo, essa relação l�near tem s�do quest�ona- da por d�versos c�ent�stas soc�a�s (Parker, 1999; Weeks, 1999; He�lborn, 1996), o que parece �nd�car que a �den- t�dade sexual não pode ser s�mplesmente objet�vada em um comportamento sexual específico. Esta d�ferenc�ação é part�cularmente �mportante na cultura sexual bras�le�ra, na qual o “at�vo” na relação sexual permanece no status de homem, enquanto o “pass�vo” torna-se “b�cha”. Nota-se, claramente, a �mportânc�a da at�v�dade e da pass�v�dade como referenc�a�s s�gn�ficat�vos na construção das �dent�- dades sexua�s na soc�edade bras�le�ra, pr�nc�palmente entre os homens (Parker, 1991, 1994). Nas anál�ses sobre a construção das �dent�dades sexua�s é de fundamental �mportânc�a cons�derarmos, também, as questões de gênero. Afinal não estamos nos refer�ndo a suje�tos abstratos, mas a homens e mulheres �nser�dos em determ�nados contextos perpassados por s�gn�ficados cultura�s que del�m�tam as fronte�ras s�mból�cas do que é soc�almente esperado em relação às mascul�n�dades e às fem�n�l�dades. S�gn�ficados cultura�s que se art�culam a s�stemas de s�gn�ficação ma�s amplos que, por sua vez, trazem as marcas das estruturas des�gua�s de poder presentes nas relações entre homens e mulheres. Os estudos de gênero const�tuem um campo de �nvest�- gação �nterd�sc�pl�nar �ntr�nsecamente v�nculado ao mov�- mento fem�n�sta, mov�mento soc�al �mportante da segunda metade do século XX, voltado para a transformação das relações des�gua�s e h�erárqu�cas entre homens e mulheres (Bande�ra & S�que�ra, 1997). Ass�m, quando abordamos as questões de gênero não estamos nos refer�ndo a ma�s um objeto de estudo, estamos nos refer�ndo a um campo de �nvest�gação recente construído a part�r do d�álogo fecundo entre a produção acadêm�ca e a m�l�tânc�a fem�n�sta. Como é ev�denc�ado por Louro (1998), os estudos de gênero apre- sentam expl�c�tamente pretensões de mudança. Em outras palavras, os estudos de gênero promovem a al�ança entre o “fazer” c�entífico e a m�l�tânc�a polít�ca. Uma verdade�ra heres�a para os “guard�ões” de uma c�ênc�a pos�t�v�sta anco- rada no m�to da neutral�dade c�entífica. É �mportante esclarecer que o conce�to de gênero é em�nentemente relac�onal, ou seja, esta categor�a analít�ca destaca o caráter relac�onal e polít�co da const�tu�ção da(s) mascul�n�dade(s) e fem�n�l�dade(s) (Fávero, 1997; Louro, 1998, 1999; Madure�ra & Branco, 2004; Ol�ve�ra, 1998; Scott, 1995, 1998; Segato, 1997). Gênero cons�ste, portanto, em uma categor�a analít�ca que v�ab�l�za a compreensão de d�versos fenômenos anal�sados pelas c�ênc�as humanas, além de apresentar uma d�mensão claramente polít�ca. Nesse sent�do, é fundamental reflet�rmos sobre as relações de poder. Para tanto, as formulações foucault�nas são de gran- de valor heuríst�co. Mas o que ser�a o poder para Foucault? De acordo com Deleuze (1986/1988, p. 78, gr�fo nosso), “A definição de Foucault parece bem simples: o poder é uma relação de forças, ou melhor, toda relação de forças é uma ‘relação de poder’ (...)”. A v�são do poder como algo essenc�almente repress�vo (que repr�me os �nd�víduos, as pulsões, uma classe), é alvo de vár�as crít�cas de Foucault (1996, 1976/1997). Para ele, o po- der não é apenas repress�vo, este é apenas um lado da h�stór�a. Afinal, a dom�nação cap�tal�sta não consegu�r�a se sustentar se fosse baseada un�camente na repressão (Foucault, 1996). As relações de poder devem ser cons�deradas não apenas como �n�b�doras, mas também como produtoras de cond�ções de poss�b�l�dades para a const�tu�ção de determ�nados saberes, de �nd�v�dual�dades (na forma de s�tuar-se/relac�onar-se com outras �nd�v�dual�dades, como na percepção de s�)5. Segundo Foucault (1996), o poder não deve cont�nuar sendo cons�derado como “propr�edade” do Estado, de uma classe soc�al ou do homem, nas relações de gênero. Nem como mero “subproduto” das relações econôm�cas, apesar de manter conexões com as mesmas. Portanto, o poder não é uma ent�dade: “(...) os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras (...)”