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28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 1/13 DESENVOLVIMENTO HUMANO AULA 1 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 2/13 Prof. Cassio Gonçalves de Azevedo CONVERSA INICIAL A ciência do Desenvolvimento Humano tem como objeto de investigação os processos sistemáticos de mudança e estabilidade que ocorrem ao longo de toda a vida humana, desde sua concepção até a morte. Trata-se de um campo de estudo transdisciplinar que se serve de um amplo espectro de disciplinas como a Psicologia, Neurociência, Psiquiatria, Sociologia, Antropologia, Biologia, Genética comportamental, História, Medicina e muitas outras. Apresentaremos uma breve história da ciência do desenvolvimento humano para, a seguir, adentrarmos nesse campo de estudo. Para tanto, é necessária a operacionalização de alguns conceitos para uma melhor apreensão de importantes questões que se formulam no interior dessa disciplina. Qual a relevância de compreender até que ponto um comportamento, por exemplo, pode ser influenciado pelas contingências do meio, e até que ponto que a hereditariedade o determina? Como se dá a interação entre as influências ambientais e genéticas? Dentre os fatores ambientais, quais e como influenciam determinadas predisposições genéticas? Veremos ainda alguns conceitos fundamentais que em um primeiro momento podem até parecer dicotômicos, mas que visam justamente suscitar a compreensão da complexidade inerente ao processo de desenvolvimento humano. Na realidade, a relação entre todos eles é a de complementaridade e de múltipla influência, haja vista o dinamismo dos processos de desenvolvimento humano. Vale lembrar, no entanto, que a definição dos conceitos também conserva uma certa plasticidade, na medida em que diferentes autores os utilizam de diferentes maneiras. Adotamos, aqui, as definições mais comuns nos livros de desenvolvimento humano. Os primeiros estudos sobre questões evolutivas sob um viés especificamente psicológico “datam apenas da metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX” (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 20). Antes, porém, filósofos como John Locke (1632-1704), que pressupunha os bebês como uma “tábula rasa”, uma folha em branco na qual o ambiente iria imprimir toda sua influência, e Jean- 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 3/13 Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804), que já enfatizavam características inatas do ser humano, pautaram, portanto, algumas das questões que iriam permear as teorias sobre a Psicologia do desenvolvimento humano no século XX: Essas tendências filosóficas acabaram por influenciar a construção das teorias da psicologia do desenvolvimento, no século XX. De um lado, os modelos mecanicistas que enfatizavam a esfera do empirismo, buscando operacionalizar as investigações dentro do que poderia ser medido e quantificado, sendo o desenvolvimento humano visto como modelado pelo ambiente. A história do indivíduo não era nada mais do que o acúmulo de experiências de aprendizagem. A filosofia behaviorista e as teorias de aprendizagem social constituem exemplos deste modelo. De outro lado, os modelos organicistas valorizavam os processos de caráter universal presentes no desenvolvimento de qualquer indivíduo (Palácios, 1995). Estes modelos ressaltavam os processos internos mais que os externos, sugerindo a existência de uma certa necessidade evolutiva que faria com que o desenvolvimento percorresse determinados estágios. A psicanálise e, até certo ponto, a teoria piagetiana, são exemplos de tal modelo. (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 23) Foi no século XX, porém, inspirada pelos métodos positivista e das ciências naturais como a observação direta do comportamento, as entrevistas e os questionários que a ciência do desenvolvimento humano se consolidou, voltada para a infância e a adolescência (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 23). Predominavam ainda, nesses primórdios da disciplina, como de certa forma ainda hoje repercutem, discussões binárias do tipo entre inatistas e ambientalistas. Por exemplo, no que diz respeito ao desenvolvimento da comunicação e da linguagem, o livro do psicólogo norte-americano B. F. Skinner, Comportamento Verbal, de 1957, defendia a tese de que a aquisição e o desenvolvimento da linguagem e da comunicação em geral, como os outros comportamentos humanos explicados pelo behaviorismo radical, era quase que exclusivamente proveniente das contingências ambientais. Ou seja, uma criança, ao emitir sons em um determinado idioma, seria positivamente reforçada para repetir os sons que nesse idioma fizessem sentido, abandonando os sons ininteligíveis. O linguista também norte-americano Noam Chomsky teceu críticas contundentes que nunca foram respondidas pelo próprio Skinner, mas apenas dez anos depois e por outros behavioristas: A concepção de Chomsky é denominada inatismo. Ao contrário da teoria da aprendizagem de Skinner, o inatismo enfatiza o papel ativo do aprendiz. Uma vez que a linguagem é universal entre os seres humanos, Chomsky (1957, 1972) propôs que o cérebro humano possui uma capacidade inata para aquisição da linguagem; os bebês aprendem a falar com a mesma naturalidade com que 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 4/13 aprendem a andar. Ele sugeriu que um dispositivo de aquisição da linguagem (DAL) inato programa o cérebro das crianças para analisar a língua que ouvem e entender suas regras. (Papalia et al., 2006, p. 198) Com o avanço das pesquisas, os desenvolvimentistas foram progressivamente compreendendo que essas e tantas outras dicotomias se faziam notáveis devido à complexidade inerente ao processo de desenvolvimento, e que o foco de discussão deveria ser muito menos o de preponderâncias entre hereditariedade e aquisição pelas experiências, ou de transição em contraposição a noção de estágios, entre outras; mas o como essas díades que veremos a seguir com mais detalhes se combinam e se intrincam. TEMA 1 – CONCEITOS FUNDAMENTAIS 1.1 FILOGÊNESE X ONTOGÊNESE Denominamos de filogênese o processo evolutivo inerente à espécie, ou seja, mudanças e padrões experimentados por membros de uma dada espécie, portanto, comuns aos indivíduos que dela participam. Por exemplo, o desenvolvimento do sistema nervoso humano se processou ao longo de centenas de milhares de anos, atravessando várias coortes, desde seus ancestrais primatas, passando pelos vários tipos de hominídeos até o homo sapiens como o conhecemos hoje. O processo de desenvolvimento desse sistema obedece, portanto, padrões determinados por meio de gerações anteriores, no processo filogenético. Já a ontogênese visa delimitar os fenômenos de transformação de um organismo em particular, em seu contato singular com seu meio, pois, para que esse elaborado e meticuloso processo filogenético atinja sua plenitude em determinado ser particular, ou seja, para que esse aparelho funcione adequadamente em dada pessoa, esse organismo em específico precisará atravessar condições muito variadas como a alimentação apropriada e os estímulos ambientais necessários, e mais especificamente, deverá ainda experenciar situações absolutamente singulares que irão lhe conferir uma conformação única, no processo ontogenético. Assim, a principal tarefa dos pesquisadores do desenvolvimento é investigar como os organismos estabelecem, mantêm e reorganizam seus comportamentos e relacionamentos dentro de um ambiente, ao longo de sua ontogenia. 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 5/13 Verificamos, portanto, e desde já, a interdependência entre filogênese e ontogênese e a distinção que fazemos aqui, meramente didática, visa apenas nos instrumentalizar para as problemáticas inerentes ao campo, além de nos encadear na esteira de mais alguns conceitos fundamentais ao estudo do desenvolvimento humano, a saber:a hereditariedade, o crescimento, a maturação, os períodos críticos ou sensíveis, a plasticidade do desenvolvimento humano, entre outros. 1.2 HEREDITARIEDADE X AMBIENTE A discussão sobre o papel da hereditariedade, ou seja, sobre o raio de influência que a determinação genética exerce sobre os fenômenos do desenvolvimento, em contraposição com as influências provenientes da experiência do organismo em determinado meio, está no próprio início dos debates da ciência do desenvolvimento humano e ainda repercute significativamente. Correntes teóricas inatistas e ambientalistas foram progressivamente se desenvolvendo em modelos interacionistas em que “a herança genética não se constitui em algo imutável e já acabado, mas em traços e tendências que se integram e interagem com os fatores ambientais e que resultam em fatores imprescindíveis aos processos evolutivos” (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 74). Com a evolução da ciência do desenvolvimento humano, hoje “Os desenvolvimentistas compreendem que mesmo que um traço ou qualidade específico seja 100% genético, sua expressão é 100% dependente do mundo externo” (Belsky, 2010, p. 48). Isso porque uma característica, seja ela qual for, manifesta-se em determinado contexto que pode potencializá-la ou até mesmo suprimi-la. No modelo bioecológico de Urie Bronfenbrenner, por exemplo, “a herança genética não se constitui em algo imutável e já acabado, mas em traços e tendências que se integram e interagem com os fatores ambientais e que resultam em fatores imprescindíveis aos processos evolutivos” (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 74). Os estudos com gêmeos no campo da genética comportamental visam mensurar justamente a influência da hereditariedade genética nos comportamentos e características fenotípicas em contraposição às ambientais. Os estudos de gêmeos podem comparar gêmeos monozigóticos, ou idênticos, com gêmeos dizigóticos