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DOCÊNCIA EM SAÚDE FARMACOVIGILÂNCIA 1 Copyright © Portal Educação 2012 – Portal Educação Todos os direitos reservados R: Sete de setembro, 1686 – Centro – CEP: 79002-130 Telematrículas e Teleatendimento: 0800 707 4520 Internacional: +55 (67) 3303-4520 atendimento@portaleducacao.com.br – Campo Grande-MS Endereço Internet: http://www.portaleducacao.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - Brasil Triagem Organização LTDA ME Bibliotecário responsável: Rodrigo Pereira CRB 1/2167 Portal Educação P842f Farmacovigilância / Portal Educação. - Campo Grande: Portal Educação, 2012. 81p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8241-582-5 1. Farmacovigilância. 2 Farmacoepidemiologia. I. Portal Educação. II. Título. CDD 363.194 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 6 2 UM BREVE HISTÓRICO NO MUNDO E NO BRASIL ............................................................... 7 3 FARMACOEPIDEMIOLOGIA ................................................................................................... 12 3.1.1 Ensaios pré-clínicos................................................................................................................... 16 3.1.1.1Estudos in vitro ......................................................................................................................... 16 3.1.1.2Estudos in vivo .......................................................................................................................... 17 3.1.1.3Toxicidade aguda ...................................................................................................................... 17 3.1.1.4Toxicidade subaguda ou crônica .............................................................................................. 18 3.1.1.5Teratogenia ............................................................................................................................... 18 3.1.1.6Especiais................................................................................................................................... 18 3.1.2 Ensaios clínicos ......................................................................................................................... 19 3.1.2.1Os ensaios clínicos são divididos em quatro fases ................................................................... 20 3.1.2.1.1Fase I ..................................................................................................................................... 20 3.1.2.1.2Fase II .................................................................................................................................... 20 3.1.2.1.3Fase III ................................................................................................................................... 20 3.1.2.1.4Fase IV................................................................................................................................... 21 4 FARMACOVIGILÂNCIA ............................................................................................................ 23 4.1 DESVIOS DE QUALIDADE ....................................................................................................... 23 3 4.2 NOTIFICAÇÕES DE PERDA DE EFICÁCIA ............................................................................. 24 4.2.1 Eventos adversos ...................................................................................................................... 25 4.2.2 Reações Adversas a Medicamentos (RAM) .............................................................................. 27 4.2.2.1Classificação das Reações Adversas a Medicamentos (RAM) ................................................. 27 4.2.2.1.1Reações do tipo C ................................................................................................................. 30 4.2.2.1.2Reações do tipo D ................................................................................................................. 30 4.2.2.1.3Reações do tipo E .................................................................................................................. 30 4.2.2.1.4Reações do tipo F .................................................................................................................. 30 4.2.2.1.5Reações do Tipo G ................................................................................................................ 31 4.2.2.1.6Reações do tipo H ................................................................................................................. 31 4.2.2.1.7Reações do tipo U (não classificadas) ................................................................................... 32 4.2.2.2Classificação das reações adversas através dos mecanismos de produção dos efeitos ......... 32 4.2.2.2.1Dependentes dos pacientes ................................................................................................... 32 4.2.2.2.2Dependentes do medicamento .............................................................................................. 33 4.2.2.3 lassificação das RAMS quanto a suscetibilidade ..................................................................... 34 3.2.2.3.1Idade ...................................................................................................................................... 34 4.2.2.3.2Sexo ....................................................................................................................................... 36 4.2.2.3.3Doenças intercorrentes .......................................................................................................... 36 4.2.2.4Classificação das RAMs quanto ao efeito da morbidade/gravidade ......................................... 37 4.2.2.4.1Efeito Menor ........................................................................................................................... 37 4.2.2.4.2Efeito Moderado ..................................................................................................................... 38 4.2.2.4.3Efeito Severo ......................................................................................................................... 38 4 4.2.2.4.4Efeito Letal ............................................................................................................................. 38 4.2.2.5Classificação das RAMs quanto à causalidade ........................................................................ 39 4.2.2.5.1Definida .................................................................................................................................. 39 4.2.2.5.2Provável ................................................................................................................................. 40 4.2.2.5.3Possível ................................................................................................................................. 40 4.2.2.5.4Improvável ............................................................................................................................. 41 4.2.2.5.5Duvidosa ................................................................................................................................ 41 4.2.2.6Classificação das RAMs quanto à incidência ............................................................................ 41 4.3 ERROS DE MEDICAÇÃO .........................................................................................................42 4.3.1 Erro de prescrição ..................................................................................................................... 46 4.3.1.1Erros administrativos ou processuais........................................................................................ 47 4.3.1.2Erros de dosagem ..................................................................................................................... 48 4.3.1.2.1Erros terapêuticos .................................................................................................................. 49 4.3.1.2.2Erro de dispensação .............................................................................................................. 49 4.3.1.2.3Erros de conteúdo .................................................................................................................. 50 4.3.1.2.4Erros de rotulagem ................................................................................................................ 52 4.3.1.2.5Erros de documentação ......................................................................................................... 54 4.3.1.2.6Erro de administração ............................................................................................................ 54 4.3.1.2.6.1Causas de erros de administração...................................................................................... 55 4.3.1.2.7Prevenção de erros de medicação......................................................................................... 56 4.4 SISTEMA DE NOTIFICAÇÃO DE EVENTOS ADVERSOS ....................................................... 57 4.4.1 Diagnóstico de reações adversas .............................................................................................. 57 5 4.5 PROGRAMAS DE FARMACOVIGILÂNCIA .............................................................................. 