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História Medieval Rodrigo Vieira Pinnow Bizâncio e o Ocidente Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Diferenciar o sistema econômico do Império Bizantino do modelo econômico medieval europeu. Analisar o impacto do movimento iconoclasta no enfraquecimento do Império Bizantino. Relacionar a queda do Império Bizantino com o avanço do Império Otomano. Introdução Nos últimos anos, a historiografia medieval tem se debruçado sobre a relação entre os dois mundos que coexistiram durante a Idade Média. Até pouco tempo atrás, o Império Bizantino figurava como mero coadjuvante na construção do conhecimento sobre o mundo medievo. Contudo, novas perspectivas de análise surgiram. Assim, os cursos de história e história da arte têm trazido à tona um novo olhar sobre o período, rompendo de vez com o pensamento renascentista, que por séculos rotulou o mundo medievo de maneira equivocada. Nesse sentido, é importante problematizar a produção do conheci- mento histórico sobre a Idade Média a partir de uma releitura atenta de narrativas que se tornaram célebres no campo historiográfico. Faz parte do ofício do historiador reinterpretar as fontes primárias e secundárias para, a partir disso, ressignificar o passado e extrair dele subsídios para novas problematizações e ponderações. Neste capítulo, você vai estudar a transformação da Idade Média, constantemente dividida em Alta Idade Média e Baixa Idade Média. A partir disso, a proposta é compreender o papel da Igreja Católica e a estruturação do sistema econômico do lado ocidental. Por outro lado, é necessário considerar o comércio do Império Bizantino para compre- ender a sua prosperidade e a sua longevidade. Por fim, você vai verificar o impacto do movimento iconoclasta no enfraquecimento do Império do Oriente, associando a queda desse império à ascensão do Império Turco-Otomano, evidenciada pela tomada de Constantinopla, que marca a transição da Idade Média para a Idade Moderna. Sistemas econômicos medievais: o Império Bizantino e o modelo medieval europeu A história econômica do período medieval é bastante complexa se comparada com a dos períodos moderno e contemporâneo. No estudo destes últimos, as pesquisas quantitativas permitem uma série de cruzamentos, com uma miríade de fontes primárias, o que não é possível em relação ao mundo medieval. É consenso entre alguns pesquisadores da história medieval, como Franco Jr e Andrade Filho. (1985), que a ausência de fontes do período medievo refl ete o espírito da época, ou seja, um imaginário gestual, simbólico, de oralidade e fé, mas infelizmente sem fontes escritas, sem dados, sem números. Com isso, a investigação historiográfica buscou pautar as suas hipóteses e problematizações em pesquisas qualitativas. A pesquisa historiográ- fica sobre o período da Idade Média construiu as suas análises a partir de impressões, padrões e peculiaridades que ajudaram a compreender a estrutura econômica medieval de acordo com o imaginário social da própria época. Por isso, como destaca Franco Jr. E Andrade Filho (1985), muitos tópicos são motivo de polêmica, enquanto outros permanecem sem nenhuma resolução: No essencial, do ângulo econômico, os séculos IV–X podem ser conside- rados em bloco. Caracterizou-os aquilo que Renée Doehaerd chamou de “escassez endêmica” [...]