Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI TEORIA DO CONHECIMENTO II GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 3 2 CONHECIMENTO E SOCIOLOGIA ........................................................................ 4 2.1 Karl Mannheim e o conhecimento como objeto sociológico.................................. 4 2.2 Sociologia do conhecimento e teoria do conhecimento ........................................ 7 2.3 Conhecimento e pensamento decolonial .............................................................. 8 2.4 O giro decolonial ................................................................................................. 10 3 CONSEQUÊNCIAS DO EMPIRISMO INGLÊS E O RACIONALISMO DE LEIBNIZ......................................................................................................................12 3.1 O pensamento de Leibniz ................................................................................... 13 3.2 A confusão entre força, inércia e energia............................................................ 17 4 A TEORIA DO CONHECIMENTO DE KANT: O IDEALISMO TRANSCENDENTAL ................................................................................................ 18 4.1 O racionalismo .................................................................................................... 18 5 A EPISTEMOLOGIA E OS ESTUDOS DA RELIGIÃO .......................................... 20 5.1 Epistemologia genética de Jean Piaget .............................................................. 22 5.2 Epistemologia histórica de Gaston Bachelard ..................................................... 23 5.3 Epistemologia arqueológica de Michel Foucault ................................................. 23 5.4 Epistemologia crítica de Karl Popper .................................................................. 24 5.5 Epistemologia crítica de Jürgen Habermas ......................................................... 24 5.6 Epistemologia e religião ...................................................................................... 25 6 A FENOMENOLOGIA ........................................................................................... 25 6.1 Fenomenologia: conceitos e origens .................................................................. 25 6.2 Fenomenologia: principais autores ..................................................................... 28 6.3 Edmund Husserl (1859–1938) ............................................................................ 28 6.4 Fenômeno religioso ............................................................................................ 29 3 6.5 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) .................................................................. 33 6.6 Jan Patočka (1907-1977) .................................................................................... 34 6.7 Fenomenologia como método fenomenológico .................................................. 35 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 CONHECIMENTO E SOCIOLOGIA A sociologia do conhecimento é uma corrente teórica que tem origem nas discussões, já existentes desde o fim do século XIX, sobre a especificidade dos objetos estudados pelas ciências naturais e as ciências culturais. Ao mesmo tempo, essa sociologia nasce como um esforço intelectual para compreender o contexto de produção do conhecimento, reconhecendo que a realidade cultural, política, social e econômica de uma determinada época afeta diretamente a vida intelectual e o conhecimento produzido. Os autores clássicos da sociologia, Marx, Weber e Durkheim, apresentaram análises sobre a produção de conhecimento e a vida social. No entanto, foi somente na década de 1920, com as reflexões sistematizadas do filósofo Max Scheler e do sociólogo e Karl Mannheim, que a sociologia do conhecimento surge como um campo de estudo específico. Mas afinal, qual o objeto de estudo dessa sociologia? A sociologia do conhecimento objetiva avaliar os aspectos sociais da produção do conhecimento, em outras palavras, o conhecimento do conhecimento. Sobre isso, veja o trecho a seguir: a singularidade da Sociologia do Conhecimento deriva do fato de que toma por objeto todo o conhecimento tornando-se um conhecimento do conhecimento, um conhecimento reflexivo [...]. Deste modo, a reflexividade é a operação que permite pôr em descoberto o sujeito do conhecimento, tematizando-o como parte, como parte ativa, do ato de conhecer (LAMO DE ESPINOSA; GARCÌA; ALBERO, 1994, p. 48 apud RODRIGUES JÚNIOR, 2002, p. 116) Desse modo, a sociologia do conhecimento se distingue da teoria do conhecimento, como você verá a seguir, consolidando-se como um ramo da sociologia atualmente dedicado a diferentes questões relacionadas à sociedade e ao conhecimento científico, às instituições voltadas para a produção de conhecimento e bens simbólicos, às universidades e à educação. 2.1 Karl Mannheim e o conhecimento como objeto sociológico Na perspectiva de Karl Marx e Frederich Engels, a infraestrutura determina a superestrutura. Desse modo, o conhecimento é produto das relações que os homens estabelecem entre si, relações essas que são baseadas nas condições concretas da existência (possuir ou não possuir meios de produção). Dentro desse contexto, a 5 ideologia, diz Marx, é o pensamento distorcido da realidade e que é imposto pela classe dominante. É o meio de tornar ideias como verdadeiras e aceitas pela sociedade, mas sempre atendendo aos interesses da classe dominante. Na visão de Karl Mannheim, a teoria marxiana é insuficiente para explicar a relação entre a produção de conhecimento e a realidade social. Fonte: www.filosofianaescola.com.br Segundo o autor, é necessária uma autorreflexão que questione inclusive a própria noção de ideologia. Ou seja, se, para Marx, o desmascaramento das ideologias é o núcleo central da questão do conhecimento, para Mannheim todo e qualquer pensamento é determinado pela realidade social, não só a da classe dominante. Assim, todo conhecimento é um conhecimento perspectivado, pois tem como base nossas estruturas mentais (que são diferentes umas das outras, uma vez cada indivíduo possui um contexto existencial). Mannheim se desloca do conceito de ideologia e utiliza a noção de perspectiva para explicar que o modo como se percebe um objeto e o que se vê nele está relacionado às estruturas do pensamento. O conhecimento consiste em uma manifestação do pensamento. Essa relação se torna objeto de estudo da sociologia do conhecimento ao longo dos anos, uma vez estabelecida como disciplina científica. O quadro conceitual de Mannheim também apresenta uma reformulação da noçãode utopia, apresentando-a como o conjunto de conteúdos idealizados por grupos sociais que se opõem à realidade existente (MANNHEIM, 1982). 6 Assim, historicamente, a própria burguesia (classe dominante na realidade capitalista), já teve seu caráter utópico ao se contrapor à realidade existente da Idade Média, segundo o autor. Foi somente na modernidade que os ideais burgueses se tornaram grupo social dominante. Em termos metodológicos, a sociologia do conhecimento, a partir de Mannheim, propõe uma análise situacional em que os fenômenos políticos e sociais sejam compreendidos a partir dos grupos/atores sociais envolvidos e dos conteúdos ideacionais desses grupos. Essa análise permitiria a compreensão da natureza social do conhecimento. As investigações realizadas com base na sociologia do conhecimento também destacariam os fatores históricos que ameaçam ou fortalecem a democracia. Nos momentos de conflito, em que grupos sociais se opõem, a compreensão dos fenômenos sociais na dimensão aqui descrita permitiria planejar contextos sociais desejáveis e evitar situações indesejáveis. Contudo, essas intervenções racionais e elaboradas não ocorrem espontaneamente. É preciso identificar os responsáveis pela análise e pelo planejamento de novas realidades sociais. O ator social com essa atribuição é denominado por Mannheim como a intelligentsia. Segundo Vieira (2008, p. 75): Compreender as razões sociais dos antagonismos seria, para ele, essencial para ultrapassar as visões determinadas pelos vieses produzidos e internalizados pelas condições sociais de existência. A sociologia do conhecimento, por meio de um extenso projeto de investigação, seria capaz, em um primeiro momento, de traçar diacrônica e sincronicamente um quadro amplo das diferentes visões de mundo, bem como das suas determinações sociais. Na sequência produziria uma síntese das perspectivas, superando ou minorando os antagonismos que tencionam as relações entre os diferentes grupos e que obstaculizariam a definição de um projeto de desenvolvimento social planejado e negociado. Nesse quadro teórico percebemos a pretensão de intervenção, bem como a representação dos intelectuais ou, mais propriamente, da intelligentsia como agente social mediador. Os homens e as mulheres versados na sociologia do conhecimento seriam os únicos capazes de mediar os conflitos, uma vez que eles reuniriam as condições racionais para localizar historicamente e socialmente os condicionamentos que originam as formas de pensar antagônica. A intelligentsia refere-se aos intelectuais com algum grau de desvinculação social (reconhecendo que os intelectuais também possuem seus vínculos sociais) e que são responsáveis pela manutenção da democracia em momentos de crise e conflito. O intelectual, na teoria de Mannheim, é um ator político social de fundamental importância para a sociedade. O autor via, no conhecimento produzido pela intelligentsia, um meio de intervenção na vida social. 