68 5 FARMÁCIAS NOTIFICADORAS .............................................................................................. 70 5.1 OBJETIVOS DO PROGRAMA .................................................................................................. 70 6 HOSPITAIS SENTINELA .......................................................................................................... 72 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 74 6 1 INTRODUÇÃO A proposta deste curso é abordar e contextualizar a farmacovigilância e os erros de medicação, aspectos que podem modificar completamente ao prognóstico de um paciente. Será apresentado inicialmente um histórico sobre os principais episódios de morbidade e mortalidade envolvendo a utilização dos medicamentos. Em seguida, será abordada a metodologia para estudo de utilização de medicamentos e as principais informações sobre farmacovigilância desde suas áreas de atuação até a possibilidade de notificação dos eventos adversos. Por fim, será trabalhado o conceito de erros de medicação, suas causas e consequências e as formas de prevenção. 7 2 UM BREVE HISTÓRICO NO MUNDO E NO BRASIL Há séculos é sabido que as reações adversas a medicamentos causam morbidade e mortalidade significativas. Em 400 a.C., Hipócrates relatava que os fármacos nunca deveriam ser prescritos, a menos que os pacientes fossem minuciosamente examinados (Lee, 2009). Segundo Cowen; Helfand (1990), Hipócrates (460-370 a.C.) defendia que “primeiro não cause mal” (primum no nocere), e os gregos usavam o nome phármakon (remédio), cuja acepção primordial emana da natureza de remédio e veneno, ou seja, um medicamento que cura pode também causar dano à saúde. Galeno (131-201 d.C.), por sua vez, advertia para os potenciais efeitos tóxicos de qualquer medicamento. O médico Rhazes, na Pérsia antiga (860- 932 d.C.), mencionava as associações medicamentosas desnecessárias (STORPIRTIS et al., 2008). Em 1785, quando William Withering descreveu os benefícios da digitális, também identificou quase todos os seus efeitos adversos e demonstrou como sua toxicidade poderia ser minimizada por meio dos cuidados com a titulação da dose (LEE, 2009). As primeiras demonstrações dos efeitos tóxicos ou indesejáveis dos medicamentos datam de 1880 com o uso de clorofórmio. Essa substância foi originalmente utilizada como anestésico, apesar de estudiosos da época desconhecerem seu mecanismo de ação. Mais tarde, devido a relatos de morte súbita provavelmente devido à fibrilação ventricular atribuídos ao clorofórmio, esse medicamento foi novamente substituído pelo éter. Já em 1922, o Medical Research Council realizou uma pesquisa formal sobre icterícia seguida do uso de arsênico para tratar sífilis. Em 1937, cem pessoas morreram nos EUA por insuficiência renal devido uso de elixir de sulfanilamida, que possuía o veículo dietilenoglicol, causador da reação Assim, em 1938, o governo americano passou a exigir testes de toxicidade pré-clínica, além de dados clínicos sobre segurança antes da comercialização. Em 1950, os EUA ainda não 8 haviam dado importância à possibilidade de surgimento de novas reações adversas, quando foi evidenciado casos de anemia aplásica em pacientes utilizando cloranfenicol. Em 1954, 100 pessoas morreram após tomar o medicamento Stalinon®, utilizado no tratamento da furunculose, pois o mesmo continha estanho (STORPIRTIS et al., 2008). No início de 1960, ocorreu a catástrofe da talidomida após descobrir-se um grande número de casos de focomelia (um importante defeito congênito de membros) em crianças expostas in útero; tal acontecimento serviu de catalisador para o desenvolvimento, em todo o mundo, da legislação sobre a segurança dos fármacos (LEE, 2009). A talidomida foi propagandeada e prescrita com um hipnótico “seguro” para mulheres grávidas. Porém, milhares de bebês nascidos de mães que tomaram o medicamento, durante a gravidez, apresentaram focomelia e micromelia, sendo que dos 4.000 casos, 15% não sobreviveram (STROM, 2000 in STORPITIS et al., 2008). O desastre da Talidomida afetou 300 bebês no Brasil. Devido ao problema da talidomida, a décima sexta Assembleia Mundial de Saúde realizada em 1963 reafirmou a necessidade de ações precoces para a promoção de uma rápida disseminação da informação sobre reações adversas a medicamentos. Assim, em 1968 a Organização Mundial de Saúde criou o projeto internacional de Pesquisa Piloto para Monitorização de Medicamentos, tendo um relatório técnico baseado nas conclusões de uma reunião de consultoria realizada em 1971. Em 1971, o uso do contraceptivo oral dietilbestrol por mulheres que mais tarde engravidaram levou ao aparecimento de adenocarcinoma de vagina, entre outras malformações genitais em suas filhas. Esse fato foi uma novidade, pois demonstrou que é possível ocorrer RAM na segunda geração (STORPIRTIS et al., 2008). No Brasil, em 1976, foi publicada a Lei Nº 6360, marco na área de vigilância sanitária, que ainda está em vigor e que estabeleceu a obrigatoriedade da notificação de eventos nocivos com produtos para a saúde. Além disso, essa lei também ressalta que qualquer medicamento que for produzido em condições inapropriadas terá sua fabricação suspensa pelo Ministério da Saúde. 9 Em 1998, ocorreram dois episódios marcantes no Brasil, relacionados à utilização de medicamentos: Androcur® falsificado e o medicamento Microvlar® do laboratório Schering. Veículos de comunicação em massa, como jornais impressos e televisivos, noticiaram na época que pelo menos 200 gestações foram atribuídas à falta de efeito do Microvlar® (levonorgestrel e etinilestradiol) do laboratório Schering. Isso aconteceu porque durante o processo de fabricação do medicamento foi utilizada uma substânciainerte, que ficou conhecida pelo público leigo como farinha, para avaliar o funcionamento de uma máquina. Infelizmente o comprimido fabricado com a substância inerte, ou seja, a pílula de farinha acabou sendo distribuído para a população. Estima-se que, nessa época, o medicamento Microvlar® era um dos contraceptivos orais mais vendidos no Brasil. Das 300 ações judiciais impetradas, somente oito famílias que conseguiram comprovar a utilização do medicamento sem efeito estão recebendo uma indenização do laboratório fabricante do medicamento. Outro episódio alarmante ocorrido no Brasil, nesse mesmo ano, foi a comercialização do medicamento falsificado Androcur® (acetato de ciproterona). Ele possui efeito antiandrogênio e, dentre outras indicações, o tratamento do carcinoma de próstata, que é hormônio dependente. Foram relatadas pelo menos duas mortes devido à utilização do medicamento sem o princípio ativo. Em 1999, foi criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. A finalidade institucional da Agência é promover a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados. Além disso, a Agência exerce o controle de portos, aeroportos e fronteiras e a interlocução junto ao Ministério das Relações Exteriores e instituições estrangeiras para tratar de assuntos internacionais na área de vigilância sanitária. (ANVISA,sd). 10 No ano de 2000, outras tragédias ocorreram na associação com tratamento da leishmaniose. O antimoniato de meglumina contaminado com arsênico e chumbo causou 300 reações adversas locais sérias, algumas tendo por resultado a morte (DIAS, 2002, 2005 in MENDES et al., 2008). Nesse mesmo ano, a suspensão de um dos mais vendidos analgésicos e anti- inflamatórios, o Vioxx® (rofecoxib), em todo o mundo ecoou de forma antagônica à ação do remédio de maneira inflamada e dolorosa. Após 18 meses do início da pesquisa, foi constatado que o risco de ataque cardíaco ou acidente vascular cerebral era elevado se comparado com o do grupo que recebeu placebo. A pesquisa, que incluía 2.600 indivíduos, foi suspensa. Em 2002, o FDA (Food and Drugs Adminstration), órgão governamental que exerce atividades semelhantes às da ANVISA no Brasil, determinou que o laboratório fabricante alterasse a bula do medicamento para incluir informações sobre os riscos cardiovasculares com a utilização crônica. Porém, em 2004, o laboratório Merck decidiu pela suspensão da fabricação desse medicamento. Esse episódio atingiu, em forma de cascata, a indústria farmacêutica, as ações na bolsa de valores, a classe médica e, principalmente, os consumidores que se viram em pânico por terem usado ou estarem usando Vioxx®. A indústria, antes do lançamento do produto, realizou diversas pesquisas, e o Vioxx® mostrou-se superior às drogas convencionais: aspirina, naproxeno e ibuprofeno, diminuindo pela metade os problemas gastrointestinais. Em 2001, o medicamento Lipobay® (cerivastatina), que já havia causado a morte de 31 pessoas nos Estados Unidos, provocou pelo menos dois óbitos confirmados no Brasil. Eles estavam relacionados ao episódio de rabdomiólise, um quadro que se caracteriza pela destruição da musculatura esquelética e falência múltipla de órgãos. O quadro de rabdomiólise teria sido desencadeado pela mistura do princípio ativo do Lipobay® com o de outro remédio, o Gemfibrozil. Os medicamentos controlariam pressão, diabetes e colesterol. Em 2003, surgiu a denúncia de que o contraste radiológico Celobar® (sulfato de bário) teria provocado 22 mortes de pacientes. De imediato, a Agência de Vigilância Sanitária – ANVISA – interditou 4.000 frascos do produto e lacrou a fábrica da Enila, empresa responsável pela produção do contraste. Assim, o que antes era suspeição, em seguida foi confirmado por 11 laudo da FIOCRUZ, onde foi