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HISTÓRIA MEDIEVAL Rodrigo Vieira Pinnow A mentalidade medieval Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Conceituar a visão hierofânica de mundo. Examinar a influência cristã na expressão das artes e na literatura medieval. Reconhecer as características da filosofia medieval e sua base teológica. Introdução Compreender a Idade Média a partir da produção historiográfica brasileira é bastante desafiador, quiçá a tentativa de elucidar a mentalidade medie- val por meio de um breve capítulo. Contudo, faz-se necessário reconhecer que a Idade Média é um dos temas mais fascinantes e estimulantes para os pesquisadores. Os aspectos mais intrigantes que compõem os campos de investigação sobre o período estão diretamente conecta- dos aos estudos sobre imaginário social, mentalidades, memória social, religiosidade e poder. Nossa posição geográfica, a barreira idiomática e a miríade de fontes sobre o período espalhadas pelos inúmeros centros de pesquisa do mundo dificultam a prática de investigações mais aprofundadas, porém a tecnologia nos instiga a navegar em busca de novas problematizações. Neste capítulo, você compreenderá como o conceito de hierofania, criado por Mircea Eliade, pesquisador da religião, se aplica ao período. Além disso, você examinará a influência da religiosidade do período na expressão das artes e na literatura, construindo um melhor entendimento sobre a riqueza cultural da época e reconhecendo a importância da filosofia medieval. A visão hierofânica do mundo medieval Muitas tradições culturais deram origem à mentalidade medieval, pois, no processo de sua constituição, existem elementos greco-romanos, germânicos e judaico-cristãos (FRANCO JR., 2001). Nesse sentido, o segmento historio- gráfi co conhecido como história das mentalidades, composto por renomados historiadores, como Aries, Mandrou, Duby, Le Goff, entre outros, nos dão subsídios para buscar compreender os fenômenos relacionados ao imaginário ou, mais especifi camente, às visões de mundo. Entretanto, no que diz respeito à Idade Média, escassa de registros escritos, principalmente pela quantidade de indivíduos que não sabiam ler nem escrever, compreender a mentalidade da época se torna um pouco mais complexo. É preciso investigar, nesse caso, a instituição detentora de conhecimento na época, bem como estabelecer parâmetros de comparação entre as ações da instituição e a produção historiográfica desde então. Segundo Le Goff (2007), no caso da sociedade medieval, a referência lógica normativa estava calcada no sagrado, ou seja, em Deus. Tal fenô- meno é considerado no arcabouço teórico-metodológico da sociologia e da história das mentalidades como psicossocial, independentemente do período social. Tendo em vista que a composição do tecido social medieval era, por um lado, pura- mente agrária, com dependência exclusiva da relação com a natureza, e, por outro, uma realidade social sem referências de Estado, descentralizada, apenas com a doutrina cristã exercendo o papel dentro do processo civilizador, foi lógico que a presença do sobrenatural se enraizasse no imaginário social. Sociologia clínica e psicossociologia podem ser consideradas divisões disciplina- res inscritas no campo das ciências humanas que se caracterizam, sobretudo, por uma determinada compreensão das noções de social e psíquico em seu objeto de investigação. Para além dos objetos específicos de cada área, ambas as disciplinas compartilham da mesma noção de sujeito do inconsciente e, nesse sentido, inauguram a perceptiva psíquica no campo da sociologia. Partindo então da noção de sujeito do inconsciente, o próprio pesquisador, inscrito no campo investigativo dito clínico, passa a ser considerado nessa qualidade investigativa. Fonte: Gebrin e Andreotti (2016, documento on-line). A mentalidade medieval2 A igreja e o sagrado A morte estava presente desde a infância no mundo medieval — as expectativas de vida eram bem pessimistas, uma vez que não havia recursos humanos capa- citados para a manutenção da saúde, bem como para o planejamento familiar da época. A porta-voz da esperança naturalmente se tornou a fé em Cristo, a fé no sagrado e, principalmente, a pós-vida no paraíso cristão, tão difundido pela Igreja Católica. De acordo com Franco Jr. (2001, p. 190): Esbarramos aqui