em relação à determinada capacidade cognitiva ou traço de personalidade, por exemplo. Traços e características mais predominantes em gêmeos monozigóticos sugerem uma influência mais 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 6/13 significativa do genoma, já que gêmeos idênticos ou monozigóticos (quando um único óvulo é fecundado); compartilham 100% de seu código genético, enquanto os dizigóticos 50%. Os geneticistas comportamentais também desenvolvem estudos de adoção, em que crianças adotadas são comparadas com seus pais biológicos. Traços e características que, mesmo na ausência da convivência, são comuns, sugerem uma influência genética preponderante. Contudo, as evidências mais significativas da influência que a genética exerce sobre as expressões dos fenótipos são encontradas em estudos mais raros de gêmeos monozigóticos adotados, nos quais gêmeos idênticos são separados na infância e rastreados na vida adulta. Da mesma forma, as características que perseveram depois de adultos em ambos os gêmeos, mesmo estes tendo sido separados em tenra idade, sugerem forte conotação do genoma na equação final das expressões do fenótipo (Beslky, 2010, p. 46). TEMA 2 – CRESCIMENTO E MATURAÇÃO Podemos definir brevemente o conceito de crescimento como a transformação quantitativa que se processa no corpo, no que tange ao aspecto biológico, como a idade cronológica, além de caracteres antropométricos como altura, massa muscular e peso, por exemplo. Dado que o crescimento é o aumento na estrutura física do corpo, proveniente da multiplicação celular (hiperplasia), do aumento do tamanho das células (hipertrofia) e do aumento das substâncias intercelulares, e que implica mudanças anatômicas, bem como na diferenciação das estruturas, ele pode ser, portanto, mensurado. Já o conceito de maturação nos remete às transformações morfológicas e fisiológicas qualitativas que se operam no organismo, com uma ordem de ascensão fixa que pode variar no quesito ritmo, mas não em relação à sequência no aparecimento das características fenotípicas. Essa progressão qualitativa é direcionada para o estado e as atividades normais do adulto, possibilitando assim ao organismo a capacidade de executar atividades cada vez mais complexas. A maturação sexual, por exemplo, que verificamos emergir durante o período de puberdade, desencadeia estímulos hormonais diferenciados nas meninas e meninos no sentido de preparar o organismo para um comportamento bastante complexo, o da reprodução. 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 7/13 Não obstante, a maturação conserva também uma certa plasticidade em relação ao crescimento. Dois indivíduos de mesma idade exata podem apresentar maturação sexual ou psicológicas bastante variadas, isso porque os processos de maturação não se reduzem aos processos de crescimento, eles envolvem também fatores socioculturais: Um evento normativo é experimentado de modo semelhante pela maioria das pessoas em um grupo. Influências normativas etárias são muito semelhantes para pessoas de uma determinada faixa etária. Elas incluem eventos biológicos (como puberdade e menopausa) e eventos sociais (como ingresso na educação formal, casamento, paternidade-maternidade e aposentadoria.) O tempo de ocorrência dos eventos biológicos é fixo, dentro de uma faixa normal. (As pessoas não experimentam a puberdade aos 35 anos ou a menopausa aos 12). O tempo de ocorrência dos eventos sociais é mais flexível e varia em diferentes tempos e lugares, embora dentro de limites de maturação. Uma mulher normalmente pode engravidar e ter um filho em qualquer tempo entre a puberdade e a menopausa. Nas sociedades industriais do ocidente, as crianças geralmente iniciam a educação formal em torno dos 5 ou 6 anos, mas em alguns países em desenvolvimento, a educação escolar, quando ocorre, começa muito mais tarde. (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 58) TEMA 3 – PERÍODOS CRÍTICOS OU SENSÍVEIS X PLASTICIDADE Os períodos críticos ou sensíveis no processo de maturação nos remetem à noção de um período ou espaço temporal em que o organismo está particularmente sensível a determinados estímulos mais que por outros ou em outros momentos do desenvolvimento. A reação de sorriso do bebê ao rosto humano, descrita por Spitz, que veremos com mais detalhes nas próximas aulas, exemplifica com clareza a captura de atenção que o rosto humano, ou melhor, a gestalt boca, nariz e olhos, exerce sobre a atenção do bebê aos dois meses e meio de idade. A ausência de determinado estímulo imprescindível, na fase sensível, poderá contribuir para o atrofiamento de uma função correspondente ou, no caminho contrário, um estímulo inapropriado em um período sensível poderia também desencadear padrões atípicos e disfuncionais de comportamento. Essa perspectiva, contudo, requer seu contraponto diante da característica plástica que o desenvolvimento humano apresenta, pois o desenvolvimento não é um fenômeno rígido nem linear, mas flexível e dinâmico. Papalia et al. (2006) relatam a descoberta de crianças romenas internadas em um orfanato superlotado por um longo período, e privadas de contato social minimamente satisfatório com 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 8/13 cuidadores e entre si, além de estimulações de toda ordem já que permaneciam a maior parte do tempo deitadas em seus berços ou camas: “A maioria das crianças com 2 e 3 anos não andava nem falava, e as crianças maiores brincavam a esmo. Tomografias de seus cérebros mostraram extrema inatividade nos lobos temporais, que regulam as emoções e recebem dados sensórios” (Papalia et al., 2006, p. 174). Muitas dessas crianças foram adotadas por famílias estrangeiras. Os pesquisadores da Universidade de Simon Fraser de British Columbia estudaram 46 crianças, de 8 meses a 5 anos e 6 meses, que foram adotadas por casais canadenses (Ames, 1997; Morison, Ames e Chisholm, 1995). Na época de adoção, todas as crianças apresentavam atrasos no desenvolvimento motor, linguístico e psicossocial, equase 80% delas estavam atrasadas em todas essas áreas. Três anos depois, quando comparadas com crianças que ficaram nos orfanatos romenos, elas apresentavam um progresso notável. Mesmo quando comparadas com crianças canadenses criadas em seus próprios lares desde o nascimento, aproximadamente um terço não tinha nenhum problema sério e estava bem - em alguns casos até melhor do que uma criança mediana criada em casa. Outro terço delas - geralmente aquelas que permaneceram internadas por mais tempo - ainda tinha sérios problemas de desenvolvimento. O restante estava encaminhando-se para comportamento e desempenho normais. (Papalia et al., 2006, p. 174) Entretanto, os autores ainda citam outras pesquisas que sugerem “que a estimulação ambiental precisa ocorrer muito cedo para que os efeitos da privação extrema sejam plenamente superados” (Papalia et al., 2006, p. 174), pois, um dado importante sobre a plasticidade do desenvolvimento humano é justamente o fato de que ela é tanto maior em idades mais precoces, haja vista que as trilhas neuronais ainda estão se consolidando. O fato é que o desenvolvimento humano pressupõe períodos críticos ou sensíveis que comportam alguma plasticidade, como a plasticidade neural, que possibilita inclusive ao cérebro contrabalancear deficiências com remanejamentos funcionais de neurônios. Sabe-se, por exemplo, que neurônios do lobo occipital envolvidos com o processamento visual de pessoas que nascem com deficiência no aparelho visual, com o passar do tempo são cooptados para outras finalidades que não as que inicialmente lhe eram atribuídas. Ou seja, quando a deficiência é congênita ou acontece em período muito precoce, o cérebro possui a capacidade de remanejamento desses neurônios que não permanecem ociosos, mas cooperam para o desenvolvimento de outra capacidade. Essa capacidade, contudo, não se verifica em pessoas que adquirem a deficiência visual em idade posterior, pois os neurônios já estão envolvidos com o processamento dos estímulos provenientes do aparelho sensorial visual. Segundo Spitz (2004, p. 109), 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 9/13 O primeiro ano de vida é o mais plástico do desenvolvimento humano. O homem nasce com um mínimo de padrões de comportamento pré-formados e deve adquirir incontáveis habilidades no decorrer do seu primeiro ano de vida. Nunca mais na vida tanto será aprendido em tão pouco tempo. TEMA 4 – ESTÁGIO E TRANSIÇÃO: O CICLO DE VIDA O conceito de ciclo de vida ou ciclo vital, dividido em períodos ou estágios “é uma construção social: um ideal acerca da natureza da realidade aceito pelos integrantes de uma determinada sociedade em uma determinada época com base em percepções ou suposições subjetivas compartilhadas” (Papalia et al., 2006, p. 51). Um de seus principais propositores foi o psicanalista alemão Erik Erikson, que estudaremos com mais detalhes em aulas posteriores. A ideia que o ciclo vital pressupõe de que o desenvolvimento não se limita à infância e à adolescência, mas se estende pela vida toda, é relativamente nova, “Hoje, a maioria dos cientistas do desenvolvimento reconhecem que o desenvolvimento ocorre durante toda a vida. Esse conceito de um processo vitalício de desenvolvimento que pode ser estudado cientificamente é conhecido como desenvolvimento no ciclo vital” (Papalia, 2006, p. 48). Os períodos ou estágios do ciclo vital são atravessados pelas influências culturais em grande medida, pois “As sociedades do mundo inteiro reconhecem diferenças no modo como pessoas de diferentes idades pensam, sentem e agem, mas elas dividem o ciclo de vida de modos diferentes” (Papalia, 2006, p. 51). Outra característica dialética que o desenvolvimento humano pressupõe são as noções de estágio e transição, que se processam durante as mudanças qualitativas e estão diretamente interligadas: “Enquanto estágio refere-se a um conjunto de padrões comportamentais e habilidades características de uma determinada idade ou fase do ciclo de vida do indivíduo, a transição refere-se aos períodos de passagem de um estágio para outro no ciclo de vida ou na aquisição de habilidades, sejam motoras, cognitivas, sociais, afetivas, dentre outras” (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 23). Mudança e estabilidade são duas constantes no processo de desenvolvimento humano e, como se pode intuir, intercalam-se e interpenetram-se, sucessivamente, conforme o organismo em seu contexto vai adquirindo novas habilidades e as acomodando, no processo de maturação durante o ciclo de vida. 