constatada grande concentração de um composto perigoso e não registrado na ANVISA, o carbonato de bário, nos lotes encaminhados para análise. Em adição a essa evidência técnica, descobre-se que, em 2003, o laboratório Enila fez experiências para transformar carbonato de bário em sulfato de bário como estratégia para baratear o custo de produção visto a forma licenciada de sulfato ser importada da Alemanha. Outro caso que ainda está causando muita polêmica em 2011 é a suspensão no Brasil desses medicamentos à base de sibutramina indicado para o emagrecimento. A European Medicines Agency (EMA) publicou, em 21 de janeiro de 2010, comunicado recomendando a suspensão da licença de comercialização do medicamento sibutramina, baseada na análise do seu Committee for Medicinal Products for Human Use (CHMP), que concluiu que os benefícios da sibutramina são menores do que os riscos de seus efeitos colaterais (problemas cardiovasculares graves). A decisão foi baseada no estudo SCOUT (Sibutramine Cardiovascular Outcome Trial), cujo objetivo era, exatamente, avaliar possíveis benefícios da sibutramina no auxílio à perda de peso em pacientes portadores de doenças cardiovasculares prévias, para quem a própria bula do produto contraindica a prescrição. Essa pesquisa clínica foi conduzida em cerca de 10.000 pacientes, há cerca de seis anos, seguindo um protocolo aprovado em Comitês de Ética em Pesquisa de diversos países. Avaliações dos resultados preliminares indicaram que houve um aumento de 16% de risco de complicações cardiovasculares no grupo que usou sibutramina. Em 2011, uma audiência pública foi realizada entre a ANVISA, representantes médicos, principalmente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia, entidades farmacêuticas e outros interessados para discutirem o destino da comercialização desses medicamentos no Brasil. Além da suspensão da comercialização da sibutramina, outros medicamentos, tais como femproporex e o mazindol, também estão na pauta. Portanto, torna-se essencial o conhecimento dos principais eventos adversos que podem acontecer durante a utilização dos medicamentos. Essas e outras atividades serão detalhadas no decorrer no curso de farmacovigilância. Mas antes é preciso contextualizar essa prática dentro da farmaepidemiologia. 12 3 FARMACOEPIDEMIOLOGIA A farmacoepidemiologia advém de dois conceitos básicos: a farmacologia clínica e a epidemiologia. A farmacoterapêutica refere-se ao uso de medicamentos para o tratamento das enfermidades, enquanto o termo terapêutica é mais abrangente, evolvendo não só o uso de medicamentos, como também outros meios para a prevenção, diagnóstico e tratamento das enfermidades. A Epidemiologia é a ciência que estuda os padrões da ocorrência de doenças em populações humanas e os fatores determinantes desses padrões (LILIENFELD, 1980). Enquanto a clínica aborda a doença de forma individual, a epidemiologia aborda o processo saúde-doença em grupos de pessoas que podem variar de pequenos grupos até populações inteiras. O fato de a epidemiologia, por muitas vezes, estudar morbidade, mortalidade ou agravos à saúde, deve-se, simplesmente, às limitações metodológicas da definição de saúde. Suas aplicações variam desde a descrição das condições de saúde da população, da investigação dos fatores determinantes de doenças, da avaliação do impacto das ações para alterar a situação de saúde até a avaliação da utilização dos serviços de saúde, incluindo custos de assistência. Dessa forma, a epidemiologia contribui para o melhor entendimento da saúde da população – partindo do conhecimento dos fatores que a determinam e provendo, consequentemente, subsídios para a prevenção das doenças (MENEZES, 1998). Se o objeto da epidemiologia pode ser entendido como “doençasem populações”, é possível compreender que o consumo de medicamentos na população é o objeto da farmacoepidemiologia (ACURCIO, Perini in GOMES e REIS, 2003). Em consonância com esses princípios, são várias as propostas citadas em Storpittis et al., 2008, para este ramo da ciência: “Epidemiologia dos medicamentos e dos tratamentos é o estudo do uso e dos efeitos desses insumos” (TOGNONI; LAPORTE, 1989); “Estudo do uso e dos efeitos dos medicamentos em um grande numero de pessoas” (STROM, 1994); “Aplicação de raciocínio, conhecimento e métodos 13 epidemiológicos ao estudo do uso dos medicamentos e de seus efeitos, quer sejam eles benéficos ou adversos em populações humanas” (PORTA; HARTZEMA; TILSON, 1998). A farmaepidemiologia propõe-se, portanto, como uma forma de abordagem capaz de ultrapassar essas limitações usualmente observadas nos estudos das ações dos fármacos. Para tanto, essa ciência, fazendo uso de duas grandes áreas de conhecimento (farmacologia e epidemiologia), organiza-se em dois grandes grupos de ações: farmacovigilância e estudo de utilização de medicamentos, conforme figura 1. FIGURA 1 – ÁREAS DE CONHECIMENTO E FORMAS DE ATUAÇÃO COMPREENDIDAS NA FARMACOLOGIA (STORPIRTTIS et al., 2008) FONTE: 3.1 ESTUDOS DA UTILIZAÇÃO DE MEDICAMENTOS 14 Os estudos de utilização de medicamentos (EUM) foram definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1977, como “a comercialização, distribuição, a prescrição e o uso de medicamentos em uma sociedade com ênfase especial sobre as consequências médicas, sociais e econômicas resultantes”. São ferramentas valiosas para observar o uso de fármacos através do tempo, identificar problemas potenciais associados ao uso e avaliar os efeitos de intervenções reguladoras e educativas. Focam-se nos fatores e eventos que influenciam a prescrição, dispensação, administração e o uso de medicamentos (STORPIRTTIS et al., 2008 ) Para se discutir os tipos de estudo utilizados em farmacoepidemiologia , será utilizada a classificação proposta por Beaglehole, Bonita e Kljellstrom, onde se classifica em estudos observacionais e experimentais (ACURCIO; PERINI in GOMES e REIS, 2003). Nos estudos observacionais, o pesquisador observa os fatos sem exercer qualquer intervenção. Estes podem ser classificados em descritivos ou analíticos. Os estudos observacionais descritivos têm sido amplamente empregados para conhecer aspectos importantes na utilização de medicamentos por determinado grupo ou populações. Esses estudos buscam conhecer a interação do uso de medicamentos com o processo global da assistência sanitária em que ocorre o diagnóstico e o tratamento das doenças, uma vez que os medicamentos estão inseridos no modo como a cultura de uma sociedade assume a saúde. Dessa forma, os medicamentos constituem em indicadores da prevalência de problemas médicos e da maneira como a comunidade científica e médica interagem com os usuários dos serviços de saúde na seleção de soluções que envolvam a intervenção farmacológica. Um exemplo de estudo observacional descritivo foi realizado por Souza et al., (2008) intitulado “Estudo de utilização de medicamentos parenterais em uma unidade de internação pediátrica de um hospital universitário”. Nesse estudo, a autora levantou os aspectos de utilização de medicamentos para a faixa pediátrica, considerando alguns aspectos, tais como sexo e idade do paciente, tempo de internação no hospital, quantidade e a média de medicamentos parenterais utilizados por paciente. O estudo observacional configura-se mais como um levantamento diagnóstico para alertar e analisar pontos que possam ser trabalhados. No estudo de Souza et al. (2008), foi 15 possível traçar um panorama, ainda que restrito, da quantidade e dos tipos de medicamentos utilizados por um faixa etária de pacientes que necessitam de atenção especial. Entre os estudos analíticos, destacam-se os ecológicos, os transversais, caso controle e os de coorte. Os estudos ecológicos são também denominados estudos de correlação. Eles são de execução relativamente fácil e comparam indicadores globais de áreas geográficas distintas ou de uma mesma área geográfica em diferentes períodos. A unidade de análise são populações ou grupos de pessoas, fator que não permite fazer associação individual entre a exposição e a doença (ACURCIO; PERINI in GOMES e REIS, 2003). Os estudos transversais medem, em uma população previamente delimitada, a exposição (geralmente a vários fatores) e o efeito (doença condição), simultaneamente, no momento de sua realização. Nem sempre é possível garantir, durante a coleta de dados, que a exposição tenha antecedido o efeito, o que dificulta a interpretação das eventuais associações encontradas no estudo. Os estudos transversais são investigações que produzem “instantâneos” da situação de saúde de um grupo ou comunidade, isto é, o fator de risco e os efeitos estudados são observados em um mesmo momento histórico. Para a validação desse processo, é importante o estabelecimento de uma amostra representativa e a divulgação dos critérios de inclusão e exclusão dos grupos de estudo, para que o indivíduo possa ser considerado portador da doença ou do sintoma. Os estudos de caso controle possibilitam a comparação entre dois grupos de pessoas. Um deles é composto por pessoas com uma determinada doença/evento, e essas pessoas são denominadas casos. O outro grupo é composto por pessoas com características semelhantes aos casos, exceto pelo fato de que não sofrem a doença/evento e essas pessoas são denominadas controles. Quando se comprova a associação estatisticamente significante para aquela doença/evento, esta passa a ser denominada fator de risco. Em ambos os tipos de pacientes, estudam-se manifestações de reações adversas em um intervalo de tempo pré-definido. Os casos concretos de reações adversas devem ser criteriosamente estudados e devidamente divulgados. Nos estudos de coorte, seleciona-se um grupo de pessoas de uma população que, no início do acompanhamento, não seja portador da doença/evento que se quer estudar e avalia-se a exposição a uma determinada variável que 16 contribui para o desenvolvimento dessa doença/evento. Os participantes são classificados em dois subgrupos, segundo a presença ou ausência de exposição a um potencial fator de risco para a doença/ evento. Em farmacovigilância, é um conjunto de pacientes identificados onde a administração dos medicamentos é feita sob estrita observação, sendo imediatamente registrada toda e qualquer reação adversa verificada (BEGAUD CHASLERIE, Fourrier, 2002). Os estudos de utilização de medicamentos também podem ser divididos em ensaios pré-clínicos e em clínicos. É importante destacar que o desenvolvimento de um novo fármaco, desde sua descoberta até o lançamento no mercado farmacêutico, demora em média um tempo nunca inferior a cinco anos. O Brasil ocupa o 10º lugar dentre os principais mercados do mundo. Esses fatores de custo e tempo para desenvolvimento de novos fármacos, entre outros, fazem com que cada vez mais esse processo seja realizado nas indústrias farmacêuticas. 