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Texto revista educação e emancipação

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A Revista Educação e Emancipação informa que no período de 01 de fevereiro a 31 de maio de 2023 encontra-se aberta a submissão de trabalhos para publicação, em edição dossiê temático, intitulado - “EPISTEMOLOGIAS DA PEDAGOGIA ANTIRRACISTA: alternativas ao pensamento hegemônico estrutural”. Esse número será organizado pela professora Patrícia Baroni (UFRJ) e pelos professores Rafael Ferreira de Souza Honorato (FUNDAC/PB), Allan Rodrigues (UNESA/RJ) e Luís Paulo Borges (Cap-UERJ).
https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/reducacaoemancipacao/announcement
Caminhos possíveis de escrita
Ideia de eixo de trabalho: A insurgência de pedagogias antirracistas a partir das lutas engendradas pelos movimentos sociais negros.
Pontos para pensarmos e destrinchar 
Introdução/ideia de título: O acesso a escolaridade da população negra: Um sonho ancestral. (O movimento negro educador – Nilma Lino Gomes)
Um último tópico: Quando o racismo não é enfrentado, independente da proporção, essa violência é escalada em níveis graves. Como professores/professoras podem a partir de sua prática combater o racismo e junto com meninos e meninas negras/os criarem epistemologias antirracistas. 
O que os movimentos sociais negros, liderado por mulheres negras, tem a ensinar a professores e professoras antirracistas?
Como a população negra, principalmente as mulheres têm historicamente atravessado as epistemologias hegemônicas e juntas criarem outras formas de saber/ser.
Os Movimentos Sociais Negros pelo direito à educação	Comment by Adrielle Lisboa: Esse tópico é da minha dissertação que acredito que estabelece um diálogo com a chamada do dossiê. Contudo, precisamos alinhar o que faremos a partir deste roteiro e começarmos a escrita.
A desigualdade presente na vida da população negra, em escala econômica e cultural, tem resquícios incontestáveis nos quase 400 anos em que o país viveu um regime escravocrata. O nosso país foi o último da América do Sul a abolir formalmente a escravidão, que tinha uma organização econômica baseada na exploração da força do trabalho de pessoas negras, sendo esta uma característica estrutural que permanece marcante no panorama em que essa população ainda (sobre)vive. Assim, a ideia de raça e superioridade racial foi/é um dos pensamentos que tendem a legitimar as relações de dominação. 
Durante o processo de escravização, os negros e negras eram considerados, a partir de um racismo científico, biologicamente inferiores, portanto, indignos de serem renumerados, de terem seu trabalho reconhecido e valorizado monetariamente. Atualmente, considerando os dados da pesquisa cor ou raça da população brasileira com base na autodeclaração (IBGE, 2019), dos 13,5 milhões vivendo em extrema pobreza, 75% fazem parte da população negra. O levantamento nos mostra a desproporcionalidade se considerarmos que pretos e pardos representam 55,8% dos brasileiros que se declararam pretos ou pardos. 
Esses dados revelam a dificuldade que a população negra tem em acessar altos cargos de empregos. Contudo, ao refletimos sobre a divisão social do trabalho, constatamos que negros e negras ainda permanecem historicamente em franca desvantagem em relação aos brancos na disputa por mobilidade social ascendente, que se dá pela transição de um sujeito de uma classe social baixa para uma classe social alta. O conceito de racialização opera nas relações de trabalho, definido através do poder mundial eurocentrado: quem é a mão de obra que deve ser explorada, logo, a divisão por raça continua sendo determinante para a divisão social do trabalho. 
Para Quijano (2005), a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. 
Os colonizadores codificaram como cor os traços fenotípicos dos colonizados e assumiram como a característica, emblemática da categoria racial [...] Os negros eram ali não apenas os explorados mais importantes, já que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo a raça colonizada mais importante, já que os índios não formavam parte dessa sociedade colonial. Em consequências os dominantes chamaram a si mesmos de brancos. (Quijano, 2005, pp. 117-118)
Quijano (2005) analisa a questão da colonialidade como um padrão de poder que opera por meio da naturalização da inferioridade de povos, culturas, raças e conhecimentos, mantendo a reprodução das relações de dominação. Ou seja, uma perspectiva de conhecimento excludente que marginaliza e inferioriza como primitivo, o não-europeu, o colonizado, enquanto reconhece o colonizador como produtor competente da modernidade, sujeito de cultura e racionalidade. 
A colonialidade do poder teve encadeamentos que marcaram a existência da população negra. A diáspora desapropriou milhares de sujeitos das suas identidades históricas. No Brasil, por exemplo, desembarcaram cerca de 5 milhões de povos escravizados sequestrados para serem vendidos como mercadoria. Muitos insistem em esquecer, mas somos parte de um país que negocia(va) carne humana e que faz apenas 130 anos que essa prática colonizadora teve legalmente fim. 