(Machado, 1996, p. xv� ). O que ex�ste é um constante e d�nâm�co confronto de forças, de opressões e res�stênc�as. Neste art�go será pr�v�leg�ada a conce�tuação de “�den- t�dades sexua�s não-hegemôn�cas” ao �nvés do conce�to, d�- fund�do na atual�dade, de homossexual�dade. Tal preferênc�a conce�tual fo� �nsp�rada na crít�ca do ps�canal�sta bras�le�ro Jurand�r Fre�re Costa (1992) ao conce�to de homossexual�da- de. De acordo com este autor, a suposta “tranqü�l�dade” com que as pessoas são class�ficadas em homossexua�s, b�ssexua�s e heterossexua�s esconde toda uma d�vers�dade de prát�cas, sent�mentos e auto-defin�ções que tal class�ficação parece obscurecer (Costa, 1992). Essa class�ficação, �ntr�nsecamente relac�onada à med�c�na do século XIX, está v�nculada ao �deal de del�m�tação “verdade�ra” das �dent�dades sexua�s, a fim de pred�zeros atr�butos que caracter�zar�am todos(as) aqueles(as) que venham a ser “d�agnost�cadas” como homos- sexua�s, como fo� d�scut�do anter�ormente. Pode-se observar, portanto, uma clara al�ança entre saber e poder, na med�da em que a produção de verdades sobre o suje�to, a part�r do processo h�stór�co de med�camental�zação do corpo e da sexual�dade, serv�r�a de aval não apenas para separar os “norma�s” dos “anorma�s”, mas também para exclu�r estes últ�mos. Em síntese, o conce�to de homossexu- al�dade apresenta, pelo menos, duas l�m�tações: a) obscurece a d�vers�dade de prát�cas, sent�mentos e auto-defin�ções entre 5 Sobre a hermenêut�ca do suje�to, últ�ma fase da obra de Foucault, con- sultar: A história da sexualidade II: o uso dos prazeres (1984/1994) e A história da sexualidade III: o cuidado de si (1984/1985). 85Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2007, Vol. 23 n. 1, pp. 081-090 Identidades Sexuais Não-hegemônicas e Preconceito aqueles que recebem este rótulo; b) obscurece também a d�mensão polít�ca que está em jogo na busca pela “essênc�a verdade�ra” (causal�dade últ�ma) das or�entações sexua�s. Nesse sent�do, é �mportante ut�l�zarmos um conce�to que expl�c�te as relações de poder que perme�am a “del�m�tação c�entífica” das �dent�dades sexua�s. Para tanto, buscou-se no conce�to de hegemon�a essa poss�b�l�dade conce�tual6. O conce�to de hegemon�a parece trazer à tona as relações de poder, os mecan�smos de exclusão, os preconce�tos e as prát�cas d�scr�m�natór�as que estão no cerne do “processo pelo qual um determinado grupo social garante o domínio político da sociedade” (S�lva, 2000, p. 65). Ass�m, o con- ce�to de �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas se refere a: a) suje�tos que apresentam uma or�entação homoerót�ca e que b) ocupam uma pos�ção soc�al marg�nal em relação à norma heterossexual nas soc�edades oc�denta�s contemporâneas. A conce�tuação de �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas traz para o centro das atenções a relação entre suje�to e cultu- ra. Afinal, tal conce�tuação só faz sent�do a part�r da anál�se dos contextos cultura�s específicos e do espaço soc�al con- fer�do às or�entações homoerót�cas em ta�s contextos. Nesse sent�do apresentaremos, nos próx�mos tóp�cos, a pesqu�sa qual�tat�va7 que real�zamos sobre a construção das �dent�da- des sexua�s não-hegemôn�cas na c�dade de Brasíl�a - DF. O que será apresentado, obv�amente, é um recorte que focal�za alguns resultados �mportantes da pesqu�sa em questão. Método Part�c�param da pesqu�sa se�s homens e quatro mulheres de classe méd�a do D�str�to Federal (fa�xa etár�a entre 20 e 34 anos), que se percebem como pessoas que apresentam uma or�entação sexual d�st�nta da heterossexual�dade. Fo� real�zada uma entrev�sta sem�-estruturada com cada part�c�pante. No momento da real�zação das entrev�stas fo� entregue a cada part�c�pante uma carta de apresentação da pesqu�sa (com a descr�ção do tema e do objet�vo da pes- qu�sa). Se est�vessem de acordo em part�c�par, era, então, sol�c�tado