3.1.1 Ensaios pré-clínicos Após a descoberta de um novo fármaco promissor é obrigatória a realização de uma bateria de ensaios de triagem antes de serem iniciados estudos em humanos. Esses ensaios são denominados pré-clínicos e compreendem as seguintes áreas de estudos: a) biofarmacotécnica (formulação); b) estudos farmacológicos in vitro; c) provisão e fabricação do novo fármaco; d) estudos in vivo em modelos animais para a avaliação do potencial de eficácia clínica. 3.1.1.1 Estudos in vitro 17 Os estudos preliminares in vitro estão relacionados com a descoberta de novo fármaco e incluem informações sobre suas propriedades físico-químicascomo solubilidade, estabilidade, peso molecular, estrutura química e incompatibilidades. Outros ensaios in vitro são usados na identificação das propriedades farmacológicas de novos fármacos ou classe de agentes, tais como a interação fármaco-receptor ou inibição de uma enzima específica. Nesse estágio de desenvolvimento, a caracterização do mecanismo de ação molecular e a identificação do sítio de ação específica são importantes para o entendimento dos efeitos farmacodinâmicos do novo agente. 3.1.1.2 Estudos in vivo Os modelos experimentais in vivo realizados em diferentes espécies animais têm como finalidade a avaliação da farmacocinética ou farmacodinâmica do fármaco descoberto. Os estudos in vivo devem ser submetidos a testes toxicológicos pré-clínicos. Os testes toxicológicos pré-clínicos são realizados com a finalidade de avaliar a segurança do novo fármaco antes de qualquer ensaio clínico. No Brasil, são estabelecidos cinco tipos de testes de toxicidade: a) toxicidade aguda; b) toxicidade subaguda; c) crônica; d) teratogênicos; e) especiais (carcinogênese, potencial de abuso e dependência etc.). 3.1.1.3 Toxicidade aguda 18 É estudada em três espécies animais, de ambos os sexos, sendo uma espécie não roedora. As vias de administração empregadas são três ou mais, sendo que uma das vias deve ser obrigatoriamente sistêmica. Além disso, devem ser relatados dose, idade, veículo e volume da dosagem utilizada, como também o tipo e a gravidade do efeito tóxico. 3.1.1.4 Toxicidade subaguda ou crônica É o estudo da administração repetida de um fármaco por período de duas semanas até 11 meses, utilizando pelo menos duas espécies, sendo uma não roedora, e pelo menos três doses diferentes. Diferente da toxicidade aguda, o objetivo principal é a observação dos efeitos adversos e não da letalidade. 3.1.1.5 Teratogenia Os ensaios de atividade teratogênica de um fármaco ou da embriotoxicidade exigem períodos relativos de longa execução semelhantes aos da toxicidade crônica, recomendando-se três espécies, sendo uma não roedora. 3.1.1.6 Especiais 19 Estão incluídos diferentes tipos de avaliação da capacidade de um fármaco desenvolver carcinogenicidade, mutagenicidade, farmacodependência, hemólise aguda e irritação ocular ou cutânea e outros estudos que sejam relevantes para uma formulação específica ou via de administração (STORPIRTTIS et al., 2008 ). 3.1.2 Ensaios clínicos Um ensaio clínico é um estudo sistemático de medicamentos e/ou especialidades medicinais em voluntários humanos que seguem estritamente as diretrizes do método científico. Seu objetivo é descobrir ou confirmar os efeitos e/ou identificar as reações adversas ao produto investigado e/ou estudar a farmacocinética dos ingredientes ativos, de forma a determinar sua eficácia e segurança (Boas praticas clínicas – Documento das Américas). Qualquer pesquisa conduzida em sujeitos humanos com o objetivo de descobrir ou confirmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito farmacodinâmico do(s) produto(s) sob investigação e/ou identificar qualquer reação adversa ao(s) produto(s) sob investigação e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do(s) produto(s) sob investigação para verificar sua segurança e/ou eficácia. Os estudos clínicos devem ser conduzidos de acordo com os princípios éticos originados da Declaração de Helsinque e devem ser consistentes com as normas das boas práticas de pesquisa clínica e com as exigências regulatórias aplicáveis. A pesquisa clínica envolvendo seres humanos deve estar em conformidade com os princípios científicos geralmente aceitos e ser baseada no conhecimento minucioso da literatura científica, em outra fonte de informação relevante e em experimentação laboratorial e, quando apropriado, experimentação animal. 20 3.1.2.1 Os ensaios clínicos são divididos em quatro fases 3.1.2.1.1 Fase I São os primeiros ensaios realizados em um pequeno grupo de voluntários sadios normais, excluindo mulheres grávidas. Nessa fase, são incluídos estudos farmacocinéticos e determinação de segurança da dose e respectivas concentrações plasmáticos do fármaco. 3.1.2.1.2 Fase II São os primeiros ensaios clínicos realizados em número reduzido de pacientes (usualmente ensaios de 24 a 300 sujeitos). Os objetivos dessa fase são determinar a dose terapêutica e a formulação ótima do fármaco. Nela são realizados os mesmos exames clínicos e laboratoriais da fase II. 3.1.2.1.3 Fase III 21 Semelhante à fase II, porém o número de pacientes é maior (250-1000). É considerada a fase final da pesquisa clínica, em que é avaliada a segurança e eficácia do fármaco. A amostra maior de pacientes possibilita a aprovação do uso generalizado do medicamento. 3.1.2.1.4 Fase IV Tem como finalidade a avaliação da ocorrência de reações adversas, padrão de uso do fármaco e possibilidade de indicações adicionais. Essa fase é iniciada geralmente quando o registro do medicamento já foi aprovado nos órgãos fiscalizadores. É o estudo que avalia os eventos adversos que podem ocorrer após a comercialização do medicamento para um número maior de pessoas (Boas práticas clínicas – documento das Américas). QUADRO INFORMATIVO SOBRE ESTUDOS DE UTILIZAÇÃO DE MEDICAMENTOS Estudos observacionais Descritivos Analíticos Ecológicos Transversais Caso Controle Coorte Ensaios pré-clinicos Ensaios in vitro Ensaios in vivo 22 Ensaios clínicos Fase I Fase II Fase III Fase IV 23 4 FARMACOVIGILÂNCIA A farmacovigilância, também conhecida como “ensaios pós-comercialização” ou Fase IV”, tem como um dos seus principais objetivos a detecção precoce de reações adversas, especialmente as desconhecidas (STORPIRTIS et al., 2008). A farmacovigilância é uma ciência essencialmente observacional. Sua atividade é eminentemente clínica, orientada para o paciente e direcionada para a pesquisa dos mecanismos e ações dos medicamentos. É a identificação e avaliação dos efeitos agudos ou crônicos, do risco de tratamentos farmacológicos no conjunto da população ou em grupos de pacientes expostos a tratamentos específicos, ou seja, é o resultado do casamento entre a farmacologia e epidemiologia. Sua principal preocupação são os efeitos adversos, identificados principalmente após a comercialização dos produtos (estudos clínicos fase IV). Outras questões são também relevantes para a farmacovigilância: desvios de qualidade de medicamentos; erros de medicação; notificações de perda de eficácia; uso de medicações para indicações não aprovadas e/ou que não possuem evidência clínica comprovada; notificações de casos de intoxicação aguda ou crônica por medicamentos; avaliação da mortalidade relacionada a medicamentos; abuso e desvio de uso de medicamentos; interações medicamentosas com substâncias químicas etc. 4.1 DESVIOS DE QUALIDADE É qualquer afastamento dos parâmetros de qualidade estabelecidos para um produto ou processo (RDC 210/2004). Alguns desses desvios não oferecem risco algum à saúde, porém outros podem ser prejudiciais e contribuir direta ou indiretamente para a morte do paciente. Isso 24 significa presença de partículas estranhas dentro de um frasco-ampola, falta de adesividade do rótulo do produto, comprimidos ou drágeas que estejam esfarelada, alterações organolépticas – mudança de coloração,falta de informações no rótulo, dificuldade de homogeneização, dissolução etc., ou seja, qualquer alteração que pode ser considerado um “defeito” de fabricação. Exemplos podem ser observados na figura 2. FIGURA 2 – FALTA DE ADESIVIDADEDO RÓTULO E DRÁGIAS COM RACHADURAS EM BLISTER VEDADO FONTE: Gerência de Farmacovigilância – ANVISA. 