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 10/13 Mesmos os estudos sobre as mudanças nos padrões adaptativos, segundo Dessen e Costa Junior (2008), começam com uma análise sistemática das acomodações cognitivas e comportamentais do indivíduo observadas em períodos específicos de tempo, considerando também as mudanças concomitantes ocorridas em outros sistemas orgânicos e ambientais. Isso significa que as mudanças sistêmicas que apoiam ou consolidam uma nova direção adaptativa são examinadas considerando o entrelaçamento dinâmico entre os diferentes níveis do sistema e o respectivo tempo da reorganização adaptativa. Por exemplo, os processos de transição da infância para a adolescência e da adolescência para a fase adulta sugerem várias continuidades e mudanças que são comumente descritas nos livros clássicos de psicologia do desenvolvimento. (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 26) De acordo com esses autores, apoiados em Elder (1996), a continuidade compreende padrões relacionais e comportamentais transferidos de uma situação anterior para uma nova situação. Esses padrões quase sempre eliciam respostas nos outros organismos ou indivíduos que fazem parte do novo contexto de interação, que, por sua vez, apoiarão ou validarão os padrões iniciais, contribuindo para adaptá-los às características do novo contexto. (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 25-26) TEMA 5 – DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL Uma das características mais singulares e idiossincráticas do ser humano é a capacidade de criar e desenvolver cultura. Ela antecede os que nela nascem e os ultrapassa, e é por eles transformada ao transformá-los. Não obstante as muitas pesquisas e esforços teóricos, a influência que a cultura exerce no desenvolvimento humano seria praticamente incomensurável não fossem também alguns casos em que crianças foram privadas do convívio social humano, como no lendário caso de Amala e Kamala, as meninas lobo, ou do menino Victor, dramatizada no filme O garoto Selvagem, de François Truffault, entre outros. Crianças que, no processo de desenvolvimento infantil, são privadas do convívio com outros seres humanos, uma vez reintegradas, podem se desenvolver normal, ou satisfatoriamente? Quais as melhores estratégias para desenvolvê-las? Conforme o campo do desenvolvimento humano foi se consolidando como uma disciplina científica, “seus objetivos evoluíram para incluir a descrição, explicação, predição e modificação do 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 11/13 comportamento” (Papalia, 2006, p. 50). Para tanto, os desenvolvimentistas precisaram incorporar cada vez mais no seio das suas pesquisas e teorias as influências que o contexto sociocultural exercia sobre o desenvolvimento, bem como o papel ativo do sujeito frente a ele. A epistemologia genética de Jean Piaget, que se vale das premissas construtivistas, e a perspectiva histórico-cultural de Lev Vygotsky são exemplos de desenvolvimentos teóricos e metodológicos que enfatizam o papel ativo da criança, porém, com ênfases díspares. Já as concepções sociogenéticas, como a sociocultural construtivista, Considerando o papel ativo do sujeito no seu desenvolvimento (enfatizado pelo construtivismo) e a importância dos contextos simbólico-sociais (enfatizada pela perspectiva histórico- cultural), [...] é uma tentativa de superação da unidirecionalidade dos estudos psicológicos, que oraressaltam a importância do indivíduo e esquecem o contexto ora valorizam o contexto e colocam em segundo plano o papel ativo e intencional do sujeito psicológico. (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 91) Trata-se, nas abordagens que visam sintetizar as influências socioculturais e a atividade do sujeito quanto ao seu desenvolvimento, de ressaltar o vetor social como a gênese das funções psicológicas superiores Fora dos contextos socioculturais estruturados, não é possível a emergência das funções psicológicas tipicamente humanas, tais como: o pensamento abstrato, a atenção voluntária e a consciência autoreferente. A cultura, portanto, não influencia apenas o desenvolvimento humano: a cultura constitui o sujeito psicológico, marcando de forma profunda o seu desenvolvimento e conferindo-lhe o seu caráter humano. (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 91-92) NA PRÁTICA A sabedoria popular preconiza que, “filho de peixe, peixinho é”, bem como compreende que as influências do meio exercem suas determinações, afinal, “diga-me com quem andas, e direi que és”. Por que será que João é assim e Joaquim assado? Ora, dentre as questões que devem ser respondidas depois desta aula estão: o desenvolvimento humano é um fenômeno ou processo rígido e linear, geneticamente determinado, que não ocorre por exemplo na velhice? A resposta deve considerar que o desenvolvimento humano é um processo flexível e complexo, dinâmico e biopsicossocial, ou seja, com determinações genéticas e biológicas, sociais, comunitárias 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 12/13 e culturais, e psicológicas, que interagem entre si potencializando-se ou anulando-se no ciclo vital completo, desde o nascimento até a morte. FINALIZANDO Vimos que a ciência do desenvolvimento humano tem como objeto de investigação os processos sistemáticos de mudança e estabilidade que ocorrem ao longo de todo o clico vital, desde sua concepção até a morte, e que se trata de um campo amplo de estudo transdisciplinar que se serve de uma gama enorme de outras disciplinas, dada a complexidade e o dinamismo inerentes ao desenvolvimento humano. Vimos, ainda que brevemente, que o desenvolvimento humano sob o enfoque mais específico da Psicologia se iniciou em meados do século XIX e que, durante o século XX, as concepções dicotômicas e voltadas quase que exclusivamente para a infância e a adolescência predominavam; que filogênese é o processo de desenvolvimento das espécies, e que a ontogênese é o desenvolvimento de um determinado organismo particular na relação com seu meio, e que por hereditariedade entendemos como o código genético herdado das gerações anteriores influencia nas expressões fenotípicas, em uma relação de mútua influência com os traços adquiridos no ambiente, dentre eles, na cultura, que, por sua vez, as potencializa ou inibe, ou seja, influencia exponencialmente na expressão dos fenômenos intrapsíquicos e do comportamento. Vimos também que o crescimento nos remete às transformações biológicas quantitativas do corpo, e que a maturação já denota uma alteração qualitativa em que o organismo adquire a capacidade de realizar atividades mais complexas e maduras. Sobre os períodos críticos ou sensíveis, em relação à plasticidade, discutimos sobre esses espaços temporais em que o organismo está particularmente sensível a determinados estímulos que os influenciam, e a flexibilidade que nosso desenvolvimento tem diante deles. Essa discussão nos levou à díade estágio e transição, que são duas constantes do desenvolvimento, na medida em que, no ciclo vital, o organismo se transforma por estágios. Todos esses conceitos e outros tantos mais visam delinear aspectos ou dimensões do processo de desenvolvimento e, quando conjugados, explicitam a complexidade desse campo do saber. As questões que nortearam o debate no interior da disciplina em seus primórdios como entre inatistas, ambientalistas, cognitivistas e interacionistas, pavimentaram as concepções modernas da 28/12/2022 17:16 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 13/13 ciência do desenvolvimento humano no sentido das concepções sociogenéticas, em que os seres humanos são concebidos como “co-construtores do seu desenvolvimento enquanto sujeitos singulares e, simultaneamente, são co-construtores dos contextos socioculturais nos quais se inserem” (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 95). É, portanto, com a emergência da cultura e da possibilidade de um aprendizado coletivo (histórico) parece ser um dos fatores essenciais para o surgimento da consciência humana, seja no plano filogenético seja no ontogenético. Afinal, fora de um contexto sociocultural estruturado não é possível pensarmos em consciência humana, a menos que acreditemos em uma versão essencialista da consciência, como se a mesma já estivesse “pronta”, pré-programada em nossos genes. (Dessen; Costa Junior, 2008, p. 97) REFERÊNCIAS BELSKY, J. Desenvolvimento humano: experenciando o ciclo da vida. Porto Alegre: Artmed, 2010. DESSEN, M. A.; COSTA JUNIOR, Á. L. (Orgs.). A ciência do desenvolvimento humano: tendências atuais e perspectivas futuras. Porto Alegre: Artmed, 2008. PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. Desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed, 2006. SPITZ, R. A. O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 1/15 DESENVOLVIMENTO HUMANO AULA 2 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 2/15 Prof. Cassio Gonçalves de Azevedo CONVERSA INICIAL Conforme vimos em conteúdo anterior, a infância, bem como a adolescência, foram as primeiras fases do ciclo vital a chamar a atenção dos estudiosos do desenvolvimento humano, ao ponto de as concepções mais tradicionais nesta disciplina praticamente terem reduzido o desenvolvimento a estes períodos. A infância, portanto, talvez tenha sido o período do desenvolvimento mais estudado pela psicologia e psicanálise e pela ciência do desenvolvimento, o que fez com que se produzisse, sobre ela, um vasto material teórico e metodológico sobre o qual teremos também que examinar um pouco mais detidamente. Mas nem sempre foi assim. Iniciaremos nosso percurso ao universo psicológico infantil resgatando o período anterior à emergência da infância tal como a concebemos hoje para, na sequência, demonstrar como se deu essa transição. Para tanto, nos valeremos do livro A história social da criança e da família, de Philippe Ariès. Depois, iremos adentrar em um dos autores mais clássicos nos estudos sobre o desenvolvimento infantil, ao ponto de fomentar desconhecimentos e preconceitos em relação a sua teoria, como se ela reduzisse tudo à infância. A psicanálise de Sigmund Freud foi umas das principais teorias responsáveis pela introdução e reconhecimento da infância como um período crítico de desenvolvimento, com implicações para o resto da vida. Na sessão Na prática, serão apresentadas algumas situações concretas em que o aparato teórico produzido pela psicanálise se faz imprescindível. 