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Trabalho a ser apresentado no XXVIII Encontro anual da ANPOCS Seminário temático: Qualidade da democracia 2ª Sessão: Constitucionalismo, política e direito Os direitos políticos no Estado democrático de direito Autora: Daniela Romanelli da Silva Agosto/2004 Os direitos políticos no Estado democrático de direito1 Autora: Daniela Romanelli da Silva 1. Introdução. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 anunciava que as pessoas tinham direitos individuais, esferas de liberdade que as habilitavam a agir, independentemente da intervenção do Estado. Proclamava ainda que os homens, como membros de uma coletividade, tinham o direito de participar do exercício do poder político. Por isso, nos termos do artigo 6º, todos os cidadãos teriam o direito de concorrer, pessoalmente ou por meio de mandatários, para a formação da leis.2 Essa cisão entre direitos inerentes ao homem isolado e direitos conferidos aos homens como membros de uma sociedade política ingressou nas constituições liberais e permaneceu presente nas constituições sociais, mesmo que quase não tenha sido objeto de estudos e reflexão. Os direitos individuais, direitos civis, liberdades públicas, direitos de liberdade ou direitos negativos referiam-se, todos eles, à esfera de liberdade que todo ser humano detém independentemente de sua nacionalidade. Nessa esfera de liberdade, o Estado não pode intervir.3 Os direitos do cidadão, direitos políticos, liberdades de participação não eram atribuídos a todos os seres humanos, mas apenas àqueles que tinham um vínculo especial com o Estado. Tal vínculo os qualificava a participar da vida política do Estado.4 Hannah Arendt aponta a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão como um marco decisivo na história, pois significava, pela primeira vez, o reconhecimento do homem como fonte da lei, independentemente dos comandos de Deus. Arendt chamou atenção para o fato de que os direitos inalienáveis elencados pela Declaração 1 Este texto corresponde ao capítulo 4 de minha tese de doutorado Democracia e Direitos Políticos, defendida na Faculdade de Direito da USP em 18 de fevereiro de 2004, sob a orientação do Professor Doutor Enrique Ricardo Lewandowski.. 2 "Art.6º A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.” 3 Gomes Canotilho, J.J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp.370 e 371. não dependiam de nenhuma autoridade para estabelecê-los, vez que o homem abstrato era a origem e o objetivo último desses direitos. Em face disso, constatava o seguinte paradoxo presente na Declaração: ela se referia a um ser humano abstrato e isolado, que não existia em lugar nenhum, já que todos viviam imersos em uma ordem social. Por isso, os direitos humanos só podiam ser gozados e reconhecidos por aqueles que pertenciam à sociedade política: “Os Direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como “inalienáveis” porque se supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição a garanti-los.”5 Ficou patente o condicionamento entre direitos humanos e pertença a uma sociedade política só a partir de meados do século XX, em face das atrocidades cometidas durante as duas guerras mundiais. Reconheceu-se que os Estados nacionais eram fundamentais para a proteção dos direitos humanos a partir do momento em que grandes contingentes humanos perderam a sua nacionalidade, a sua cidadania e, por isso, viram-se completamente destituídos de todos os seus direitos humanos. Reconheceu-se também a necessidade de uma ordem internacional protetiva dos direitos humanos. Então, em 1945, com a Carta de São Francisco, criou-se a Organização das Nações Unidas. Dentre os objetivos dessa nova organização elencavam-se a promoção, o estímulo e o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. E, em cumprimento às diretrizes da Carta de São Francisco, formulou-se uma declaração de direitos, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Produto de embates ideológicos travados entre países que obedeciam as mais diversas orientações ideológicas, políticas e religiosas, a Declaração acabou por articular os valores da liberdade e da igualdade, o discurso liberal dos direitos civis e políticos e o discurso social dos direitos econômicos e sociais.6 Reconhecendo a dignidade de toda pessoa, a Declaração Universal trata os direitos nela contidos como um ideal comum a ser atingido por todos os povos e nações. Proclama a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos. Por universalidade entende-se que os direitos ali proclamados são inerentes a todos os seres humanos, independentemente do Estado ou da Nação a que pertençam. A indivisibilidade se refere à 4 Gomes Canotilho, J.J., ob.cit. , p.371. 5Arendt, H., Origens do Totalitarismo, pp.325. 6 Arzabe, P.H.M. & Graciano, P.G., “A Declaração Universal dos Direitos Humanos - 50 anos”, p.252. negação de qualquer cisão entre direitos civis, direitos políticos, direitos econômicos, direitos sociais e direitos culturais. Cada um desses conjuntos de direitos proclamados é condição para a existência e efetivação dos demais direitos.7 Com a Declaração Universal, pela primeira vez, colocava-se em evidência a necessidade de criação de uma ordem internacional capaz de proteger os direitos humanos de modo integral. Também pela primeira vez reconhecia-se em um Documento Internacional que todos têm o direito de tomar parte na direção dos negócios públicos, na formação da lei, seja direta ou indiretamente, enfim, que a vontade do povo deveria ser a base do governo. 8 Ao lado desse direito, proclamava-se o dever do Estado de se adequar à vontade do povo.9 A Declaração traz implícita a idéia de que é condição de dignidade a participação do homem no governo de seu país e que esse direito é indissociável dos demais direitos humanos ali elencados. Contudo, os cânones dessa declaração não eram juridicamente exigíveis.10 Apenas em 1949 iniciou-se o processo de juridicização da Declaração Universal dos Direitos, com a elaboração de dois tratados, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Novamente, a questão da divisibilidade/indivisibilidade dos direitos voltou à baila. Sob o argumento de que os direitos civis e políticos eram auto-aplicáveis e os direitos econômicos, sociais e culturais dependiam de implementação progressiva, os países ocidentais desenvolvidos propugnaram a elaboração de dois pactos. Os países socialistas e os países em desenvolvimento, ao contrário, defendiam a elaboração de um único pacto, a fim de respeitar o espírito da Declaração Universal.11 7 Assim, por exemplo, os direitos políticos não se efetivam plenamente sem a existência dos direitos econômicos e sociais que se encarregam de produzir as condições de igualdade para a participação política. Do mesmo modo, os direitos políticos não cumprem a sua função se não houver liberdade de expressão e de associação. 8 Art.21 “1. Todo homem tem o direitode tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Todo homem tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade do voto.” Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas a 10-12-1948. in Marotta Rangel, V. Direito e relações internacionais, p.649, 650. 9 Verdoodt, A., Naissance et signification de la Déclaration Universel des Droits de L´homme, pp.202 e 208. 10 Lewandowski, E.R.. Proteção dos direitos humanos na ordem interna e internacional, p.91. 11 Pechota, V., “The development of the Covenant on Civil and Political Rights”, pp.41-42. Foram elaborados dois pactos que, concluídos em 1966, transformaram os dispositivos da Declaração em preceitos juridicamente vinculantes e obrigatórios para os países signatários.12 O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos especificou o direito de todo cidadão participar da condução dos assuntos públicos diretamente ou por meio de seus representantes, de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto e, finalmente, o direito de todo cidadão ter acesso, em condições de igualdade, às funções públicas de seu país.13 Depois desse Pacto, vieram outros, como, por exemplo, a Convenção Americana sobre direitos humanos, com o intuito de proteger de modo integral os direitos humanos em diferentes áreas do globo terrestre. Em todos os Pactos, os direitos políticos figuravam, ao lado dos demais direitos, como condição para o pleno desenvolvimento humano. Todo o processo de criação de um sistema de proteção internacional para os direitos humanos, iniciado em meados do século XX, evidencia que eles são indissociáveis, que o ser humano deve ser protegido em todas as suas dimensões individual, política, social, econômica e cultural. Mais, que o processo de criação de direitos é constante. Na medida em que as sociedades se alteram, criam-se novas carências para as pessoas que aí vivem, bem como a necessidade de novos direitos. Os novos direitos agregam-se aos pré- existentes, mas não os substituem, pois cada conjunto de direitos possui especificidades. Cada conjunto de direitos possui as suas especificidades e é capaz de proteger uma dimensão particular da vida humana. Por isso, apesar de serem indivisíveis os direitos humanos, justifica-se o seu fracionamento, quando de seu exame. A separação dos direitos e o estudo de cada conjunto de direitos isoladamente é um recurso analítico para o melhor conhecimento das diferentes dimensões que formam os direitos humanos. O estudo dos direitos políticos dissociadamente de outros direitos humanos tem o escopo de elucidar qual é o significado desse conjunto de direitos que 12 Lewandowski, E. R.. ob.cit., pp.91, 92; Piovesan, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, pp.162, 176. 