em dificuldades terminológicas importantes. Falar em sagrado desperta hoje a ideia de oposição com o profano, quando na verdade esta palavra quer dizer mais “diante do templo” (pro fanum) do que “fora do templo”. Ou seja, não se trata de conceitos opostos (como pensava a sociologia das religiões do século XIX), e sim complementares. Falar em sobrenatural implica pensar na natureza de forma restrita, enquanto para os medievais e sua cosmologia, pela qual todas as partes do universo estão estreita e indissoluvelmente ligadas entre si, a natureza tinha um sentido muito amplo. Não havia propriamente aquilo que chamamos sobrenatural: a própria palavra surgiu apenas no século XIII, no contexto do desenvolvimento de uma nova concepção de natureza. A população medieval era extremamente voltada para crenças supersticiosas criadas pela Igreja Católica, considerando todos os eventos naturais como uma expressão da vontade divina, como, por exemplo, o sucesso nas plantações, a saúde, os nascimentos, as mortes e até mesmo as vitórias ou derrotas. As escrituras sagradas eram o único meio para estabelecer uma relação com o sagrado, com o divino, para que fosse possível vencer o pecado através de uma vida condizente aos mandamentos da Igreja. Segundo Eliade (1992, p. 13): O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, urna pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”. 3A mentalidade medieval O sagrado, para o mundo medieval, era revelado pela Igreja Católica por meio da palavra e de sua aplicabilidade. O imaginário social da época se encarregava de construir as conexões com a realidade, pois, como lembra Le Goff (2018), a fusão de culturas que deram origem à sociedade medieval construiu pontes entre o sagrado e o profano, juntamente com o maravilhoso, o misterioso e o mágico. O sobrenatural se manifestava para além dos dogmas cristãos, pois estavam enraizadas lendas de seres, como dragões, bruxas, unicórnios, fadas, faunos, entre outras entidades oriundas da diversidade cultural, que compunham o tecido social do medievo. É preciso considerar que a transição do mundo politeísta para o mundo monoteísta se deu por meio de um sincretismo cons- truído pela Igreja Católica. Com isso, presume-se que boa parte das crenças das culturas politeístas tenham sido a base para a construção das alegorias de fantasia do mundo medieval, porém, consequentemente, a essência do sagrado e da verdade estava devidamente resguardada sob a égide do Cristianismo. A relação entre visão hierofânica medieval e o estabelecimento dos sacramentos cristãos Parafraseando a pergunta original de Eliade (1992) — “como uma sociedadese esforça para se manter ao máximo do tempo possível num universo sa- grado?” — na obra O Sagrado e Profano, o autor problematiza, do ponto de vista fenomenológico, a questão relacionada ao sagrado e às suas dimensões. Até o momento, compreendemos que a mentalidade medieval foi forjada pelos dogmas do Cristianismo, e, a partir disso, a instituição consolidou for- mas de controle social e espiritual. Contudo, a partir das reflexões de Eliade (1992), pode-se considerar que uma das estratégias da Igreja Católica para manter a sociedade medieval constantemente em um universo sagrado foi o estabelecimento dos sacramentos. De acordo com Franco Jr. (2001, p. 202): Colocado no centro da luta entre o Bem e o Mal, com sua alma disputada por anjos e demônios, o homem podia contar com preciosos apoios, hierofâ- nicos. Em primeiro lugar, indispensáveis para a salvação, os sacramentos* ministrados pela Igreja: a comunhão, por exemplo, era vista como contato mais mágico que espiritual com Deus, daí, ainda no século XI, camponeses enterrarem pedaços de hóstias consagradas para aumentar a fertilidade da terra. De forma geral, toda a liturgia era “aos olhos dos fiéis uma coleção de ritos dos quais eles esperavam tirar proveito”. Depois, os santos e as relíquias* também fortaleciam o homem, dando-lhe melhores condições de enfrentar as forças demoníacas. A mentalidade medieval4 Os sacramentos da Igreja Católica foram baseados na interpretação das escrituras sagradas. Segundo as fontes oficiais do Vaticano, os sacramentos concebidos pela Igreja Católica são elos entre os cristãos com o sagrado, ou seja, por meio deles, na perspectiva teológica cristã, o indivíduo que professa a fé em Jesus