. Ou seja, uma pequena produtividade agrícola e artesanal, consequentemente uma baixa disponibilidade de bens de con- sumo e a correspondente retração do comércio e portanto da economia monetária. Aquela historiadora demonstrou que o fator explicativo de tal situação não foi um recuo das técnicas, como se poderia pensar à primeira vista. O ponto de partida do fenômeno foi o retrocesso demográfico: numa economia muito pouco mecanizada, o peso da mão de obra na produção é decisivo. Ora, a contração da força de trabalho gerava uma contração dos rendimentos e esta reforçava a pobreza demográfica (FRANCO JR.; ANDRADE FILHO, 1985, p. 39). Segundo Figueira e Parente (2010), em meados do século V, por intermédio da vários éditos, parte da sociedade que tinha profissão e ofício foi categorizada, registrada e estabelecida efetivamente na sua respectiva atividade, previamente Bizâncio e o Ocidente2 informada, ao passo que os colonos ficaram presos à terra. Trata-se aqui do processo criado pela Igreja de dividir a sociedade em estamentos, em que cada indivíduo possui a sua função específica. Nesse contexto, a religião serviu para conformar e, assim, gerir a nova sociedade que surgia. Em meio à desfragmentação estatal do antigo Império Romano, os grandes latifundiários ampliaram as suas terras e formaram espécies de guardas, com indivíduos armados e preparados para defender as extensões de terras e ao mesmo tempo garantir a sua subsistência. Por outro lado, as camadas populares livres, tendo em vista os riscos iminentes e a instabilidade do período, foram gradativamente coagidas a procurar proteção, negociando com os grandes latifundiários, proprietários da terra. Conforme Figueira e Parente (2010), a negociação envolvia a doação da terra e, posteriormente, o recebimento como posse. Dessa forma, as camadas populares eram de- pendentes dos latifundiários rurais. Veja: Fato econômico, fato demográfico, a ruralização é ao mesmo tempo, primor- dialmente, um fato social que modela a fisionomia da sociedade medieval. A desorganização das trocas multiplica a fome, e a fome impele as massas para o campo e as submete à servidão aos que dão o pão, os grandes proprietários. Fato social, a ruralização é apenas o aspecto mais visível de uma evolução que imprimirá na sociedade do Ocidente medieval um caráter essencial que permanecerá ancorado nas mentalidades por mais tempo ainda do que na rea- lidade material: a compartimentação profissional e social. A fuga em relação a certos ofícios, a mobilidade da mão de obra rural, levará os imperadores do Baixo Império a tornar obrigatoriamente hereditárias certas profissões e estimulará os grandes proprietários a vincular à terra os colonos destinados a substituir os escravos, cada vez menos numerosos (LE GOFF, 2015, p. 26). Como esclarece Franco Jr. E Andrade Filho (1985), a produção rural, desde os últimos séculos do Império Romano, foi extremamente importante. Vale ressaltar que a historiografia compreendia a propriedade agrícola da época como apenas a evolução da antiga vila romana. No entanto, com as novas pesquisas, sabe-se que os grandes latifúndios foram característicos de determinadas localizações da Europa ocidental, como a região entre os rios Reno e Loire. Também existiam muitos latifúndios de pequeno e médio portes, mas eles eram absorvidos e incorporados às terras dos grandes latifundiários. Com isso, os grandes latifúndios, de certa forma, sobrepujavam o território, centro fun- cional de poder; nesse sentido, se justifica falar em economia agrária. Franco Jr. E Andrade Filho (1985) aponta que a extensão dos domínios não significava, necessariamente, poder; estavam em jogo estrutura e funcionalidade. A economia 3Bizâncio e o Ocidente no mundo ocidental também se fundamentava em torno da divisão das extensões de terra entre a área reservada para a exploração do latifundiário e a reservada para os seus respectivos servos/colonos. As generalizações acerca da agricultura europeia na Idade Média devem ser atenuadas pelas profundas diferenças regionais e também pela grande diversidade dentro das regiões. Os conhecimentos técnicos básicos necessários a um cultivo bem-sucedido de cereais estavam ao alcance de todas as comunidades europeias desde os tempos neolíticos, mas a sua aplicação e a sua organização eram questões muito distintas. Elas dependiam da natureza dos solos, do equilíbrio de atividades pastoris e agrárias, do clima, da proximidade do mar e de outras importantes variáveis. Os