13 “Art.25. Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no art.2º e sem restrições infundadas: a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos; b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores; c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.” Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos, adotado pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 16-12.1966.. Passou a vigorar a partir de 23-1-1975. in Marotta Rangel, V.ob.cit., p.692. viabiliza a existência da democracia nos Estados contemporâneos e, sem os quais, todos os demais direitos ficam ameaçados. Argumenta-se que os direitos políticos são condições de existência de um Estado democrático constitucional, visto que são os únicos direitos que permitem ao conjunto dos cidadãos não apenas o direito de falar, de manifestar a sua vontade, mas também o direito de ser ouvido e de subordinar o funcionamento do Estado à vontade de uma pluralidade de pessoas titulares desses direitos. Assim, a peculiaridade dos direitos políticos reside no poder que eles atribuem aos cidadãos para imprimir a sua vontade coletiva ao Estado, condicionando de modo direto ou indireto o seu funcionamento. Todos os direitos políticos e cada um deles se referem, de alguma forma, à capacidade de formação de vontades coletivas que poderão impor-se ao Estado. Procurar-se-á aqui analisar o significado dos direitos políticos, a partir da demonstração de suas peculiaridades. A compreensão dos direitos políticos e de sua indissociabilidade com a democracia é tanto mais importante em tempos de globalização, em que se propaga, incansavelmente, a perda da força dos Estados nacionais e o deslocamento dos centros decisórios para outras instâncias. 2. O que são direitos. Há grande dificuldade para a elaboração de uma definição de direito, pois que toda definição pressupõe a apreensão da essência do objeto. Como o direito abrange uma vasta gama de situações que autorizam as pessoas a agir ou deixar de agir, torna-se ainda mais difícil apreender a sua essência. Diferentes definições, formuladas pelos mais diversos autores, provenientes das mais variadas orientações teóricas, têm sido elaboradas para dar conta do significado do direito. Kelsen trata o direito como a proteção jurídica de um interesse conferida pelo legislador ao elaborar uma lei.14 O que caracteriza o direito para esse autor é um tipo específico de proteção dada pelo legislador contra a intervenção do Estado ou de qualquer outra pessoa no domínio desses interesses. Para H.L.A. Hart, o conceito de direito está relacionado com a possibilidade de determinar quando a liberdade de uma pessoa poderá ser restringida pela de 14 Kelsen, H., Teoria Geral do Direito e do Estado, p.84. outrem, por meio de normas jurídicas coercitivas.15 A proteção de um interesse relevante para a manutenção da sociedade, em geral, requer a restrição de alguns direitos. E essa restrição, para fins de preservação da sociedade, implica na redistribuição de alguns bens usufruídos ou passíveis de serem desfrutados de um modo inadequado. Analisando o direito a partir de uma perspectiva diferente daquela adotada por Kelsen e por Hart e não enfatizando tanto as normas jurídicas, Dworkin afirma que os direitos são cruciais para a proteção da dignidade humana, para a garantia de igualdade e de todos aqueles valores que ajudam a caracterizar a vida humana.16 A fim de demonstrar a relevância do direito, Dworkin deixa claro que é o direito que confere humanidade às pessoas e assevera que a transgressão de um direito é algo extremamente grave.17 E é tanto mais grave porque significa considerar um homem como menos do que um homem. Então, o desrespeito a um direito retira do ser humano parte de sua humanidade, que é definida por sua dignidade e pelo conjunto de valores que rege a vida dos membros de uma determinada sociedade. Plotke define o direito como conjunto de proibições contra interferências. Tais proibições se apresentam como tipos específicos de acordos sobre os termos das ações coletivas e só adquirem força enquanto integrantes de uma rede de relações políticas e sociais.18 Uma outra concepção de direito é apresentada por Waldron para quem os direitos são os limites estabelecidos pela sociedade para as perdas e para os danos aos quais pessoas e grupos de pessoas podem ser submetidos.Ao demarcar limites, os direitos determinam que há certas perdas e certos prejuízos que não podem ser impostos aos seres humanos. Termina esse autor com dizer que os direitos estabelecem também limites para os fins que as pessoas podem perseguir, bem como para os meios adotados na atividade política.19 Em suma, os direitos limitam os fins e os meios dos indivíduos e dos grupos, para evitar que grandes perdas possam ser impostas às pessoas. Há alguns elementos comuns a todas essas concepções de direito. Todas elas sustentam, seja de modo direto, seja de modo indireto, que direitos são proteções dos interesses e dos bens, proteções que existem graças à particular importância desses bens e interesses para a manutenção da sociedade e de seus membros. Ademais, essas definições 15 Hart, H.L.A:, “Are there any natural rights?”, p.79. 16 Dworkin, R.. Taking rights seriously, p.199. 17 Dworkin, R.. ob.cit., p.199. 18 Plotke, David, “Democracy and rights: Americans problems in comparative context”. 19 Waldron, J., "Rights and majorities: Rousseau revisited”, p.53. também compartilham da idéia de que a existência de direitos depende de acordos a respeito dos interesses mais importantes para os integrantes da sociedade. As definições de Dworkin, de Plotke e de Waldron vão, contudo, um pouco além das definições de Kelsen e Hart, ao tratarem da razão de ser dos direitos. Segundo se infere do pensamento de Dworkin, o objetivo dos direitos é colocar em evidência as características humanas e protegê-las nos seus mais variados aspectos. A finalidade dos direitos é defender o indivíduo e todas as conquistas humanas que são relevantes para a manutenção de sua integridade física e moral em um determinado momento histórico. Nesse sentido, os direitos não são apenas aqueles modos de proteção da integridade pessoal. São também proteções de certas posições e de certas prerrogativas historicamente conquistadas, que atribuem mais valores aos seres humanos e os tornam dignos de um tratamento respeitoso. De acordo com as idéias de Plotke, a possibilidade de existência dos direitos e a sua razão de ser derivam da capacidade humana de viver conjuntamente. Os direitos existem porque as pessoas podem fazer acordos a respeito dos termos de suas ações, porque elas podem chegar a um entendimento sobre as áreas que não devem receber qualquer interferência. Os direitos adquirem força, então, graças à rede de relações políticas e sociais em que estão imersos. Para Waldron, remanesce evidente que o objetivo dos direitos é proteger os indivíduos de perdas graves e evitar que os seres humanos sejam alijados daqueles bens que lhes conferem humanidade. O objetivo do direito é evitar que um indivíduo subjugue outro física ou moralmente. Levando em consideração todas essas concepções de direitos, é possível tratá-los como normas jurídicas coercitivas destinadas à proteção de bens e interesses essenciais aos seres humanos e a todo o patrimônio histórico conquistado pela sociedade onde vivem. Depende da história, da tradição e da decisão de cada sociedade a determinação do conteúdo dos bens e dos interesses protegidos. A proteção desses bens e interesses qualifica os indivíduos para agir ou deixar de agir em algumas situações específicas, porquanto os direitos são acordos que adquirem força não apenas devido às normas jurídicas que os definem, mas também devido à rede de relações políticas e sociais que sustenta e confere sentido à existência desses direitos. É em função dessa rede de relações políticas e sociais que se reconhece a necessidade de criar um novo direito ou de redefinir os antigos. 3. Os direitos políticos.20 Direitos políticos são definidos como direito de participação dos cidadãos no governo, na administração e na justiça.21 Ou, simplesmente, como direitos que facultam a participação dos cidadãos no poder do Estado.22 Participar significa tão somente tomar parte, associar-se pelo pensamento ou pelo sentimento.23 Tal sentido do vocábulo, portanto, não esclarece a essência dos direitos políticos, pois que não informa exatamente qual é a importância da vontade do titular do direito político para o funcionamento do Estado. A expressão participar só começa a dar conta do conteúdo dos direitos políticos se significar aquele processo em que cada pessoa dispõe do mesmo poder que as outras de determinar o resultado final das decisões.24 Em uma democracia, os direitos políticos se referem sempre ao poder igual atribuído aos membros de uma comunidade política de formar periodicamente a sua vontade coletiva e impô-la ao Estado, de tal modo que essa vontade seja indispensável para o funcionamento do Estado.25 20 A teoria da escolha racional parte do pressuposto de que as pessoas agem sempre levando em consideração aquilo que gerará os melhores resultados para si. Procuram sempre maximizar riqueza ou votos. Tal teoria visa, portanto, explicar o comportamento humano. Cf. Ester, J., Peças e engrenagens das ciências sociais. A ênfase dessa teoria é, principalmente, nas escolhas de indivíduos racionais e estratégicos, que fazem escolhas dentro de determinados parâmetros, para obter os fins desejados. Cf. Shepsle, K.A., "Studying insitutions: some lessons from the rational choice approach", p.280. As instituições são importantes para essa teoria porquanto colocam as pessoas em situações sociais. As instituições são a cola social, aquilo que une os indivíduos e, nessa medida, ajuda a condicionar suas escolhas. A teoria da escolha racional não será utilizada para o estudo dos direitos políticos, porquanto não se tem por objetivo aqui entender o comportamento humano, nem investigar as razões que levam as pessoas a exercer ou não os direitos políticos. O objetivo deste capítulo é tão somente pesquisar a natureza dos direitos políticos e defini-los, buscando saber quais os elementos que os distinguem dos demais direitos fundamentais. 