que ass�nassem o Termo de Consent�mento L�vre e Esclarec�do. Fo� expl�c�tado na carta de apresentação da pesqu�sa, e enfat�zado pela pesqu�sadora, que o nome de cada part�c�pante ser�a mant�do em s�g�lo, ou seja, ser�am subst�tuídos por nomes fictíc�os. Fo� esclarec�do, também, que não eram esperadas “respostas certas” por parte dos(as) part�c�pantes, mas s�m as suas op�n�ões e pos�c�onamentos pessoa�s em relação às questões abordadas. Fo� elaborado, �n�c�almente, um sumár�o de todas as 10 entrev�stas real�zadas. Tal sumár�o cons�st�u na real�zação de comentár�os s�ntét�cos e na transcr�ção de trechos con- s�derados �nteressantes ou s�gn�ficat�vos das entrev�stas. A part�r da real�zação do sumár�o fo� possível constru�r um panorama amplo sobre o grupo de part�c�pantes, bem como selec�onar as entrev�stas que ser�am anal�sadas de forma ma�s aprofundada. As se�s entrev�stas selec�onadas (três homens e três mulheres) foram, então, transcr�tas na íntegra. Buscou- se, na transcr�ção das entrev�stas, �ntegrar às verbal�zações os elementos paral�ngüíst�cos8 (como, por exemplo, a ênfase em certas palavras), v�sando o enr�quec�mento da anál�se e poss�b�l�tando uma ma�or compreensão da d�mensão metaco- mun�cat�va (relac�onal) presente no momento da entrev�sta. A anál�se das entrev�stas buscou, nas narrat�vas dos(as) part�c�pantes, ev�denc�ar os processos �dent�tár�os relac�o- nados às questões de gênero e às or�entações sexua�s, pro- curando art�cular os s�gn�ficados cultura�s e a const�tu�ção da subjet�v�dade. As anál�ses foram or�entadas a part�r das segu�ntes categor�as temát�cas: 1) h�stór�a de v�da; 2) questões de gênero; 3) mov�mentos soc�a�s, d�scr�m�nação e transfor- mação da soc�edade; 4) comun�dade gay em Brasíl�a; 5) gêne- se e desenvolv�mento da or�entação sexual; 6) crenças sobre a homossexual�dade e class�ficação das or�entações sexua�s; 7) relações soc�a�s (famíl�a, escola, trabalho, am�zades); 8) relações afet�vo-sexua�s; 9) relações cons�go mesmo(a); 10) outras questões e comentár�os sobre a entrev�sta. Cons�derando que os part�c�pantes fazem parte de um grupo soc�almente d�scr�m�nado, o cu�dado com o s�g�lo em relação às suas �dent�dades fo� redobrado na pesqu�sa. Além de adotarmos nomes fictíc�os para os part�c�pantes e todas as pessoas c�tadas nas entrev�stas, om�t�mos �nformações que poder�am fac�l�tar a �dent�ficação dos part�c�pantes (como, por exemplo, a espec�ficação prec�sa da profissão). Dessa forma, pretendemos assegurar a �ntegr�dade dos part�c�pantes e o respe�to aos seus d�re�tos enquanto suje�tos de pesqu�sa, dentre aqueles, o d�re�to ao s�g�lo em relação à �dent�ficação pessoal. Resultados e Discussão O estudo �nd�cou a relevânc�a de se cons�derar as estra- tég�as pessoa�s e colet�vas ut�l�zadas no cot�d�ano para l�dar com o preconce�to e a d�scr�m�nação em relação às �dent�- dades sexua�s que d�vergem da norma heterossexual. Ta�s estratég�as são const�tut�vas da forma como os part�c�pantes v�venc�am as suas exper�ênc�as homoerót�cas, suas relações soc�a�s e cons�go mesmos. Podemos afirmar, �nclus�ve, que este é o denom�nador comum de todas as entrev�stas real�za- das. Mesmo quando os part�c�pantes não relatam s�tuações concretas de d�scr�m�nação, essa questão se faz presente em 6 Segundo Tomaz Tadeu da S�lva (2000, p. 65): “Hegemonia - Na teoria política mais geral, significa simplesmente ‘predomínio político’. Na teoria educacional crítica é utilizado a partir da conceptualização desenvolvida pelo filósofo italiano Antonio Gramsci, o qual define hegemonia como o processo pelo qual um determinado grupo social garante o domínio político da sociedade. Para Gramsci, este domínio depende da construção de um consenso social, obtido através da construção de categorias culturais que acabam por se transformar em senso comum (...)”. 7 Para uma anál�se das questões ep�stemológ�cas e metodológ�cas relat�vas à pesqu�sa qual�tat�va em Ps�colog�a do Desenvolv�mento, consultar Madure�ra e Branco (2001). 