7 2.2 Sociologia do conhecimento e teoria do conhecimento A teoria do conhecimento é o campo de estudo da filosofia que se dedica à reflexão sobre o conhecimento. A filosofia desenvolveu respostas e modos de compreender para questões como “o que é conhecimento? ” ou “como o conhecemos? ”, comuns a todas as áreas do conhecimento científico. Desde a antiguidade, o conhecimento é objeto de questionamentos, no entanto, somente na modernidade essa se torna uma questão central do pensamento filosófico. A teoria do conhecimento destaca a diferença entre consciência (interior) e realidade (exterior). Nesse sentido, conhecer algo implica elaborar um pensamento/representação sobre ele. Dentre as principais correntes epistemológicas, ou seja, relativas à natureza do conhecimento, estão o racionalismo e o empirismo. Racionalismo As ideias são inatas ao homem. Todo conhecimento verdadeiro tem origem na razão. A razão independe da experiência sensível. Método dedutivo: geral para o particular. René Descartes. Empirismo Ideias e conhecimento são resultado da experiência, do que o homem vive. Todo conhecimento deve ser justificado a partir dos sentidos. A razão age de acordo com a experiência sensível. Método indutivo: particular para o geral. Francis Bacon, John Locke, Thomas Hobbes. A teoria do conhecimento também observa o conhecimento a partir de sua essência: Realismo. Idealismo. 8 E pela possibilidade do conhecimento: Dogmatismo. Ceticismo. Assim, a abordagem filosófica concebe o conhecimento a partir da relação entre um sujeito conhecedor e um objeto conhecido, questionando não só a realidade conhecida, mas também a própria capacidade do homem de conhecer (REALE, 2002). A sociologia, por sua vez, consolida o campo de estudo do conhecimento a partir das análises sistemáticas de autores como Karl Mannheim, Robert K. Merton, C. Wright Mills, Thomas Luckmann e Peter L. Berger. A análise sociológica do conhecimento se distingue da teoria do conhecimento ao vincular todo pensamento ao seu contexto histórico social. Ou seja, a construção do conhecimento é analisada a partir da perspectiva histórica e dos valores sociais que marcam a formulação desse conhecimento. Para a epistemologia, abordagem filosófica tradicional, o homem pensante é descrito como sujeito do conhecimento, detentor de racionalidade e capacidade de pensamento autônomo. O conhecimento é resultado do seu esforço individual. Já a sociologia de Mannheim, por exemplo, apresenta a categoria indivíduo como homem em busca do conhecimento (da verdade), que produz conhecimento de acordo com os fatores sociais que o rodeiam. O conhecimento é produto de suas experiências sociais, e não só de sua ação racional em busca de saberes. 2.3 Conhecimento e pensamento decolonial Em sua análise sobre a formação do continente latino-americano e a produção de saberes, o sociólogo peruano Quijano (2005) desenvolve, no fim dos anos 80, o conceito de colonialidade. O autor aponta que as relações de colonialidade não se encerraram com o fim do colonialismo, e que essas dinâmicas de poder permanecem no mundo atual. Colonialismo e colonialidade se distinguem. Enquanto o primeiro se refere a uma relação política e econômica de domínio de uma nação sob outra, a segunda diz respeito a uma manifestação de poder entre duas nações/povos, oriunda do colonialismo moderno. Tal poder se articula por meio 9 das relações de trabalho, na ideia de raça e também na produção do conhecimento (MALDONADO- -TORRES, 2007). O conhecimento, nessa perspectiva, seria produzido a partir de um contexto de colonialidade e subalternidade entre nações. Nesse sentido, não existe modernidade sem colonialidade, pois “[...] a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivada [...]” (MIGNOLO, 2005, p. 75). Ou seja, modernidade e colonialidade são as duas faces de uma mesma moeda. A noção de colonialidade foi ampliada pelo argentino Mignolo (2005), que sugere que essa matriz de poder entrelaça as mais diversas dimensões, como o controle da economia, da autoridade, da natureza, do gênero e da sexualidade e do conhecimento. Em uma tripla dimensão: a colonialidade do poder, do saber e do ser. Essa experiência colonial é indissociável da modernidade (MALDONADO- -TORRES, 2008) e do processo de construção e consolidação do sistema de mundo a partir da colonização das Américas. A colonialidade, portanto, constitui a sombra da modernidade. Mesmo silenciada das mais diversas formas, está na base das sociedades latino-americanas e faz parte do cotidiano das relações sociais: Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na autoimagem dos povos, nas aspiraçõesdos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131). É nessa perspectiva que as ciências sociais muitas vezes incorrem na reprodução da narrativa e das representações de uma perspectiva colonial entre a Europa e o resto do mundo. Nesse sentido, os chamados estudos Sociologia do conhecimento 7pós-coloniais produzem uma crítica às teorias e à sociologia (mais especificamente à macrossociologia da modernização), questionando a ideia de modernidade e propondo uma reinterpretação da história moderna. A modernidade é compreendida a partir de uma crítica às narrativas eurocêntricas. Esses estudos não compõem uma única matriz teórica, mas sim um conjunto de reflexões com orientações distintas e contribuições que indicam um esforço na desconstrução dos essencialismos e uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade (COSTA, 2006). 10 O pensamento pós-colonial também surge a partir da identificação de uma relação antagônica por excelência, ou seja, do colonizado e do colonizador (BALLESTRIN, 2013). Esta sendo não apenas um dado ou um apêndice da constituição do mundo moderno, mas sim a base de sua criação e consolidação. Os estudos pós-coloniais (BALLESTRIN, 2013) possuem um estreito vínculo teórico com três escolas contemporâneas. A primeira consiste no pensamento pós-estruturalista, que destaca a importância e o caráter discursivo do social. Em seguida, a ideia de pós-modernidade no que diz respeito à percepção do descentramento das narrativas e dos sujeitos contemporâneos. Posteriormente, os estudos culturais britânicos, principalmente o pensamento de Stuart Hall e o seu “[...] deslocamento das questões ligadas ao marxismo para temas como racismo, etnicidades gênero e identidade culturais [...]” (COSTA, 2006, p. 118). 2.4 O giro decolonial Foi somente nos anos 90 que a América Latina ganha maior visibilidade no debate sobre colonialidade. Mignolo (2005) destaca o quanto a trajetória de resistência da América Latina está ocultada tanto nas ciências sociais tradicionais como nos estudos subalternos. No final da mesma década, foi constituído o Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) que, formado por intelectuais latino-americanos, realizou “[...] a radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de giro decolonial [...]” (BALLESTRIN, 2013, p. 89), atualizando o pensamento crítico latino-americano e se debruçando sobre as especificidades contemporâneas e a permanência da colonialidade global a nível pessoal e coletivo. O pensamento decolonial, segundo Mignolo (2005), rompe com o projeto pós- moderno e com o pensamento base do pós-colonialismo, propondo contribuir em diversos eixos: Dentre as contribuições consistentes do grupo, estão as tentativas de marcar: (a) a narrativa original que resgata e insere a América Latina como o continente fundacional do colonialismo, e, portanto, da modernidade; (b) a importância da América Latina como primeiro laboratório de teste para o racismo a serviço do colonialismo; (c) o reconhecimento da diferença colonial, uma diferença mais difícil de identificação empírica na atualidade, mas que fundamenta algumas origens de outras diferenças; (d) a verificação da estrutura opressora do tripé colonialidade do poder, saber e ser como forma 11 de denunciar e atualizar a continuidade da colonização e do imperialismo, mesmo findados os marcos históricos de ambos os processos; (e) a perspectiva decolonial, que fornece novos horizontes utópicos e radicais para o pensamento da libertação humana, em diálogo com a produção de conhecimento (BALLESTRIN, 2013, p. 110). A opção pelo termo decolonial, em vez de descolonial, visa a marcar uma distinção com o significado de descolonizar em seu sentido clássico. A descolonização compreende a superação do colonialismo, que envolve as lutas políticas por independência das antigas colônias. Já a decolonialidade, na perspectiva desses autores, refere-se a um projeto mais profundo de transcender a colonialidade e subverter o padrão de poder colonial. Ainda que essas questões em comum sejam apontadas, muitos autores dos estudos pós-coloniais e decoloniais não se aproximam ou não se aprofundam em uma discussão sobre o Brasil. A colonização portuguesa nos apresenta um país com um contexto muito específico perante os outros países da América Latina. No entanto, muitos autores brasileiros apresentaram um pensamento bastante semelhante à crítica pós-colonial, como Paulo Freyre ou Darcy Ribeiro, e muitos, ainda hoje, atuam no mesmo sentido, ainda que não se filiem ao grupo Modernidade e Decolonialidade. Segundo Reis e Andrade (2018), a execução do projeto decolonial envolve apropriar-se dos recursos utilizados pelo colonizador para construir um projeto educacional de fato emancipatório: Similarmente, a fim de se colocar em prática o projeto decolonial, tornar-se-á necessário utilizar os aparatos educacionais, políticos e curriculares a fim de se proporcionar o direito à voz aos sujeitos subalternos, constituindo-os como seres epistemologicamente situados nas práxis reflexivas da condição subalterna. Para tanto, tornar-se-á necessário um currículo educacional cuja pluriversalidade configure orientação teórico-metodológica na produção dos conhecimentos (REIS; ANDRADE, 2018, p. 7). No Brasil, por exemplo, o pensamento decolonial orienta algumas práticas de educação escolar indígena. Os projetos, liderados pelos movimentos indígenas, reivindicam a valorização de sua cultura também em termos epistemológicos. Ou seja, um modelo e um currículo educacional baseado em Sociologia do conhecimento 9suas próprias concepções de mundo, como, por exemplo, a consideração dos interesses coletivos em detrimento dos individuais e a visão não exploratória da natureza (REIS; ANDRADE, 2018). 