21 Ésmein, A.. Elements de Droit Constitutionnel, p.587, vol.I. 22 Sanchez Agesta, Sistema político de la Constitución española de 1978, p.150. 23 verbete participar in Novo Dicionário Aurélio. 24 Pateman, C.. Participação e Teoria democrática., p.98. 25 O título IV da Constituição italiana denomina-se "Direitos Políticos" e define nos artigos 48 até o 54 os direitos políticos. A Constituição Suíça, em seu artigo 34 afirma que os direitos políticos são garantidos na Suíça e que eles protegem a livre formação da opinião dos cidadãos e das cidadãs e a expressão fiel e certa de sua vontade: “Art.34. Droits politiques 1. Les droits politiques sont garantis. 2. La garantie des droits politiques protège la libre formation de l’opinion des citoyens et des citoyennes et l’expression fidèle et sûre de leur volonté.” Mais adiante, no art. 136 da mesma Constituição, o legislador constituinte suíço define quem poderá exercer os direitos políticos bem como quais são esses direitos políticos: “Art.136. Droits politiques 1. Tous les Suisses et toutes les Suissesses ayant 18 ans révolus qui ne sont pas interdis pour cause de maladie mentale ou de faiblesse d’esprit ont les droits politiques en matière fédérale. Tous ont les mêmes droits et devoirs politiques. 2. Ils peuvent prendre part à l’élection du Conseil national ei aux votations fédérales et lancer et signer des initiatives populaires et des demandes de référendum en matière fédérale.” O capítulo IV da Constituição Brasileira "Dos Direitos Políticos" no artigo 14, prescreve: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante: I- plebiscito II- referendo III- iniciativa popular” constituições in CONSTITUIÇÕES. Université de Génève, Centre d' études et de documentation sur la democratie directe: http://c2d.unige.chTomando-se como referência a definição de direito, acima proposta, é possível afirmar, preliminarmente, que direitos políticos são normas jurídicas coercitivas que protegem o processo de formação da vontade coletiva que se imporá ao Estado e condicionará o seu funcionamento. A vontade coletiva e o condicionamento do funcionamento do Estado por essa vontade são os bens protegidos pelos direitos políticos. O processo de formação da vontade coletiva envolve ou pode envolver um conjunto de operações, dependendo da constituição. Diz respeito necessariamente à aptidão dos membros do corpo político de escolher representantes. Em algumas constituições refere-se ao poder dos cidadãos de emitir a sua vontade acerca de determinado assunto para compor a vontade coletiva. No primeiro caso, a escolha de representantes, o conjunto dos cidadãos outorga poder aos eleitos para que elaborem as leis. No segundo caso, a emissão da vontade acerca de determinado assunto, os membros do corpo político decidem diretamente o conteúdo de alguma questão que deverá ser adotada pelo governo. Mas a capacidade de compor a vontade coletiva envolve também todo o processo de organização da sociedade em torno de idéias e de projetos políticos. Em outros termos, a formação da vontade coletiva abrange um processo de luta pelo poder, de modo que todos aqueles que são capazes de formar a vontade coletiva sejam capazes também de lutar pelo poder ou pelo reconhecimento de seus interesses coletivos. Além disso, a capacidade de compor a vontade coletiva contempla o direito dos cidadãos controlarem os atos dos agentes públicos. A vontade do conjunto dos cidadãos e a subordinação do Estado a ela são os bens protegidos pelos direitos políticos. Mas, a valorização de tais bens é produto do patrimônio histórico de várias sociedades ocidentais que, a partir do século XVIII, foram estruturando o poder político de tal forma que a coletividade pudesse reconhecer a sua vontade como elemento imprescindível para o funcionamento do Estado. Ao longo desse processo de luta pelo reconhecimento da vontade coletiva como base para a atuação do Estado, foi-se dissolvendo a divisão estática e permanente entre dominantes e dominados. Dessa forma, progressivamente, os dominados foram conquistando não apenas o direito de se organizar, de manifestar os seus interesses, mas também o direito de ter a sua vontade coletiva reconhecida como base para a atuação do Estado.26 Exatamente porque os direitos políticos são produto de conquistas históricas de várias sociedades é que há grande variação de uma constituição para outra em relação a quais são eles. 26 Bendix, R., Construção Nacional e cidadania., pp.132-134. Mas, em todos os Estados democráticos, o conteúdo mínimo dos direitos políticos é a outorga de poder para que os cidadãos imprimam, periodicamente, ainda que de forma mediata, a sua vontade coletiva ao funcionamento do Estado. Em outros termos, o conteúdo mínimo dos direitos políticos consiste na capacidade dos membros do corpo político definirem aqueles que comporão os Poderes Legislativo e Executivo. Tal decisão forma a base da autoridade do governo e afeta necessariamente o conteúdo das leis infra- constitucionais e das emendas constitucionais a serem elaboradas pelo poder constituinte derivado, pois determinam a tendência ideológica daqueles que elaborarão as leis. Então, retomando-se a definição de direitos e analisando o que são, afirma-se que os direitos políticos correspondem ao conjunto de normas jurídicas que qualificam os cidadãos a lutar pelo poder, a formar vontades coletivas e a ter essas vontades acolhidas pelo Estado. O exercício de tais direitos evita que os seus titulares sejam submetidos a ordens que não têm como lastro a vontade da coletividade. Esses direitos que conferem ao conjunto dos cidadãos poder decisório são direitos fundamentais.27 Prescritos nas constituições, ficam sempre protegidos de alterações pelo legislador ordinário. Jamais podem ser suprimidos da constituição e, além disso, imprimem limites materiais à revisão da constituição, de modo que dificultam a alteração de instituições com eles relacionadas. Finalmente, o conteúdo dos direitos políticos e o resultado de seu exercício são, literalmente, constitutivos das estruturas básicas do Estado, já que é por meio desses direitos que os órgãos governativos são preenchidos.28 Há mais algumas razões para afirmar que os direitos políticos estão intrinsecamente relacionados com a estrutura básica do Estado democrático. Tais direitos, garantidores do permanente ingresso do poder popular no Estado, são os responsáveis pela efetivação de dois compromissos fundamentais do Estado constitucional, quais sejam, o compromisso com a democracia e o compromisso com a limitação do poder político.29 27 Direitos fundamentais são aqueles direitos que, prescritos na constituição, protegem os valores básicos da sociedade e impõem-se a todas as entidades públicas e privadas. Cf. Miranda, J., Manual de direito constitucional, tomo IV, p.52. 28 Gomes Canotilho, J.J., Direito Constitucional e teoria constitucional., pp.354, 355. 29 As discussões sobre as relações entre democracia e liberalismo são infindáveis. Carl Schmitt, por exemplo, defendia não haver uma ligação intrínseca entre democracia e Estado constitucional. Para ele, a democracia é apenas uma das formas de governo compatíveis com o Estado de direito. Segundo o autor, quando o Estado constitucional está combinado com a democracia, o primeiro modifica as principais características da segunda, a fim de manter a liberdade individual. Dessa forma, para Schmitt, os direitos políticos colaboram para a manutenção dos objetivos do Estado. Por isso, o autor os concebe como direitos do indivíduo isolado, que age tão somente levando em consideração os seus interesses particulares. Cf. Schmitt, C. Teoria de la Constitución, pp.138, 253, 272. Para Habermas, em contrapartida, há complementaridade entre a democracia e o Estado constitucional. A soberania popular é o elemento propulsor do Estado constitucional e o estabelecimento do poder político na forma do direito assegura a implementação pelo Estado dos programas definidos por aqueles que serão afetados por eles. Cf. Between facts and norms, pp.114, 127, 18. Para uma reflexão sobre os direitos políticos nos pensamentos de Habermas e Schmitt vide “Between Habermas and Schmitt: a discussion on the place of political rights” in Silva, D.R., Three essays on political freedom. Dissertação apresentada como Ao assegurar aos cidadãos a igualdade de poder, isto é, que