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 3/15 TEMA 1 – A DESCOBERTA DA INFÂNCIA Muitas são as fontes do conhecimento que a humanidade produz. Tradicionalmente dividimos as categorias do conhecimento como provenientes do senso comum, do conhecimento religioso, do filosófico, científico e artístico. O historiador e medievalista francês Philippe Ariès (1914–1984) se valeu de pelo menos dois destes para escrever seu livro seminal A história social da criança e da família, originalmente publicado em 1960, e que utilizaremos para iniciar nossa jornada pelos meandros da infância: o conhecimento científico da história e o da arte. Ariès analisa com minúcias a iconografia medieval para ir muito além das questões estéticas e pictóricas da arte e penetrar na representação social e psicológica que a infância tinha no seiodas sociedades medievais, conceituadas pelo autor como Sentimentos da Infância: “O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem” (Ariès, 1978, p. 156). Ariès observa que “na sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida, o sentimento da infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas” (Ariès, 1978, p. 156). Essa consciência não existia. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes. (Ariès, 1978, p. 156) Assim que desmamadas, as crianças já eram incorporadas no seio das atividades adultas sem grandes discriminações, o que denota uma brutal falta de compreensão das especificidades do desenvolvimento infantil, do ponto de vista atual. Por volta do século XIII, nos mostra Ariès, sugiram algumas representações de criança mais próximas do padrão atual, sob a forma de anjos, mas ainda assim, eram crianças maiores, pequenos jovens. Um segundo tipo de criança foi o menino Jesus, “Com a maternidade da Virgem, a tenra infância ingressou no mundo das representações” (Ariès, 1978, p. 53). Um terceiro tipo de criança foi a criança nua, na fase gótica, porém, “como a alegoria da morte e da alma que introduziria no mundo das formas a imagem da nudez infantil” (Ariès, 1978, p. 53). Enquanto a origem dos temas do anjo, das infâncias santas e de suas posteriores evoluções iconográficas remontava ao século XIII, no século XV surgiram dois tipos novos de representação da 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 4/15 infância: o retrato e o putto. A criança, como vimos, não estava ausente da Idade Média, ao menos a partir do século XIII, mas nunca era o modelo de um retrato, de um retrato de uma criança real, tal como ela aparecia num determinado momento de sua vida. (Ariès, 1978, p. 56) O autor também destaca o aparecimento do retrato da criança morta, no século XVI. Vale destacar que, em função das condições precárias de higiene e saúde da Europa medieval, os índices de mortalidade infantil eram altíssimos, o que fazia com que os adultos, quase como um mecanismo de defesa contra a perda eminente, não se permitissem o estabelecimento de laços afetivos de apego substanciais. A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVl. (Ariès, 1978, p. 65) Ou seja, foi somente no século XVII que dois novos “sentimentos” se fizeram notar para além dos círculos mais íntimos, mas como uma experiência social compartilhada. O primeiro foi o que Ariès denominou de paparicação: “Um novo sentimento da infância havia surgido, em que a criança, por sua ingenuidade, gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto, um sentimento que poderíamos chamar de “paparicação”” (Ariès, 1978, p. 158). A maneira de ser das crianças deve ter sempre parecido encantadora às mães e às amas, mas esse sentimento pertencia ao vasto domínio dos sentimentos não expressos. De agora em diante, porém as pessoas não hesitariam mais em admitir o prazer provocado pelas maneiras das crianças pequenas, o prazer que sentiam em “paparicá-las". (Ariès, 1978, p. 158) Esse primeiro “sentimento” da infância, contudo, suscitou um segundo, sobretudo no século XVII, de exasperação em relação ao primeiro, como que uma reação crítica à paparicação: “É preciso deixar claro que esse sentimento de exasperação era tão novo quanto a “paparicação”, e ainda mais estranho à promiscuidade indiferente das idades da sociedade medieval” (Ariès, 1978, p. 161). É entre os moralistas e os educadores do século XVII que vemos formar-se esse outro sentimento da infância que estudamos no capítulo anterior e que inspirou toda a educação até o século XX, tanto na cidade como no campo, na burguesia como no povo. O apego à infância e à sua particularidade não se exprimia mais através da distração e da brincadeira, mas através do interesse psicológico e da preocupação moral [...] Era preciso antes conhecê-la melhor para corrigi-la, e os textos do fim do século XVI e do século XVII estão cheios de observações sobre a psicologia infantil. Tentava-se penetrar na mentalidade das crianças para melhor adaptar a seu nível os métodos de educação. Pois as pessoas se preocupavam muito com as crianças, consideradas 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 5/15 testemunhos da inocência batismal, semelhantes aos anjos e próximas de Cristo, que as havia amado. Mas esse interesse impunha que se desenvolvesse nas crianças uma razão ainda frágil e que se fizesse delas homens racionais e cristãos. (Ariès, 1978, p. 162-163) Assim, o autor nos mostra que a trajetória que a infância atravessou desde uma negligência, em que não se tinham sequer as noções que hoje nos parecem básicas acerca da infância, até uma consideração mais detida das particularidades desse período do desenvolvimento não foi abrupta, tampouco linear. O primeiro sentimento da infância - caracterizado pela “paparicação" - surgiu no meio familiar, na companhia das criancinhas pequenas. O segundo, ao contrário, proveio de uma fonte exterior à família: dos eclesiásticos ou dos homens da lei, raros até o século XVI, e de um maior número de moralistas no século XVII, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes. Esses moralistas haviam-se tornado sensíveis ao fenômeno outrora negligenciado da infância, mas recusavam-se a considerar as crianças como brinquedos encantadores, pois viam nelas frágeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse sentimento, por sua vez, passou para a vida familiar. No século XVIII, encontramos na família esses dois elementos antigos associados a um elemento novo: a preocupação com a higiene e a saúde física. (Ariès, 1978, p. 163-164) No século XVIII, então, Tudo o que se referia às crianças e à família tornara-se um assunto sério e digno de atenção. Não apenas o futuro da criança, mas também sua simples presença e existência eram dignas de preocupação – a criança havia assumido um lugar central dentro da família. (Ariès, 1978, p. 164) Estava, assim, preparando-se o terreno para o que viria já no final do século XIX. TEMA 2 – O DESCASO COM O INFANTIL Freud foi não apenas um dos responsáveis pela introdução da infância e suas particularidades nos estudos psicológicos, reconhecendo nessa etapa da vida um período diferenciado e importante de desenvolvimento infantil. Ele o fez por uma determinada via absolutamente radical para os padrões de sua época, a da sexualidade. Importante, desde já, que nos familiarizemos com a terminologia freudiana, em contraposição às concepções mais comuns que os termos por Freud empregados costumam ter. Por exemplo, a conotação que o termo sexual abrange no senso comum não abarca, nem de longe, os contornos 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 6/15 que a teoria psicanalítica a ele confere, pois, sexualidade em psicanálise não se restringe às questões meramente reprodutivas, às genitálias ou ao sexo. O emprego do termo sexualidade por Freud denota muito mais da relação do sujeito com seu próprio corpo, suas experiências de prazer e desprazer na relação com as muitas alteridades que o constituem. Já nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, Freud subverte a moral da sociedade vitoriana repressiva de sua época ao ponto de ser, ele mesmo, alvo de acusações de perversão, o que não lhe fez, porém, contudo, retrocederdiante das manifestações que emanavam de sua clínica. Na concepção popular do instinto sexual, ele está ausente na infância e desperta somente no período da vida que designamos como puberdade. Isso não é um erro qualquer, mas de grandes consequências, pois principalmente a ele devemos nosso atual desconhecimento das condições fundamentais da vida sexual. Um estudo aprofundado das manifestações sexuais infantis provavelmente revelaria os traços essenciais do instinto sexual, mostraria seu desenvolvimento e nos faria ver sua composição a partir de várias fontes. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 73) Freud estarreceu sua época ao revelar ao mundo que as crianças possuem sim uma sexualidade e que ela é muito mais intransigente do que eles supunham. Para tanto, por exemplo, observou a supervalorização dos aspectos filogenéticos, em detrimento do papel que a ontogênese desempenhara nos estudos do desenvolvimento: É digno de nota que os autores que se ocuparam da explicação das características e reações do indivíduo adulto tenham dado bem mais atenção à pré-história abarcada pelas vidas dos antepassados, ou seja, tenham atribuído bem maior influência à hereditariedade do que àquela outra pré-história que se situa já na existência individual da pessoa, a infância. Seria de acreditar que a influência desse período da vida é mais facilmente compreensível e deve ser considerada antes da hereditariedade. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 73) Não são poucas as referências que Freud faz ao desenvolvimento filogenético, ao longo de sua obra, porém, sua atenção se volta sempre para a ontogenia, pois, mesmo quando busca ancorar suas observações e conclusões em determinações filogenéticas, “não deixa de atribuir prioridade à ontogênese na constituição dos sintomas e da subjetividade de seu paciente. Freud, na verdade, aponta a filogênese, mas advoga em favor do determinismo infantil na constituição psíquica” (Zavaroni et al. 2007, p. 68-69). No “Projeto para uma psicologia científica”, Freud (1950 [1895]/ 1980) atribui às experiências infantis valor determinante e fundante do psiquismo. Ele estabelece o desamparo infantil e a busca de satisfação como elementos constituintes da subjetividade. Será por meio da compreensão do 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 7/15 psiquismo em seus momentos iniciais, que Freud irá estabelecer o paradigma que sustentará suas elaborações. Segundo ele, o corpo do bebê impõe necessidades que o mesmo não tem como responder. Essas necessidades exigem, por sua vez, uma ação específica para que sejam satisfeitas. Impossibilitado de levar a cabo tal ação, a única descarga possível ao bebê será o choro que se torna signo de comunicação, pois traz até ele (o bebê) a proximidade do outro que providenciará sua satisfação. É nas vicissitudes dessas experiências que Freud situa a inscrição da pulsão na constituição psíquica e aponta para um deslizamento que muda o rumo das necessidades. (Zavaroni et al. 2007, p. 67) TEMA 3 – AMNÉSIA INFANTIL – RECALQUE Percebemos que, não obstante a infância seja um dos períodos da vida mais ricos em experiências significativas e cheio de emoções, em geral são muito poucas e nebulosas as lembranças sobre o que vivemos quando criança. Flashes de situações ou impressões esparsas compõem um quadro de imagem difícil, porém, de profunda repercussão. Assim, “tratando da amnésia do infantil em Os três ensaios, Freud reafirma o paradoxo: o infantil remete a um período que é, ao mesmo tempo, esquecido e determinante” (Zavaroni et al. 2007, p. 68). Freud desde sempre esteve muito atento às entrelinhas dos discursos. Não apenas o conteúdo manifesto se fazia importante, mas também o conteúdo latente, aquele que não aparece, mas que se faz notar pela ausência. Assim, Mesmo quando se voltava à reconstituição dos fatos de infância relatados por seus pacientes, o que mantinha Freud ocupado com a infância era algo da ordem do recalcado. O infantil recalcado, muito mais que um relato sobre a infância, foi, desde sempre, o seu verdadeiro interesse. No processo de constituição psíquica, é o momento de maior capacidade de receber e reproduzir impressões. São impressões esquecidas que deixam os mais profundos traços em nossas mentes, e que são tomados eles mesmos como traumáticos e constituintes, com efeito determinante. Nesse sentido, o “traumático” se interioriza: não seriam mais as experiências como tais, mas os seus traços o que adquire estatuto traumático. Inscrições e traços esquecidos, mas não apagados. Freud enfatiza que não se pode falar de apagamento ou abolição, mas de recalque. (Zavaroni et al., 2007, p. 66) Freud relaciona, portanto, a negligência ou o descaso dos estudos do desenvolvimento humano infantil com o esquecimento que em geral se têm desse período tão especial da vida: Creio que a razão para essa curiosa negligência deve ser buscada, em parte, nos es crúpulos convencionais, que os autores observam devi do a sua própria educação, e, em parte, num fenômeno psíquico que até agora subtraiu-se ele mesmo à explica ção. Refiro-me à peculiar 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 8/15 amnésia que esconde à maioria das pessoas (não a todas!) os primeiros anos da infân cia, até os seis ou oito anos de idade. Não nos ocorreu, até o momento, assombrarmo-nos com essa amnésia, mas teríamos boas razões para isso. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 75) [...] Por outro lado, temos de supor, ou podemos nos con vencer pela investigação psicológica em outras pessoas, que as mesmas impressões que esquecemos deixaram, todavia, os mais profundos traços em nossa vida psíqui ca, e se tornaram determinantes para todo o nosso desen volvimento posterior. Não pode se tratar, então, de um verdadeiro desaparecimento das impressões da infância, mas sim de uma amnésia semelhante à que observamos nos neuróticos em relação a vivências posteriores, cuja essência consiste num mero afastamento da consciência (repressão). Mas que forças produzem essa repressão das impressões infantis? Quem resolver esse enigma terá, provavelmente, esclarecido também a amnésia histérica. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 76) Dado que seu interesse eram as neuroses e os mecanismos de recalque e repressão, Freud vislumbra a vulnerabilidade que o período infantil apresenta em relação às experiências de satisfações frustradas das pulsões parciais, interditadas, em que a censura se impôs. É sobre o período da infância que a educação mais se impõe, em que os moralistas do século XVII, como vimos, se empenhavam em domar, ou seja, sobre esse período incidem com mais intensidade os mecanismos de recalque e repressão. O recalque, basicamente, consiste na operação psicológica de afastar da consciência qualquer manifestação de pensamento, afeto ou desejo intolerado pelo julgamento do eu, e está na própria gênese da formação dos sintomas neuróticos, dado que os conteúdos recalcados insistem em retornar. Como sabemos, nem todas as nossas aspirações são possíveis de realizar, principalmente quando dizem respeito ao nosso corpo e à nossa sexualidade. Com a impossibilidade da realização desses impulsos, aspirações e desejos, entra em ação um mecanismo que Freud chamou de recalque. Esse mecanismo consiste em afastar da consciência qualquer pensamento que tenha sido proibido de ser realizado. (Furtado; Vieira, 2014, p. 94) O período de latência, que veremos em conteúdo posterior, é um período em que o mecanismo de recalque das experiências sexuais infantis se faz sentir justamente pelo que o caracteriza, a expressão de uma lacuna, de uma operação latente que visa a supressão e o desvio das metas sexuais para outras finalidades. 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 9/15 TEMA 4 – O INFANTIL E A SEXUALIDADE HUMANA A infância foi desde o início da elucubração freudiana um dos temas de maior destaque, pois, se há uma característica indelével dessa práxis é a postulaçãode Freud de que as bases da constituição psíquica do ser humano remontam ao período de desenvolvimento infantil. Entretanto, o tema do infantil em psicanálise extrapola a idade cronológica da infância, e se espraia pela estruturação da personalidade, pela formação de sintomas ao longo da vida adulta e, também, não se reduz aos eventos reais, mas adentra e adquire seu estatuto próprio no campo da fantasia. Como um conceito que se constitui no cerne do trabalho de análise, a teorização do infantil comparece na metapsicologia como um recurso que possibilita uma posição do analista em relação àquilo que ouve de seu paciente. Em suas diferentes facetas, o infantil refere-se àquilo que, sob a ação do recalque, origina e determina o psiquismo humano. Referido a um tempo originário, o infantil inscreve-se no psiquismo humano como uma construção atravessada pela fantasia. No trabalho de psicanálise, o infantil comparece em um constante movimento de retorno e atualização daquilo que, no percurso do desenvolvimento pulsional, pode ser construído, somente a posteriori, como sendo a infância de cada analisando. (Zavaroni et al., 2007, p. 69) Freud se volta para a constituição da infância para tão logo perceber “que não é a infância em si que ali se apresenta, mas um mundo de desejos, fantasias, lembranças e recordações que, mesmo em uma criança, se davam a posteriori” (Zavaroni et al., 2007, p. 68). Ou seja, tal como o sonho, é o relato feito posteriormente que constrói as experiências infantis, em que fantasia e realidade se fundem num todo opaco, fugidio e indiferenciado. Freud observa no desenvolvimento humano infantil o que chama de manifestações sexuais infantis, e as vai dissecando para elencar nelas três características essenciais: “Esta surge apoiando-se numa das funções vitais do corpo, ainda não tem objeto sexual, é autoerótica, e sua meta sexual é dominada por uma zona erógena”; e generaliza essas características “para a maioria das outras atividades dos instintos sexuais infantis” (Freud, [1901-1905], 2016, p. 87). Então se constataria que a excitação sexual da criança provém de muitas fontes. A satisfação surgiria, antes de tudo, pela adequada excitação sensorial das chamadas zonas erógenas, cuja função provavelmente pode ser exercida por qualquer área da pele e qualquer órgão dos sentidos, provavelmente qualquer órgão, ao passo que existem zonas erógenas por excelência, cuja excitação é garantida, desde o começo, por determinados dispositivos orgânicos. Além disso, a excitação sexual surgiria como, digamos, produto secundário num grande número de processos do 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 10/15 organismo, tão logo esses atinjam certa intensidade; especialmente em toda emoção mais forte, ainda que seja de natureza dolorosa. As excitações oriundas de todas essas fontes ainda não se conjugariam, cada uma perseguiria isoladamente sua meta, que é apenas a obtenção de determinado prazer. Portanto, o instinto sexual, na infância, não seria centrado, e seria primeiramente sem objeto, autoerótico. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 157-158) À essa característica autoerótica da sexualidade infantil, Freud denominou narcisismo primário, período em que o próprio corpo da criança é tomado de um investimento libidinal preponderante, e, dentre as “condições especiais” para que se dê a sensação de prazer numa dada zona erógena, à título de exemplo, Freud elenca o caráter rítmico da estimulação, sinalizando para o fato de que “a produção da sensação de prazer depende mais da qualidade do estímulo que da natureza da parte do corpo” (Freud, [1901-1905], 2016, p. 88). Assim, Freud vai traçando o esboço de uma sexualidade humana calcada no desenvolvimento infantil, e dotada de propriedades essencialmente perverso-polimórficas, dado que a criança, sob a influência da sedução, possa [...] ser induzida a todas as extensões possíveis. Isso mostra que ela é constitucionalmente apta para isso; a realização encontra poucas resistências, porque as barragens psíquicas para extensões sexuais - vergonha, nojo e moral - ainda não foram erguidas ou se acham em construção, segundo a idade da criança. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 98) Essa disposição, ao que parece, perdura, ou seja, mesmo depois de erigidas e consolidadas as “barragens psíquicas” que Freud se refere, as extensões sexuais são um traço bastante distinto da atividade sexual humana, pois encontramos na vida comum das pessoas, práticas sexuais que não condizem com a finalidade reprodutiva do ato sexual tal como ele é biologicamente determinado. Encontramos as práticas de sexo oral, anal, masturbação, sadismo, masoquismo, exibicionismo e voyerismo, fetichismo e, no entanto, nenhuma delas tem como finalidade última a reprodução propriamente dita. Muitas vezes, essas práticas dispensam a união entre os sexos. (Furtado; Vieira, 2014, p. 96) A pluralidade da sexualidade humana, das possibilidades de obtenção de prazer que se insinuam para nossa espécie transpõe as configurações naturais de tal maneira ao ponto de se transfigurar, por um deslocamento simbólico, em modalidades e tipos de gozos absolutamente discrepantes de quaisquer finalidades, digamos, reprodutivas. Essa plasticidade do comportamento sexual humano tem sua gênese nessa disposição. Seguindo essa forma de pensar, Freud mostrou que a sexualidade humana possui variações consideráveis nas suas necessidades, as quais tornam o homem um ser completamente diferente 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 11/15 dos outros animais. Chega, então, à conclusão de que esses elementos que constituem a vida sexual adulta, que dizem respeito também à obtenção de prazer em outras partes do corpo diferentes dos genitais, encontramo-los facilmente na vida das crianças. Certas partes do corpo que são fontes de prazer e de estimulação começam a atuar na criança desde seus primeiros momentos de vida e depois acabam se organizando para compor a função sexual propriamente dita. (Furtado; Vieira, 2014, p. 96) Essa organização, como veremos, não é sinônimo de superação das fases anteriores, na realidade, ela assume uma configuração sempre muito complexa e subjetiva, em que as pulsões parciais são recalcadas e a primazia das zonas erógenas genitais sobrevêm direcionadas para o objeto sexual propriamente dito, sem, contudo, nunca superar completamente as marcas que o circuito pulsional infantil experimentou, bem como sua origem autoerótica. TEMA 5 – O COMPLEXO DE ÉDIPO Dentre as vivências estruturantes experimentadas ao longo do desenvolvimento infantil que a psicanálise se ocupou está o Complexo de Édipo, extraído por Freud da tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles (496-406 a.C.). A condição de desamparo e dependência do enfant (aquele que não fala), promove essa relação quase simbiótica com o cuidador, em geral, a mãe. Ela o amamenta enquanto o olha com ternura, acaricia enquanto o limpa, erogenizando partes de seu corpo, cuidando para que não lhe falte alimento nem amor. Na fase fálica, que veremos em conteúdo posterior, a diferença sexual entre meninos e meninas se acentua, e as teorias sexuais infantis são criadas para dar conta desse tabu sobre o qual os adultos não falam muito. Muitas respostas –– teorias sexuais infantis –– podem ser elaboradas pela criança objetivando justificar a ausência do traço masculino encarnado pelo pênis nas mulheres. Pode-se pensar que esse órgão ainda vai crescer; que essas pessoas podem ter sido castradas porque continuaram sua prática masturbatória etc. Entretanto, acreditam ainda que sua mãe, “a pessoa mais respeitável do mundo”, ainda possui aquele atributo fálico. (Furtado; Vieira, 2014, p. 102) O papel paterno é justamente o de intervir nessa presença da mãe, permeando-a e dialetizando- a. Ora a mãe estará, ora não estará, e quando não estiver, onde estaria ela? Muito provavelmente 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/12/15 atrás de algum atributo do pai, ou de qualquer outra pessoa ou coisa que lhe falte, para além do filho. Essa opinião começa a ruir quando o garoto percebe que sua mãe também é diferente, que lhe falta algo muito importante. Então, quando se verifica a diferença sexual da própria mãe, o garoto vive um momento de angústia, pois, na sua fantasia, percebe que a castração é possível e que inclusive sua mãe foi vítima! Esse momento traumático para o garoto é conhecido como Complexo de castração. O que resta ao menino é ter que obedecer às ameaças de seu pai, rival e detentor do amor da mãe, para que possa continuar ileso com relação a seu membro tão valioso. Neste momento, o pai mostra-se detentor de atributos que justificam as idas e vindas da mãe. O pequeno Édipo encontra em seu pai o responsável por sua mãe se atrasar e desejar outras coisas que não ele mesmo. Essas características, esses atributos que justificam e explicam para a criança as ausências da mãe, denominamos falo. São assim chamadas por constituírem representações substitutas desse pênis que falta à mãe e que ela vai buscar em outras pessoas ou objetos. Falo é o conceito psicanalítico que indica a representação da falta e que permite a dialetização das relações do sujeito com o Outro. (Furtado; Vieira, 2014, p. 102-103) Essa seria a matriz da constituição psíquica masculina, que se daria sob a forma de uma ameaça castradora, ameaça essa que “constitui uma lei enunciada pelo pai e custará sua entrada na cultura, na vida em sociedade com todas as suas normas e proibições” (Furtado; Vieira, 2014, p. 103). Dentre as fantasias femininas frente à angústia de castração, Freud insiste no mesmo complexo de Édipo apenas distinguindo a “saída” feminina do conflito. Essa saída se dá por meio de um processo mais complexo e obscuro, e tal fato o faz referir-se à feminilidade como um continente negro. A menina também mantém seus desejos relacionados à mãe, mantém práticas masturbatórias e atribui universalmente seu órgão (clitóris) a todos. Quando percebe a existência de um traço/órgão (pênis) que lhe falta, inicia sua pesquisa e cria também suas teorias. Supõe que sua mãe também é detentora desse órgão, tal como seu pai, seu irmão ou outro representante do sexo masculino. Pode achar inclusive que seu órgão também vai crescer. Contudo, suas esperanças caem por terra quando percebe que sua mãe também é castrada. Daí atribui à própria mãe a culpa de sua castração. Para compensar esse pênis que falta à mãe, vai buscar no pai tal objeto tão intenso de prazer e interesse. (Furtado; Vieira, 2014, p. 103) As referências a essa relação de concorrência com a mãe não são raras nos contos de fadas e tampouco nos casos clínicos que atendemos nos consultórios, e é uma fonte de angústia e de ambivalência também das meninas para com suas mães. NA PRÁTICA 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 13/15 A infância sempre existiu como é? Como se iniciaram os estudos sobre as crianças? A sexualidade inicia-se apenas com a puberdade e está ausente nas crianças? Ora, nem a infância foi sempre vista como hoje nem as outras idades do ciclo vital também não o são, haja vista que diferentes culturas concebem significações diferentes para idosos, crianças e adultos em diferentes espaços do tempo. Mas a infância como um período específico de desenvolvimento começou a ser percebida há pouco mais de 300 anos, desde que os moralistas do século XVII se interessaram pela sua educação moral, pois as manifestações sexuais infantis não só existiam, como existem ainda hoje, e sem o pudor do adulto. FINALIZANDO Vimos que a noção de infância como um período sensível do desenvolvimento é coisa recente em termos de história, que era praticamente inexistente na Idade Média, tempo em que as crianças, tão logo desmamavam, já eram incorporadas às atividades adultas sem maiores discriminações. Os índices de mortalidade infantil astronômicos da Europa medieval vitimavam grande parte das crianças logo nos primeiros anos de vida, o que desencadeou um sentimento de fugacidade em relação aos pequenos. Suas representações no campo das artes o atestam, conforme nos mostra Phillipe Ariès, que foi gradual e penoso o percurso até que se desenvolvesse, no seio das sociedades europeias, um primeiro sentimento, como o autor denomina a tomada de consciência a respeito da infância. O primeiro “sentimento”, segundo Ariès, foi o de “paparicação”, em que se ocupar com as gracinhas das crianças era divertido para seus pais, objeto de deleite. Foi progressivamente que esse sentimento se estendeu das relações privadas com as amas e cuidadoras mais imediatas para a sociedade mais ampla. Essa atitude para com as crianças despertou uma reação dentre os moralistas e educadores do século XVI e mais especificamente no século XVII. Um sentimento de “exasperação” emerge dessa primeira atitude em relação às crianças e, aliado aos ideais cristãos de educar e salvar a alma das crianças, floresce finalmente um interesse psicológico e uma preocupação moral. 