12 Essas alternativas pedagógicas se opõem ao modelo de educação baseado no interculturalismo que predomina na América Latina. Esse termo é utilizado em políticas neoliberais que visam a uma integração que não transforma as estruturas coloniais de poder e ameniza os conflitos étnicos. A descolonização intelectual é apresentada como passo fundamental para a descolonização do pensamento, um caminho para a emancipação dos povos subalternos. Nesse sentido, a produção do conhecimento atualmente envolve não só as narrativas coloniais, mas a própria revisão da base desse conhecimento. 3 CONSEQUÊNCIAS DO EMPIRISMO INGLÊS E O RACIONALISMO DE LEIBNIZ No séc. XVII, com os avanços da ciência, que ocorreram a partir de Copérnico, Kepler e Galileu, o homem passa a perceber o Universo como produto de uma evolução que ocorre não mais pela ação direta de um Criador que molda uma a uma, ex-nihilo, as suas criaturas, mas pela existência de leis universais da natureza que podem ser expressas matematicamente, estas sim criadas por Deus e sendo a representação de Sua inteligência superior. A questão passa então a ser colocada de uma outra forma: se Deus criou a matéria dando-lhe um sopro inicial, colocando-a em movimento, quais seriam as leis básicas que regeriam a evolução do Universo? Quais seriam as grandezas que melhor representariam a matéria e seu movimento? Que expressões matemáticas melhor representariam os grandes princípios de conservação do universo? A contemplação escolástica medieval da obra divina passa a ser substituída pela pergunta: por quê? Enquanto que o para quê é a pergunta da causa final, ou finalidade, o por quê é a pergunta da causa eficiente, ou causalidade. (PONCZEK,2000) Descartes acreditava num deísmo, no qual Deus criava a matéria e seu movimento sem nenhuma interferência posterior. Nada melhor representa esta concepção do que a célebre frase atribuída ao filósofo francês: “Concedam-mea matéria e seu movimento e eu construirei o Universo. ” 13 Tudo estava assim pré-determinado pelas condições iniciais com que havia sido criada a obra divina. Não havia nenhuma transcendência da matéria além de sua extensão e seu movimento. A partir dessa premissa básica, Descartes construiu a sua complexa teoria dos vórtices, na qual, através de uma longa rede de causas e efeitos, tenta explicar desde a origem e a evolução do universo até a formação da crosta terrestre. O filósofo francês acreditava também na existência de leis fundamentais da natureza, criadas juntamente com a matéria, e que assim foram formuladas em seu livro, Princípios de Filosofia: Cada coisa permanece no mesmo estado o tempo que puder e não muda este estado senão pela ação das outras e cada parte da matéria jamais continua a mover-se segundo linhas curvas, mas sim segundo linhas retas. Se um corpo que se move encontra outro mais forte que ele, não perde nada de seu movimento e se encontra outro mais fraco, a quem possa mover, perde de seu movimento aquilo que transmite ao outro. A primeira lei é uma espécie de princípio de inércia, que Newton formularia com mais precisão nos Principia, enquanto que a segunda é uma lei geral dos choques, na qual Descartes postula que Deus é a primeira causa do movimento, e que Ele conserva uma mesma quantidade de movimento no universo. O sábio francês queria dizer, em linguagem moderna, que se um corpo pequeno colide com outro grande (corpo mais forte) ele inverte a sua velocidade, algo como uma bolinha de ping-pong colidindo com uma parede. E se o corpo colidir com um menor (outro mais fraco) transmitirá parte de sua quantidade de movimento a este segundo corpo. Estava assim estabelecida a lei geral de conservação do movimento, que, para Descartes, tinha a sua verdadeira medida como o produto da massa 3 pelo módulo da velocidade do corpo, sendo assim, a grandeza representativa da imutabilidade e perfeição na obra do Criador. O filósofo francês não tinha, a exemplo de Galileu, um conceito claro de massa, a qual confundia com o volume, o peso e a força do corpo, além de que seu conceito de velocidade não era vetorial e sim escalar, valendo para a conservação apenas o seu módulo. 3.1 O pensamento de Leibniz Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), matemático, filósofo, político e historiador alemão, nascido em Leipzig, pode ser considerado, juntamente com 14 Newton, Descartes, Galileu e Spinoza, um dos maiores espíritos do séc. XVII. Sua contribuição foi imensa em cada uma das atividades em que atuou. Em matemática, sua grande façanha foi a de ter desenvolvido o cálculo integral-diferencial independentemente de Newton, o que lhe valeu injustas acusações de plágio por parte dos seguidores do sábio inglês. Além de publicar seu trabalho antes, ele o fez, ao contrário de Newton, com a notação de diferenciais tal qual a conhecemos atualmente. Fonte: www.celeb-networth.com.br Filosoficamente, Leibniz criou um sistema de pensamento próprio, de certa forma, contrário ao de Descartes, acreditando que, para a concepção do Universo, não bastavam apenas a extensão e o movimento da matéria, mas era necessário também introduzir algumas ideias metafísicas, como o esforço, a vontade e a alma. Uma outra noção fundamental, não só do sistema filosófico de Leibniz, como a de outros sistemas filosóficos racionalistas contemporâneos, foi a de causa imanente, que se expressa, causa aequat effectum, isto é, uma identidade completa entre a causa e seu efeito que neste se manifesta, exprime e esgota. (PONCZEK,2000) Leibniz, embora concordando com Descartes sobre a necessidade de exatidão nos princípios e no método, considerava indispensável devolver à ciência certas noções que os cartesianos haviam excluído. Contra o dualismo cartesiano, que opõe a matéria (res extensa) ao pensamento (res cogitans) situando-os em domínios distintos, Leibniz propõe a teoria das mônadas, espécie de átomo da espiritualidade e da força da matéria, não vendo nenhuma contradição entre esta e o espírito. 15 Passa, assim, a buscar a verdadeira representação matemática da força (vis) das mônadas. Para Spinoza, também não havia dualidade porque tanto o pensamento como a extensão da matéria eram manifestações da substância divina, e esta se confundia com a própria natureza e suas leis. Leibniz e Spinoza, ao contrário de Descartes, eram pensadores monistas. (PONCZEK,2000) Leibniz tentava também descobrir uma forma melhor de achar a verdadeira medida do movimento da matéria a qual atribuía, como Descartes, à uma força que lhe é imanente. Lembrando-se das experiências de Galileu Galilei, descritas em seu livro Duas Novas Ciências, no qual o sábio italiano concluiu que a velocidade final de corpos em queda livre não dependia do peso, mas apenas da altura da qual caíssem. Compreendeu Leibniz que um objeto pesado causaria mais impacto ao atingir o solo do que outro leve, supondo ambos caindo de uma mesma altura e adquirindo, portanto, a mesma velocidade final. O filósofo alemão acreditava que, para medir a força, bastava encontrar uma maneira de medir o impacto causado pelo corpo. Esse, por sua vez, de acordo com o princípio de identidade entre causa e efeito, confundir-se-ia com a própria força, pois, que esta lhe é imanente. É então importante notar que, para a filosofia leibniziana, a força e o impacto, o qual faz o corpo erguer-se novamente, eram um par constituído pela causa imanente e o correspondente efeito que a exprime. Assim, a força descendente, o impacto e a nova força ascendente formariam uma tríplice cadeia de causas imanentes e efeitos. Em 1686, Leibniz, em sua obra Discurso de Metafísica, estuda mais profundamente a Física dos choques, reformulando os conceitos cartesianos, que passa abertamente a criticar: Frequentemente nossos novos filósofos se servem da famosa regra em que Deus conserva sempre a mesma quantidade de movimento do universo. De fato, isto é muito plausível e antes eu próprio a tinha como indubitável. Porém há algum tempo reconheci em que consiste o seu erro. O Senhor Descartes e muitos hábeis matemáticos têm acreditado que a quantidade de movimento, isto é, a velocidade multiplicada pela magnitude (massa) do móvel é exatamente a força motriz ou, para falar matematicamente, que as forças estão na razão direta das velocidades e das magnitudes(...) Seu argumento básico é de que um corpo A de massa quatro vezes menor que a de um corpo B, porém caindo de altura quatro vezes maior, ao colidir com o solo, deve ter uma força igual. Galileu e Torricelli já haviam descoberto que as 16 velocidades finais de um corpo em queda livre eram proporcionais à raiz quadrada da altura, e assim o corpo A, quando tocasse o solo, teria