cada um seja titular de um voto, que a vontade de cada cidadão seja dotada rigorosamente da mesma dignidade, ao garantir que a vontade dos cidadãos constitua a base da autoridade do governo e ao permitir que algumas decisões sejam efetivamente produto direto da vontade do conjunto dos cidadãos, os direitos políticos cumprem o seu compromisso com a democracia. E são capazes de cumpri-lo porque são poderes de decisão. Não tivessem os direitos políticos essa dimensão decisória, a vontade dos cidadãos acabaria sendo substituída pela vontade dos membros mais poderosos ou mais influentes da sociedade, daqueles que dispõem de mais recursos para fazer avançar os seus desígnios. Graças aos atributos dos direitos políticos é que existe uma conexão entre a vontade dos cidadãos e o funcionamento do Estado. O outro compromisso alcançado pelos direitos políticos, que faz com que eles estejam estruturalmente ligados ao Estado democrático-constitucional, é a limitação do poder. Os direitos políticos conferem ao povo o poder de imprimir a sua vontade ao Estado e condicionar o seu funcionamento. Entretanto, não se trata de um poder geral de decisão em qualquer situação e a respeito detodas as questões. Os direitos políticos circunscrevem o poder que os cidadãos têm e asseguram que eles só poderão decidir aquelas questões definidas na constituição. Devido a essa limitação, torna-se possível a proteção jurisdicional dos direitos políticos do cidadão. Se o conjunto dos cidadãos dispusesse de um poder geral de decisão acerca de todas as questões concernentes à vida pública, tal proteção não seria possível e, tampouco, existiria um Estado democrático constitucional. Os poderes circunscritos que os direitos políticos atribuem aos cidadãos são delimitados apenas no que se refere ao seu âmbito de atuação, isto é, só autorizam os cidadãos a imprimir a sua vontade coletiva ao funcionamento do Estado em alguns procedimentos específicos, como, por exemplo, a eleição de representantes ou mesmo a apresentação de iniciativas populares legislativas. Mas, os direitos políticos, por sua própria natureza, não delimitam exaustivamente quais são as matérias passíveis de deliberação pela coletividade. Há, por assim dizer, uma indeterminação de seus conteúdos, ficando a cargo do conjunto dos cidadãos em luta pelo poder e pelo reconhecimento de seus interesses coletivos a seleção das matérias sobre as quais deliberarão. Assim, quando os cidadãos apresentam um projeto de lei por meio de iniciativa popular, compete a eles definir a matéria e o seu modo de tratamento. requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciência Política na New School for Social Research, dezembro de 2001. Essa indeterminação de conteúdo está relacionada com a abertura do conceito do político. Segundo Carl Schmitt, a oposição amigo-inimigo é o elemento caracterizador do político, pois faz referência ao grau maior de intensidade de uma relação que se traduz na luta entre grupos inconciliáveis. Essa luta, essa oposição podem se originar nas mais variadas questões, referirem-se aos mais variados assuntos. A indeterminação do político se deve ao fato de qualquer questão poder se tornar política, se for capaz de gerar uma tal oposição.30 Agnes Heller, diferentemente de Schmitt, argumenta que o moderno conceito do político corresponde a um domínio específico, ao espaço público.31 Por isso, tudo aquilo que aí ingressa, não importando o seu conteúdo específico, ganha o atributo de político. Essas duas noções do político têm em comum a indeterminação de seu conteúdo. Levando isso em consideração é possível argumentar que os direitos políticos são justamente aqueles instrumentos que permitem a contenção das lutas de diferentes grupos pela prevalência de seus projetos, de suas vontades. São os direitos políticos, em face de sua dimensão decisória, que propiciam a contenção da oposição caracterizadora do político. É o exercício dos direitos políticos que obriga o Estado a levar em consideração as questões trazidas para o espaço público. Não há determinação prévia a respeito da matéria que será objeto de luta. Todas as matérias não vedadas pela Constituição podem ser objeto de deliberação por meio do exercício dos direitos políticos, contanto que se respeitem os procedimentos constitucionais. Em face da indeterminação do conteúdo das deliberações que podem ter por objeto, os direitos políticos deixam espaço para a luta entre diferentes grupos de pessoas, bem como para a luta entre diferentes projetos políticos. O exercício dos direitos políticos permite o conhecimento dos grupos e projetos vitoriosos, assegura que os grupos derrotados possam controlar a atuação dos vitoriosos e oferecem condições para a continuidade da luta pelo poder por parte daqueles que não conseguiram conquistá-lo. 30 “O político pode extrair sua força dos mais variados setores da vida humana - de contraposições religiosas, econômicas, morais e outras. Ele não designa um âmbito próprio, mas apenas o grau de intensidade de uma associação ou dissociação entre homens, cujos motivos podem ser de cunho religioso, nacional (no sentido étnico ou cultural), econômico ou outro, e que em diferentes épocas provocam diferentes ligações e separações.” Schmitt, C., O conceito do político, p.64. 31 “Within the domain of the political, that is the public space, things can become political to a greater or lesser extent through actions, institutions, opinions, discussions, propositions, goals and the like, depending on their share in the political. The substantive aspect of the political is not a concrete political thing at all; rather, it is the main dynamism of modernity itself. No action of a particular existing structure, no momentous choice, no particular orientative value specific to politics alone, is the criterion or the standard of the political.” Heller, A. “The concept of the political revisited”, p.341. Em síntese, os direitos políticos inserem-se dentre os direitos porquanto são normas jurídicas que protegem todo o processo de formação da vontade coletiva, a fim de que ela condicione o funcionamento do Estado. A proteção da vontade dos cidadãos ocorre principalmente na medida em que há obrigatoriedade do Estado reconhecê-la, acolhê-la e convertê-la em base da autoridade do governo. Mas, os direitos políticos não são direitos dos cidadãos fazerem valer a sua vontade coletiva em qualquer ocasião. Permitem que ela se forme e se imponha ao Estado apenas nos procedimentos previstos pela Constituição. Contudo, os direitos políticos não determinam o conteúdo das questões a serem decididas, ficando tal definição em grande medida a cargo da sociedade e de seus grupos. Mas, a fim de que se compreenda exatamente o que são os direitos políticos, não basta apenas afirmar que são direitos fundamentais e que protegem a vontade coletiva e o condicionamento do funcionamento do Estado por tal vontade. É necessário perquirir as especificidades dos direitos políticos, que justificam que eles sejam tratados como um conjunto particular dentro dos direitos humanos. Há requisitos ligados à pessoa e requisitos ligados à forma para a aquisição de direitos políticos.32 Os requisitos ligados à pessoa são a nacionalidade do país que lhe outorga os direitos políticos, a capacidade política e a ausência de causas de perda ou suspensão de direitos políticos. O requisito ligado à forma se refere ao alistamento eleitoral. Esses requisitos devem ser levados em consideração para a compreensão dos direitos políticos, pois dizem respeito às condições essenciais para que a pessoa seja capaz de participar da formação da vontade coletiva. 3.1. A nacionalidade. Dentre as particularidades dos direitos políticos, mencione-se, em primeiro lugar, a nacionalidade. Para que a pessoa adquira direitos políticos, ela deverá ter a nacionalidade do país que lhe outorga os direitos políticos. Nacionalidade é o vínculo jurídico que liga a pessoa ao Estado onde nasceu, ao Estado de onde provém os seus ascendentes ou ao Estado que escolheu como seu e 32 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo XXIX reconhece como legítimas as limitações aos direitos e liberdades determinadas pela lei, com o fim de assegurar o respeito aos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, art.25, reconhece os direitos políticos a todos os cidadãos vedando qualquer restrição infundada à sua aquisição. A Convenção Interamericana, no artigo 23 (2) enumera taxativamente os parâmetros para que a lei regule o exercício dos direitos políticos. São eles idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenaçãopor juiz competente em processo penal. que o acolheu. A nacionalidade consiste na qualidade própria das pessoas submetidas à autoridade direta de um Estado, o qual confere a elas direitos, deveres e proteção, mesmo que estejam fora de seu território.33 O instituto da nacionalidade está vinculado à soberania. Por isso, cabe ao Estado determinar em sua constituição quem são os seus nacionais, bem como quais são as condições para a aquisição e perda da nacionalidade. A nacionalidade é classificada como originária ou adquirida. Originária é aquela que se obtém com o nascimento e adquirida a que deriva de uma mudança de nacionalidade anterior. A permissão para que estrangeiros se naturalizem e possam exercer direitos políticos denota que a condição de membro de um corpo político não deriva necessária e exclusivamente