Diante disso, a população negra luta até hoje pela restituição de sua identidade. Nós não sabemos de qual parte do continente africano são nossos ancestrais, haja vista que o direito de saber a nossa linhagem nos foi negado historicamente. Tentaram silenciar a nossa identidade étnica da história, nos vetando um contexto que nos daria capacidade para nos compreendermos enquanto brasileiros afrodescendentes. Contudo, graças à cultura da oralidade geracional, temos nos mantido em forte resistência, assim como nossos ancestrais. 
O racismo é um processo que se materializa em desigualdades de maneiras distintas, que vai além de um preconceito pessoal. Racismo envolve uma relação de poder. Por isso, precisamos de uma compreensão profunda da realidade para entender como o racismo atua. As pesquisas na área da biologia demonstraram, nas últimas décadas, que não existem diferenças biológicas ou culturais que justifiquem o racismo, porém “[...] o fato é que a noção de raça ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários” (Almeida, 2019, p. 31). 
Portanto, para o jurista Silvio de Almeida (2019), o racismo estrutural é uma discriminação por raça construída e mantida em uma escala mais ampla, é um tipo de racismo que tem o poder de impactar drasticamente nas oportunidades de vida de pessoas, nesse caso negras. O racismo estrutural nem sempre se manifesta com atitudes explícitas e agressivas; ora se manifesta por meio de um “não” numa entrevista de emprego, ora através de um aviso para candidatos a uma vaga para que tenham boa aparência, ou é a professora que solicita que os pais cortem ou prendam o cabelo daquele/a menino/a negra. Eis alguns eufemismos usados para esconder o racismo.
Logo, não podemos ser ingênuos em achar que silêncios e obstruções, em especial quando se trata da mobilidade social da população negra, estão relacionados à falta de inteligência, talento ou sequer o que nos falta é o “correr atrás”, uma vez que a raça distorce a igualdade de oportunidades. Precisamos romper com esses ciclos de exclusão, pois não restam dúvidas de que as oportunidades mudam vidas. 
Nessa perspectiva, Almeida (2019) aponta que a divisão de classe tem o racismo como veículo importante, e negar isso é não entender o capitalismo como forma de sociabilidade. Para se atualizar, o capitalismo reforça e mantém os altos índices de pobreza da população em periferias das grandes capitais e nas regiões do interior do Norte e Nordeste do país, por vezes renovando-se o racismo. 
Entretanto, ainda em seu livro Racismo estrutural, Almeida escreve:
Logo, o racismo não deve ser tratado como uma questão lateral que pode ser dissolvida na concepção de classes, até porque uma noção de classe que desconsidera o modo com que esta se expressa enquanto relação social objetiva tornar o conceito uma abstração vazia de conteúdohistórico. São indivíduos concretos que compõem as classes à medida que se constituem concomitantemente como classe e como minoria nas condições estruturais do capitalismo. Assim, classe e raça são elementos socialmente sobredeterminados. (Almeida, 2019, p. 185)
O que este trabalho tem sugerido é que não é tão simples ou tão binário escolher classe ou raça quando se trata de desigualdades estruturais, como é o caso do Brasil. Por vezes, acreditei que a mobilidade social me salvaria do racismo, mas hoje tenho a convicção de que não. Contudo, quando levanto esta questão, não quero dizer que a vida de pessoas brancas seja fácil, que não lutam ou que também não vivam na pobreza. A questão é que a sua raça quase que certamente afetará positivamente sua trajetória de vida. Sugiro que possamos pensar a branquitude enquanto ideologia política e não como pessoas brancas individualmente, e é a partir desta perspectiva que explicito e convoco a branquitude para uma posição de luta real.
Nesse contexto social e territorial, a desigualdade de classe está intrinsecamente ligada à raça e gênero, sendo necessária uma análise com teor interseccional. Isto é, considerando as nuances sobre como o racismo, o capitalismo e o sexismo são condições estruturantes das relações humanas e como o encontro dos determinados fatores se confluem como formas combinadas de opressão (Davis, Mulheres, raça e classe, 2016). 
Não obstante, lidamos com as histórias de exceções de negros/as que conseguem ascensão social e que têm as suas histórias consideradas histórias de sucesso. Percursos que são utilizados, frequentemente, a fim de simplificar as questões sociais, trazendo a simples e rasa falácia de que “quem quer, consegue”. Para Almeida (2019, p. 82), “[...] a negação do racismo e a ideologia da democracia racial sustentam-se pelo discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa pela própria condição é das pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava ao seu alcance”. 
Ademais, pensar em conquistas que sejam a partir de méritos sem igualdade de privilégios é injusto. Um país em que a maioria da população tem que se esforçar em dobro para conseguir galgar melhores condições de vida não é uma sociedade justa. Todavia, como nos salienta Evaristo (2018), “[...] as histórias de exceções precisam ser vistas criticamente para pensarmos as dinâmicas sociais, culturais e econômicas, temos que questionar as regras que torna tudo mais difícil para as pessoas negras”. [footnoteRef:2] [2: Entrevista da escritora Conceição Evaristo concedida ao jornal BBC em 09/03/2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43324948.] 