Cristo se renova e se fortalece. Segundo Franco Jr. (2001), os sacramentos foram parte importante da estraté- gia da Igreja Católica para manifestar o sagrado efetivamente na vida secular da população medieval. O autor ressalta que o cotidiano medieval foi gradativamente sendo atingido pelos sacramentos cristãos. Por outro lado, Eliade (1992) propõe que a representação do sagrado possui expressão simbólica através de uma malha de significados. Segundo o autor, num primeiro momento, esse conjunto de significados não é compreendido como parte de um todo. Entretanto, quando analisamos os sacramentos como apoios hierofânicos e complementares ao ima- ginário dos cristãos, percebemos o quanto a Igreja criou meios para a expansão da percepção dos fenômenos considerados sagrados, disseminando, assim, uma sensação de pertencimento mais sólida ao Cristianismo e, consequentemente, estabelecendo seus alicerces na sociedade medieval. No link a seguir, você poderá assistir ao vídeo do Prof. Dr. João Mac Dowell, em que ele comenta sobre a obra O sagrado e o profano, de Mircea Eliade. https://qrgo.page.link/3xLj3 A arte e o sagrado no mundo medieval A manifestação do sagrado esteve presente como expressão da arte, sobretudo na arquitetura medieval, uma vez que a Igreja entendia que, em um mundo sem referências físicas de centralização de poder, como, por exemplo, prédios públicos, era preciso consolidar espaços de vivência da fé pautados pelas escrituras sagradas. A partir disso, a arquitetura medieval teve destaque na construção de castelos, catedrais, igrejas e monastérios. Como vimos até aqui, a Igreja recorria às sagradas escrituras para justifi car suas demandas estratégicas. Sendo assim, como porta voz de Deus, estabelece a simbologia dos templos como a materialização da doutrina cristã. 5A mentalidade medieval Vocês esperavam muito, mas, eis que veio pouco. E o que vocês trouxeram para casa eu dissipei com um sopro. “E por que o fiz?”, pergunta o SENHOR dos Exércitos. “Por causa do meu templo, que ainda está destruído enquanto cada um de vocês se ocupa com a sua própria casa” (AGEU, 1980, 1:9). A escritura acima é uma das muitas que ajudaram a caracterizar na arte me- dieval a essência da religiosidade cristã. A Igreja recorreu à arte como forma de educar a população iletrada, por meio de pinturas e vitrais, com a representação de passagens bíblicas que expressavam os dogmas cristãos. Segundo Strickland e Boswell (2014), a arte religiosa teve objetivos didáticos construídos em parceria com o corpo eclesiástico, não havendo, em muitos casos, obras assinadas, pois tudo pertencia ao sagrado, logo, não haveria necessidade de interferência do mundo secular. Nesse contexto, durante os primeiros séculos da Idade Média, os artistas não tiveram o devido destaque pela grandiosidade de suas obras, pois eram parte integrante do imaginário social “[...] fé sem obras é morta [...]” (SÃO TIAGO, 1980, 2: 26). Como a meta cristã era a salvação e o paraíso, ou seja, a vida eterna, aos poucos, o realismo das representações de mundo desapareceu. Comuns na Antiguidade Clássica, período que antecedeu a Idade Média, a representação do corpo nu não era mais recomendada, passando a ser condenada. As novas composições de corpos femininos tinham um novo olhar em termos de anatomia, fugindo, e muito, das representações greco-romanas. Observe, na Figura 1, uma pintura da Virgem Maria. Figura 1. Pintura medieval da Virgem Maria. Fonte: Zsolt Horvath/Shutterstock.com. A mentalidade medieval6 No contexto artístico medieval, o corpo foi substituído pelo espírito, pois o corpo do mundo greco-romano era considerado profano, e o espí- rito, a partir dos dogmas católicos, seria a conexão com o sagrado. Esse ensinamento foi incentivado pelos teólogos da época com o intuito de que os cristãos vislumbrassem a beleza por meio do divino representado nas esculturas, pinturas e vitrais das Igrejas, catedrais e monastérios. De acordo com Franco Jr. (2001, p. 144): A arte ocidental dos séculos IV-VIII realizou uma síntese de elementos de origens diversas. Da arte romana clássica conservou-se algo das técnicas e das características arquitetônicas. Da arte oriental, com a qual se manteve contato mesmo após as invasões germânicas, através de mercadores e missionários, veio certa estilização e hieratismo das formas. Da