8 Cód�gos ut�l�zados na transcr�ção das entrev�stas: (...) = pausa longa na fala ... = pausa breve na fala _____ = ênfase na(s) palavra(s) subl�nhada(s) [?] = uma palavra �n�ntel�gível [???] = ma�s de uma pa- lavra �n�ntel�gível * = “hum, hum”, “ham, ham”, expressão que �nd�ca que a pesqu�sadora está acompanhando a fala do(a) part�c�pante (ou v�ce-versa) (risos) = r�sos por parte da pesqu�sadora e do(a) part�c�pante ( risos -.....) = r�sos por parte da pesqu�sadora ou do(a) part�c�pante. 86 Ps�c.: Teor. e Pesq., Brasíl�a, Jan-Mar 2007, Vol. 23 n. 1, pp. 081-090 A. F. A. Madureira e A. M. C. U. A. Branco termos prospect�vos, ou seja, através do rece�o de se sent�r d�scr�m�nado em momentos futuros. Esse rece�o é ver�ficado na at�tude de ev�tar expl�c�tar a própr�a or�entação sexual (pr�nc�palmente na famíl�a e no trabalho), a fim de não gerar s�tuações constrangedoras. O rece�o em expl�c�tar a própr�a or�entação sexual9, emum contexto soc�ocultural ma�s amplo atravessado pela ho- mofob�a, está assoc�ado à construção de uma rede �ntr�ncada de “d�tos” e “não-d�tos” que �mpl�ca em um certo grau de amb�gü�dade nas relações soc�a�s, requerendo um menor ou ma�or �nvest�mento pessoal em relação ao ocultamento da própr�a or�entação sexual. L�dar, no cot�d�ano, com essa rede �ntr�ncada de “d�tos” e “não-d�tos” representa, em d�ferentes graus, um foco de ans�edade, de sofr�mento psíqu�co, a�nda ma�s se cons�derarmos o esforço contínuo que demanda ocultar a or�entação sexual de pessoas com quem se tem forte vínculo afet�vo (fam�l�ares, am�gos/as). A construção dessa rede é ev�denc�ada, por exemplo, em relação à própr�a or�entação sexual, por exemplo, na entrev�sta com Fabríc�o (25 anos; nome fictíc�o). Nela, o part�c�pante adotou uma d�v�são clara entre o seu grupo de am�gos: de um lado, os seus am�gos heterossexua�s; de outro lado, os seus am�gos homossexua�s: “Sabe, entre aspas, né, entendeu*, eu já apresente� am�- go... é... gay meu pra am�go hetero meu*, mas sem nenhum saber que um é e o outro é*, entendeu, cê apresenta aqueles que não dão mu�ta p�nta, como d�zem, né*, que não chamam mu�ta atenção*... [???] vou apresentar, por exemplo... um desses am�gos meus que adora... é... tem festa a fantas�a, é do�do pra botar uma peruca, um sut�ã e sa�r de sa�nha, né* (r�sos – Ana Fláv�a), então, ele dá, tem altos treje�tos e não se� o que, eu não vou apresentar um desses pro... pessoal hetero, porque, com certeza, va� dar falatór�o**, com certeza*. Então, dá d�v�são, já fiz festa em casa que eu chame� os do�s*, sem o menor problema, nenhum* desconfiou do outro*, quer d�zer, você dá um toque antes, né*: olha... geralmente pros gays, pros heteros não prec�sa av�sar, ó... o pessoal que tá lá não sabe*, quero que cont�nue ass�m, então*... beleza, não se� o que.” “Porque, pô, a gente sofre mu�to, né*, pra enfrentar esse t�po de relação*. É... e se você não t�ver uma cabeça boa... pouquíss�mos são os que agüentam*... levar... a v�da ass�m tranqü�la, tendo que conv�ver com gente que é, com gente que não é*,tendo que dar suas ment�r�nhas aqu� e al�, pra consegu�r* fazer tudo co-ex�st�r d�re�t�nho*. Tem gente que ode�a, eu conheço gente que, putz, quer sa�r, tem que d�zer pro pa� que tá �ndo sa�r com a fulan�nha pra �r na boate e va� sa�r com o namorado... �sso parte a pessoa em qu�nze, de ment�r pro pa�, pra mãe* e não se� o que.” Para o part�c�pante parece que não há outra opção: “é a questão de você ter que ter duas v�das”. Nesta entrev�sta ficou ev�dente a ex�stênc�a daquela rede de “d�tos” e “não-d�tos”, a qual demanda certos cu�dados para sua manutenção. Cabe destacar, também, a ut�l�zação freqüente pelo part�c�pante da terce�ra pessoa do plural, “eles” (“as pessoas” ou “tem gente que...”) para expressar o sofr�mento v�v�do por mu�tos(as) que não são heterossexua�s. Pela repet�ção freqüente desta temát�ca, levantamos a h�pótese que o part�c�pante real�zou uma espéc�e