uma velocidade apenas duas vezes maior que a do corpo B, o mesmo acontecendo com sua quantidade de movimento. (PONCZEK,2000) No entanto, a razão entre as velocidades deveria ser de quatro para um, e assim, Leibniz prova que a grandeza que mede o movimento e, portanto, a verdadeira medida da força, é a massa vezes o quadrado da velocidade, isto é, mv2, e não mv, como acreditavam os seguidores de Descartes (os novos filósofos a quem Leibniz refere-se).Na argumentação acima, é importante ter-se novamente o entendimento claro de que a força (vis), como causa prima, o impacto como efeito e causa imanente de seu novo efeito expresso na elevação do corpo, devem converter-se inteiramente um no outro, para que este assim retorne à sua altura original. Em seu Essay de Dynamique (Ensaio sobre Dinâmica) , Leibniz escreve como seu primeiro axioma: (no ciclo completo que começa com a queda e termina com o corpo elevando-se à altura original) A mesma quantidade de força é conservada, ou melhor, o efeito todo é igual à causa total . Sendo esse axioma uma exigência básica doprincípio metafísico de identidade entre causa imanente e efeito. Para uma minuciosa análise dos argumentos de Leibniz a favor da vis viva e contrários à quantidade de movimento de Descartes, o leitor poderá consultar o artigo Wich is the true force? Descartes Quantity of Motion or Leibniz vis viva? de L.A. Silva e J.B. Bastos Filho. No artigo em questão, os autores demonstram que a afirmação central de Leibniz de equivalência causal entre dois corpos de massas distintas, situados inicialmente em alturas inversamente proporcionais às suas massas, pode ser inferida da estática, o que historicamente lhe dá uma aura de credibilidade, pois esta ciência já estava bem estabelecida na época de Leibniz. Em seguida, os autores consideram um experimento mental distinto, substituindo o efeito final elevar-se à mesma altura por deformar uma superfície, mostrando que o princípio metafísico de causa imanente é aplicável também para o que hoje denominamos de choques totalmente inelásticos. A grandeza mv2, nomeada de vis viva, e a quantidade de movimento de Descartes, mv, passaram então a disputar entre si o status de verdadeira medida do movimento e da força de um corpo. A questão foi motivo para grande discussão entre os cartesianos e os leibnizianos e tomou conta de todo círculo científico da época. 17 3.2 A confusão entre força, inércia e energia É importante esclarecer que, antes do advento dos Principia de Newton, o conceito de força (vis) dos séc. XVI e XVII estava ainda impregnado de um aristotelismo escolástico, dos quais nem os grandes Descartes e Leibniz conseguiram se desvencilhar. Para Aristóteles, um corpo em movimento possuía uma vis imanente que era necessário se esgotar para que o corpo pudesse parar em seu lugar natural. A força era, então, a medida do próprio movimento, e algo que lhe era inerente. O próprio Newton levou cerca de vinte anos para formular a primeira lei de movimento, lutando contra a sua consciência, até então impregnada de conceitos, como forças inatas e vis inertiae e coisas que o valham. (PONCZEK,2000) Somente com a formulação completa de suas três leis de movimento é que a força começou a ser percebida como algo extrínseco ao corpo, que lhe é comunicada por outros corpos que estão em sua vizinhança e que faz mudar o seu estado. O conceito newtoniano de força é, então, filosoficamente bem distinto da vis viva de Leibniz. Pois, em Newton, a força, ao contrário da vis do filósofo alemão, é causa transcendente da mudança do movimento de um corpo, uma vez que nele não se origina nem se esgota, porque provém de sua vizinhança (outros corpos) que, às vezes, como na força gravitacional, podem estar distantes. A ação à distância, por não poder ser jamais uma causa imanente, foi inclusive objeto de sérias críticas e controvérsias, que se prolongaram ao séc. XVIII e XIX, só sendo convenientemente esclarecida depois da invenção do conceito de campo por Faraday e Maxwell. Em linguagem moderna, poderíamos dizer que só a partir das leis de Newton é que os conceitos de volume, peso, força e massa foram claramente separados e definidos. Explica-se, assim, historicamente, o porquê da disputa em que praticamente todos os grandes sábios do séc. XVII envolveram-se para decidir qual era a verdadeira medida do movimento. Em geral, os sábios italianos e alemães defendiam as ideais de Leibniz, enquanto que os franceses eram quase todos cartesianos. A polêmica tornou-se áspera e até o filósofo Voltaire dela tomou parte do lado dos cartesianos. 18 4 A TEORIA DO CONHECIMENTO DE KANT: O IDEALISMO TRANSCENDENTAL Immanuel Kant (1724 1804) é reputado como o maior filósofo após os antigos gregos. Nasceu em Königsberg, Prússia Oriental, como filho de um artesão humilde; estudou no Colégio Fridericianum e na Universidade de Königsberg, na qual se tornou professor catedrático. Não foi casado, não teve filhos e nunca saiu da sua cidade natal. Levou uma vida extremamente metódica; conta-se que os habitantes de sua cidade acertavam os seus relógios quando o viam sair para passear às 3 h e 30 min da tarde. Fonte: www.fernandonogueiracosta.com.br 4.1 O racionalismo O racionalismo é a "posição epistemológica que vê no pensamento, na razão, a fonte principal do conhecimento" (Hessen, 987, p. 60); a experiência externa ou sensível2 é secundária, podendo até ser prejudicial ao conhecimento3 . "Em sentido estrito, (o racionalismo é o) conjunto das filosofias que sustentam que basta o pensamento puro, tanto para a ciência formal, como para a ciência fática" (Bunge, 1986; p. 165). Platão (428/7 348/7 a.C.) acreditava que o mundo sensível (o mundo percebido pelos cinco sentidos) está constantemente mudando.Visto que o conhecimento real 19 tem as características de necessidade lógica e validade universal, ele não pode ser encontrado no mundo sensível. Para Platão, existe um segundo mundo. Tem uma realidade independente dos seres humanos, embora objetiva, existe fora de nós objetivamente. (SILVEIRA, 2002) Objetos do mundo sensível são cópias distorcidas de ideias; por exemplo, um corpo pode ter a forma aproximada de um triângulo retângulo, mas nunca se tornará verdadeiramente um triângulo retângulo. No entanto, conhecemos um triângulo retângulo e também sabemos que a soma dos quadrados das pernas é igual ao quadrado da hipotenusa. Moralidade e conceitos estéticos, como justiça, virtude e beleza, também são objetos do mundo do pensamento. Mas como você tem a chance de entrar neste mundo? Platão respondeu com a teoria da memória: a alma participou do mundo do pensamento na vida anterior da terra e pensou sobre este mundo. Então ele se tornou um membro da raça humana como uma reencarnação. Mas a alma traz os objetos imateriais deste mundo para um ideal inato. Desse modo, o que Platão sabe é lembrar. René Descartes (1596 1650) é o fundador do racionalismo moderno. Ele acredita firmemente que a razão pode obter conhecimento da realidade de maneira semelhante ao conhecimento matemático, ou seja, inferindo princípios estabelecidos independentemente da experiência, ele restaura sua teoria ideal inata. Ele disse que os ideais claros e únicos encontrados em nossas mentes por meio da dúvida organizada estão corretos, porque Deus não dará às pessoas uma razão para enganá-lo sistematicamente. Descartes produziu física (mecânica de Descartes) por volta de 1630 após seu projeto racionalista. Descartes partiu da hipótese da existência perfeita que criou todas as coisas e impressionou o movimento, e exigiu que o movimento fosse preservado, então Descartes derivou a lei da conservação do movimento total no mundo material. Caso contrário, o universo irá parar, revelando suas falhas sagradas. Ele esclareceu o princípio da inércia. Salientando que o corpo só pode interagir por meio do contato e negando a possibilidade de um vácuo; ele inferiu que o movimento deve consistir em rearranjos periódicos de objetos, ou seja, se ele apenas se move ao longo de um circuito fechado (vórtice ou teoria do vórtice), um número limitado de objetos pode mudar de posição sem criar vácuo. O peso de um objeto é o resultado da ação de contato do fluxo de material com o centro do vórtice associado 20 ao planeta. Os planetas se movem no vórtice solar. A mecânica de Descartes precedeu a mecânica newtoniana e tornou-se influente na França e na Inglaterra após a morte de Descartes. (SILVEIRA, 2002) Isaac Newton, inicialmente cartesiano, acabou criticando a e a física de Descartes, em particular a teoria dos vórtices. A epistemologia newtoniana era o empirismo e, como se sabe, para explicar o movimento dos corpos celestes, formulou a lei da gravitação universal. Durante a quarta década dos Setecentos, anos após a morte de Newton e algumas décadas após a publicação dos Principia, a mecânica newtoniana ainda sustentavauma tenaz resistência dos cartesianos das academias e círculos científicos franceses. A tenacidade dos cartesianos foi lentamente erodida pelas críticas dos pensadores e físicos franceses 8 que já possuíam o programa newtoniano. O enciclopedista Voltaire (1694 1778), ao retornar para a França depois de três anos (1726 a 1729) entre os ingleses, foi o grande divulgador da Mecânica Newtoniana entre os leigos Até Voltaire e os seus amigos terem ajudado a propagar as tradições analítica e empírica inglesas, a França estivera em colossal medida sob o sortilégio do racionalismo de Descartes. Embora a base do conceito noético francês tenha permanecido cartesiana, a influência newtoniana era um fermento bem-vindo. (Bronowski e Mazeles, 1983; p. 264) A Academia de Ciências da França em 1735, persuadida pelo físico francês (newtoniano) Maupertius, decidiu enviar expedições ao Peru e à Lapônia para medir o comprimento do arco subtendido pelo ângulo de 1o do meridiano terrestre. Estas medidas tinham o objetivo de determinar experimentalmente se a Terra era achatada nos pólos como a Mecânica Newtoniana previa, ou era achatada no equador como a Física Cartesiana expressava verbalmente. 