arte ger- mânica, típica de povos nômades, aproveitou-se o caráter não figurativo e o geometrismo estilizado. Da arte céltica, através das iluminuras dos monges irlandeses, absorveu-se o uso de linhas abstratas, apenas ornamentais. Da arte cristã primitiva veio o essencial, isto é, a temática e o simbolismo. No todo, elementos que se completavam mais do que se negavam, tendo cada um deles peso variável conforme o gênero artístico (arquitetura, escultura, pintura, miniatura, mosaico etc.) e as condições locais (composição étnica, meio físico, época). Segundo Soares (2017), a arquitetura medieval teve como foco projetos com estruturas mais leves, suaves e arejadas. O padrão cristão de edifica- ção tinha um exterior simples, a massa e o volume da arquitetura romana cederam lugar para edificações que refletiam o ideal cristão: discretos no exterior, mas resplandecentes, com uma simbologia representada pelo uso de afrescos, mosaicos e vitrais. Com isso, a autora evidencia três estilos de arte medieval distintos: bizantino, romano e gótico. A arte bizantina geograficamente se manifesta no Mediterrâneo Oriental a partir de 330 d.C., momento marcado pela transferência do trono do Império Romano, por Constantino, para Bizâncio, que teve seu nome posteriormente alterado para Constantinopla. O estilo bizantino mesclou elementos da arte cristã, combinados com uma variedade de cores e um estilo decorativo único, com influências da cultura grega oriental. Conforme Soares (2017), a Igreja de Santa Sofia é a representação da arquitetura da época, tendo sido construída por aproximadamente 10 mil homens por quase 6 anos (Figura 2). 7A mentalidade medieval Figura 2. Igreja de Santa Sofia, na Turquia. Fonte: viperman/Shutterstock.com. A arte românica se apropria de elementos da cultura romana e foi de- senvolvida entre os séculos V e IX, período historiograficamente chamadode Alta Idade Média. Fazem parte do estilo uma arquitetura focada em castelos, catedrais, igrejas e monastérios, com características específicas: poucas entradas de luz, sem muitas janelas, robustas, com edificações horizontais, mais grossas, com abóbadas e arcos, como fortalezas seguras e prontas para defesa. Entre os séculos X e XV, a arte gótica ganha força no mundo medieval e apresenta características distintas de sua antecessora, a arte românica, por possuir mais aberturas, leveza, paredes mais finas. Há consenso entre os historiadores da arte de que as catedrais góticas reúnem elementos únicos de beleza e esplendor do mundo greco-romano combinados com o sagrado cristão. Alguns autores, como Strickland e Boswell (2014), chamam as catedrais góticas de “bíblias de pedra”, pois avançam para além dos elementos da cultura clássica, com uma arquitetura mais ousada e com novos elementos de engenharia para a época: a utilização da abóbada entre traves, sendo sustentada por estruturas externas, chamadas de arcobotantes (Figura 3). Segundo Soares (2017), essa nova engenharia possibilitou que as cons- truções góticas tivessem paredes estreitas, com janelas maiores, cobertas por vitrais, aumentando, assim, a luminosidade no interior da edificação. A mentalidade medieval8 Figura 3. Catedral de Colônia, na Alemanha. Fonte: phoelixDE/Shutterstock.com. A literatura medieval Ao contrário de nossa realidade, no mundo medieval, a literatura também esteve a serviço da Igreja Católica como ferramenta pedagógica para o reforço do Cristianismo. Os autores da época eram membros do corpo eclesiástico. bispos, padres e até mesmo papas se aventuravam nas práticas literárias. Contudo, os consumidores da literatura da época eram os próprios membros do clero e alguns da nobreza. Além das inspirações religiosas que faziam parte da substância essencial das obras, as influências da filosofia também se faziam presentes, com re- flexões de Aristóteles e Platão, mas poucas na Alta Idade Média. O corpo eclesiástico, apreciadores do conhecimento das muitas dimensões da arte dos greco-romanos, foram os guardiões e responsáveis pela conservação de inúmeras bibliotecas e verdadeiras preciosidades artísticas do mundo clássico. Nesse período, a Igreja, por intermédio do sagrado, explícito na doutrina cristã, estimulou que os literatos medievais escrevessem sobre o imaginário cultural, social e sagrado do complexo tecido medieval. Os autores escolheram