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 14/15 Ainda na época de Freud eram grandes as resistências em relação ao estudo minucioso sobre a infância, e o pudor da sociedade vitoriana lançava muitas sombras sobre esse período do desenvolvimento humano. Freud foi bastante revolucionário ao combater a hipocrisia da sociedade europeia e a ignorância que dela resultava, a respeito da infância e da sexualidade infantil. Relacionou esse desinteresse pela infância, bem como a característica amnésia, que acomete a grande maioria das pessoas acerca de sua própria infância, com o mecanismo psicológico do recalque. A infância seria particularmente sensível às impossibilidades de satisfação das pulsões parciais e suas fantasias. Vimos que Freud elenca, nas manifestações sexuais infantis, algumas características, como o fato de que elas nascem apoiando-se nas funções vitais do corpo, não têm objeto sexual, são autoeróticas, e sua meta sexual é dominada por zonas erógenas. Essa configuração das pulsões parciais determina a constituição sexual da criança, transcorrido o processo de desenvolvido da libido, e resulta em uma sexualidade polimorficamente-perversa, ou seja, propensa a um cem número de possibilidades por meio de deslizamentos e da história do sujeito na sua relação com o outro. Por fim, estudamos o Complexo de Édipo, conflito vivido pelas crianças em relação à diferença sexual na relação com seus pais, e as saídas diferentes para os meninos e meninas. REFERÊNCIAS CELES, L. A. M.; VIANA, T. de C.; ZAVARONI, D. de M. L. A constituição do infantil na obra de Freud. Estudos de Psicologia, 2007, 12(1), p. 65-70. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/epsic/a/ THrZvYF8GzLyy7XRDk7BPSp/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 17 nov. 2021. FREUD, S. Obras completas, volume 6: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria ("O caso Dora") e outros textos (I90I-190S) I Sigmund Freud. Tradução de Paulo César de Souza. 11. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. FURTADO, L. A. R.; VIEIRA, C. A. L. A psicanálise a as fases da organização da libido. Scientia, v. 2, n. 4, p. 92-107. Disponível em: <http://www.faculdade.flucianofeijao.com.br/site_novo/scientia/servico/pdfs/ 28/12/2022 17:17 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 15/15 Scientia_4/Psicologia/A_PSICANALISE_E_AS_FASES_DA_ORGANIZACAO_DA_LIBIDO_Luis_Achiller_Rodri gues_Furtado_Camilla_Araujo_Lopes_Vieira.pdf >. Acesso em: 22 dez. 2021. 28/12/2022 17:18 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 1/14 DESENVOLVIMENTO HUMANO AULA 3 28/12/2022 17:18 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 2/14 Prof. Cassio Gonçalves de Azevedo CONVERSA INICIAL Vimos anteriormente algumas características dos elementos e processos incutidos no desenvolvimento psicossexualque participam na estruturação da personalidade, como o recalque e o complexo de Édipo, bem como algumas características das pulsões parciais que compõem a libido. Nesta aula, detalharemos as fases do dito desenvolvimento psicossexual, ressaltando primeiro um traço bastante distinto da teoria das fases freudiana, sua sobreposição, para destacar a complexidade inerente à metapsicologia freudiana no que diz respeito ao desenvolvimento da personalidade e a constituição da subjetividade. Exploraremos a fase oral, anal, fálica, de latência e genital, para, ao final, na sessão “Na prática”, apresentarmos um caso concreto em que o arcabouço teórico e metodológico produzido pela clínica e pesquisa em psicanálise se mostra imprescindível para a sua compreensão. TEMA 1 – AS FASES DO DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL Conforme já vimos, o desenvolvimento psicossexual não é linearmente progressivo, mas complexo e dinâmico, além de regressivo, à medida que as fases coexistem e as regressões ao infantilismo das pulsões parciais se verifica em traços da sexualidade normal e patológica. As fases não são superadas nem tampouco o infantil se limita à infância Na elaboração de sua hipótese sobre o desenvolvimento pulsional, Freud (1905/1980) aponta para a marca da sobreposição que se constituirá como característica do processo de subjetivação, em que os modos mais arcaicos do desenvolvimento permanecem presentes, também, na sexualidade do adulto. Assim, o adulto portará para sempre o infantil que o constituiu. As pulsões parciais serão submetidas à ação do recalque e do processo secundário, mas nunca abandonarão seus intentos de retorno ao prazer primordial, agora elaborado teoricamente como fantasia de desejo. (Zavaroni et al., 2007, p. 68) 28/12/2022 17:18 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 3/14 O desenvolvimento psicossexual é o processo por meio do qual a libido (pulsão sexual) se desenvolve atravessada pelos cinco estágios: a fase oral, anal, fálica, de latência e genital. Essa energia tem sua fonte nas zonas erógenas, é uma energia sexual e é o componente da vida psíquica humana. Para Freud, o movimento produzido na alma é causado pela libido, que se encontra distribuída desorganizadamente no corpo da criança e só em um momento posterior encontra uma organização que a orientará na busca da satisfação sexual. (Furtado; Vieira, 2014, p. 97) A psicanálise, entretanto, não é uma teoria desenvolvimentista propriamente dita, ou pelo menos não no sentido tradicional de conceber o desenvolvimento humano em fases que se sucedem. “Não há nenhum tipo de superação ou prolongamento de uma fase na outra” (Furtado; Vieira, 2014, p. 97). Não há cumulatividade de estruturas, tal como acontece na teoria de Jean Piaget (2001), durante o desenvolvimento dos seres humanos. Os estágios da organização da libido para Freud, são aqueles momentos em que certos impulsos relacionados com partes específicas do corpo da criança adquirem privilégio em relação aos outros. Isso não implica que outros impulsos não possam estar atuando ao mesmo tempo ou que os anteriores tenham sido superados e/ou deixado de atuar. (Furtado; Vieira, 2014, p. 97) Esse é, sem dúvida, um traço bastante distinto desse segmento da teoria freudiana no que tange ao desenvolvimento humano. Tanto no que concerne ao desenvolvimento filogenético, em que as fases atravessadas pela humanidade em termos evolutivos não teriam sido superadas, mas coexistiriam com o homem “evoluído”. Assim, também no plano ontogenético, as fases do desenvolvimento não são superadas, ou até mesmo incorporadas pelas fases seguintes, numa concatenação coesa e bem resolvida. Até mesmo a idade cronológica das fases se interpenetram e, mais do que isso, coexistem durante o desenvolvimento subsequente. A pulsão sexual, ou libido, vai sendo balizada pela superposição de fases que passam a coexistir sempre numa relação mediada pelo outro: Apesar de podermos encontrar referências da teoria freudiana sobre sexualidade infantil em inúmeros livros de psicologia do desenvolvimento, podemos afirmar com Freud e outros autores que a psicanálise não é desenvolvimentista. Segundo Freud (1938/1987), as fases da organização libidinal se superpõem umas às outras, não havendo este caráter de superação da fase anterior para se ascender a um estágio mais evolutivo. Trata-se de uma teoria da constituição do sujeito, onde as pulsões parciais são organizadas a partir dos modos de articulação da criança com o Outro. (Furtado; Vieira, 2014, p. 96) 28/12/2022 17:18 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 4/14 Trata-se, no processo de desenvolvimento psicossexual, das vicissitudes que a libido vai sendo exposta, e a conformação subjetiva que vai adotando a partir dessa demarcação. Salientamos que esses impulsos que são originados nas zonas erógenas são denominados de pulsões. Essas pulsões estão situadas na fronteira entre o corpo e a psique dos indivíduos e sempre fazem pressão para obterem satisfação. A satisfação está sempre em parte relacionada ao próprio corpo e em parte aos objetos externos. Elas funcionam independentemente umas das outras e por isso são chamadas de pulsões parciais. Seus objetos podem ser os mais variáveis possíveis e elas podem encontrar diversos tipos de satisfação. Entretanto, a frustração dessas pulsões é que vai determinar como as pessoas se relacionam com os outros e com a cultura. Daí a importância da educação como agente civilizatório, pois é através da educação que a criança passa a tentar ter um domínio sobre esses impulsos, sejam eles sexuais ou agressivos. É através da internalização das diversas proibições dirigidas a esses impulsos que a criança aprende a lidar com seus limites e aprende a conviver em sociedade. (Furtado; Vieira, 2014, p. 100) TEMA 2 – FASES PRÉ-GENITAIS: ORAL E ANAL 2.1 FASE ORAL: DOS 0 AOS 2 ANOS O bebê humano nasce em condições de extrema dependência dos cuidados de outro, e a amamentação desperta suas primeiras e mais significativas experiências de prazer. Pela boca, ele experimenta não apenas o prazer da alimentação e de saciedade, mas o prazer extraído do seio e da própria boca que se tornará, na fase oral, a zona erógena de primazia na sua relação com o mundo e o outro. A criança passa então a explorar o mundo pela via oral, como se a boca se transformasse numa janela para o mundo, e a experimentação a precipita a toda sorte de sabores e dissabores. Com o seio ou o seu substituto, “adquire-se não só a satisfação da fome, mas da vontade de comer. O seio é acompanhado por um conjunto de elementos (voz, olhar, calor, carícia, proteção...) que constituem também suas primeiras relações com a mãe (Outro)” (Furtado; Vieira, 2014, p. 96). Concomitantemente às experiências satisfatórias, a criança experimenta também as idas e vindas da mãe, suas demoras, recusas, e a essas experiências de frustração a criança reage substituindo o seio materno pelo dedo, mão, pé, chupeta etc. Ou seja, a satisfação experimentada ao mamar, segundo Freud, será a matriz de uma satisfação que nela se ampara, porém a ela não se restringe – o chupar. 