4.2 NOTIFICAÇÕES DE PERDA DE EFICÁCIA Ausência ou a redução da resposta terapêutica esperada de um medicamento, sob as condições de uso prescritas ou indicadas em bula. A inefetividade terapêutica pode apresentar causas como desvio de medicamentos, interações medicamentosas, variabilidades genéticas ou alterações farmacocinéticas. 25 Uso de medicações não aprovadas (uso off label) ou que não possuem evidência clínica comprovada – compreende o uso em situações divergentes da bula de um medicamento registrado na Anvisa. Pode incluir diferenças na indicação, faixa etária/peso, dose, frequência, apresentação ou via de administração. Uma vez comercializado o medicamento, enquanto as novas indicações não são aprovadas, seja porque as evidências para tal ainda não estão completas, ou porque a agência reguladora ainda está avaliando, é possível que um médico já queira prescrever o medicamento para o paciente que tenha uma delas. Quando o medicamento é empregado nas situações descritas acima, está caracterizado o uso off label do medicamento, ou seja, o uso não aprovado, que não consta da bula. O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado (DIAS, M.F. Gerência de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos, 2005). Avaliação da mortalidade pelo uso de medicamentos – avaliação dos efeitos que contribuem para a mortalidade através da utilização dos medicamentos. Abuso e uso errôneo de produtos – avaliação da utilização inadequada de produtos. Interações, com efeitos adversos, de fármacos com substâncias químicas, outros fármacos e alimentos – avaliação das interações medicamentos com alimentos ou outras substâncias que podem afetar a terapia do paciente. 4.2.1 Eventos adversos Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a farmacovigilância é a ciência e as atividades relativas a detecção, avaliação, compreensão e prevenção de eventos adversos ou quais outros possíveis problemas relacionados a medicamentos. 26 Eventos adversos são definidos como danos leves ou graves causados pelo uso de um medicamento (ou pela falta de uso, quando este é necessário). Esses eventos são classificados como evitáveis ou inevitáveis, segundo a American Society Of Health System Pharmacist (1998). A presença de dano deve ser enfatizada aqui como condição necessária para a caracterização do evento adverso. Segundo Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o evento adverso é considerado como “qualquer ocorrência médica desfavorável, que pode ocorrer durante o tratamento com um medicamento, mas que não possui, necessariamente, relação causal com esse tratamento. Conforme Gomes e Reis (2003), evento adverso é considerado uma injúria sofrida pelo paciente resultante de erros no tratamento. Para efeito considera-se evento adverso: Eventos adversos por desvios da qualidade de medicamentos; Eventos adversos decorrentes do uso não aprovado de medicamentos; Interações medicamentosas; Inefetividade terapêutica, total ou parcial; Intoxicações relacionadas a medicamentos; Uso abusivo de medicamentos; Erros de medicação, potenciais e reais; Suspeita de reações adversas a medicamentos. Como é possível observar, o evento adverso engloba todas as atividades da farmacovigilância, incluindo a detecção e avaliação das suspeita de reações adversas a medicamentos. 27 4.2.2 Reações Adversas a Medicamentos (RAM) As reações adversas a medicamentos constituem-se num problema importante na prática do profissional da área de saúde. Sabe-se que essas reações são causas significativas de hospitalização, de aumento do tempo de permanência hospitalar e, até mesmo, de óbito. Além disso, elas afetam negativamente a qualidade de vida do paciente, influenciam na perda de confiança do paciente com o médico, aumentam custos, podendo também, atrasar os tratamentos, uma vez que podem assemelhar-se a enfermidades (GOMES e REIS, 2003). As reações adversas são consideradas como “qualquer resposta inesperada, não- intencional, indesejável, excessiva de um fármaco que requer a interrupção do uso, ou a mudança da terapêutica, ou modificação da dose, ou hospitalização, ou o prolongamento da internação, ou que necessita de tratamento suporte, ou afeta negativamente o prognóstico, ou resulta em dano ou incapacidade temporária ou permanente, ou a morte” (ASHP, FDA). A Organização Mundial de Saúde tem definido reação adversa a medicamentos como: “Qualquer efeito prejudicial ou indesejável, não intencional, que aparece após a administração de um medicamento em doses normalmente utilizadas no homem para profilaxia, diagnóstico. 4.2.2.1 Classificação das Reações Adversas a Medicamentos (RAM) A classificação proposta por Rawlins e Thompson (1998) é considerada a mais adequada e tem sido a mais empregada. Segunda ela, as reações adversas produzidas por medicamentos poderiam subdividir-se em dois grandes grupos: as que resultam de efeitos farmacológicos normais, no entanto aumentados; essas reações seriam o resultado de uma ação e um efeito farmacológico exagerado de um fármaco administrado em doses terapêuticas 28 habituais (reações do tipo A). E as reações tipo B, que possuem efeitos farmacológicos totalmente anormais e inesperados (bizarras), ainda que consideradas as propriedades farmacológicas de um medicamento administrado em doses habituais (reações tipo B). As reações do tipo A são farmacologicamente previsíveis, geralmente dependente da dose, têm alta incidência e morbidade, baixa mortalidade e podem ser tratadas ajustando-se as doses. São reações produzidas por mecanismos de superdosagem relativa, efeito colateral, citotoxicidade, interações medicamentosas e alterações na forma farmacêutica. As reações do tipo A envolvem respostas normais e exageradas, mas indesejáveis aos fármacos em questão. Além disso, incluem resposta terapêutica exagerada ao local-alvo (por exemplo, hipoglicemia com um hipoglicemiante), um efeito farmacológico desejado em outro local e efeitos farmacológicos secundários (hipotensão ortostática com fenotiazina). São em geral reconhecidas antes de uma fármaco ser comercializado. Entretanto, alguns efeitos ocorrem após uma longa latência, tais como carcinogênese ou efeitos sobre a reprodução. Muitas reações do tipo A têm base farmacocinéticas, isto é, metabolismo hepático prejudicado (devido a polimorfismo genético ou efeito de outro medicamento concorrente), resultando em aumento das concentrações plasmáticas (LEE, 2009). As reações do tipo B não são farmacologicamente previsíveis, nem dose-dependente, tem incidência e morbidade baixas e sua mortalidade pode ser alta. As reações do tipo B não se relacionam a ações farmacológicas conhecidas dos fármacos em questão. Frequentemente são causadas por mecanismos imunológicos ou farmacogenéticos. Em geral, não se relacionam a dosagem e, embora comparativamente raras, apresentam maior probabilidade de causaram doença grave ou morte. Reações imunológicas, como anafilaxia com penicilina ocorrem nesta categoria. Outros exemplos incluem anemia aplástica com cloranfenicol e hipertermia maligna com agentes anestésicos. Devido a sua natureza, reações tipo B têm mais chance de resultar em remoção da autorização da comercialização. Devem ser tratadas, as reações do tipo B, com suspensão do fármaco e são produzidas por mecanismos de hipersensibilidade, idiossincrasia, intolerância e até mesmo por alterações na formulação farmacêutica. A figura 3 sumariza as informações sobre as diferenças entre as reaçõesdo tipo A e as reações do tipo B. 29 FIGURA 3 - CLASSIFICAÇÃO DAS REAÇÕES ADVERSAS Características A (“augmented”) B (byzarre) Sinônimos Exagerado, dose dependente Bizarro, dose independente Mecanismo Mesmo local de ação dos fármacos/ conhecido Não relacionada/ não conhecido Causas Farmacocinética, farmacodinâmicas Genética, imunológica Tratamento Ajuste da dose Descontinuação do tratamento Mortalidade e incidência Baixa / alta Alta / baixa FONTE: Rawlins e Thompson (1998). Embora essa classificação seja simples, algumas reações adversas não se enquadram perfeitamente em nenhum dos tipos. Categorias adicionais de RAMs formas sugeridas para a inclusão de reações tipo C (crônico), tipo D (retardado) e tipo E (final de uso). Entretanto, o uso dessa categorização estendida não atenua as dificuldades classificatórias, e um novo sistema foi recentemente proposto por Wills e Brown em 1999, incluindo mais sete categorias além das reações já citadas. São elas: 30 4.2.2.1.1 Reações do tipo C Causada por características químicas e pela concentração do agente agressor e não pelo efeito farmacológico do fármaco. Exemplos: flebite com injetáveis, queimaduras por ácidos, lesão gastrointestinal por irritante local. 4.2.2.1.2 Reações do tipo D Reações que acontecem em consequência do método de administração do fármaco ou pela natureza física da preparação (formulação). Retirado o fármaco ou alterada a sua formulação, cessa a reação adversa. Exemplos: inflamação ou fibrose em torno de implantes ou infecção no sítio de uma injeção. 4.2.2.1.3 Reações do tipo E São reações adversas que se caracterizam por manifestações de retirada. Ocorrem após a suspensão do fármaco ou redução da dose, e a reintrodução do fármaco pode melhor o sintoma; são farmacologicamente previsíveis. Exemplos: opioides, benzodiazepínicos, antidepressivos e outros que desencadeiam alterações características após a retirada abrupta. 