hábitos sociais e os costumes fundiários também estavam intimamente relacionadoscom a prática agrária (LOYN, 1997). O modelo econômico bizantino apresenta algumas diferenças evidentes em relação ao modelo ocidental. A posição geográfica é um exemplo. A capital do Império Bizantino, Constantinopla, representava a interface entre o Ocidente e o Oriente. A sua organização de Estado era centralizada, com foco no controle das atividades comerciais e no acúmulo de riquezas. Por outro lado, havia semelhanças na administração dos latifúndios e da mão de obra. Considere o seguinte: O Império Bizantino preservou as estruturas clássicas básicas em princípios da Idade Média, com um persistente e forte elemento comercial e monetário na economia. Do século VIII em diante verificam-se claras semelhanças entre os desenvolvimentos bizantino e ocidental na administração da propriedade fundiária e na exação e natureza da mão de obra. Influentes grupos de campo- neses livres aparecem na Anatólia e em partes dos Bálcãs (LOYN, 1997, p. 9). Segundo Sancovsky (2010b), o intervencionismo bizantino era uma cons- tante nas formas de produção urbana. Também havia uma série de medidas visando a controlar a ação dos grandes latifundiários, membros das aristo- cracias militares e burocráticas e das Igrejas. A autora ressalta que é possível comparar algumas práticas de controle econômico do Império Bizantino, entre os séculos VII e VIII, com os mais sofisticados sistemas econômicos europeus do Ocidente nos séculos XVI a XVIII: Bizâncio e o Ocidente4 Estamos nos referindo aqui, especificamente, às práticas econômicas de cunho protecionista e fiscalista, além de ao monopólio sobre alguns setores produtivos (têxteis, artesanato, ourivesaria). Sendo o intervencionismo uma tendência estrutural das políticas econômicas do Estado Bizantino, este demarcou, por quase cinco séculos de História, um desenvolvimento lento e controlado da chamada “iniciativa privada” (SANCOVSKY, 2010b, p. 71). Como você pode notar, há diferenças e similaridades entre os dois modelos econômicos. Em especial, houve um descompasso temporal na evolução e no desenvolvimento do comércio no Ocidente medieval, em função da descentralização de poder. Por outro lado, a questão dos latifúndios en- volve elementos bastante parecidos. Você deve considerar que o Império Bizantino, em função da centralização de poder, do controle estatal e da posição geográfica, por alguns séculos, fortaleceu as suas estruturas e tornou Constantinopla um referencial para os comerciantes da época. Contudo, na busca pela recuperação dos antigos territórios, a sua hegemonia econômica foi perdendo fôlego e força com o passar dos séculos e o aumento da pressão dos povos invasores. Nesse sentido, as transformações econômicas no Ocidente e no Oriente ocorreram por meio de práticas diferentes, mas com dois elementos em comum que perduraram por toda a Idade Média: o controle da Igreja e o poder do latifúndio, que, em meados de século X, redimensiona as estruturas sociais e estabelece as relações feudo-vassálicas. Paralelamente a esse processo, as cidades readquirem importância, com protagonismo na Península Itálica, fator importante na transição do Medievo para Modernidade. O enfraquecimento do Império Bizantino O chamado movimento iconoclasta, também conhecido como “iconoclastia”, foi um movimento político e religioso de grandes proporções, pautado pela interpretação das escrituras sagradas. O termo “iconoclasta” designa aquele que destrói imagens religosas ou é contrário à sua adoração. Conforme os seguidores do movimento iconoclasta, vários versículos da Bíblia informavam e advertiam quanto à veneração de imagens religiosas. A idolatria, vedada pelos dogmas cristãos, seria o conceito escolhido para defi nir a veneração e o culto de imagens sagradas. Essa interpretação fez com que a controvérsia iconoclasta estivesse presente no Império Bizantino