de vínculos pré-políticos, tais como a homogeneidade de um povo que tem uma origem comum. A condição de membro de um corpo político pode ser construída e os ordenamentos jurídicos em geral prevêem essa possibilidade, ainda que na atualidade as fronteiras estejam cada vez menos permeáveis. O vínculo que liga a pessoa ao Estado não é meramente formal. Ele retrata ou deve retratar a pertença a uma cultura específica, que lega aos seus membros hábitos semelhantes, uma história e uma língua comuns e, principalmente, um desejo compartilhado de tornar perene a vida da coletividade que integra. A existência da democracia e dos direitos políticos que a define dependem dessa integração cultural e da construção de uma unidade entre as pessoas. Ao mesmo tempo, a participação dos cidadãos nas decisões coletivas também ajuda a construir a unidade entre as pessoas. De qualquer forma, a base dessa unidade é o sentimento de pertença a um grupo, como aduz Stuart Mill: “Onde o sentimento de nacionalidade existe, há um caso prima facie para a união de todos os membros da nacionalidade sob um mesmo governo, e um governo só para eles. Isso significa dizer que a questão do governo deve ser decidida pelos governados.”34 E compõe uma nacionalidade, segundo esse pensador, “aquela porção da humanidade que está unida entre si por simpatias que não existem entre ela e qualquer outro grupo - que faz com que eles cooperem uns com os outros mais do que com outros povos, desejem estar sob um mesmo 33 Accioly, H., Silva, G.E.N., Manual de direito internacional público, p.358. 34 “Where the sentiment of nationality exists in any force, there is a prima facie case for uniting all the members of the nationality under the same government, and a government to themselves apart. This is merely saying that the question of government ought to be decided by the governed.” Stuart Mill, J. Considerations on representative government, p.310. governo e desejem ser governados por si mesmos ou por uma parte de seu grupo exclusivamente. Esse sentimento de nacionalidade pode ser gerado por várias causas.”35 A justificativa para a exigência de nacionalidade, a fim de que se adquiram direitos políticos, reside na necessidade de existência de um vínculo especial e perene que ligue a pessoa ao território e a comprometa, por assim dizer, com o seu modo de ser e com o seu futuro. 3.2. A capacidade política. Um segundo requisito pessoal para a aquisição dos direitos políticos é a capacidade política. Como os direitos políticos são direitos de decisão coletiva, como referem-se à formação e ao exercício da razão pública, exige-se que os seus titulares tenham atingido uma certa idade que os torne capazes de entender as opções que deverão ser objeto de suas deliberações. Além da idade, exige-se, pelos mesmos fundamentos, que o titular de direitos políticos seja mentalmente são. Por isso, os direitos políticos não são e nem podem ser outorgados a toda e qualquer pessoa, independentemente de sua idade e de sua capacidade civil. Na órbita civil, todo ser humano tem capacidade para a aquisição de direitos, mas nem todos têm capacidade de exercê-los por si mesmos. Capacidade de direito, capacidade de gozo ou capacidade de aquisição significam a aptidão derivada da personalidade para adquirir direitos na vida civil. Capacidade de fato, capacidade de exercício ou capacidade de ação referem-se à aptidão para a pessoa exercer os direitos.36 São incapazes aqueles que, embora tenham aptidão para adquirir direitos, não têm a faculdade de exercê-los. São desprovidos dessa faculdade aqueles que têm deficiências mentais permanentes ou aqueles que, devido à pouca idade, ainda não desenvolveram suas faculdades intelectuais o suficiente para que possam exercer seus direitos. Enfim, são incapazes os alienados mentais e aqueles que ainda são muito jovens e não possuem o adequado discernimento. 35 “A portion of mankind may be said to constitute a nationality if they are united among themselves by common sympathies which do not exist between them and any others - which make them co-operate with each other more willingly than with other people, desire to be under the same government, and desire that it should be government by themselves, or by a portion of themselves exclusively. This feeling of nationality may have been generated by various causes.” Stuart Mill, J., Considerations on representative government, p.308. 36 Pereira, C.M.S., Instituições de direito civil, vol .I, p.222. A capacidade política consiste na aptidão reconhecida pela ordem jurídica para que a pessoa obtenha o poder de sufrágio.37 A idade para a aquisição da capacidade política varia de país para país e, nem sempre, há coincidência entre essa idade e aquela necessária para a obtenção da capacidade civil. O importante para que a pessoa seja titular de direitos políticos é que ela tenha capacidade de decidir coletivamente sobre questões concernentes à vida pública. A idade mínima para a aquisição de direitos políticos tanto pode ser de 16 anos, como no Brasil, ou de 18 anos, como na Suíça.38 Mas, em geral, exige-se uma idade mínima para a chamada cidadania ativa, isto é, a capacidade de ser eleitor, e outra para a cidadania passiva, isto é, a capacidade de ser eleito, dependendo, essa última da complexidade e da responsabilidade do cargo eletivo em questão. Entretanto, é consensual entre todas as legislações dos Estados constitucionais democráticos que os absolutamente incapazes na órbita civil não são e nem podem ser titulares de direitos políticos, porquanto falta-lhes o discernimento sobre a pertença a uma comunidade política, bem como sobre o sentido do exercício dos direitos políticos. Consoante Jean-Claude Masclet, não devem ser admitidos à participação na gestão dos negócios públicos aqueles que não podem gerir a sua própria vida privada.39 É que os incapazes não têm poder de querer por si mesmos. Por essa razão, necessitam de representantes para realizarem qualquer atividade no mundo jurídico. Evidentemente, nesse sentido, os direitos políticos não podem ser exercidos por representantes, pois que envolvem julgamento acerca dos destinos da comunidade política e esse julgamento é individual, não sendo possível que uma pessoa queira pela outra.40 Em suma, a capacidade política denota que a pessoa goza da aptidão necessária para integrar o corpo político e participar da formação da vontade coletiva. 37 Ribeiro, F., Direito Eleitoral, p.189. 38 O art.14, parágrafo 1º , da Constituição Brasileira prescreve: “O alistamento eleitoral e o voto são: I- obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II- facultativo para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c)os maiores de dezesseis e menores de dezoito. O artigo 136 da Constituição Suíça prescreve: “Tous les Suisses et Suissesses ayant 18 ans révolus qui ne sont pas interdispour cause de maladie mentale ou de faiblesse d’esprit ont les droits politiques en matière fédérale. Tous ont le mêmes droits et devoirs politiques.” Cf. constituições in CONSTITUIÇÕES. Université de Génève, Centre d' études et de documentation sur la democratie directe: site cit. 39 Masclet, J.C., Droit Electoral, p.44. 40 Julien Laferrière reconhece, contudo, a dificuldade prática de impedir que aqueles que não estão no pleno exercício de suas faculdades mentais sejam titulares de direitos políticos. De acordo com o constitucionalista, somente a autoridade judiciária, dotada de imparcialidade, pode decidir sobre a sanidade mental da pessoa, em regular processo de interdição. E mais, a preocupação eleitoral deverá estar ausente desse processo. Laferrière, J.. Manuel de droit constitutionnel, p. 487. 3.3. A indignidade. Uma outra condição pessoal exigida para a aquisição dos direitos políticos é negativa. Refere-se à proibição de que a pessoa esteja em uma situação que gere a perda temporária ou definitiva dos direitos políticos. Essas situações variam de país para país. Contudo, há de se destacar a perda ou suspensão dos direitos políticos em decorrência de condenação criminal. Na França do século XIX, de acordo com Laferrière, deveriam ser privados do direito de voto os condenados em decorrência de fatos reveladores de imoralidade ou de indignidade de seus autores. A esse tempo, toda condenação por crime acarretava, como pena acessória, a perda perpétua dos direitos políticos. As condenações por contravenção, em contrapartida, jamais geravam a privação dos direitos políticos.41 Posteriormente, a partir de 1945, devido a modificações legislativas, a perda dos direitos políticos passou a ser definida não mais em função da natureza da infração penal, mas em função de sua gravidade. Eram os tribunais que deveriam apreciar cada caso particular e definir a severidade da condenação. Havia, no entanto, infrações que deveriam conduzir à perda definitiva dos direitos políticos só pela condenação, tais como roubo, fraude, abuso de confiança, atentados aos costumes.42 Assim, essa condição negativa para a aquisição dos direitos políticos busca proteger o corpo político de pessoas capazes de cometer atos incompatíveis com a vida coletiva. 