relatar em suas obras passagens bíblicas, produziram verdadeiras biografias 9A mentalidade medieval romanceadas sobre a jornada de santos católicos e, sempre, reforçaram o sagrado por intermédio da existência de Deus e da vida eterna. Na literatura, por outro lado, à primeira vista a fronteira entre os dois pólos culturais estava colocada no idioma utilizado, o latino na cultura clerical e o vernáculo na vulgar. De fato, segundo Bruce Rosenberg, a literatura medieval em língua vulgar está mais impregnada de elementos folclóricos do que a de qualquer outra época. No entanto, a questão é mais complexa. Na literatura latina, ao lado de uma produção nitidamente clerical (crônicas, poesias de cunho clássico), havia uma de espírito popular (hagiografia) e outra erudita mas anti eclesiástica (goliárdica). Na literatura vernácula, havia gêneros com forte coloração clerical (canção de gesta, ciclo do Graal) e outros acentua- damente laicos (lais, fabliaux). Em termos culturais, portanto, e não apenas lingüísticos, boa parte da literatura da Idade Média Central estava na zona da cultura intermediária (FRANCO JR., 2001, p. 144). Há um consenso entre os historiadores Le Goff (2018) e Gombrich (1999) sobre dois aspectos importantes relacionados á Idade Média: primeiro, a falácia do termo renascentista “idade das trevas”, uma vez que, em quase mil anos de medievo, houve muitos “renascimentos”; segundo, para os autores, as camadas sociais que viveram entre os séculos V e X não compreendiam e tampouco identificavam-se com estilos artísticos, seja nas artes ou na literatura, pois haviam muitas influências artístico-culturais. Somente a partir do século XI, com um processo civilizatório mais consolidado, os estilos artísticos seriam mais bem compreendidos e apreciados. A partir do século XII, conforme o consenso de alguns autores do me- dievo, o trovadorismo provocou algumas mudanças na literatura. O amor, a aventura, contos épicos e sátiras começaram a ter mais espaço, mas sempre sob os auspícios da Igreja e muitos considerados profanos. Segundo Barros (2015, p. 216): O Amor Cortês encontra seus principais veículos de expressão nas cantigas dos trovadores, nos romances corteses, nas “cortes de amor” e, em muitos casos, nas próprias “vidas” dos poetas-cantores que percorriam as cortes feudais da Europa Medieval e que por vezes acabavam transformando a sua própria existência errante em uma autêntica obra de arte. O século XII também nos legou o famoso Tratado do Amor Cortês, de André Capelão, que procura refletir sobre o Amor à maneira dos tratadistas medievais, sendo esta também uma importante fonte para a compreensão dos novos padrões de sensibilidade. Entretanto, desse momento em diante, a literatura passa a ter outro papel no imaginário da época. A mentalidade medieval10 Entre a fé e a razão: a filosofia medieval A igreja Católica, para além de tudo o que já foi dito neste capítulo, teve a incumbência de agir como uma entidade supranacional, dialogando e cos- turando alianças com as camadas dominantes, estabelecendo seu papel no campo cultural, social e político. Com isso, expandiu sua estrutura física, agregando riqueza material e, por conseguinte, tornando-se a proprietária de quase um terço das terras férteis do continente europeu, em um período em que o latifúndio signifi cava glória, poder e riqueza. Com isso, seu plano universalista abarcou diferentes territórios, mediando muitas celeumas entre a fé e a razão. A partir disso, a Igreja estabeleceu, do ponto de vista da cultura, uma estratégia intelectual, na qual a fé cristã seria a base primordial de todo o conhecimento humano. Portanto, a fé fundamentava- -se em um processo de doutrinação contínua e plena às revelações feitas por Deus aos homens, registradas na Bíblia, com os devidos esclarecimentos feitos pela autoridade da Igreja Católica. Num primeiro momento, é preciso ter em mente que a questão central do debate para a constituição da filosofia na Idade Média gira em torno do con- flito entre fé e razão. Trata-se de um período profundamente teocêntrico, em que os filósofos também eram religiosos, com uma forte bagagem teológica, e a grande preocupação desses homens era equilibrar a fé e a razão. Se a razão não fosse ignorada, ao contrário, fosse incorporada à fé cristã, a Igreja católica certamente teria mais