entre os séculos VIII e IX. Tal controvérsia era 5Bizâncio e o Ocidente resultante da profunda discordância acerca da veneração de ícones na Igreja bizantina. Em 726, o imperador Leão III, o Isauro, com forte apoio militar, ordenou a destruição de todas as imagens usadas como ídolos e começou a perseguir os defensores dos ícones, sobretudo os monges. Com o papa Gregório III veio a reprovação do Papado, condenando os iconoclastas em dois sínodos celebrados em Roma (731). O filho de Leão, Constantino V Coprônimo, continuou a política paterna, convocando o Sínodo Iconoclasta de Heiria (753) (LOYN, 1997, p. 199). Também havia um movimento contrário ao movimento iconoclasta, com um compreensão oposta do processo de veneração de imagens. Os defensores da iconofilia entendiam que o significado das imagens religiosas estava longe do conceito de idolatria, pois a arte sacra representava respeito, fé e uma homenagem prestada aos santos católicos da Igreja. Segundo Sancovsky (2010a), o imperador Leão III, que governou Bizâncio entre 717 e 741, religioso e legislador, considerava o seu império uma nova Israel e buscava resistir na luta contra o perigoso crescimento do Islã. Além disso, ele tinha o intuito de acabar com as críticas rotineiras que sofria do califa Omar II (717–720). O imperador, com base em sua experiência e em seus estudos, consultou os textos da Bíblia hebraica, fundamentando assim a sua doutrina. Contudo, tal doutrina foi considerada descabida por membros eclesiásticos que tinham uma compreensão contrária à do imperador em relação à iconofilia, como João Damasceno. Contudo, Leão III, a partir dos dogmas estabelecidos no Império Bizantino, sendo ele beneficiário e descendente do poder que lhe era destinado por Cristo, convocou um concílio em 730. A sua meta era obter a proibição do uso de imagens em qualquer templo bizantino. O movimento iconoclasta teve repercussão imediata, com consequências negativas nas relações entre as Igrejas de Roma e de Constantinopla. Conforme Sancovsky (2010a), o monge da região da Palestina, João Damasceno, criticou a influência do poder imperial em assuntos teológicos, como a definição de parâmetros específicos sobre a devoção e o conceito de santidade. A autora cita um trecho da obra De Fide Orthodoxa: Visto que alguns nos culpam por adorarmos e venerarmos a imagem do Sal- vador, a de Nossa Senhora e também as dos restantes santos e servidores de Cristo, fiquem a saber que desde o princípio Deus fez o homem à sua própria imagem. Por que outros motivos, então, nos amaríamos uns aos outros senão por sermos feitos à imagem de Deus? Porque, como diz Basílio [bispo de Ce- sareia, 329–379], esse doutíssimo intérprete das coisas divinas: “A veneração prestada à imagem transita para o protótipo.” Ora um protótipo é aquele que é representado na imagem e a partir do qual esta tira a sua forma. Por que Bizâncio e o Ocidente6 razão o povo mosaico (referente a Moisés) se prostrava em adoração à volta do tabernáculo que encerrava uma imagem e figura das coisas divinas, ou melhor de toda a criação? O próprio Deus disse a Moisés: “Presta atenção, para que possas fazer todas as coisas segundo o modelo que te foi mostrado na montanha.” [...] Mas visto que nem todos têm conhecimento das letras nem tempo para ler, pareceu aos Padres que certas façanhas notáveis devessem ser representadas em imagens que delas seriam uma breve recordação (ES- PINOSA, 1972, p. 62 apud SANCOVSKY, 2010a, p. 61). A partir desse trecho, percebe-se que João Damasceno, apesar das críticas diretas ao imperador, é solenemente ignorado, pois a atenção de Leão III está voltada para um debate via correspondência com o califa muçulmano Omar, pautado pela imposição de credo, com discussões sobre liturgia, dogmas, messia- nismo e fé. O resultado disso é o empenho do imperador em provar para o califa que não há nenhum tipo de fundamentação bíblica para a adoração de