de deslocamento (da pr�me�ra pessoa do s�n- gular, “eu”, para a terce�ra pessoa do plural, “eles”) para expressar o seu própr�o sofr�mento. Esta entrev�sta �lustra a complexa relação entre as estratég�as ut�l�zadas no cot�d�ano para l�dar com o preconce�to e a d�scr�m�nação e a questão do sofr�mento psíqu�co. Em amb�entes em que expressar a própr�a or�entação sexual nas relações soc�a�s é uma questão potenc�almente problemát�ca (em d�ferentes níve�s), part�c�par da “comu- n�dade gay” – compreend�da de forma genér�ca como os lugares de d�versão e conv�vênc�a voltados para o públ�co homossexual e b�ssexual – adqu�re um papel �mportante. Cabe quest�onarmos: até que ponto a expansão de produtos e serv�ços voltados para o públ�co gay em centros urbanos, como Brasíl�a, representa um �ndíc�o de transformação soc�al? Anal�sando a “comun�dade gay” em Brasíl�a, esta parece representar: a) uma estratég�a concreta, s�tuada h�stór�ca e cultural- mente, para que as pessoas que apresentam uma �dent�dade sexual não-hegemôn�ca se s�ntam proteg�das do preconce�to e da d�scr�m�nação, que também perm�te a elas desenvol- verem um sent�mento de pertenc�mento a um grupo soc�al de referênc�a (processos �dent�tár�os) e, desta forma, não se sent�rem �soladas; b) o fortalec�mento de um setor do comérc�o voltado a uma cl�entela específica (gays e lésb�cas de classe méd�a/ alta), com um poder aqu�s�t�vo cons�derável (a ma�or�a não tem que gastar, por exemplo, com a educação de cr�anças), o que torna este ramo de negóc�os bastante lucrat�vo; c) uma estratég�a que, anal�sada de perto, não colabora efet�vamente na transformação soc�al na med�da em que mantém “cada um no seu lugar”, ou seja, não coloca em xeque o preconce�to e a d�scr�m�nação em s�, mantendo as fronte�ras s�mból�cas que separam o “un�verso heterossexual” do “un�verso homossexual”. Reconhecemos a �mportânc�a em termos �dent�tár�os dos lugares de d�versão e conv�vênc�a voltados para aqueles(as) que apresentam uma �dent�dade sexual não-hegemôn�ca, em um un�verso marcado pela homofob�a. Todav�a, levantamos sér�as dúv�das em relação a seu potenc�al transformador. A d�vers�dade de or�entações sexua�s é separada, d�v�d�da, c�rcunscr�ta a determ�nados espaços fís�cos e soc�a�s: aqu�, os(as) heterossexua�s (pelo menos expl�c�tamente), al�, os(as) homossexua�s. Ass�m, a d�vers�dade é “adm�n�strada” de uma forma bastante eficaz no sent�do de ev�tar possíve�s confl�tos. Mas será esta a melhor estratég�a para constru�r uma cultura democrát�ca, de valor�zação do outro e da d�vers�dade? Os per�gos da segregação estão em toda e qualquer categor�- 9 De acordo com P�erre Bourd�eu (1998/2005, p. 143-144, gr�fo nosso), “A forma particular de dominação simbólica de que são vítimas os homossexuais, marcados por um estigma que, à diferença da cor da pele ou da feminilidade, pode ser ocultado (ou exibido) (...) A opressão como forma de ‘invisibilização’ traduz uma recusa à existência legítima, pública, isto é conhecida e reconhecida, sobretudo pelo Direito, e por uma estigmatização que só aparece de forma realmente declarada quando o movimento reivindica a visibilidade. Alega-se, então, expli- citamente, a ‘discrição’ ou a dissimulação que ele é ordinariamente obrigado a se impor.” 87Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Mar 2007, Vol. 23 n. 1, pp. 081-090 Identidades Sexuais Não-hegemônicas e Preconceito zação ou rótulo entre seres humanos. Ou seja, é necessár�o cons�derarmos ser�amente a questão do preconce�to e da d�scr�m�nação, tanto na esfera da cultura, das relações soc�a�s, como no plano subjet�vo. O preconce�to é um fenômeno que apresenta suas raízes no un�verso s�mból�co da cultura, nas relações de poder que perpassam as d�versas �nstânc�as soc�a�s, apresentando, por- tanto, uma d�mensão colet�va. Por outro lado, cons�derando a gênese soc�al do desenvolv�mento �nd�v�dual – em con- sonânc�a com a perspect�va soc�ocultural construt�v�sta – o preconce�to