seguidores. Então, era preciso que houvesse uma diferenciação e, ao mesmo tempo, uma conciliação no debate entre os dogmas construídos pela fé e as descobertas elaboradas pela razão. No entanto, segundo Franco Jr. (2001, p. 146): [...] o campo cultural em que melhor se expressou a tentativa de harmonização do passado clássico com o cristianismo foi o da Filosofia. Na verdade, tal pretensão não foi apenas a dos primeiros tempos medievais, mas de toda a Idade Média, como veremos mais adiante. Na fase que ora examinamos, isso transparece na corrente conhecida por Patrística. Na essência, ela procurava provar que a doutrina cristã não conflitava com a razão, demonstrando assim a falsidade do paganismo, para tanto, ela recorreu à filosofia grega, sobretudo ao platonismo, que se adequava melhor à mensagem cristã. Agostinho de Hipona, posteriormente, Santo Agostinho, como ficou co- nhecido, foi o primeiro filósofo e teólogo responsável pela aproximação entre a fé e a razão. Em sua obra, Cidade de Deus, produzida em 426 d.C., o pen- sador cristão refutou as heresias da época, tais como o Maniqueísmo (crença 11A mentalidademedieval no dualismo bem e mal, de origem persa), o Donatismo (corrente contrária aos eclesiásticos com atribuições no Estado), o Arianismo (compreensão de Jesus humano, não divino) e o Pelagianismo (compreensão do homem como responsável por sua salvação). Agostinho foi o principal expoente da Patrística, corrente filosófica que buscou compreender a relação entre o corpo e a alma, entre a fé e a razão. O diferencial de Agostinho foi o resgate do mundo dos sentidos da Antiguidade Clássica, concebido pela filosofia de Platão. A partir desse mundo dos sentidos, Agostinho propôs uma reflexão que equilibrava o conhecimento, a razão, o pensamento e os sentidos humanos dentro do debate teológico da doutrina cristã. Segundo Gomes (2002, p. 222): A bifurcação da escatologia cristã consumou-se com a teologia agostiniana, mantendo o cristianismo numa permanente tensão entre instituição e inspira- ção, entre poder e carisma. Agostinho refutou o milenarismo e a escatologia iminente, rejeitando a possibilidade da identificação de um reino visível de Cristo na terra antes do Juízo Final e falando antes de uma presença invisí- vel do Reino de Deus na Igreja. Nesta escatologia que se tornou oficial na Cristandade medieval, o futuro prometido era reconhecido como já presente no culto, na proclamação da Palavra de Deus, nos sacramentos, na Igreja. Dava-se deste modo uma quase identificação do Reino de Deus com a Igreja numa espécie de “êxtase” da realização no presente do futuro prometido. Era como que um “mito” do presente. Seguidor das ideias de Agostinho de Hipona, o teólogo e filósofo Anselmo de Cantuária, nascido como Anselmo de Aosta (cidade de Aosta, Itália), hoje conhecido como Santo Anselmo, tinha como lema principal a expressão: fides quaerens intellectum (a fé que procura entender), ou seja, ele utilizava um argumento ontológico, também da escola platônica, sobre “o que é isso?”. O filósofo defendia a ideia de que Deus era um ser perfeito, portanto, ele deveria existir por essa perfeição. E se Deus era perfeito, era inconcebível para a mente humana o significado de Deus. A Igreja traduziria quem seria e o que seria Deus. Em suas obras, o filósofo expressa suas preocupações sobre os debates relacionados à conciliação entre fé e razão. No livro Monológio, Anselmo tenta demonstrar a existência de Deus por intermédio da razão, sem o uso das escrituras sagradas. Em Proslógio, Anselmo também desenvolve uma fundamentação da fé com argumentação pautada pela razão. O pensador cristão, além de ser um intelectual adepto do aprimoramento filosófico por meio do equilíbrio entre a razão filosófica e teológica, também teve atuação política na sustentação e na defesa da doutrina cristã e da Igreja. A mentalidade medieval12 Mas uma vez que é melhor ser sensível, omnipotente, misericordioso, impas- sível, do que não o ser, de que modo és sensível se não és um corpo?, ou om- nipotente se não podes todas as coisas?, ou misericordioso e simultaneamente impassível? De facto, se só as coisas corporais são sensíveis, reportando-se os sentidos ao corpo e estando no corpo, de que modo és tu senciente <es sensibilis>, quando não és corpo, mas sumo espírito, o qual é melhor que o corpo? Mas, se