3.4. O alistamento eleitoral. O alistamento eleitoral diz respeito ao requisito formal para a aquisição dos direitos políticos. Aqueles que são nacionais, já contam com uma certa idade, gozam de perfeita higidez mental e não estão em situação que enseje a perda ou a suspensão de direitos políticos, preenchem os requisitos para adquiri-los. Mas, o simples preenchimento de tais condições não assegura nem a titularidade, nem o livre exercício dos direitos políticos. Impõe-se que a pessoa prove que cumpre todas essas condições e, assim, se aliste, isto é, que ela inclua o seu nome na lista eleitoral que congrega os componentes do corpo eleitoral de uma seção eleitoral. O alistamento consiste, então, no 41 Laferrière, J. Manuel de droit constitutionnel, p. 492. 42 Laferrière, J.ob.cit., p. 492. reconhecimento formal de que a pessoa integra o corpo político e está apta a participar das deliberações autorizadas pela lei. Apenas com o alistamento, a pessoa passa ser titular dos direitos políticos. Sua situação fica definida e não poderá ser contestada em tempo de eleição ou de qualquer outra votação, pois que, nesses períodos, deverá haver certeza acerca do número de componentes do corpo eleitoral. Quando ocorrem votações, o corpo eleitoral haverá de estar completo, não podendo incluir novos nomes, sob pena de comprometer o resultado do pleito e escamotear a vontade coletiva. A lista eleitoral é permanente e geral. Por isso, ela não é ligada a nenhuma eleição ou votação específica. Vale para todas as eleições e votações. Além disso, aqueles que se inscrevem e se tornam titulares de direitos políticos permanecem titulares desses direitos, podendo perdê-los, contudo, só excepcionalmente, nos casos previstos em lei. A importância do alistamento se relaciona também com a verificação da lisura das votações, uma vez que poderão votar apenas aqueles que tiverem o seu nome incluído na lista eleitoral. Em outros termos, o alistamento permite verificar se aquele que se apresenta para votar tem efetivamente o direito de fazê-lo. Finalmente, o alistamento é imprescindível em função da própria natureza dos direitos políticos. Como esses direitos autorizam os cidadãos a decidir questões que concernem às suas vidas coletivas, então, eles só exaurem os seus efeitos após o conhecimento da vontade do corpo eleitoral. Para tanto, é fundamental que se tenha um conhecimento prévio acerca da dimensão e dos componentes do corpo eleitoral. Apenas mediante o alistamento isso é possível. Em suma, a condição para a aquisição dos direitos políticos é que a pessoa demonstre, em primeiro lugar, que tem um vínculo com o Estado que lhe outorgará direitos políticos. Em segundo lugar, que ela demonstre que tem capacidade para viver em conjunto com outras pessoas e colaborar com a formação das decisões coletivas que condicionam o funcionamento do Estado. Finalmente, é necessário que todas essas condições sejam atestadas e formalizadas mediante o alistamento eleitoral. 4. Modus operandi dos direitos políticos. Mas, os direitos políticos não compõem uma categoria específica de direitos apenas porque existem alguns requisitos peculiares para a sua aquisição e exercício. Todas os requisitos específicos para a conquista dos direitos políticos justificam-se na medida em que eles têm um modus operandi particular que não encontra similar dentre os outros direitos fundamentais. Muitos autores e muitos sistemas constitucionais tratam os direitos políticos simplesmente como sinônimos do direito da maioria, mais especificamente, como sinônimo do direito da maioria eleger aqueles que se encarregarão de tomar as principais decisões concernentes à vida coletiva.43 Tal noção de direitos políticos permite, de fato, que a vontade da maioria sufoque os interesses legítimos das minorias que não têm os seus interesses contemplados pelos representantes. A concepção de direitos políticos aqui formulada é, contudo, diferente dessa e mais abrangente. Os bens protegidos pelos direitos políticos, tais como aqui concebidos, são a formação da vontade coletiva e o condicionamento do funcionamento do Estado por tal vontade. O direito da maioria eleger representantes é, nesse contexto, apenas um dos modos possíveis de formação da vontade coletiva.44 Pode haver, como há, de fato, outros procedimentos que facultam a formação da vontade coletiva e não pressupõem a formação de maiorias, como, por exemplo, a iniciativa popular. Assim, os direitos políticos protegem sempre a formação de uma vontade coletiva e asseguram que ela será absorvida pelo Estado. Tal vontade não é necessariamente a vontade da maioria, nem a vontade geral, nem a vontade de todos. É a vontade de um conjunto significativo de cidadãos que, obedecendo os procedimentos constitucionais, podem fazê-la valer perante o Estado. E os cidadãos têm legitimidade para compô-la e tê-la reconhecida pelo Estado porque são membros do corpo político e, em tese, têm interesse em sua manutenção, são seres racionais, gregários, capazes de viver em conjunto e de determinar as condições para tanto. Nesse sentido, os direitos políticos não protegem necessariamente a formação de uma única vontade coletiva, mas sim a formação de diferentes vontades coletivas, podendo uma interferir sobre a outra, aperfeiçoando-a, corrigindo-a ou simplesmente complementando-a. Mas, para tanto, evidentemente, é imprescindível a 43 “By democratic rights” I referto rights held by each member of an association to vote and stand for office in free elections in which majority-rule procedure determines the composition of a body that by majority rule procedure settles the rules by which the association is governed.” Arneson, R. “Democratic rights at national and workplace level”, p.118. 44 A regra da maioria estabelece que a decisão coletiva é aquela tomada pelo maior número de votantes. Mas isso não é sinônimo de democracia, segundo Norberto Bobbio: "Já afirmei na primeira parte que o que faz a regra da maioria um instituto democrático é o sufrágio universal , isto é, o número daqueles que participam das decisões fundadas no cálculo do maior número. Cf. Bobbio, N., Teoria geral da política, p.448. formação de organizações, tais como partidos políticos e associações, que patrocinem a formação de diferentes vontades coletivas, de diferentes projetos políticos que poderão se impor ao Estado se essa for a vontade da coletividade. Ao mesmo tempo, as vontades coletivas só se formam se houver efetiva possibilidade dos cidadãos se organizarem em torno de projetos políticos. Assim, em uma democracia, há de existir, tanto quanto possível, coincidência entre a capacidade de formar a vontade coletiva e a de lutar pelo poder. Para entender o modus operandi dos direitos políticos, há que se levar em consideração também o tempo em que são exercidos ou, mais especificamente, quando se formam as vontades coletivas. O direito de lutar pelo poder, bem como pelo reconhecimento dos interesses de grupos específicos é permanente. Tais direitos integram a dinâmica dos Estados democráticos. Em contrapartida, o direito de decidir coletivamente, que é o fim do processo de luta pelo poder, depende do concurso de vontade de um conjunto de cidadãos. Por isso, só podem ocorrer em dia marcado previamente, para que todos tenham o direito igual de emitir a sua vontade que integrará a vontade coletiva e impor-se-á ao Estado. A pertença ao corpo político, então, gera mais do que o direito de cada cidadão emitir o seu julgamento para que se forme uma vontade coletiva. Gera ainda condições iguais para que as pessoas lutem pela conquista do poder, lutem pelo reconhecimento dos seus interesses pelo Estado. Apenas os titulares dos direitos políticos, aqueles que são capazes de tomar parte na formação da vontade coletiva, podem lutar pela conquista do poder, pelo reconhecimento dos interesses do seu grupo ou mesmo controlar os atos dos agentes públicos. Tais direitos, evidentemente, não são direitos de formação da vontade de uma pluralidade. São antes direitos que facultam a cada titular dos direitos políticos uma participação política mais ativa. Sua relevância dentro do conjunto dos direitos políticos reside na geração de condições para a permanente formação das vontades coletivas. Embora toda a legislação eleitoral proteja a vontade do titular de direitos políticos, resguardando-o contra manipulações e assegurando o sigilo de seu voto, a decisão que se impõe ao Estado não é a do cidadão individualmente. A deliberação que se impõe e que é necessária à atuação do Estado é a da maioria ou aquela decisão que obteve o número de adesões prescrito na legislação para que seja apontada a vencedora. Assim, justifica-se toda a proteção da vontade individual na medida em que cada decisão individual é importante para a formação da decisão coletiva que vinculará o Estado e constituirá a base para a sua atuação. Em outros termos, a decisão oriunda do exercício dos direitos políticos só se aperfeiçoa e só se impõe como requisito de atuação do Estado porque se trata de decisão da coletividade. Exatamente porque o número é tão importante para a aferição da decisão do corpo eleitoral que o alistamento eleitoral constitui requisito para a aquisição dos direitos políticos. O número de componentes do corpo eleitoral é sempre essencial para a prevenção de eventuais fraudes. É imprescindível também para que os cidadãos elejam os seus candidatos, conheçam com a necessária transparência o resultado de um plebiscito ou de um referendo, ou ainda para que proponham um projeto de lei por meio de iniciativa popular. O direito dos cidadãos de imprimir a sua vontade ao funcionamento do Estado é, a rigor, o direito do conjunto dos membros do Estado de impor tal vontade ao