31 4.2.2.1.4 Reações do tipo F São reações que ocorrem somente em indivíduos suscetíveis; são geneticamente determinadas. Exemplo: hemólise com o uso de sulfonamida em indivíduos com deficiência da enzima glicose-6-fosfato-desidrogenase. 4.2.2.1.5 Reações do Tipo G São reações genotóxicas, causadas por medicamentos que promovem danos genéticos irreversíveis. Exemplo: talidomida provocando focomelia. 4.2.2.1.6 Reações do tipo H São reações decorrentes da ativação do sistema imune, não são farmacologicamente previsíveis, não são relacionados à dose. Desaparecem com a retirada do fármaco. Exemplo: choque anafilático por penicilina. 32 4.2.2.1.7 Reações do tipo U (não classificadas) São reações adversas causadas por mecanismos não entendidos e que não se enquadram nas demais categorias, até que se saiba mais sobre elas. Exemplo: fármacos que induzem distúrbios do paladar, náuseas e vômitos por anestesia. 4.2.2.2 Classificação das reações adversas através dos mecanismos de produção dos efeitos As reações adversas também podem ser classificadas pelo seu mecanismo de produção dos efeitos e serem subclassificadas em RAM dependente do paciente e RAM dependente do medicamento. 4.2.2.2.1 Dependentes dos pacientes Tolerância – é o fenômeno pelo qual a administração contínua e repetida de determinada dose do medicamento diminui progressivamente a intensidade dos efeitos. O necessário aumento da dose para manter os efeitos na mesma proporção faz que a tolerância seja um mecanismo progressivo. Exemplo: tolerância produzida pelos barbitúricos reduzindo seu efeito anticonvulsivante. 33 Hipersensibilidade – para o desenvolvimento dessa reação, é necessária a exposição prévia do indivíduo ao fármaco para indução do mecanismo imunológico. A intensidade da manifestação não está diretamente relacionada à dose administrada. Essas reações não são explicadas pelas propriedades farmacológicas dos medicamentos e estão relacionadas às defesas imunológicas dos indivíduos. Exemplo: hipersensibilidade do tipo I- anafilaxia, uma resposta súbita e potencialmente fatal – provocada pela liberação de histamina e outros mediadores. As principais características incluem erupções urticariformes, edema dos tecidos moles, broncoconstrição e hipotensão Idiossincrasia – é o efeito de ocorrência mais rara, definida com uma sensibilidade peculiar de alguns indivíduos a certos fármacos. Essa sensibilidade está relacionada a defeitos enzimáticos e é hereditária. São reações que não dependem de dose nem da exposição anterior do indivíduo ao fármaco. Exemplo: anemia hemolítica por deficiência de glicose 6 fosfato desidrogenase (G6PD) , um traço herdado na forma recessiva ligada ao sexo; esse tipo de anemia pode acontecer, por exemplo, em determinados indivíduos que utilizam o fármaco antimalárico primaquina. 4.2.2.2.2 Dependentes do medicamento Superdosagem relativa – quando o fármaco é administrado em doses habituais, mas suas concentrações plasmáticas extrapolam a janela terapêutica, por variações farmacocinéticas (às vezes induzidas por outros fármacos). Exemplo: maior incidência de surdez entre pacientes com insuficiência renal tratados com antibióticos aminoglicosídeos. Efeitos secundários – são manifestados como consequência do efeito farmacológico esperado, independente da ação farmacológica principal. Exemplo: morte da microbiota intestinal por antimicrobianos causando diarreia. 34 Efeitos colaterais – são os inerentes à própria ação farmacológica do medicamento, porém o aparecimento é indesejável em um momento determinado de sua aplicação. É considerado um prolongamento da ação farmacológica do medicamento. Exemplo: broncoespasmo produzido pelos bloqueadores b-adrenérgicos. 4.2.2.3 Classificação das RAMS quanto a suscetibilidade Os principais fatores que podem influenciar a possibilidade de pacientes apresentarem um RAM são: idade, sexo, doenças intercorrentes, metabolismo anormal e resposta a fármacos, terapia com múltiplos fármacos, alergia a fármacos e fatores farmacêuticos. 4.2.2.3.1 Idade As idades extremas, como os indivíduos maiores de 60 anos e os recém-nascidos apresentam maior probabilidade de sofrerem reações adversas. Em ambos os casos, a reação ocorre por alterações fisiológicas que alteram a farmacocinética dos medicamentos. Em relação aos idosos é possível observar o elevado consumo de medicamentos prescritos e não prescritos como um fator comportamental para o aparecimento de reações adversas. Pesquisas relevam que os idosos apresentam mais doenças crônicas e consequentemente consomem mais medicamentos prescritos. Além disso, Rozemfeld (2003) mostrou que indivíduos acima de 60 anos consomem 30% dos medicamentos isentos de 35 prescrição sem nenhuma orientação e os medicamentos mais consumidos por eles são os cardiovasculares, reumáticos e analgésicos. Os idosos também são particularmente mais vulneráveis a reações adversas devido a mudanças fisiológicas que acompanham o envelhecimento e que podem alterar a farmacocinética dos fármacos. Os indivíduos idosos apresentam mudanças fisiológicas no trato gastrointestinal com tendência à constipação. Isso significa que o medicamento poderá ser mais absorvido e gerar um efeito tóxico. Além disso, os idosos produzem menos proteínas carreadoras de medicamentos devido à deficiência hepática. Com isso, o medicamento apresenta uma concentração plasmática livre de proteínas em menor proporção, o que tende a aumentar o efeito dos fármacos. Os idosos podem apresentar a capacidade renal reduzida pela metade. Isso significa que o fármaco permanecerá mais tempo no organismo, sendo assim menos excretado, o que pode levar a efeitos tóxicos dosmedicamentos (MARQUES, 2009) As crianças podem sofrer variações farmacocinéticas ou farmacodinâmicas também. São exemplos dessas alterações os transtornos do crescimento ósseo ocasionados por fármacos, como tetraciclinas, corticoides, àcido nalidíxico, quinolonas e fluorquinolonas. A absorção em neonatos pode estar alterada devido à menor secreção de ácido e à redução da motilidade gastrointestinal, porém tais variações não são uniformes e dificilmente previsíveis. Os neonatos apresentam massa muscular e tecido adiposo desproporcionalmente reduzido, se comparados aos adultos. A água corporal total é muito maior em neonatos, aproximadamente 75% do peso corporal, o que afeta diretamente a distribuição dos fármacos. A concentração de proteínas plasmáticas está diminuída e consequentemente ocorre uma menor ligação nas proteínas plasmáticas. Nos primeiros meses de vida, ocorrem deficiências nas vias metabólicas, sendo menos metabolizados os medicamentos, fatos que possibilitam acúmulo desses no organismo. Crianças até o primeiro ano de vida apresentam taxas de filtração glomerular e secreção tubular 36 diminuídas, adquirindo correlação com a área de superfície corporal do adulto em torno do primeiro ano de vida. 4.2.2.3.2 Sexo Em geral, as mulheres parecem apresentar maior risco de desenvolver reações adversas do que os homens, aproximadamente 1,5 a 1,7 vezes. As razões para isso não foram esclarecidas por completo, mas incluem diferenças relacionadas ao sexo na farmacocinética, fatores imunológicos e hormonais, bem com diferenças no medicamento usado (LEE, 2009). Gomes e Reis (2003) também relatam que fatores como complicações obstétricas que ocorrem ao longo da vida fértil da mulher, episódios de dismenorreia que requerem o uso de medicamentos, às vezes, por vários anos, o uso de contraceptivos e uma maior concentração de tecido adiposo. É possível, ainda, que exista uma determinante hormonal que possa afetar o metabolismo predispondo ao aparecimento de reações adversas. Supõe-se que mulheres sejam mais suscetíveis a discrasias sanguíneas com fenilbutazona e cloranfenicol a reações histaminoides a fármacos bloqueadores musculares e a prolongamento do intervalo QT induzidos por fármacos (LEE, 2009). 4.2.2.3.3 Doenças intercorrentes O manejo de fármacos pode ser alterado em pacientes com doenças renais, hepáticas e cardíacas, o que apresenta implicações na prática terapêutica (LEE, 2009). Essa complexidade 37 é determinada pelas alterações funcionais do rim, principal órgão excretor e suas implicações metabólicas, como: retenção de água e sódio, hiperpotassemia, acidose metabólica e uremia, entre outros. Essas alterações levam a limitações nos processos de excreção e acúmulo de fármacos e seus metabólitos. O grau de lesão hepática determinará alterações na formação e nos sítios de ligação das proteínas plasmáticas. Assim, nos casos críticos, ocorre decréscimo no nível sérico de albumina, aparecimento de proteínas plasmáticas defeituosas, acúmulo de compostos endógenos, redução do fluxo hepático, o que afeta diretamente a biodisponibilidade e fármacos com extensivo efeito de primeira passagem (GOMES E REIS, 2003). 4.2.2.4 Classificação das RAMs quanto ao efeito da morbidade/gravidade Naranjo (1991) classificou as reações adversas quanto ao critério de morbidad, classificação aceita também pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Medicamentos. Essa classificação possui quatro categorias, a saber: 4.2.2.4.1 Efeito Menor Se não for necessário nenhum antídoto, terapia ou prolongamento da internação. 38 4.2.2.4.2 Efeito Moderado Requer antídoto ou terapia e prolonga a internação por pelo menos 01 (um) dia. 4.2.2.4.3 Efeito Severo Requer a suspensão da droga e tratamento intensivo para sobrevivência. 