5 A EPISTEMOLOGIA E OS ESTUDOS DA RELIGIÃO Você já pensou no que é necessário para que uma ciência se constitua como tal? Ou em quais são as garantias de que um conhecimento seja de fato verdadeiro no sentido científico? São questões relevantes para as ciências, pois, antes mesmo da produção de um resultado de pesquisa, é preciso garantir a veracidade dos resultados, principalmente por meio da elaboração de regras e bases metodológicas. 21 No sentido aqui empregado, o termo ciência deve ser tomado lato sensu, como um tipo de conhecimento sistematizado e organizado de modo que as teses formuladas tenham o status de conhecimento científico. Assim, a existência de uma ciência exige a existência de um método: o método científico. Contudo, esse método não é único, além de existirem diversas teorias sobre quais métodos científicos são mais corretos ou capazes de garantir maior validade ou veracidade ao conhecimento que se produz. O ramo do conhecimento que estuda essas condições é a epistemologia, também chamada de teoria do conhecimento, ou ainda teoria ou filosofia das ciências. “Epistemologia” é uma palavra de origem grega, formada pela junção de dois termos: episteme, que significa ciência, e logos, que significa conhecimento. Desse modo, a etimologia da palavra já revela seu campo de estudo, que é as ciências. Mais rigorosamente, seu objeto é o estudo do conhecimento em geral, além da gênese e estruturação das ciências (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 64–65). Desse modo, a epistemologia se debruça na reconstrução de uma determinada forma de conhecimento para pensá-la como ciência, como um conhecimento que possua princípios que permitam o estudo racional de um determinado ramo do conhecimento como ciência. Assim, a epistemologia de uma ciência busca compreender ou elaborar pressupostos e princípios que permitam a definição do conteúdo e do método de um determinado ramo do conhecimento racionalmente estruturado que pode ser tomado como ciência. A epistemologia também investiga as condições de veracidade e de verificabilidade do conhecimento científico. Em resumo, tarefa mais relevante da epistemologia é definir o que é ciência, o que é conhecimento científico, assim como quais as condições de veracidade e verificabilidade do conhecimento científico. Chauí (2000, p. 66) resume bem qual o objeto de estudo da epistemologia: “[...] análise crítica das ciências, tanto as ciências exatas ou matemáticas, quanto os naturais e as humanas; avaliação dos métodos e dos resultados das ciências; compatibilidades e incompatibilidades entre as ciências; formas de relações entre as ciências, etc.” A epistemologia é, portanto, essencial para garantir a validade e verificabilidade de conhecimentos científicos. Destina-se a estudar e elaborar métodos que sejam compatíveis com os objetos observáveis com o objetivo de conferir o maior grau de 22 segurança possível aos resultados das pesquisas. Consequentemente, é importante para todos os ramos que produzem conhecimentos científicos. Os dois principais cursos acadêmicos que abordam o tema da religião são a teologia e as ciências da religião. É bem verdade, porém, que a religião como um fato humano pode ser e é objeto de estudo em diversos cursos e áreas do conhecimento, dada sua interdisciplinaridade. É comum, por exemplo, observar os estudos das religiões nas áreas de filosofia, sociologia e psicologia, entre muitas outras. Todos esses cursos ou áreas do conhecimento produzem conhecimentos comprometidos com o rigor argumentativo e racional, ou seja, buscam a produção de conhecimento científico. Assim, a epistemologia se revela relevante no estudo das religiões para garantir a certeza e segurança dos conhecimentos produzidos. A epistemologia pode, por exemplo: distinguir um conhecimento científico de um não científico produzido em determinado estudo; ajudar a solucionar problemas metodológicos ou científicos durante toda a pesquisa; demonstrar a invalidade de um estudo por uso de metodologias não aceitas ou errôneas; construir modelos paradigmáticos válidos para utilização em ciências no geral, dentre outras contribuições. Por esses motivos, a epistemologia revela em si a sua relevância. É importante ressaltar que a epistemologia não é única, Fenomenologia: definição e concepções nem mesmo os seus métodos. Existem linhas ou modelos epistemológicos que servem para a aplicação em geral na ciência. Tesser (1994) classifica diferentes linhas epistemológicas contemporâneas, classificação que servirá de base à apresentação a seguir. 5.1 Epistemologia genética de Jean Piaget A partir da epistemologia genética, Piaget buscou compreender como ocorre o processo de aquisição de conhecimento e a passagem de um conhecimento mais simples para um mais complexo (OBANA, 2015). Para Piaget, o conhecimento é construído a partir da interação entre o sujeito e o objeto, entre o organismo e o meio em que se encontra, e entre o pensamento e o objeto de conhecimento. Assim, o conhecimento é produzido pela gênese entre a ordem biológica e empírica do indivíduo, de modo que a inteligência ou o conhecimento construído decorre tanto de um substrato biológico quanto da 23 intersecção com o meio em um processo de complementariedade. Por tais fundamentos, a aquisição de conhecimento e, consequentemente, o desenvolvimento da ciência é um processo progressivo, mediante uma psicogênese. Para Piaget, conforme explica Bartelmebs (2014, documento on- -line): “[...] é necessário, portanto, um conjunto de coordenações de esquemas e conceitos para que um sujeito (o pesquisador, no caso) possa deparar-se com um ‘fato’, já que um fato só existe a partir da interpretação de um sujeito (seja ela correta ou não).” Por esses motivos, a reconstrução e a organização cognitiva do sujeito que pesquisa são também necessárias ao refinamento das teorias, para que se possa avançar a um novo e superior nível de organização da teoria científica (BARTELMEBS, 2014). 5.2 Epistemologia histórica de Gaston Bachelard Bachelard parte da tese de que o processo histórico em que as ciências nascem e se desenvolvem é essencial para compreendê-las (TESSER, 1994). Isso significa que o processo histórico não é meramente acidental, e sim parte da ciência, que deve ser sempre analisada à luz do contexto histórico em que se insere. Por esse motivo, a epistemologia tem como tarefa a descoberta da gênese, da estrutura e do funcionamento dos conhecimentos científicos. Na construção das ciências, ganham evidência a ação racionalista, sua força e seus poderes de criar, se (auto) retificar, se construir, etc. (TESSER, 1994). A ciência éconstruída com base em forças e teses opostas, na polêmica entre elas e nas suas retificações contínuas com o objetivo de se aproximar da verdade, levando em consideração que as produções científicas são obras temporais. Em sua perspectiva histórica, deve-se reconhecer a provisoriedade dos conceitos e possibilidade de retificação constante da ciência. 5.3 Epistemologia arqueológica de Michel Foucault A arqueologia apresentada por Foucault pode ser considerada por alguns como uma epistemologia que consiste em realizar uma análise histórica dos saberes, como eles surgem e se transformam, além de se questionar sobre quais são as condições de enunciação de um determinado pensamento em um momento histórico. Os 24 saberes são analisados levando em conta estruturas sociais, institucionais e políticas, tendo em vista o jogo saber–poder. Assim, com sua arqueologia, Foucault objetiva analisar como as estruturas e os modos de compreensão estão articulados no tempo e no espaço. Contudo, não existe um consenso de que a arqueologia seja de fato uma epistemologia — Gimbo (2017), por exemplo, defende de modo contundente que não seja. 5.4 Epistemologia crítica de Karl Popper Para Popper, as leis e teorias científicas são essencialmente todas hipotéticas e conjecturais, devendo ser analisadas por meio do princípio de verificação e falsificação. A progressão da ciência ocorre pela correção de teorias erradas, que podem ser refutadas pela observação e experimentação. Todas as teorias são provisórias, pois podem ser refutadas por experiências futuras. A ciência progride com a colocação correta dos problemas; por isso, quanto mais falseável uma teoria, isto é, quanto maior a possibilidade de falseamento e resistência ao falseamento, melhor ela será (TESSER, 1994). A falseabilidade é de grande importância, a ponto de demarcar o que é ciência e não ciência. Assim, teses metafísicas ou religiosas não podem ser ciência, porque não são falseáveis. O enunciado “Deus existe”, por exemplo, não pode ser analisado cientificamente, pois não existem meios de falseabilidade, de testar a verdade ou falsidade desse enunciado pela observação e experimentação. 