Estado e não de cada cidadão individualmente.45 A relevância atribuída ao número dos integrantes do corpo eleitoral elucida mais uma questão relativa ao modus operandi dos direitos políticos. Trata-se da imprescindibilidade do Estado para a existência e exercício desses direitos. Os direitos políticos são, todos eles, direitos dos cidadãos dentro do Estado.46 Por essa razão, o requisito fundamental para a aquisição desses direitos é a demonstração de algum vínculo especial entre a pessoa e o Estado. Mas não é só isso. O Estado é necessário também para que as pessoas adquiram e possam exercer tais direitos. Como direitos que protegem a formação da vontade de pluralidades de cidadãos, os direitos políticos dependem da existência de um Estado suficientemente organizado, capaz de estruturar e manter a lista dos seus cidadãos, a fim de poder apresentar com segurança todos os componentes do corpo eleitoral. O Estado deve receber e contar cada um dos votos, cada uma das manifestações de vontade dos cidadãos. Finalmente, apurada a vontade da maioria ou a vontade vencedora, o Estado tem a obrigação de incorporá-la, de submeter-se a ela. Assim, de um lado, o Estado tem a função de receber e contar os votos dos cidadãos e, depois, submeter-se à decisão aferida. Os cidadãos, de outro lado, têm o 45 Juristas do começo do século XX discutiam se cada cidadão tinha uma pretensão subjetiva de concorrer pessoalmente para a nomeação dos representantes ou não. Aqueles que argumentavam que cada cidadão tinha o direito de eleger os seus representantes eram favoráveis ao sistema proporcional. Argumentavam que o sistema majoritário negava à minoria o direito de eleição. cf. Carré de Malberg, R. Teoria General del Estado, p.1145-1150. Quando se argumenta neste trabalho que os direitos políticos são direito de decisão, não se argumenta que todo e qualquer cidadão tem o direito de ter a sua vontade como elemento determinante da atuação do Estado. O que se defende é que o conjunto dos cidadãos tem o direito de imprimir a sua vontade ao Estado, contanto que consiga o número necessário para esse fim. A minoria tem o direito de converter-se em maioria nas eleições ou nas votações subsequentes e, por isso, também tem o direito de decidir de acordo com as regras prescritas na constituição 46 Schmitt, C. Teoria de la constitución, p.174. direito de emitir a sua vontade, nas votações organizadas pelo Estado, e de tê-la contada e considerada. É necessário, por último, para que se compreenda o funcionamento dos direitos políticos, entender qual é o espaço e a função dos direitos políticos dentro da constituição. A constituição em sentido material consiste, segundo Jorge Miranda, no estatuto do Estado, seja qual for o seu tipo constitucional. Esse estatuto estabelece “uma estruturação racionalizada e exaustiva dos poderes do Estado, dos seus órgãos e dos seus processos de agir, bem como da organização social politicamente relevante.”47 Tal estruturação racionalizada tende a proteger a estabilidade do corpo político, na medida em que regula alguns dos mais importantes aspectos da existência coletiva, tais como a base da ação coletiva, os princípios que devem informar a unidade política, os órgãos do Estado e suas respectivas competências, assim como as tarefas que o Estado deverá cumprir.48 As constituições dos Estados sociais prescrevem um rol maior de direitos. Alguns desses direitos necessitam, para a sua eficácia, de uma ação concreta doEstado.49 Isso torna evidente que as constituições não são documentos encarregados de congelar ou de paralisar os processos políticos e proscrever os conflitos sociais. As constituições regulam de modo definitivo algumas questões fundamentais para a existência do Estado e deixam outras de lado, apresentando apenas os parâmetros de referência para que sejam reguladas posteriormente por leis infra-constitucionais. As constituições deixam, então, espaços abertos para que as sociedades incorporem as transformações sociais, sempre mantendo-se fiéis aos princípios básicos nelas prescritos. São, portanto, incompletas, a fim de permitir a livre discussão da sociedade, bem como a luta dos diferentes grupos sociais pela prevalência de suas idéias, quando da regulamentação de questões que foram deixadas incompletas.50 A razão para a incompletitude da constituição reside no fato de que ela regula vidas que estão em permanente mudança. E, por isso, devem ser suficientemente abertas para aceitar as transformações da vida e incorporá-las à ordem jurídica. Nesse contexto, os direitos políticos são os instrumentos que permitem que os cidadãos participem mais de perto da regulamentação das questões que foram deixadas 47 Miranda,, J. Manual de direito constitucional, t.II, p.21. 48 Hesse, K., Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, p.40. 49 Lopes, J.R.L.. “Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado social de direito”, pp.129. 50 Hesse, K., ob.cit., p.41, 42. incompletas. É principalmente disso que tratam os direitos de luta pelo poder e de luta pelo reconhecimento dos interesses coletivos que terminam com a formação de vontades coletivas. Mas, porque os direitos políticos são direitos de formação da vontade coletiva e de imposição dessa vontade ao Estado é que eles asseguram que haverá o reconhecimento das lutas dos diferentes grupos pela prevalência de seus projetos. Quanto maior o número de direitos políticos, quanto mais permeável for a constituição para a vontade popular, maior será a possibilidade de construção de um ordenamento jurídico harmônico com as vontades populares. Os direitos políticos são os únicos instrumentos previstos nas constituições capazes de criar a obrigação para o Estado de considerar a vontade do conjunto dos cidadãos e de atualizar permanentemente o ordenamento jurídico de acordo com essa vontade. Mas, exatamente porque os direitos políticos encerram poder de decisão é que eles facultam uma participação limitada dos cidadãos. Os direitos políticos têm o compromisso de imprimir a vontade dos cidadãos ao funcionamento do Estado, mas esses direitos são limitados. De outra maneira, se os direitos políticos fossem direitos gerais de participação e de decisão dos cidadãos, se facultassem aos cidadãos a participação a qualquer momento, eles não poderiam integrar uma constituição, tal como as constituições do século XX.51 Um direito geral de participação e de decisão geraria uma ordem instável, caracterizada por constantes mudanças, como, por exemplo, a democracia ateniense. Os direitos políticos, em contrapartida, permitem a participação dos cidadãos em algumas decisões, deixando que imprimam a vontade da coletividade ao funcionamento do Estado nos momentos previstos pela constituição e sempre de modo harmônico com os princípios constitucionais. Assim, os direitos políticos permitem a agregação do novo ao corpo político se esse novo for harmônico com os princípios básicos da ordem constitucional.52 5. Os direitos políticos como direito de decidir. 51 Em sua obra On Revolution, Arendt sustenta que não existe qualquer compatibilidade entre ampla liberdade de participação e a existência de uma ordem estável. Para Arendt, a liberdade de participação pressupunha a existência de uma certa instabilidade do corpo político, para que sempre fosse possível a modificação de seu modo de organização, nos termos desejados pelos participantes. Uma ordem estável, em contraste, de acordo com Arendt, deveria ser uma ordem comprometida com a proteção contra mudanças, com a proteção do corpo político contra qualquer força que poderia modificar o que havia sido conquistado pela ordem política. Assim, de acordo com Arendt, prevaleceu após as revoluções uma ordem auto-protetora que permitia apenas que algumas pessoas participassem de fato e legislassem em nome de muitas. Cf. Arendt, H., On Revolution, p.223. 52 Dessa forma, os direitos políticos ajudam a compor as condições de governabilidade, o que significa, segundo Sérgio Resende de Barros, aquele conjunto de condições que permitem ao governo a realização dos valores supremos do ordenamento jurídico estatal. Cf. Barros, S.R., Direitos humanos: paradoxo da civilização, p.162, 449. Todos os requisitos exigidos para a aquisição dos direitos políticos tais como a nacionalidade, o alistamento eleitoral, a capacidade política e a ausência de causa geradora de indignidade, têm como justificativa o poder decisório a eles atribuídos. Há de existir vínculos especiais entre o indivíduo e o Estado, há de existir um singular interesse por parte do indivíduo na manutenção do Estado, para que ele possa tomar parte direta ou indiretamente das decisões coletivas que se impõem ao Estado. Os direitos políticos são modos de exercício da soberania. Esta não tem apenas uma dimensão política, mas alia também uma dimensão social e uma dimensão jurídica. Miguel Reale agrega todos esses aspectos e define a soberania como “poder que tem a Nação de se organizar livremente, fazendo valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões, segundo os fins éticos da convivência.”53 Destaca o jusfilósofo que, juridicamente, o poder de decidir deve ser exercido na forma da lei e com vistas à realização dos fins contidos no ordenamento jurídico. Por isso, a partir da perspectiva jurídica, a soberania é o poder do Estado de decidir em última instância na forma da constituição e dos pactos internacionais que o regem.54 Os direitos políticos são modos de exercício da soberania, porquanto se referem às formas definidas na constituição de o povo, um dos componentes do Estado e o titular da soberania segundo algumas constituições55, manifestar a sua vontade coletiva, criar condições para o funcionamento do Estado fazer valer a vontade de grupos de cidadãos. Mas, essa manifestação de vontade, a rigor, é mais do que mera declaração de vontade. Trata-se do efetivo exercício do poder decisório que o conjunto dos cidadãos tem porque autorizado pela constituição. E os poderes que a constituição outorga aos titulares da soberania, em geral, se referem à definição dos componentes do governo ou à decisão sobre a elaboração de alguma norma jurídica. Em um Estado democrático sempre existe alguma conexão entre a vontade expressa pelos cidadãos no exercício dos seus direitos políticos e as leis que serão elaboradas. Tais direitos são, então, modos de exercício da soberania porque se referem às decisões tomadas pelos cidadãos que geram as condições para que as normas jurídicas gerais sejam elaboradas de modo democrático. Mais especificamente, esses direitos se referem às 53 Reale, M., Teoria do Direito e do Estado, p.342. 