28/12/2022 17:18 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 5/14 A primeira de tais organizações sexuais pré-genitais é a oral ou, se assim preferirmos, canibal. Nela a atividade sexual ainda não se encontra separada da ingestão de alimentos, correntes opostas ainda não estão diferenciadas em seu interior. O objeto das duas atividades é o mesmo, a meta sexual consiste na incorporação do objeto, no modelo daquilo que depois terá, como identificação, um papel psíquico relevante. Um resíduo dessa fase de organização que a patologia nos leva a supor pode ser o ato de chupar o dedo, no qual a atividade sexual, desprendida da atividade da alimentação, trocou o objeto externo por um do próprio corpo. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 108) Freud define essa atividade de chupar como sendo uma atividade de sugar com deleite: O ato dechupar ou sugar, que aparece já no lactente e pode prosseguir até o fim do desenvolvimento ou se conservar por toda a vida, consiste na sucção, repetida de maneira rítmica, com a boca (os lábios), sem a finalidade da alimentação. São tomados como objeto da sucção uma parte do próprio lábio, a língua ou qualquer outro local da pele que esteja ao alcance – até mesmo o dedão do pé. Nisso aparece um instinto de agarrar que se manifesta, digamos, no ato de puxar simultaneamente, de forma rítmica, o lobo da orelha, podendo recorrer a uma parte do corpo de outra pessoa (em geral a orelha) para o mesmo fim. A sucção deleitosa absorve completamente a atenção, e conduz ao adormecimento ou, inclusive, a uma reação motora da natureza de um orgasmo. Não é raro que a sucção deleitosa seja combinada com a fricção de algumas partes sensíveis do corpo, como o peito ou os genitais externos. Por essa via, muitas crianças passam da sucção à masturbação. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 82-83) Essa atividade de chupar, de obter satisfação com a boca, “sem a finalidade da alimentação” se estende do seio para outros membros e destes para os objetos do mundo sensível, constituindo-se como uma verdadeira primeira via de experimentação e conhecimento do mundo externo para a criança que, inadvertidamente, leva a boca praticamente tudo que esteja ao seu alcance. Quem vê uma criança largar satisfeita o peito da mãe e adormecer, com faces rosadas e um sorriso feliz, tem que dizer que essa imagem é exemplar para a expressão da satisfação sexual na vida posterior. Então a necessidade de repetir a satisfação sexual se separa da necessidade de nutrição, uma necessidade que é inevitável, quando os dentes aparecem e a alimentação não é mais exclusivamente sugada, e sim mastigada. A criança não se utiliza de um objeto exterior para sugar, mas sim de uma área da própria pele, porque isso lhe é mais cômodo, porque assim independe do mundo externo que ainda não consegue dominar, e por que dessa maneira cria praticamente uma segunda zona erógena, embora de valor menor. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 86) Essa experiência autoerótica irá aos poucos se deslocando para os objetos do mundo sensível e possibilitando os primeiros traços de divisão entre o sujeito e os objetos, entre o eu e o não eu: Outro elemento importante para ser destacado nesta fase oral da vida sexual infantil é que a primeira relação com os objetos é marcada pela oposição dentro-fora. Todos aqueles objetos que 28/12/2022 17:18 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 6/14 se mostram agradáveis são incorporados pela criança e os desagradáveis são expulsos [...] Nos termos freudianos, os objetos de satisfação são incorporados ao eu e aqueles desagradáveis são expulsos, ou seja, a relação do sujeito com o mundo é marcada pela oposição entre o eu e o não eu (mundo dos objetos não agradáveis. (Furtado; Vieira, 2014, p. 98) Um comportamento que emerge a partir dessa relação mediada pela boca entre o eu e o não eu, o sujeito e os objetos, é o de agressividade. A criança satisfaz sua pulsão oral com a compressão dos músculos da mandíbula naquilo que se chamou de fase “oral-sádica”, em que se pode observar o impulso de incorporação dos objetos associado ao impulso agressivo de destruição desse mesmo objeto (Furtado; Vieira, 2014, p. 98). A satisfação oral não será mais abandonada e muitas serão as possibilidades de extração de satisfação da boca, por exemplo, o beijo. Nesse caso, a pulsão parcial oral se satisfaz conjugada às demonstrações de afeto e, no adulto, bastante atrelada ao ato sexual dirigido. Porém, a pulsão oral pode levar a outras experiências de satisfação não tão bem incorporadas ao comportamento sexual adulto considerado normal. À fase oral, segue-se uma segunda fase do desenvolvimento, proveniente de uma segunda zona erógena: O asseio do corpo infantil e as exigências culturais de higiene corporal também não acontecem sem que adquiram importância para a criança, pois, afinal, outras partes do corpo entram em jogo. Agora, uma modificação se impõe. Não é mais a criança que dirige um apelo a mãe, mas ao contrário. É uma outra pessoa que dirige um pedido à criança para que ela regularize suas funções excretórias. Inicia-se, então, a educação para o controle dos esfíncteres e a criança passa a ter um papel ativo na relação com os seus novos objetos de prazer: as fezes. (Furtado; Vieira, 2014, p. 99) 2.2 FASE ANAL: DE 1 A 3 ANOS O segundo estágio do desenvolvimento psicossexual proposto por Freud é o anal, podendo ser observado entre o primeiro e o terceiro ano de vida. Trata-se do momento em que o ânus assume a primazia de zona erógena das pulsões parciais. Assim como a boca, o ânus é o tipo de zona dita como predestinada, por Freud: a localização da zona anal a torna adequada para favorecer um apoio da sexualidade em outras funções do corpo. É de se presumir que a significação erógena dessa parte do corpo é muito grande originalmente. Através da psicanálise tomamos conhecimento, não sem alguma surpresa, das transformações normalmente experimentadas pelas excitações sexuais que dela partem, e 28/12/2022 17:18 UNINTER https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 7/14 como frequentemente essa zona mantém, por toda a vida, um grau considerável de suscetibilidade à estimulação genital. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 91) As transformações que Freud se refere serão dadas a partir das significações que irão adquirir ao ter essa relação com seu excremento mediada pelo outros. As crianças que utilizam a excitabilidade erógena da zona anal se revelam no fato de reter a massa fecal até que esta, acumulando-se, provoque fortes contrações musculares e, na passagem pelo ânus, exerça um grande estímulo na mucosa. Isso deve produzir, juntamente com a sensação de dor, uma sensação de volúpia. Um dos melhores indícios de futura estranheza ou nervosismo ocorre quando um bebê se recusa obstinadamente a evacuar o intestino ao ser posto sobre o vaso, ou seja, no momento desejado pela pessoa que dele cuida, e reserva essa função para quando ele próprio desejar. O que lhe importa, naturalmente, não é sujar o berço; ele apenas cuida para que não lhe escape o prazer secundário ligado à defecação. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 91-92) As estimulações orgânicas, as quais Freud se refere no parágrafo anterior, estão presentes desde o início da vida da criança, porém a zona anal assume a primazia de zona erógena posteriormente devido a um fato novo. O principal evento que marca essa segunda etapa do desenvolvimento psicossexual da criança é a inversão na relação do sujeito com o outro. Os adultos agora passam a demandar que a criança faça cocô nos lugares, com horas certas, e domine, assim, o controle de seus esfíncteres. Esse treinamento envolve a expressão de aprovação ou não dos pais, e, consequentemente, confere algum valor à massa fecal na manipulação do desejo dos pais O conteúdo intestinal, sendo um corpo que estimula uma área de mucosa sexualmente sensível, [...] constitui o primeiro "presente": através da liberação ou da retenção dele, o pequeno ser pode exprimir docilidade ou desobediência ante as pessoas ao seu redor. A partir do significado de "presente", ganha posteriormente o de "bebê", que, segundo uma das teorias sexuais infantis [...] é obtido pela alimentação e nasce pelo intestino. (Freud, [1901-1905], 2016, p. 92) Ao presumir a grande significação dessa parte do corpo, Freud aponta para as transformações as quais serão submetidos os processos escatológicos, assumindo diferentes significações ao longo do desenvolvimento posterior do sujeito. A ligação que esta fase tem com a sexualidade adulta não encontra dificuldades de compreensão quando admitimos que o ânus assume o papel de um órgão sexual. Outras práticas sexuais relacionadas às fezes são conhecidas pela vida íntima de algumas pessoas (coprofilia, p.ex.), entretanto estas práticas constituem variações específicas da vida sexual
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