traz �mpl�cações no plano das �nterações soc�a�s e no plano subjet�vo, na forma como o suje�to v�venc�a, em termos cogn�t�vos e afet�vos, as suas exper�ênc�as cot�d�anas, organ�za a sua compreensão sobre s� mesmo e sobre o mundo soc�al em que está �nser�do. A d�scr�m�nação corresponde ao preconce�to posto em ação. É, justamente, neste sent�do que podemos afirmar que as prát�cas d�scr�m�natór�as são sustentadas por �dé�as preconceb�das. Apesar da �mportânc�a, em termos analít�cos, da d�st�nção entre preconce�to e d�scr�m�nação, ambos se encontram bastante v�nculados no cot�d�ano. A relação entre preconce�to e d�scr�m�nação é bastante complexa, po�s há uma �ntegração entre as esferas da ação, da cogn�ção e da emoção. Se a d�scr�m�nação está v�nculada à ação em relação a determ�nadas pessoas e grupos soc�a�s, o preconce�to não está ancorado apenas na cogn�ção, mas está espec�almente ancorado na emoção. De forma ma�s específica, a homofob�a, que sustenta e é sustentadapor concepções preconce�tuosas e prát�cas d�scr�m�natór�as em relação às pessoas que apresentam uma or�entação d�st�nta da heterossexual�dade, apresenta tanto uma d�mensão soc�al como subjet�va (homofob�a �nternal�- zada). Tanto homens como mulheres que apresentam uma �dent�dade sexual não-hegemôn�ca se const�tuíram enquanto suje�tos em contextos soc�ocultura�s marcados, em d�ferentes graus, pela homofob�a, por uma concepção de normal�dade que exclu� outras poss�b�l�dades de v�vênc�a da própr�a sexual�dade. A homofob�a �nternal�zada, emoc�onalmente enra�zada, no caso das pessoas que apresentam uma or�entação homoe- rót�ca traz um potenc�al desestruturante em termos subjet�vos, ou seja, cons�ste em um foco de sofr�mento psíqu�co (culpa, ans�edade, depressão...). Em outras palavras, a v�olênc�a s�mból�ca10 subjacente à homofob�a soc�al (plano �ntersub- jet�vo) reaparece como v�olênc�a contra s� mesmo(a) (plano subjet�vo). Além d�sso, pode �mpl�car em uma d�ssoc�ação entre os desejos, as fantas�as e as relações afet�vo-sexua�s homoerót�cas v�venc�adas e outras d�mensões �mportantes de s� mesmo(a). Tal d�ssoc�ação pode ser �lustrada na entrev�sta com Renata (25 anos, nome fictíc�o). Sobre a poss�b�l�dade de a part�c�pante contr�bu�r, pessoalmente, na luta contra o preconce�to e a d�scr�m�nação por or�entação sexual, ela afirma que: “Eu tento mostrar pra esse lado*, que eu acabei de falar*, é... pras pessoas que me conhecem que sabe... que... tudo bem, que não são muitas que sabem que eu, que eu seja, entendeu?* Mas eu, eu tento mostrar esse lado... é... eu sou, mas... eu tento mostrar pra elas que eu sou isso... dentro de quatro paredes, ninguém tem nada a ver com isso*, tem eu e a pessoa com quem eu tô**... o restante disso, eu tô fazendo um... eu sou uma pessoa normal**, entendeu. Então, acho que é, que é por aí, através do respeito que você tem com a outra pessoa que você vai dando a seguri... a, a ... dando... é... segurança pra pessoa* ver que aquilo ali não é nenhum bicho de sete cabeças**... por aí.” É �nteressante notar a d�ssoc�ação que a part�c�pante real�- za entre a sua or�entação sexual e as outras d�mensões de sua v�da, como se a sua or�entação sexual fosse completamente c�rcunscr�ta a “quatro paredes”. Na real�dade, a part�c�pante parece “afastar dos olhos” de outras pessoas as suas exper�ên- c�as homoerót�cas, a fim de se apresentar como uma “pessoa normal”. Essa estratég�a torna-se ev�dente quando d�z (com ênfase): “eu sou, mas...”