5.5 Epistemologia crítica de Jürgen Habermas Tesser (1994) afirma que Habermas busca com sua epistemologia analisar a responsabilidade social dos cientistas e dos técnicos. Sob esse prisma, a ciência e a técnica se desenvolvem como ideologia, de modo que o saber tem proeminência sobre o poder que ele alimenta. Habermas é um crítico da racionalidade instrumental e do paradigma positivista das ciências, opondo- -se à ideia de que a ciência seja neutra ou necessariamente um caminho para felicidade da sociedade. Aponta, desse modo, que os conhecimentos são postos em movimento e orientados por aqueles os comandam. 25 5.6 Epistemologia e religião As epistemologias das ciências são genéricas e lançam luz sobre os meios pelos quais os métodos científicos deverão ser empregados para o resultado útil da pesquisa. O fenômeno religioso é o principal objeto dos estudos da religião, que tem as ciências da religião como seu principal meio de investigação. As pesquisas em religião, tais quais as demais, devem pensar previamente nos fundamentos epistemológicos para a validade da pesquisa. As epistemologias das ciências servem de base, portanto, às ciências da religião. Para a realização da pesquisa, não se exige a escolha única de uma epistemologia, mas outras podem ser levadas em conta. Assim, é necessário reconhecer as epistemologias das ciências de modo genérico para a compreensão de sua aplicação, de acordo com o estudo e a metodologia a ser empregada. É difícil precisar qual ou quais epistemologias que devem ser empregadas em determinado estudo da religião, pois isso dependerá de vários fatores, como objeto de estudo, referenciais teóricos do pesquisador, tipo de pesquisa e metodologia e até mesmo a opção teórica por uma ou outra epistemologia por parte do pesquisador do estudo em si. 6 A FENOMENOLOGIA 6.1 Fenomenologia: conceitos e origens A fenomenologia surge a partir de uma crise do conhecimento no início do século XIX. Há o questionamento da própria filosofia, enquanto produtora de conhecimento, o que fará consolidar-se enquanto método filosófico existencialista no século XX. Entretanto, sua existência decorre desde os primórdios da filosofia, tanto que a palavra fenomenologia vem do grego phainómenon, que em uma livre tradução significa “aquilo que se manifesta”, “aquilo que se mostra” ou ainda “aquilo que se apresenta”. Já o sufixo logos se refere à “explicação” ou “estudo”. Sendo assim, em um primeiro momento, pode-se afirmar que a fenomenologia seria o estudo/explicação daquilo que se mostra/ manifesta/apresenta (CRITELLI, 2006). 26 Retornando à origem do nascimento da fenomenologia, segundo Heidegger (2015), ela data o século XVIII na escola de Christian Wolff, na obra “Neues Oragon” (1764), de autoria de Johann Heinrich Lambert, vinculada aos movimentos populares da época, onde construiu a teoria da ilusão sob suas diferentes formas. Nesse período, a fenomenologia possuía como significado uma doutrina para evitar ilusões, isto é, a própria teoria da ilusão mais tarde surge como uma disciplina propedêutica que precederia a metafísica, estando ligada a valores e limites do princípio da sensibilidade. Em 1770, Emanuel Kant aborda o termo fenomenologia por meio do Phaenomenologia generalis, para se referir à disciplina propedêutica que deveria ser anterior à metafísica, por meio da obra “Crítica da Razão Pura”, publicada em 1781. Com essa obra, inicia-se a investigação do método fenomenológico e a pesquisa empírica: a construção do conhecimento por meio da experiência de vida. Mais tarde, a palavra fenomenologia se tornou o título da maior obra de Hegel (1807): “A Fenomenologia do Espírito”, popularizando-se com o uso corrente (DARTIGUES, 2009, p. 10). A fenomenologia, ao longo dos anos, passou por três importantes significados: o primeiro conceito, “teoria das aparências”, criado pelo filósofo Jean-Henri Lambert, para diferenciar a aparência das coisas do que elas são em si mesmas, isso no início do século XVIII. O segundo com Hegel, em “Fenomenologia do Espírito”, estabeleceu uma introdução à filosofia, uma espécie de lógica de conteúdo. O terceiro, no início do século XX, com Husserl, o “estudo dos fenômenos em si mesmos”. A fenomenologia deixa de estudar os fenômenos anteriores da realidade e passa a considerá-los em si mesmos, como algo da consciência, e somente por meio desta seria possível apreender o mundo como um todo e assim apreender a essência da realidade. Sendo assim, a fenomenologia passa a ser considerada uma metodologia de ação, que questiona sobre como o ser humano compreende e apreende o mundo ao seu redor. O seu objetivo é entender como o fenômeno se apresenta, como é percebido, como se mostra através da consciência. Para a fenomenologia a consciência é constituída pela intencionalidade. Ao observar a realidade o ser humano atribui significado, que é impregnado de experiências anteriores, conhecimentos, valores, histórias de vida, esses elementos ajudam a interpretar o mundo que o rodeia. O 27 objeto só pode ter um significado a partir da sua relação com a consciência, desse modo, a interpretação pode variar de pessoa para pessoa e a fenomenologia se preocupa com essas singularidades. Sendo assim, o conhecimento é construído por meio da consciência. A fenomenologia considera que não há como separar a subjetividade no momento de olhar a realidade como um todo, pois em toda a experiência a consciência está envolvida no modo como percebemos e sentimos aquilo que é observado, que terá significado/sentido na consciência. A fenomenologia trabalha com o “princípio dos princípios”, em que toda a intuição é uma fontelegítima de conhecimento, valoriza toda crença e juízo de valor, descarta toda proposição científica (REZENDE, 1990). As mudanças que ocorreram ao longo dos tempos na fenomenologia, impactaram significativamente na filosofia, pois a eximiu de possuir uma explicação para todas as suas indagações. Cabe à ciência explicar o mundo e seus fenômenos. A fenomenologia contribuiu com um novo método de abordagem nas ciências humanas, na valorização da consciência dos sujeitos, com uma abordagem científica fundamentada nas características do existir. Na preocupação em explicar as estruturas em que a experiência está inserida, descrevendo-a em sua universalidade. A fenomenologia, como método, é uma investigação para além do ato de descrição. A fenomenologia permite conhecer e explicar aspectos mais profundos sobre as pessoas, como sensações e emoções. Assim, procura compreender a experiência como ela surge para o sujeito e, principalmente, o significado dessas ações para os indivíduos e suas implicações no cotidiano das relações. No que se refere ao Serviço Social, a fenomenologia emerge quando se inicia o rompimento com o neotomismo, na busca por uma postura mais crítica da profissão, distanciando-se da doutrina cristã predominante e rompendo com o Serviço Social tradicional (LIMA; COSTA, 2016). Nessa proposta, a fenomenologia surge como uma releitura do conservadorismo, porém sem rupturas, pois não aborda questões estruturais e conjunturais que ocorrem na sociedade, como os conflitos entre as classes (burguesia e trabalhadores) (TONET, 1984). Esse processo ocorreu na década de 1970, durante o Movimento de Reconceituação, corrente que influenciou principalmente a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, por meio da professora Ana Augusta Almeida. A primeira vez que o Serviço Social apresentou dentre suas escolhas teóricas a fenomenologia, 28 foi no documento de Sumaré, no III Seminário de Teorização do Serviço Social Brasileiro (AGUIAR, 2011). Segundo Tonet (1984), a fenomenologia propicia uma visão existencialista ao trabalho social. Nessa proposta teórica, a intervenção do Serviço Social se basearia no tratamento social, sua principal contribuição seria a introdução do processo de ajuda psicossocial a partir dos princípios do diálogo, pessoa e transformação, elementos que devem estar presentes na intervenção profissional. 6.2 Fenomenologia: principais autores No século XX, a filosofia foi desafiada pelas ciências empíricas no mundo acadêmico. Os professores universitários foram convocados a recuperar sua liderança na academia, e, nesse cenário, surgiram diversos autores com o desejo de consolidar a filosofia como uma ciência fundamental, entre eles Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty e Jan Patočka. A seguir, vamos estudar um pouco mais do contexto em que se formaram esses importantes pensadores. 6.3 Edmund Husserl (1859–1938) Considerado o pai da fenomenologia, era matemático e filosofo. Nasceu em abril de 1859 na cidade de Prostejov, na República Tcheca, e veio a falecer em abril de 1938 em Friburgo. Descobriu sua afinidade com a filosofia quando foi para Viena, em 1884, terminar seus estudos no campo da matemática. Sua primeira influência foi Franz Brentano, um dos renovadores do pensamento aristotélico. Em 1886, converteu-se ao protestantismo luterano e, em 1887, casou-se como Malvine Steinschneider, pessoa fundamental na construção da obra de Husserl. Husserl lecionou em duas universidades, primeiro na Universidade de Göttingen, em 1916, e em 1928 na Universidade de Freiburg, onde permaneceu até se aposentar. Suas principais obras foram Logische Untersuchungen (1900-1901), Ideen zueiner reinen Phänomenologie (1913) e Formale und transzendentale Logik: Versuch einer kritik der logischen Vermont (1929). Para Edmund, a restrição do conhecimento ao puro fenômeno em uma experiência como se dá na consciência, possui como objetivo identificar não o “objeto 29 em si”, mas como ele é representado para o indivíduo. Para ele, o exercício era tentar descrever as vivências dos sujeitos na tentativa de compreender essa dupla vinculação: 1. que a vivência é capaz de se apropriar das coisas do mundo; 2. que essa mesma vivência se concebe e se qualifica de formas diferentes, pode se atribuir categorias e uma essência sobre o mundo que o rodeia. Assim se construiria um método de investigação filosófica, denominada fenomenologia. Husserl defendia que toda a intuição é fonte de um legitimo conhecimento, formadora do “eu humano” onde a consciência é sempre consciência de algo. Nessa proposta, deve-se observar como o sujeito percebe, experimenta e constrói o fenômeno. A análise dos fenômenos é subjetiva, o Fenomenologia 5 que importa é o vivido no cotidiano. A partir desse ponto, descreve-se como os sujeitos vivenciam o fenômeno em questão. O fenômeno tem um lado externo (objetivo e observável) que são os comportamentos e valores e o lado interno (subjetivo) que se refere às emoções, pensamentos, sensações e significados. 