4.2.2.4.4 Efeito Letal Causa direta ou indiretamente a morte do paciente. A avaliação de gravidade de uma reação é, às vezes, subjetiva. Os critérios para definição de gravidade foram definidos pela OMS são: Reação adversa grave é um efeito nocivo, que ocorre durante tratamento medicamentoso e pode resultar em morte, ameaça à vida, incapacidade persistente ou significante, anomalia congênita, efeito clinicamente importante, hospitalização ou prolongamento de hospitalização já existente. O termo “ameaça à vida” refere-se a uma reação em que o paciente apresenta risco de morte no momento da ocorrência da reação, não se referindo a uma reação que poderia ter 39 causado a morte se ocorresse com maior intensidade. O termo “efeito clinicamente importante” é apropriado quando a reação for perigosa ou requeira intervenção para se prevenirem os outros desfechos descritos na definição. Reação adversa não-grave é aquela que não se enquadra no conceito de reação adversa grave, descrito acima. 4.2.2.5 Classificação das RAMs quanto à causalidade O fato de se observar um associação entre uma reação adversa e o uso prévio de um medicamento, seja em um estudo de coorte ou em um tipo de caso-controle, não implica automaticamente existência de uma relação de causalidade. O termo associação tem um significado de relação estatística entre dois ou mais eventos. Causalidade ou relação de causa- efeito entre dois eventos significa que a presença e um deles contribuem para a presença de outro. Karch & Lasagna (1977) classificaram as reações adversas de acordo com a relação causa-efeito para o medicamento suspeito em cinco tipos: 4.2.2.5.1 Definida Um evento clínico, incluindo anormalidades de exames laboratoriais, ocorrendo em um espaço de tempo plausível em relação à administração do medicamento, e que não pode ser 40 explicado pela doença de base ou por outros medicamentos ou substância química. A resposta da retirada do medicamento deve ser clinicamente plausível. O evento deve ser farmaco ou fenomenologicamente definido, utilizando um procedimento de reintrodução satisfatória, se necessário. 4.2.2.5.2 Provável Um evento clínico, incluindo anormalidades de exames laboratoriais, com um tempo de sequência razoável da administração do medicamento, com improbabilidade de ser atribuído à doença de base ou por outros medicamentos ou substâncias químicas, e que segue uma resposta clinicamente razoável após a retirada. A informação de reintrodução não é necessária para completar esta definição. 4.2.2.5.3 Possível Um evento clínico, incluindo anormalidades de exames laboratoriais, com um tempo de sequência razoável da administração do medicamento, mas que poderia, também, ser explicado pela doença de base ou por outros medicamentos ou substâncias químicas. A informação sobre a retirada do medicamento pode se ausente ou não ser claramente conhecida. 41 4.2.2.5.4 Improvável Um evento clínico, incluindo anormalidades de exames laboratoriais, com uma relação de tempo com a administração do medicamento que determina uma improvável relação causal, nos quais outros medicamentos, substâncias químicas ou doenças subjacentes fornecem explicações plausíveis. 4.2.2.5.5 Duvidosa Qualquer reação que não segue os critérios anteriores. 4.2.2.6 Classificação das RAMs quanto à incidência As reações adversas também podem ser classificadas de acordo com sua incidência. O Centro de Monitoramento das Reações Adversas - Uppsala Monitoring Centre (1991) e Meyboon, Egbert (1999) classificaram as reações conforme figura 4. 42 FIGURA 4 – CLASSIFICAÇÃO DAS REAÇÕES ADVERSAS QUANTO AO CRITÉRIO DE INCIDÊNCIA FONTE: Uppsala Monitoring Centre 1991; Meyboom, Egberts; 1999. 4.3 ERROS DE MEDICAÇÃO A utilização dos medicamentos em hospitais envolve de 20 a 30 etapas desde aatuação de diversos profissionais e a transmissão de ordens e materiais entre as pessoas. De acordo com Leape et al. (2000), cada etapa apresenta potenciais variados de ocorrência de erros e, para uma real redução dos riscos, faz-se necessária uma análise sistêmica desse processo, o conhecimento dos seus pontos vulneráveis e a implantação de medidas preventivas. Acidentes com medicamentos são todos incidentes, problemas ou insucessos, inesperados ou previsíveis, produzidos ou não por erro, consequências ou não da imperícia, imprudência ou negligência, que ocorrem durante o processo de utilização dos medicamentos. Englobam toda a sequencia de procedimentos técnicos ou administrativos e podem ou não estar relacionados a danos ao paciente. É um termo amplo que engloba os conceitos de eventos adversos, reações adversas e erros de medicação. Erro de medicação, segundo o Nacional Coordinanting Council for Medication Erros Reportin And Prevention (1998, 2000), é qualquer evento evitável que pode, de fato ou potencialmente, levar ao uso inadequado de medicamentos independente do risco de lesar ou 43 não o paciente e do fato de o medicamento encontrar-se sob o controle de profissionais de saúde, do paciente e do consumidor. O erro pode estar relacionado à pratica profissional, as características de apresentação de produtos, a procedimentos operacionais e problemas de comunicação, incluindo prescrição ou outra forma de comunicação, rótulos de produtos, embalagens, nomes, preparação, dispensação, distribuição, administração, educação ou uso e monitoramento de medicamentos. A abordagem é pessoal e considera que os erros resultam de atos humanos pautados na insegurança, falta de atenção, negligência, baixa motivação e desvio de conduta. A segunda história analisa o erro detalhadamente, buscando todos os fatores relacionados: à administração que regula recursos humanos e financeiros, presença e utilização de normas, as condições de ambiente e a sobrecarga de trabalho dos profissionais que estavam no momento do erro e as condições de funcionamento dos equipamentos. O caráter evitável é central na definição do erro de medicação, sendo, portanto, a possibilidade de prevenção uma diferença marcante entre ele e a reação adversa. Esta é considerada como um evento inevitável, não obstante sua possibilidade, mesmo que sua probabilidade de ocorrência seja conhecida. Assim o erro de medicação pode ou não causar dano ao paciente, seja por uma questão de probabilidade de a lesão ocorrer ou pela possibilidade de sua interceptação na cadeia de procedimentos que caracteriza a utilização dos medicamentos (STORPITTIS et al., 2008). O erro de medicação pode ser subdividido em erros potenciais e reais. Os erros reais são aqueles que foram detectados após a sua ocorrência. Os potenciais são aqueles chamados de “quase erro”, “quase falha” são equívocos de prescrição, dispensação ou plano de administração do medicamento, os quais são detectados e corrigidos antes da administração no paciente (ASHP, 1993). Os erros reais são classificados em 1998, pelo NCCMERP (National Coordinating Council for Medication Error Reporting and Prevention - Conselho Nacional de Coordenação para o Relatório de erro de medicação e Prevenção) em nove categorias de gravidade crescente: a) Categoria A – classificada de erro potencial; implica em probabilidade de erro; b) Categoria B – ocorreu o erro mas não atingiu o paciente; 44 c) Categoria C – ocorreu o erro que atingiu o paciente, mas não causou dano; d) Categoria D – ocorreu um erro que resultou em necessidade de aumentar a monitorização, mas não causou dano; e) Categoria E – ocorreu o erro que resultou em necessidade de tratamento ou intervenção e causou dano temporário ao paciente; f) Categoria F – ocorreu o erro que resultou no início ou prolongamento da hospitalização e causou dano temporário ao paciente; g) Categoria G – ocorreu erro que quase resultou na morte do paciente; h) Categoria I – ocorreu erro que contribui ou resultou na morte do paciente. Em 2001, o NCCMERP publicou uma atualização que serviu de base para uma investigação no Brasil, demonstrando boa adequação a nossa realidade (ANACLETO, 2003). Posteriormente, um grupo de farmacêuticos hospitalares espanhóis, com a permissão da United States Pharmacopeia – USP – e sob coordenação do Institute for Safe Medications Practices – ISMP – da Espanha, elaborou uma adaptação dessa classificação como mostra a figura 5. FIGURA 5 – ATUALIZAÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO DE ERROS DE MEDICAÇÃO Medicamento errado Seleção inadequada do medicamento Medicamento não indicado/ não apropriado para o diagnóstico História prévia de alergia ou RAM similar com o mesmo medicamento ou similar Medicamento contraindicado 45 Medicamento inadequado por causa da idade, situação clínica ou patologia Duplicidade da terapêutica Medicamento desnecessário Transcrição/dispensão/administração De um medicamento diferente do prescrito Omissão de dose ou do medicamento Falta de prescrição de um medicamento necessário Omissão na transcrição Omissão na dispensação Omissão na dispensação Dose errada Dose maior que a corretaa Dose menor que a correta Dose extra Frequência de administração errada Forma farmacêutica errada Erro de preparo, manipulação e/ou acondicionamento 46 Técnica de administração errada Horario errado de administração Paciente errado Duração do tratamento errada Duração maior que a correta Duração menor que correta Monitorização insuficiente do tratamento Falta de revisão clínica Falta de controle analíticos Interação medicamento-alimento Interação medicamento-medicamento Medicamento deteriorado Falta de cumprimento do paciente outros FONTE: Otero et al., 2002 . 