. Tal expressão traz em s� a �dé�a de sol�c�tação de desculpas pelo que se é, ou, em outras palavras, “sou homossexual, mas tenho uma v�da normal”. Em últ�ma �nstânc�a, ela percebe a homossexual�dade como algo “anormal”, e busca “dr�blar” o preconce�to e a d�scr�m�nação tratando de encontrar para s� uma função su- bl�me: levar as “almas perd�das” do un�verso gay para a �greja catól�ca. Os valores catól�cos e fam�l�ares trad�c�ona�s de Renata atuam para que ela se esforce em manter uma pretensa “harmon�a soc�al”, cr�t�cando o mov�mento gay para ev�tar confl�tos entre as pessoas. Tende a enfat�zar a cont�nu�dade (e não a transformação) de valores e crenças. Nesse sent�do, parece que as alternat�vas ma�s adequadas para alguém em sua s�tuação ser�am: a) não expl�c�tar a sua or�entação sexual; b) quando expl�c�tar, fazer com que esta seja perceb�da pelos outros como uma d�mensão relat�vamente d�ssoc�ada de s� (algo c�rcunscr�to a “quatro paredes”). Impress�ona, no caso de Renata, o quanto a homofob�a �nternal�zada pode conduz�r a uma d�ssoc�ação entre as v�- vênc�as afet�vo-sexua�s e outras d�mensões �mportantes de s� mesmo(a), no que se refere a pessoas que apresentam uma or�entação homoerót�ca. Uma questão que susc�tou pos�c�onamentos d�vergentes nas entrev�stas d�z respe�to à problemát�ca da “prom�scu�da- de”. As três mulheres apresentaram ma�or homogene�dade de op�n�ão sobre o tema, enquanto houve, entre os homens, uma ma�or d�vers�dade. Parece, ass�m, que a percepção do que vem a ser “prom�scu�dade” é perpassada por questões de gênero. Pr�me�ramente cabe destacar que a assoc�ação bastante freqüente no �mag�nár�o soc�al entre homossexual�- dade e “prom�scu�dade” parece estar v�nculada à concepção trad�c�onal de que a sexual�dade, fora dos l�m�tes do casa- mento, ser�a uma sexual�dade “desregrada, sem controle” e, portanto, “promíscua”. A construção da fem�n�l�dade e da mascul�n�dade ocor- re não apenas nas relações entre homens e mulheres, mas também �ntra-gênero, a part�r do confronto com os contra- �dea�s de mascul�n�dade e fem�n�l�dade (Parker, 1991). O contra-�deal de fem�n�l�dade é a prom�scu�dade, ou seja, tudo o que uma mulher não pode ser é “promíscua” (em termos populares, ser cons�derada “gal�nha”). Portanto, não é de 10 Para uma anál�se aprofundada sobre a v�olênc�a s�mból�ca nas relações de gênero e nas relações entre heterossexua�s, gays e lésb�cas, consultar: Bourd�eu (1998/2005). 88 Ps�c.: Teor. e Pesq., Brasíl�a, Jan-Mar 2007, Vol. 23 n. 1, pp. 081-090 A. F. A. Madureira e A. M. C. U. A. Branco se estranhar o mov�mento del�berado das part�c�pantes em afastar o rótulo de “prom�scu�dade” de s� mesmas e do grupo soc�al a que pertencem (mulheres com uma or�enta- ção homoerót�ca), deslocando este rótulo para os homens que apresentam uma or�entação homoerót�ca: “são eles que são promíscuos, nós não somos”. Nas entrev�stas com os homens, por outro lado, não houve o mesmo �ncômodo unân�me com a questão da “prom�scu�dade”, ou seja, as op�n�ões foram ma�s d�vers�ficadas a esse respe�to. Outra questão que gerou d�vergênc�as nas entrev�stas com homens e com mulheres d�z respe�to à forma como as relações afet�vo-sexua�s entre homens e entre mulheres são perceb�das. Novamente, observou-se uma ma�or homoge- ne�dade entre os pos�c�onamentos no grupo de mulheres. Para elas, as relações afet�vo-sexua�s entre mulheres são perceb�das a part�r de um pr�sma que tende a enfat�zar o vínculo afet�vo e/ou a �dent�ficação �ntra-gênero, ou seja, a concepção de que as mulheres são “ma�s parec�das entre s�”. Entre os homens, houve uma ma�or heterogene�dade de pos�c�onamentos. Em nenhuma das entrev�stas com homens o vínculo afet�vo e/ou a �dent�ficação �ntra-gênero foram �nd�cados como característ�cas defin�doras das re- lações afet�vo-sexua�s entre homens, como ocorreu entre as mulheres. Essas d�ferenças de pos�c�onamentos �nd�cam o quanto uma categor�a ampla, homossexuais, não é homogênea, não apenas por ser formada por suje�tos s�ngulares com uma h�s- tór�a de v�da part�cular mas também por ser perpassada por outras questões (como, por exemplo, questões de gênero, etn�a, classe). Apesar de ex�st�rem pessoas que acred�tam que os(as) homossexua�s formam um grupo de pessoas que v�vem em um mundo à parte, os(as) mesmos(as) são, na real�dade, soc�al�zados e se const�tuem enquanto suje�tos em um mesmo contexto soc�ocultural amplo. Ass�m, as pessoas com �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas não estão “�munes” às canal�zações cultura�s marcadas pelas questões de gênero. Nas relações afet�vo-sexua�s entre ho- mens, a expectat�va de at�tudes assoc�adas à v�r�l�dade e a capac�dade de d�ssoc�ação entre sexual�dade e afet�v�dade se fazem presentes. De forma s�m�lar, no processo de soc�al�zação das mu- lheres ex�ste a expectat�va soc�al de que a at�v�dade sexual seja um canal para afetos que devem perdurar para além do ato em s� (He�lborn, 1999). Em outras palavras, ex�ste a expectat�va soc�al de valor�zação do vínculo afet�vo e da cumpl�c�dade nas relações afet�vo-sexua�s por parte das mulheres (tanto nas relações heterossexua�s quanto nas relações homoerót�cas). No processo de se tornarem homens e mulheres, as pessoas com uma or�entação homoerót�ca também deverão l�dar com a mult�pl�c�dade de s�gn�ficados cultura�s, mu�tas vezes antagôn�cos, sobre os l�m�tes leg�t�mados soc�almente do que vem a ser a mascul�n�dade e a fem�n�l�dade. Em um sent�doamplo, as questões de gênero cumprem um papel estruturante na forma como as pessoas l�dam com seus afe- tos, cons�go mesmas, como se pos�c�onam em suas relações afet�vo-sexua�s e nas suas relações soc�a�s. Os resultados da pesqu�sa �nd�cam a �mportânc�a da arti- culação, no estudo das identidades sexuais não-hegemônicas, entre as questões de gênero, as questões relacionadas às orientações sexuais e a constituição da subjetividade em contextos socioculturais complexos. Com �sso será possível constru�r uma compreensão ma�s ampla e contextual�zada, tanto sobre as �dent�dades sexua�s, como sobre as �dent�da- des de gênero. Compreensão út�l, �nclus�ve, na luta polít�ca travada tanto pela m�l�tânc�a fem�n�sta, como pela m�l�tânc�a GLTB (Gays, Lésb�cas, Transgêneros e B�ssexua�s). Considerações Finais No presente art�go anal�samos algumas questões refe- rentes à construção das �dent�dades sexua�s não-hegemô- n�cas, a part�r da perspect�va soc�ocultural construt�v�sta. Infel�zmente, os espaços de d�álogo entre a Ps�colog�a e as C�ênc�as Soc�a�s a�nda são mu�to l�m�tados. Vár�os fatores contr�buem para a manutenção desse d�stanc�amento, como, por exemplo, a d�ficuldade (res�stênc�a?) em conceber a Ps�colog�a como c�ênc�a humana, soc�al, e não como c�ênc�a b�ológ�ca. Outro fator para o d�stanc�amento entre a Ps�colog�a e as C�ênc�as Soc�a�s cons�ste no “olhar �nd�- v�dual�sta” que trad�c�onalmente atravessou a Ps�colog�a. É fundamental, po�s, superarmos o “olhar �nd�v�dual�sta” e real�zar pesqu�sas sobre as questões de gênero e sexual�- dade, no contexto de um d�álogo �nterd�sc�pl�nar, para que se ev�tem concepções reduc�on�stas e pol�t�camente �ngê- nuas, ancoradas no “porto seguro” do d�scurso b�oméd�co trad�c�onal. Por últ�mo, gostaríamos de menc�onar a Resolução No1/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) de 23 de março de 199911, que estabelece normas de atuação para os(as) ps�cólogos(as) em relação à questão da or�entação sexual. Em consonânc�a com esta Resolução do CFP, a Ps�colog�a deve colaborar na superação de concepções preconce�tuosas e de prát�cas d�scr�m�natór�as em relação às �dent�dades sexua�s não-hegemôn�cas. A real�zação de novas pesqu�sas sobre esta temát�ca é, portanto, de suma �mportânc�a. Ta�s pesqu�sas devem subs�d�ar a atuação de profiss�ona�s d�versos e dos(as) ps�cólogos(as) nos d�st�ntos campos de �ntervenção profis- s�onal (nas escolas, nos consultór�os, nas comun�dades, nas organ�zações...). Afinal, os conhec�mentos produz�dos pela Ps�colog�a podem – e devem – colaborar na transformação soc�al, na construção de uma cultura democrát�ca de valo- r�zação da d�vers�dade em todos os níve�s. Referências Bande�ra, L. & S�que�ra, D. (1997). A perspect�va fem�n�sta no pensamento moderno e contemporâneo. Sociedade e Estado, 12(2), 263-284. Bourd�eu, P. (2005). A dominação masculina. (M.H. Kühner, Trad.) R�o de Jane�ro: Bertrand Bras�l. 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