6.4 Fenômeno religioso As bases teóricas da fenomenologia de Husserl fornecem os fundamentos para se pensar uma fenomenologia da religião. O teólogo Rudolf Otto (2007) é um dos responsáveis por dar forma a uma fenomenologia religiosa que visa estudar a experiência do sagrado. Sua construção teórica permite pensar a experiência religiosa a partir de referenciais teóricos para além de uma simples expressão da fé, além permitir falar em um fenômeno religioso no sentido fenomenológico propriamente dito. Um dos traços mais universais dos seres humanos é a tentativa de elaborar significações que visam explicar o mundo e a própria existência. Essas tentativas se materializam na grande pluralidade de respostas provenientes de diversas fontes: crenças religiosas, explicações cosmológicas, científicas, técnicas, matemáticas, dentre muitas outras. Dentre tais explicações, a religiosidade ou o fenômeno religioso parece ser universal entre os seres humanos, que, de uma forma ou outra, recorrem a algum conceito de transcendental para dar sentido à vida e para fundamentar normas de conduta ou mesmo explicar fenômenos naturais como o nascimento e a 30 morte. Essas diferentes proposições religiosas podem ser encaradas como uma busca pela verdade, como interpreta Silva (2012). A experiência religiosa é sempre a experiência de um elemento transcendental, isto é, de algo que está para além da materialidade do mundo, que ultrapassa o normal e a experiência comum. Assim, é possível afirmar que a experiência religiosa é transcendental de modo privado ou coletivo, apesar de ser essencialmente uma experiência humana e, por isso, condicionada a um contexto histórico e cultural (CROATTO, 2001). Tal conexão entre experiência religiosa e contexto histórico-cultural é facilmente percebida quando analisamos as religiões que já não são mais praticadas ou as religiões dos diferentes povos pelo mundo. O contexto histórico e cultural em que os seres humanos estão inseridos determina ou no mínimo influencia cada experiência religiosa. Basta pensar que uma pessoa que nasce no Brasil tem muito mais chances de ser cristã do que muçulmana, do mesmo modo que uma pessoa que nasce na Arábia Saudita tem mais chances de ser muçulmana do que adepta a qualquer outro credo. Ainda que as religiões em geral, e em especial as maiores religiões monoteístas do mundo, professem ser a única verdade possível em relação à divindade, é certo que partilhar de uma ou outra crença envolve fatores culturais profundos além da simples defesa de uma fé. Croatto (2001) afirma que a experiência religiosa toma forma a partir da vivência relacional que cada pessoa tem com o mundo, com os outros indivíduos e com o grupo humano. Além disso, a dimensão individual marcada pelos projetos, desejos e frustações de cadapessoa irá marcar a vida de todos, influenciando a experiência religiosa. Tais desejos e projetos impulsionam a consciência para as necessidades específicas da vida em geral, como as físicas (alimento, vestuário, repouso, saúde, moradia, etc.), as psíquicas (bem-estar, amizade, amor, sexo, família, respeito, etc.) e as socioculturais (trabalho, condição social, arte, expressão de crenças, liberdade, etc.). Ainda assim, resta a impossibilidade de satisfação plena e total de qualquer um de nós, na finitude expressa no limite de todas as coisas e da própria vida e na falta de sentido de muitas das experiências. É uma experiência comum repetir perguntas fundamentais que perpassam a história da humanidade: pelo sentido da vida, pela existência da liberdade, pela existência do transcendental, se a verdade corresponde 31 à realidade, dentre muitas outras. Nesse ponto, o ser humano, segundo Croatto (2001), ao sentir a intensidade de suas necessidades e limitações, busca superá-las, negando o limite, ganhando relevância a ideia de uma salvação na instância religiosa. Nesse sentido, o ser humano “[...] é um ser que constantemente procura romper os limites, conseguir superá-los, porém é uma miragem, uma utopia, algo que não existe em lugar algum” (CROATTO, 2001, p. 43). Assim, em grande medida, é possível dizer que a experiência religiosa — assim como muitas outras expressões humanas como as artes, a filosofia e a ciência — é um processo instaurado em maior ou menor medida para lutar ou lidar com o limite inexorável que faz parte da vida. Croatto (2001) ainda menciona como algumas das necessidades humanas são satisfeitas por meio de experiências religiosas gerais: as necessidade físicas por meio de milagres, a exemplo daqueles que promovem cura ou ressurreição; o fornecimento alimento pela dádiva de boas safras; necessidade psíquicas pela experiência de uma paz divina, da vivência de um elemento transcendental; necessidades socioculturais pelo estabelecimento de uma nova ordem social ou narrativas da existência de uma ordem divina legitimadora da liberdade de povos sujeitados a outros, ou ainda da iminente irrupção de um novo mundo, etc. A partir desses exemplos, é possível ver como diversas necessidades gerais da vida humana são de algum modo saciadas ou abrandadas por formas diversas de experiências religiosas. Ademais, os seres humanos também recorreram a experiências religiosas como forma de abrandar ou superar limitações. Seguindo novamente a exposição de Croatto (2001): contra a fragmentação, surge uma transcendência totalizadora; a finitude é superada pelo duradouro, pelo ilimitado; a falta de sentido é superada por promessas e conceitos gerais de esperança multifacetada, a exemplo da libertação da alma, de ressurreição, de ação direta transcendental no mundo material, de ideia de justiça escatológica, etc. Nesse âmbito, é possível utilizar os termos expressão religiosa e fenômeno religioso como sinônimos, para indicar exteriorizações, manifestações ou representações religiosas. Em termos fenomenológicos, o fenômeno religioso designa o termo que aglutina as diversas formas como a religião ou a religiosidade se mostra à consciência, como fatos religiosos, testemunhos, documentos, mitos, hinos e toda a sorte de expressões da religiosidade. Pela aplicação do método fenomenológico, os 32 fatos religiosos são tomados em sua expressão para analisar o que há neles de nuclear, de essencial, permitindo compreender seu sentido. Como os fenômenos religiosos são culturais e históricos, têm expressões e formas diferentes em cada local, cada cultura e cada época. Porém, seguindo a trilha do método fenomenológico de Husserl, seria possível ver a essência universal e imutável de todos esses fenômenos, captando, assim, a sua essência. A partir daí os fenomenológos da religião partiram de abordagens distintas. Rudolf Otto, um dos mais conhecidos, chama de numem o sagrado que é expresso nas experiências religiosas. A categoria numem é sui generis, segundo Otto, por isso “[...] não é definível em sentido rigoroso, mas apenas pode ser discutida. Somente se pode levar o ouvinte a entendê-la conduzindo-o mediante exposição àquele ponto da sua própria psique onde então ela surgirá e se tornará consciente” (OTTO, 2007, p. 39). Assim, o sagrado se expressa na experiência e é possível apreendê-lo quando ele surge e se torna consciente. Essa apreensão ocorre na consciência em quatro momentos, conforme explicam Croatto (2001) e Reale e Antiseri (2006). No primeiro momento, ocorre como um sentimento de dependência e de ser criatura, do qual se abstrai a existência de um objeto fora de nós. Assim, existe um algo que nos causa, como se fosse um sentimento profundo de dependência. Esse sentimento tem como fonte o numinoso, que, nesse aspecto, se assemelha muito à intuição da essência que vem à consciência, conforme Husserl. Otto (2007, p. 42) afirma que o sentimento de criatura é “[...] apenas um efeito colateral, subjetivo, é por assim dizer a sombra de outro elemento de sentimento (que é o ‘receio’), que sem dúvida se deve em primeiro lugar e diretamente a um objeto fora de mim. Esse é justamente o objeto numinoso”. O segundo momento revela uma atitude de sumo respeito da experiência religiosa, chamado de tremendum. O numinoso se revela em sua inacessibilidade, mas também em seu aspecto avassalador, denominado majestas, e em seu aspecto “enérgico”, sentido e vivenciado simbolicamente na “[...] vivacidade, paixão, natureza emotiva, vontade, força, comoção, excitação, atividade, gana. Essas suas características também aparecem tipicamente nas gradações que vão do demoníaco até o Deus ‘vivo’” (OTTO, 2007, p. 55). 