imagens, nem nas escrituras, nem nos mandamentos, nem tampouco nos sacramentos. A compreensão da Igreja do Ocidente, do monge João Damasceno e de boa parte do corpo eclesiásticoera de que as imagens e esculturas tinham um papel didático na expansão do cristianismo e do processo litúrgico, uma vez que a maioria da população era iletrada. Porém, o movimento iconoclasta já estava consolidado: Somente com a regência da imperatriz Irene (780–90) essa tendência foi re- vertida; ela convocou o II Concílio de Niceia (787), que defendeu os ícones e decretou seu restabelecimento. Entretanto, a controvérsia reacendeu-se uma vez mais em 814, por instigação de Leão V, o Armênio, um general eleito imperador pelo exército. Só terminou, finalmente, em 843, quando Teodora, viúva do imperador Teófilo, convocou um sínodo para confirmar o pronun- ciamento feito em Niceia; uma procissão no primeiro domingo da Quaresma assinalou o retorno da ortodoxia (LOYN, 1997, p. 199). O movimento iconoclasta enfraqueceu o Império Bizantino em vários aspectos, mas os imperadores não se deram conta. Nesse contexto, a questão econômica foi pontual, pois a produção de arte sacra movimentava um comércio lucrativo para a Igreja e para o Império, com a venda de estátuas, relíquias, amuletos, etc. Sem o lucro do comércio da arte sacra, como Constantinopla manteria as suas defesas? Com quais recursos o sistema defensivo formado por inúmeras etnias iria se fidelizar ao imperador? E o mais grave, caso a Igreja do Oriente fosse atacada pelo Islã e pedisse ajuda para a Igreja Ocidental, ela ajudaria? Esses eram riscos que hoje se compreendem, mas que os imperadores de Bizâncio não perceberam e que decretaram o enfraquecimento gradativo da civilização bizantina. 7Bizâncio e o Ocidente Iconofilia é o pensamento defensor da representação material da fé. A iconofilia bi- zantina era representada pela série de imagens que ilustravam a natureza de Cristo, dos santos e da santidade, como o Pantocrator (SANCOVSKY, 2010a). A queda do Império Bizantino e a ascensão do Império Turco-Otomano São muitas as interpretações sobre os motivos que fi zeram o Império Bizantino alcançar aproximadamente mil anos de existência. Entre eles, destacam-se: a sua posição geográfi ca, o interesse dos povos bárbaros/germânicos em avançar para o Ocidente e, consequentemente, a sua estrutura de poder, centrada no modelo teocrático e cesaropapista. Contudo, é necessário refl etir sobre os motivos que gradativamente afastaram o Império do Oriente e a sua Igreja do Ocidente. Entre tais motivos, você pode considerar: o enriquecimento, demons- trado pelo comércio e pelo poder fi nanceiro, o aprimoramento intelectual em função do contato com o mundo greco-romano (guardião do conhecimento do mundo antigo) e as querelas religiosas. No governo de Justiniano, por iniciativa do imperador, houve uma ten- tativa de aproximação entre o Império Bizantino e a Igreja do Ocidente. Foi Justiniano que enfrentou o monofisismo, além da revolta de Nika — crise gerada em função da estrutura burocrática de cobrança de altos impostos —, sem falar nos constantes questionamentos por parte da população sobre a sua capacidade de governar. Segundo Monteiro (2016), após a morte de Justiniano, o Império enfrentou uma série de dificuldades financeiras, além de ataques tanto de árabes como de búlgaros, que desejavam controlar Constantinopla. No campo político e teológico, como você viu, o mundo bizantino enfrentou uma de suas piores crises em função da celeuma religiosa causada pelo movimento iconoclasta, contrário à adoração das imagens religiosas. Conforme Le Goff (2015), apesar das crises, o Império se mantinha em função das temas, unidades ou distritos administrativos dos quais os cam- poneses recebiam pequenos latifúndios, defendendo-os com todas as forças. Nas temas, havia uma força militar extremamente bem equipada em termos de armas bélicas, com perfil étnico