4.3.1 Erro de prescrição Erros de prescrição são definidos como “erro clinicamente significativo de decisão ou de redação, não intencional, que pode reduzir a probabilidade do tratamento ser efetivo ou 47 aumentar o risco de lesão no paciente, quando comparado com às práticas clínicas estabelecidas e aceitas (DEAN et al., 2000). Erros de decisão estão relacionados ao conhecimento do prescritor como erro da dose, prescrição de duplicidade terapêutica, medicamento contra-indicado ou sem considerar implicações clínicas como insuficiência hepática e renal. Rosa et al. (2009) considera erros de decisão as seguintes classificações: forma farmacêutica, concentração, via de administração, intervalo e taxa de infusão incorreta. Os erros de redação relacionam ao processo de elaboração da prescrição, tais como ilegibilidade, uso de abreviaturas confusas ou não padronizadas oficialmente, omissão da forma farmacêutica, concentração, via de administração, intervalo, taxa de infusão, erro na unidade do medicamento, entre outros. Erros de prescrição também podem ser classificados como erros de omissão e de comissão que requerem intervenções reativas e pró-ativas respectivamente pelo farmacêutico. Erro de omissão consiste na falha em agir corretamente, ou seja, ausência de prescrição de uma terapia indicada. Erro de comissão refere-se ao não cumprimento de uma ordem médica prescrita (agir incorretamente) (BENJAMIM, 2003; FERNER e ARONSON, 2006). Uma classificação específica para erros de prescrição foi proposta pela Associação dos Farmacêuticos Hospitalares da Holanda (Dutch Association Hospital Pharmacists –NVZA) . Segundo essa classificação, os erros de prescrição dividem-se em: 4.3.1.1 Erros administrativos ou processuais Legibilidade, identificação do paciente, do setor e do médico, nome do medicamento, forma farmacêutica e via de administração. 48 Prescrições ilegíveis ou pouco legíveis, ambíguas,incompletas e confusas podem levar a erros. Os zeros, os pontos e os números decimais nas prescrições segundo Cohen (1999), aumentam a probabilidade de erros. Exemplos que podem levar a erros de interpretação: uso de 1,0 mg ou 1.0 mg e 0,5g – a aposição de um zero depois do ponto é desnecessária, podendo gerar confusão com 10 mg ou, no segundo caso, se o ponto ficar encoberto poderá ser confundido com 5 g, sendo mais seguro prescrever 500 mg. O uso e U ou UI, representando unidades, poder ser confundido com número zero e levar a administração de insulina ou heparina em doses dez vezes maiores do que a prescrita (STORPITTIS et al., 2008). Em um relato feito por Bulhões, uma criança de um mês e dezenove dias morreu, após receber quinze gotas de um broncodilatador. A médica que prescreveu afirma que a receita era de uma gota para cada cinco mililitros, entretanto a abreviatura de gotas (g) estava muito junta do número 1, podendo ser entendida como 15. A mãe da criança, que presenciou o preparo da medicação, afirmou que a atendente de enfermagem administrou 15 gotas. A legislação brasileira determinar que “somente poderá ser aviada a receita que estiver escrita por extenso e de modo legível, observada a nomenclatura e o sistema de pesos e medidas oficiais”, garantindo a farmácia o direito de não dispensar os medicamentos de prescrições onde existam dúvidas causadas pela caligrafia (BRASIL, 1973, p.5). Pacientes com nomes semelhantes, homônimos, doentes confusos que respondem inconscientemente o que lhes é perguntado, mudanças de leitos e deambulação podem gerar problemas de administração de medicamentos a pacientes errados. Uma das medidas para diminuir este tipo de problema é a prescrição conter de forma legível o nome completo do paciente e a data (Storpittis et al., 2008). 4.3.1.2 Erros de dosagem 49 Concentração, frequência, overdose/subdose, ausência de dose máxima para medicamentos prescrito no esquema “se necessário”, duração de terapia e instruções de uso. 4.3.1.2.1 Erros terapêuticos Indicação, contra-indicação, monitoramento, interação medicamentosa, monoterapia incorreta, duplicidade terapêutica. (VAN DEN BENT e EGBERTS, 2000). 4.3.1.2.2 Erro de dispensação Anacleto et al. (2003) apresentam três definições. Os autores ressaltam que essas definições não abordam a possibilidade da prescrição médica estar errada e o atendimento de uma prescrição incorreta é também considerado erro de dispensação. “Definido como a discrepância entre a ordem escrita na prescrição médica e o atendimento dessa ordem” (FLYNN et al. 2003). “São erros cometidos por funcionários da farmácia (farmacêuticos, inclusive) quando realizam a dispensação de medicamentos para as unidades de internação” (COHEN, 2006). “Erro de dispensação é definido como o desvio de uma prescrição médica escrita ou oral, incluindo modificações escritas feitas pelo farmacêutico após contato com o prescritor ou cumprindo normas ou protocolos preestabelecidos.” (BESO et al., 2005). “Erro de dispensação é qualquer desvio do que é estabelecido pelos órgãos regulatórios ou normas que afetam a dispensação”. Os erros de dispensação podem ser classificados em erros de conteúdo, de rotulagem e de documentação. 50 4.3.1.2.3 Erros de conteúdo São aqueles referentes ao conteúdo da dispensação, ou seja, relacionados aos medicamentos que estão prescritos e serão dispensados. A – Medicamento errado: 1 - Medicamento dispensado errado: prescrito um medicamento e dispensado outro, pode estar associado a medicamentos com nome ou pronúncia similares, podendo provocar a troca do momento da dispensação. Os nomes dos medicamentos podem ser parecidos quando verbalizados, originando erros por falta de interpretação. Por isso, prescrições orais devem ser evitadas e restritas a situações de emergência. Quando absolutamente necessárias, devem ser feitas em linguagem clara e pausada, sendo uma norma de segurança fazer com que a pessoa que está recebendo a prescrição verbal repita o que está ouvindo (STORPITTIS et al., 2008). Em um caso relatado por Mullan (1989), o farmacêutico dispensou a um paciente asmático, com infecção pulmonar, o medicamento Daonil (glibenclamida), um hipoglicemiante oral, ao invés do medicamento correto, o Amoxil (amoxicilina). O paciente, devido à alta dosagem de glibenclamida que ingeriu, teve dano cerebral permanente. O farmacêutico foi julgado culpado, com 75% da responsabilidade, e o médico também foi responsabilizado devido à legibilidade da prescrição, prejudicada pela grafia. 2 – Semelhança de nomes dos medicamentos: a confusão entre medicamentos com nomes semelhantes, tanto em relação à grafia quanto à sonoridade, pode levar os profissionais de saúde a enganos, resultando em problemas para os pacientes (STORPITTIS et al., 2008). 3 – Medicamento não prescrito e dispensado: a prescrição médica não contém aquele item e algum medicamento é dispensado. 51 B – Medicamento dispensado com a concentração errada O medicamento é dispensado em concentração diferente (maior ou menor) daquela prescrita. C – Medicamento dispensado com a forma farmacêutica errada A prescrição solicita o medicamento com uma determinada forma farmacêutica e a farmácia dispensa outra, podendo induzir erros de administração. C – Dose excessiva O medicamento é dispensado em maior quantidade que aquela prescrita, ou seja, uma ou mais doses (unidades) são dispensadas além da quantidade solicitada na prescrição. D – Omissão de dose O medicamento é prescrito, mas nenhuma dose (unidade) é dispensada ou o número de doses dispensadas é menor que o prescrito. E – Medicamento dispensado com desvio de qualidade Consideram-se desvios de qualidade os problemas detectados a partir de observação visual (comprimidos manchados, com fissuras ou desintegrados, suspensões com problemas de homogeneidade, soluções com presença de partículas), medicamentos armazenados fora da temperatura adequada, com danos na embalagem que comprometam a qualidade e aqueles dispensados com prazo de validade vencido. F – Medicamentos prescritos sem horário, quantidade, concentração ou forma farmacêutica e dispensados 52 Neste tipo de erro a prescrição, não contém as informações que a farmácia necessita para identificar o medicamento e dispensá-lo corretamente, sendo a prescrição deduzida e o medicamento dispensado (ANACLETO et al., 2010). 4.3.1.2.4 Erros de rotulagem São os erros relacionados aos rótulos dos medicamentos dispensados que podem gerar dúvidas no momento da dispensação e/ou administração, erros de grafia nos rótulos e tamanho de letras que impedem a leitura, a identificação ou podem levar ao uso incorreto do medicamento. São considerados os rótulos do próprio produto, as etiquetas impressas na farmácia e utilizadas na identificação dos medicamentos, das misturas intravenosas e da nutrição parenteral preparadas na farmácia. Podem ser classificados em: nome do paciente errado, nome do medicamento errado, concentração errada do medicamento, forma farmacêutica errada, quantidade errada, data errada orientações erradas relacionadas ao uso ou armazenamento. Uma paciente de trinta e oito anos que foi levada ao hospital devido a problemas de Hipoglicemia, e o médico ordenou verbalmente à enfermeira que administrasse uma ampola de glicose endovenosa. A enfermeira, precipitadamente, pegou, por engano, uma ampola de cloreto de potássio e administrou, levando a paciente à morte instantânea. 53 FIGURA 6 – EM A) AMPOLA DE CLORETO DE POTÁSSIO – 10 ML; B) AMPOLA DE SOLUÇÃO GLICOSADA – 10 ML FONTE: Disponível em: <http://www.hospitalardistribuidora.com.br/ecommerce_site/arquivos4241/arquivos/1246973751.j pg>. Acesso em: 22 set.
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