33 No terceiro momento, o sagrado revela-se como um sujeito fora do eu, como inteiramente. Outro, atrelado ao sentimento de absoluta dependência de criatura e da inacessibilidade do Outro. Trata-se da fase do mysterium, “[...] apenas uma analogia, oriunda do meio natural, para aquilo a que nos referimos, uma analogia que não esgota o objeto em si” (OTTO, 2007, p. 58). O sagrado é então apreendido como mysterium tremendum, ou, em tradução literal, um mistério tremendo/arrepiante, que indica o não manifesto, o extraordinário, o incomum. Por fim, no quarto e último momento, o mistério se liga e se impõe como fascinans, como atraente e capaz de gerar a felicidade. A pessoa religiosa é aquela com um maravilhamento estupefato, fascinado, diante do mistério religioso tremendo que é experenciado como totalmente outro. Otto (2007) afirma que a experiência de um fascinans no cristianismo é conhecida como experiência de graça e renascimento, mas que outras religiões de elevada espiritualidade têm seus equivalentes de sentimentos apreendidos como fascinans, a exemplo do nirvana de Buda. Provavelmente por esse e outros motivos, conforme Croatto (2001), as experiências religiosas em todas as religiões acabam se revelando expressões do sagrado como um mistério que fascina e que é ao mesmo tempo tremendo. Conclui- se, dessa maneira, que a expressão religiosa pode assumir diversas formas e está intimamente ligada à cultura, ao espaço e ao tempo em que está inserida. Porém, a fenomenologia oferece ferramentas que permitem interpretar e analisar as expressões ou fenômenos religiosos com a finalidade de visualizar a sua essência, que, em razão do próprio método aplicado, é tida como universal independentemente dos contextos em que está inserida. 6.5 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) Considerado um dos filósofos fenomenológicos mais importantes da França, Merleau-Ponty nasceu na cidade de Rochefort-sur-Mer em 14 de março de 1908 e morreu em Paris a 3 de maio de 1961. Formou-se como filósofo em 1930, aos 23 anos de idade. Foi professor no Liceu (nome dado às escolas da época) de Beauvais em 1931, noLiceu de Chartres em 1934 e na Escola Normal Superior em 1935, permanecendo lá até 1939. 34 Além de professor, foi oficial do exército na Segunda Guerra Mundial. Trabalhou ainda em outras instituições de ensino superior na França. Após 1945, juntamente com Jean-Paul Sartre, foi coeditor da revista Les Temps Modernes (Os Tempos Modernos), parceria que durou até 1952. Possui como maior influência Edmundo Husserl. Suas principais obras são “A Estrutura do Comportamento” (1942) e “Fenomenologia da Percepção” (1945), livros que agregaram importantes contribuições para fenomenologia. Em 1947, publicou “Humanismo e Terror”, de vertente marxista, e em 1955 escreveu “As Aventuras da Dialética”, no qual o marxismo é visto como mais um método para alcançar a verdade. Apesar de seguir os ensinamentos de Husserl, Merleau-Ponty escreve sobre fenomenologia à sua maneira, utilizando os conceitos mais gerais, como o retorno às coisas em si mesma, a descrição, a redução, a constituição e a intencionalidade. Dentre esses conceitos, o tema central é a redução fenomenológica — que busca, segundo ele, o mundo natural e social. Defende uma descrição direta do mundo como ele é, por meio das experiências como elas são (MARQUES, 2015). Para o autor, as relações vividas pelos sujeitos com outros sujeitos e com o mundo que os rodeia, pode ser percebida, inicialmente, em sua totalidade. Isso significa que em um primeiro momento as pessoas conseguem compreender um objeto como um todo, por meio de sua consciência. Entretanto, após esse primeiro contato, passa a ser um fenômeno a partir da experiência que possui com ele. Desse modo, o homem é o centro dos debates sobre o conhecer, que é criado e conhecido pelo corpo. O processo fenomenológico é uma modalidade existencial, que forma a estrutura do mundo. Essa visão proporciona um novo aprendizado sobre o mundo que o rodeia. Sendo assim, a base dos seus estudos está na percepção que o sujeito possui do que o cerca e do significado que dá a ele. 6.6 Jan Patočka (1907-1977) Filósofo tcheco, considerado um dos principais autores da fenomenologia na Europa Central do século XX. Aluno de Edmundo Husserl e Martin Heidegger, estudou em Praga, Berlim e Friburgo. Oriundo de uma família modesta, sendo o terceiro de quatro filhos. A mãe era cantora de ópera e o pai, professor; ambos o incentivaram a 35 realizar seus estudos. Jan iniciou seus estudos em um cenário dominado pelo positivismo; após ter tido contato com o professor Max Scheler e os debates realizados por Husserl, em 1929, Patočka viajou a Paris, Berlim e Friburgo, tornando-se um dos últimos alunos de Edmundo Husserl. Em 1931, iniciou seus trabalhos em epistemologia sob uma visão fenomenológica. Ao retornar a Praga, continuou os estudos na Escola de Ludwig Landgrebe, trabalhando com a filosofia fenomenológica, e passou a participar das reuniões do Círculo Linguístico de Praga. Em 1968, foi proibido de lecionar sobre filosofia e passou à ilegalidade. Devido a esse fato, somente alguns dos seus livros foram publicados e a maioria de sua obra foi somente datilografa e compartilhada entre os alunos, passando a ter relevância e divulgação após a sua morte. Tornou-se, em 1977, um dos fundadores e porta-voz principal para o movimento de direitos humanos “Carta 77” na Checoslováquia, deu palestras na “Universidade Clandestina” e tentou oferecer educação gratuita de censura cultural. Morreu aos 69 anos de um ataque cardíaco após 11 horas de interrogatório, realizado pela polícia secreta da Checoslováquia. Suas obras se detinham sobre a Fenomenologia da Lebenwelt, em que o mundo é diretamente experimentado pela subjetividade da vida cotidiana e suas experiências individuais e sociais. Considera a linguagem influente, pois o indivíduo em conjunto com os outros a emprega dentro de suas limitações e estruturas específicas e da ordem. Esse processo faz parte da compreensão do homem enquanto sujeito do mundo. 6.7 Fenomenologia como método fenomenológico A fenomenologia ganha reconhecimento em campos como a pesquisa, mais especificamente no que se refere à pesquisa qualitativa, uma vez que se trata do estudo dos fenômenos e da essência das coisas. Nessa proposta, o método fenomenológico se desdobra em duas grandes vertentes: a filosófica e a empírica. Para as duas propostas metodológicas o ponto inicial é a realidade social dos sujeitos pesquisados, e o objetivo é a compreensão desses sujeitos. No campo filosófico, a centralidade está naquele que conduz a análise do fenômeno até chegar à sua essência. No campo empírico, a análise centra-se em uma parte do mundo que é do outro. Nessa proposta, há a necessidade de obtenção de relatos sobre a experiência vivida pelo outro para alcançar o fenômeno em sua 36 essência — a “coisa em si mesma”. Assim se constrói, nessa proposta, o universo da construção do conhecimento por meio da experiência de vida. No que se refere ao Serviço Social, quando o profissional utiliza uma perspectiva fenomenológica, a intervenção se realiza por meio da intervenção social ou do tratamento social. No caso de uma intervenção profissional sob essa perspectiva metodológica, o profissional ouviria o que o usuário teria a dizer, sem se preocupar em analisar, mas somente em descrever o que o sujeito traria como verdade, sem propor reflexões ao sujeitos sobre a realidade que o cerca. Nessa teoria também não são abordadas as mudanças estruturais e conjunturais que influenciam a vida dos sujeitos. Comparando com uma perspectiva de intervenção marxista, o profissional abordaria e utilizaria em sua análise a sociedade de classes em que o sujeito está inserido e em constante conflito, uma vez que uma classe explora (burguesia) e outra classe é explorada (proletário/trabalhador). Voltando ao método, que se trata de um procedimento ou técnica para a realização de algo, a fenomenologia compreende um procedimento científico que constrói problemas, hipóteses, definição de variáveis, teoria explicativa, manipulação e tratamento dos dados. Todavia, destaca-se que esse não é um procedimento exclusivo da investigação fenomenológica, mas sim do campo da pesquisa em geral. A investigação fenomenológica utiliza abordagens filosóficas e analíticas da teoria fenomenológica. Enquanto método de pesquisa, o uso da fenomenologia é algo novo. No método fenomenológico, ocorreram diversas variantes, resultado das adaptações realizadas pelas diferentes áreas do conhecimento. (MOREIRA, 2002; SILVEIRA; GUERRA; GONÇALVES, 2012; AMATUZZI, 2009). 37 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA BÁSICA FUMERTON, Richard. Epistemologia. São Paulo, Vozes: 2014. QUINE, Wilard. Palavra e Objeto. São Paulo, Vozes: 2010 . SOSA, Ernest. Compêndio de Epistemologia. São Paulo, Loyola: 2008 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, ago. 2013. BUNGE, M. Intuición y razón. Madrid: Tecnos, 1986. BRONOWSKI, J.; MAZLISH, B. A tradição intelectual do Ocidente. Lisboa: Ed. 70, 1983. CASINI, P. Newton e a consciência europeia. São Paulo; Ed. UNESP, 1995. COPI, I. Introdução à lógica. São Paulo: Ed. Mestre Jou; 1978 COSTA, S. Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. Revista Brasileira de Ciências Social, São Paulo, v. 21, n. 60, p. 117-134, fev. 2006. DUROZOI, G.; ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia. Campinas: Papirus, 1993. GARDNER, H. A nova ciência da mente. São Paulo: EDUSP, 1995. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução: Márcia de Sá Cavalcante. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1988. HESSEN, J. Teoria do conhecimento. Coimbra: Arménio Amado, 1987. HONDERICH, T. (ed.) The Oxford companion to Philosophy. Oxford: Oxford Unvisersity Press, 1995. HUME, D. Investigação
Compartilhar