composto por oficiais e tropas asiáticas nativas. Veja: Bizâncio e o Ocidente8 Os imperadores dos séculos VII e VIII, principalmente Heráclio I e Leão III, dividiram as províncias em “temas” ou zonas militares, cada uma com o seu próprio comandante. Os agricultores locais forneciam e equipavam os soldados em troca de um direito inalienável à terra que cultivavam. Os padrões sociais e econômicos anteriores foram assim radicalmente mudados. Foram os exércitos das “temas” que asseguraram a sobrevivência do Império, recha- çando os eslavos na Europa e os árabes na Ásia Menor (LOYN, 1997, p. 51). Le Goff (2015) ressalta que, ainda na metade do século VIII, Bizâncio e o Ocidente se desconectam de maneira irreversível, com raras exceções de diálogo, seja por questões territoriais ou políticas. Mesmo com as tentativas de reconquista de territórios, ora aumentando, ora diminuindo os seus domí- nios, o Império Bizantino sempre foi alvo de cobiça para os povos do leste. Considere o seguinte: O declínio de Bizâncio coincidiu com o renascimento da Europa. Os ociden- tais chegavam ao Oriente Médio primeiro como peregrinos à Terra Santa, e depois como cruzados. Sua presença e ações fortaleceram os preconceitos bizantinos contra eles. O cisma entre as Igrejas de Roma e de Constantinopla, dramaticamente anunciado em 1054, era sintoma de uma divergência ideoló- gica muito mais profunda. Os mercadores venezianos que acompanhavam os cruzados adquiriram um extraordinário apetite pela riqueza de Bizâncio. Em 1204, eles saciaram-no através da Quarta Cruzada, que encontrou (ou perdeu) seu caminho para Constantinopla (LOYN, 1997, p. 52). A memória cultural greco-romana e oriental presente em Constantinopla consolidou novas visões e concepções de mundo, que foram a marca da civi- lização bizantina. Essas características talvez tenham sido um dos motivos de ruptura com o mundo ocidental. É bem verdade que o Ocidente almejou chegar próximo da estrutura administrativa de Bizâncio e estender o controle da Igreja até lá, mas isso não foi possível. Os anos de ruptura entre Ocidente e Oriente tiveram um trágico desfecho, com o enfraquecimento do Império do Oriente e uma tentativa desesperada de abertura de diálogo no esforço de garantir a existência de Bizâncio como marco do cristianismo no Oriente. Contudo, a Igreja do Ocidente não entendeu a situação dessa forma: Em 1439, no Concílio de Florença, o imperador engoliu seu orgulho e foi proclamada a união das Igrejas grega e romana. A maioria de seus súditos denunciou o acordo como uma traição à sua fé ortodoxa, mas era tarde demais: os turcos já tinham conquistado a maior parte da Europa oriental. Constan- 9Bizâncio e o Ocidente tinopla estava isolada. Em 29 de maio de 1453, após uma longa e heroica resistência, as muralhas da cidade que tinha, durante mil anos, defendido o flanco oriental da Cristandade, foram quebradas pela nova tecnologia da artilharia pesada. A Constantinopla bizantina converteu-se na Istambul turca, capital do Império Otoniano (LOYN, 1997, p. 52). O Império Bizantino, com sua riqueza arquitetônica e com uma civi- lização que implementou uma intensa atividade comercial, produziu arte com referências de várias culturas e etnias e foi guardiã por séculos da literatura e da filosofia do mundo antigo, complementando-a com suas belíssimas produções, tombou frente aos turcos otomanos em 1453. Depois de aproximadamente mil anos de sobrevivência e após inúmeras batalhas de resistência, a muralha de defesa cristã contra os ataques dos muçulmanos finalmente desabou. Otman I foi fundador da dinastia que deu origem ao termo “otomano”. Tal dinastia entraria para a história como vencedora e conquistadora de Constantinopla. Segundo Loyn (1997), Otman I, controlador do poder do Estado turco, liderou os ghãzis, conhecidos por serem guerreiros muçulmanos fanáticos, promovendo invasões violentas nos territórios com o objetivo de