54 Reale, M., ob.cit., p.342. 55 Art.3º da Constituição Francesa de 1958: “A soberania nacional pertence ao povo que a exerce por meio de seus representantes e por meio do referendo.” Art.1º (2) da Constituição Espanhola: “A soberania nacional reside no povo espanhol, do qual emanam os poderes do Estado.” Cf. constituições in CONSTITUIÇÕES. Université de Génève, Centre d' études et de documentation sur la democratie directe: site cit. decisões que geram condições para que os órgãos doEstado possam decidir em última instância em harmonia com os preceitos constitucionais. Se os direitos políticos não fossem dotados de poder decisório, não seria possível a existência e o funcionamento de um Estado democrático, pois que os Poderes Legislativo e Executivo não se formariam e, por conseqüência, o Judiciário perderia a sua razão de existir. Se os direitos políticos não contivessem poder decisório, eles jamais seriam formas de exercício da soberania, pois que ou a soberania é poder supremo e, portanto, poder de decidir de modo supremo dentro dos limites estabelecidos pela constituição, ou ela simplesmente não existe. Apesar de tudo isso, o elemento decisório dos direitos políticos, em geral, não é abordado pelos autores que tratam dessa questão. Tampouco abordam a conexão existente entre direitos políticos e a definição do conteúdo da normas jurídicas gerais. Kelsen aproximou-se dessas idéias e demonstrou a ligação existente entre os direitos políticos e as normas jurídicas gerais. Contudo, jamais afirmou que os direitos políticos são modos de exercício da soberania e, por isso, contém direito de decisão, pois ele não concebia a existência da soberania. Kelsen define os direitos políticos como “as possibilidades abertas ao cidadão de participar do governo, da formação da “vontade” do Estado. Livre da metáfora, isso significa que o cidadão pode participar da criação da ordem jurídica. Com isso tem-se em mente sobretudo a criação de normas gerais, ou “legislação”, no sentido mais geral do termo.”56 O jurista menciona o direito de votar como exemplo de um direito político e explica que o sentido desse direito é ter o voto recebido e contado de acordo com as leis que regulamentam as eleições. Na seqüência, argumenta que o votante participa do processo de criação do direito indiretamente, uma vez que ele toma parte da criação do órgão cuja função é compor a vontade do Estado. Desse modo, quando os cidadãos participam da criação de tais órgãos, eles o fazem, evidentemente, levando em consideração as idéias e concepções que querem ver protegidas. Mas a conexão entre os direitos políticos e as normas jurídicas gerais se torna mais evidente se se levar em consideração a explanação de Kelsen sobre o espaço destinado aos direitos políticos no ordenamento jurídico. 56 Kelsen, H., Teoria Geral do Direito e do Estado, p.91. Ao analisar o ordenamento jurídico sob a perspectiva dinâmica, sob a perspectiva do modo como o direito é criado, o jurista afirma que a peculiaridade do direito é a sua capacidade de auto-criação. Para ele, criação do direito é sempre aplicação do direito.57 Em poucas palavras, o direito é a própria fonte do direito. A aplicação do direito significa a produção de um novo ato jurídico subordinado ao ato jurídico autorizador da sua aplicação, porém mais individualizado. Desse modo, os direitos políticos não são os únicos direitos relevantes para a criação de outros direitos. Os direitos civis também são capazes de criar novos direitos.58: “A partir da perspectiva da função dentro de todo do processo criador de Direito, não existe nenhuma diferença essencial entre um direito privado e um direito político. Ambos permitem que o seu detentor participe da criação da ordem jurídica, da “vontade do Estado”.”59 Não obstante, os direitos políticos têm uma particularidade, se comparados com os direitos civis. Aqueles permitem que os cidadãos participem da criação do direito. Contudo, não se trata da criação de qualquer direito, mas sim da criação de normas jurídicas gerais. Os direitos políticos são mais importantes para a composição da ordem jurídica do que os direitos civis.60 A justificativa para isso se relaciona com o fato dos direitos políticos serem os componentes das normas gerais que originam outros direitos.61 Então, em uma democracia - principalmente em uma democracia pertencente à tradição romano-germânica - qualquer direito criado em consonância com a constituição será influenciado pela existência e pelo exercício dos direitos políticos. Não há nos Estados democráticos pertencentes à tradição romano-germânica normas jurídicas gerais que sejam compostas sem qualquer influência dos direitos políticos. Em suma, os direitos políticos são modos de exercício da soberania e, portanto, congregam poder decisório uma vez que asseguram aos seus titulares a faculdade de concorrer com sua vontade para a formação das normas jurídicas gerais, o que, por sua vez, constitui condição para que o Estado opere de modo legítimo e democrático. 6. O poder de decidir. 57 Kelsen, H., ob.cit., p.137. 58 Kelsen, H., ob.cit., p.91. 59 Kelsen, H., ob.cit., p.92. 60 Kelsen, H., ob.cit., p.91. 61 Tal observação não infirma a indivisibilidade dos direitos. Evidentemente, o exercício dos direitos políticos pressupõe a existência dos direitos civis. Direito de ir e vir, liberdade de expressão e de informação são imprescindíveis para que os cidadãos exerçam direitos políticos. Mas, os direitos políticos são os direitos específicos, que possibilitam a existência de alguma conexão entre a vontade dos cidadãos e as normas jurídicas gerais que a todos obrigam. Em face das particularidades dos direitos políticos até aqui descritas, é necessário distingui-los de outras possibilidades de participação que, por vezes, são tratadas como direitos políticos, ainda que assim não possam ser consideradas. Habermas, por exemplo, define os direitos de participação como a institucionalização da opinião pública e da formação da vontade que termina com decisões sobre direitos e políticas públicas.62 De acordo com esse autor, tais direitos permitem a incorporação pelo Estado do poder comunicativo gerado na sociedade. E esse poder comunicativo é gerado pelas pessoas quando agem em conjunto e em acordo. Ele é criado quando as pessoas interagem e desaparece quando elas se dispersam.63 É esse poder comunicativo gerado na sociedade que coloca em movimento o Estado constitucional. A concepção de direitos políticos que se defende neste trabalho é próxima dessa apresentada por Habermas. Há, contudo, uma diferença de ênfase. O filósofo não traça qualquer distinção entre os direitos que permitem que os cidadãos decidam e aqueles direitos que os autorizam a reivindicar ou a influenciar. Para Habermas, direitos de participação política são formas institucionalizadas de autodeterminação, mais especificamente, referem-se à formação da opinião pública na esfera pública, à participação de partidos políticos, à participação em eleições, à deliberação e à tomada de decisões parlamentares.64 Na concepção aqui desenvolvida, os direitos políticos correspondem a um conjunto de faculdades outorgadas aos cidadãos para que se organizem, lutem pelo poder e o controlem, lutem pela prevalência dos interesses de seus grupos e, finalmente, para que decidam coletivamente aqueles que deverão ocupar o poder ou mesmo para que formulem outras decisões que vincularão a atuação do Estado. Os direitos políticos contemplam também o direito dos cidadãos controlarem os atos dos agentes públicos. Todos os direitos políticos pressupõem ou têm como referência o poder decisório do conjunto dos cidadãos, o poder que eles têm de fazer com que sua vontade coletiva seja considerada pelo Estado. Na teoria de Habermas efetivamente não há qualquer necessidade de diferenciar direitos de participação de direitos de decisão, porque o autor aplica o chamado princípio do discurso para interpretar a organização do Estado constitucional democrático. Tal princípio proclama que a validade das normas de ação depende do acordo daqueles que serão afetados por essas normas.65 O princípio do discurso pressupõe, entre outras coisas, igualdade
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