sentir não é senão conhecer ou <apenas estar em ordem> ao conhecimento – quem sente, com efeito, conhece segundo a proprie-dade dos sentidos, como por exemplo, a cor pela vista, os sabores pelo gosto – diz-se sem inconveniente que <quem sente>, sente de algum modo tudo o que conhece <também> de algum modo. Assim, Senhor, se bem que não sejas corpo, és, contudo, vera e sumamente senciente <sensibilis>, do modo mesmo como conheces sumamente todas as coisas, e não da maneira como também o animal conhece pelo sentido corpóreo (ANSELMO, 2008, p. 15). Segundo Chesterton (2015), Tomás de Aquino foi professor da Universidade de Paris e membro da Ordem dos Dominicanos, responsável por ampliar o projeto universalista da Igreja, desenvolvendo a Escolástica, método caracte- rístico das universidades medievais europeias, entre os séculos IX e XVI. A partir das escolásticas, segundo o autor, Tomás de Aquino propôs e trouxe à tona os ensinamentos de Aristóteles por meio da metafísica aristotélica, com foco nas causas primeiras, ou seja, na origem das coisas. E, a partir disso, sua proposta objetivava conciliar a fé cristã com o pensamento racional, levantando questões que conectariam a teologia e a filosofia, ou seja, uma proposição de uma investigação e fundamentação racional da fé. Quanto ao método de estudo, aplicava-se a Escolástica, assim chamada devido ao local em que nascera, a escola urbana. Tratava-se de um conjunto de leis sobre como pensar determinado assunto. Inicialmente, leis da linguagem, buscando-se o exato sentido das palavras, já que por meio delas é que se desenvolve o raciocínio, são elas o instrumental que constrói o pensamento. Depois, leis da demonstração, por meio da dialética, isto é, forma de provar certa posição recorrendo-se a argumentos contrários. A seguir, leis da auto- ridade*, ou seja, o recurso às fontes cristãs [Bíblia, Pais da Igreja*) e do pen- samento clássico (Platão, Aristóteles) para fundamentar as idéias defendidas. Por fim, leis da razão, utilizáveis para uma compreensão mais profunda de tudo, mesmo de assuntos da fé. A aplicação do método escolástico ao ensino fazia com que este se desenrolasse em dois momentos básicos, a lectio ou leitura, comentário e análise de texto, e a disputatio ou debate sobre tudo aquilo (FRANCO JR., 2001, p. 161). A Igreja Católica soube identificar, no período de consolidação de seu poder, os anseios de uma parcela da população medieval de sede por conhecimento, 13A mentalidade medieval conciliando a razão com o universo sobrenatural e supersticioso presente na época. As explicações e formulações teológicas precisavam de um elemento que construísse uma ponte entre o mundo da fé cristã com o outrora mundo clássico, superado pelas inúmeras transformações demográficas do período, bem com pela perda do poder centralizador romano. A partir disso, a Igreja, para além dos debates sobre a religião cristã, efervescentes na sociedade medieval, articulou uma aliança com os maiores intelectuais da estrutura eclesiástica e implementou o maior projeto de uni- versalização visto na história da humanidade. A população do mundo medieval, composta, em sua grande maioria, por analfabetos, foi contemplada com o conhecimento da doutrina cristã por meio da visão hierofânica de mundo, com a Igreja agindo para propagar a compreensão do sagrado em todas as expressões de arte a partir do século V. Paralelo a isso, os núcleos da nobreza, oriundos das mais diversas culturas germânicas e românicas, também eram seduzidos pela difusão cultural cristã, com acesso a eventos para assistirem intelectuais nas festividades alusivas ao calendário cristão e pela beleza e exuberância das edificações eclesiásticas. Em suma, assim como os pobres, os nobres, líderes e até mesmo imperadores cederam ao Cristianismo e seu projeto de universalização. AGEU. In: BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. cap. 1, vers. 9. ANSELMO (Santo). Proslogion. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. BARROS, J. D. A poética do amor cortês e os trovadores medievais: caracterização, origens e teorias. Aletria, Belo Horizonte, v. 25, n. 1, p. 215–228, 2015. CHESTERTON, G. K. Santo Tomás de Aquino. Campinas: Ecclesiae, 2015. ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FRANCO JR., H. 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