cumprir o esforço de conversão — guerra santa para os cristãos —, chamado de jihãd. Os turcos, além de contemplarem objetivos religiosos, almejavam empre- ender uma duradoura e bem estruturada política de expansão territorial. Os primeiros resultados não foram expressivos,porém, conforme Monteiro (2016), com o sucessor de Otman, Orkhan (1326–1362), a estratégia continuou, com a queda de Niceia, em 1331, de Nicomédia, em 1337, e de Gallipoli, em 1354, estruturando o império dos otomanos permanentemente na Europa. Entretanto, o caminho dos otomanos foi facilitado em função das recor- rentes divisões cristãs. Segundo Loyn (1997), aproveitando a crise cristã, Murad I (1362–1380) acelerou o processo de conquistas com o domínio de Adrianópoles, em 1363, e na batalha de Cirnomen, 1371, os Estados sérvios meridionais foram aniquilados. Segundo o autor, Nis e Sófia caíram em 1386. Já os Estados sérvios setentrionais foram derrotados em Kosovo, no ano de 1389. Contudo, o processo de expansão não manteve esse ritmo e o Império teve dificuldades para conservar a sua unidade: O Estado Otomano foi temporariamente fragmentado por herança até voltar a ser reunificado por Maomé I (1413–21), que, com o seu sucessor Murad II, restabeleceu o ideal da ghãzi e da jihãd. Em Varna (1444) e Kosovo (1448), contraofensivas húngaras foram desbaratadas e Constantinopla em 1453 caiu Bizâncio e o Ocidente10 em poder das forças de Maomé II. Este (1451–81) continuou avançando na Europa: Belgrado foi sitiada em vão em 1456, mas Atenas seria capturada em 1458. Vastas áreas da Ásia Menor e da costa do Mar Negro caíram em poder dos otomanos, assim como a Sérvia (1459) e a Bósnia (1463–64). As dimensões das conquistas restringiram novos avanços e o fervor por vitórias abrandou de forma considerável (LOYN, 1997, p. 283). Sob o comando do sultão Mehmed II, que tinha como meta tornar o Império Otomano uma força reconhecida mundialmente, em 1453, Constantinopla é dominada, tornando-se a capital do Império Turco-Otomano. O historiadores creditam a vitória de Mehmed II a uma adaptação inusitada: transformar o canhão chinês, de bambu, em um canhão de metal, o maior da história até então, responsável por derrubar as muralhas de Constantinopla. FIGUEIRA, C. A. F.; PARENTE, P. A. L. A sociedade medieval. In: FIGUEIRA, C. A. F. et al. (org.). História medieval. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2010b. v. 2, p. 163–192. FRANCO JR., H.; ANDRADE FILHO, R. O. O império bizantino. São Paulo: Brasiliense, 1985. LE GOFF, J. A civilização do ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2015. LOYN, H. R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. MONTEIRO, J. G. História concisa do Império Bizantino: das origens à queda de Constan- tinopla. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2016. SANCOVSKY, R. R. O Império Bizantino: a teocracia e os fundamentos religiosos do poder imperial. In: FIGUEIRA, C. A. F. et al. (org.). História medieval. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2010a. v. 2, p. 37–66. SANCOVSKY, R. R. O Império Bizantino: estruturas político-econômicas. In: FIGUEIRA, C. A. F. et al. (org.). História medieval. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2010b. v. 2, p. 67–94. Leituras recomendadas ANGOLD, M. Bizâncio: a ponte da antigüidade para a idade média. Rio de Janeiro: Imago, 2002. COLE, E. (org.). História ilustrada da arquitetura. São Paulo: Publifolha, 2011. GIORDANI, M. C. História do Império Bizantino. Petrópolis: Vozes, 1968. 11Bizâncio e o Ocidente HARRIS, J. The lost world of Byzantium. New Haven: Yale University, 2015. LE GOFF, J. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007. MONTEIRO, J. G. Lições de história da Idade Média: séculos XI-XV. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006. NUNES, R. A. C. História da educação na Idade Média. 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