De todo modo, refutando o lugar social que o imaginário racista nos reserva, o pesquisador negro Sales Augusto dos Santos declara: “[...] os movimentos sociais negros e/ou a população negra brasileira já realizou alguns inéditos viáveis na esfera da educação” (Santos, Confluencias entre campos/segmentos/lutas na Educação Popular: Memórias e resistencias -1964 e o tempo presente:os moviemntos sociais negros, 2015, p. 58). Com base nessa afirmativa, o autor problematiza o fato de educadores e cientistas sociais não reconhecerem o papel dos movimentos negros na luta por educação formal e de qualidade. Santos (2015) nos convida a lançar um olhar reflexivo para essa invisibilização que autores negros vivenciam em suas lutas, tal como a reprodução de sua não existência no campo científico, aspecto notório em pesquisas e estudos sobre educação popular, em que feitos e narrativas de intelectuais negros/negras são inúmeras vezes ignorados/as. 
Santos (2015) nos traz como exemplo o professor Paulo Freire e o fato de ele reconhecer, em seus escritos, que quando ouviu pela primeira vez a palavra conscientização, conceito central nas suas ideias, foi através da fala do ativista, sociólogo e afro-brasileiro Alberto Guerreiro Ramos, em conjunto com o filósofo Álvaro Pinto. Para Sales (apud SANTOS, 2015), o fato de Paulo Freire não ocultar que o conceito de conscientização não foi sua criação inédita, ele reconhece outros estudiosos e nos dá pistas de que este conceito foi forjado na luta contra o racismo. 
Essa não teria sido a primeira vez que Paulo Freire anunciava a contribuição de intelectuais negros em suas obras. De acordo com o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, em seu dossiê “Franz Fanon: O brilho do metal”, durante uma entrevista em 1987, na Califórnia, Freire relata que, quando estava terminando de escrever a obra Pedagogia do oprimido, ganhou o livro Os condenados da terra, de Franz Fanon, e que a partir da leitura da obra, ele precisou reescrever o seu livro. Podemos observar semelhanças entre esses dois intelectuais; assim como Fanon, Paulo Freire baseia sua práxis em uma reciprocidade entre o educador e as pessoas que não tiveram acesso à educação formal.
Para Sales (apud SANTOS, 2015), a maioria dos educadores brasileiros, inclusive muitos estudiosos do campo da educação popular e movimentos sociais, não reconhece ainda a participação importante e até mesmo a centralidade dos movimentos negros frente à luta por educação formal no Brasil. Contudo, este apagamento histórico não deve ser visto como um movimento epistemológico neutro, afinal, nós fazemos parte de uma sociedade estabelecida em relações de poder, que são legitimadas pela cultura dominante. Logo, existe uma voz hegemônica, branca, heteronormativa que se coloca como paradigma e quer falar sobre nós.
Mas isso não significa que o povo não criou, ou não cria, as suas vozes, as suas utopias. Essas vozes, essas utopias, essas formas de reação, essas táticas, elas sempre existiram. Se não existissem, a herança africana que marca a nacionalidade brasileira não existiria, já teria sucumbido. Na música, na poesia, na literatura, nas religiões afro-brasileiras, em sindicatos, em associações de moradores, essas vozes sempre se pronunciaram. Mas por mais que uma voz hegemônica queira comandar, a água escapole entre os dedos. Você não segura. Não retém a força da água. Então o povo também encontra maneiras de se afirmar, de falar, de dizer. (EVARISTO, 2018. Entrevista).
Com isso, afirmamos que, desde os tempos remotos da escravização, a população negra tem se articulado em coletivos e criado as suas estratégias de resistência em busca do direito à vida, à liberdade, aos processos formativos, à escolarização. No Brasil, homens e mulheres ex-escravizados que trabalhavam e recebiam salários juntavam coletivamente dinheiro para comprar cartas de alforrias de outros/as negros/as que ainda viviam como escravizados/as, e outro repertório de ação da época era a articulação de alfabetizados para ensinarem crianças negras a ler e escrever. 
De acordo com Davis (2017), a população negra sempre manifestou uma ânsia profunda pelo saber e depois de séculos de privação educacional vem reivindicando com ardor o direito de satisfazer seu profundo desejo de aprender. No livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (2019), a personagem principal Kehinde, batizada no Brasil como Luiza Mahin, narra a sua história desde o seu sequestro quando criança, na África, até sua velhice. A personagem relata que foi comprada como escravizada para ser brinquedo de sua futura sinhazinha. Ao narrar as amarguras e o sofrimento desde a travessia no navio negreiro até os dias na fazenda no interior da Bahia no século XIX, a personagem nos fala das suas transgressões para aprender a ler e escrever. Relata a felicidade em acompanhar a sinhazinha nas suas aulas e o professor, um negro letrado, ao observar o seu interesse, passa a ensiná-la clandestinamente. Outro personagem a ajudava, dividindo o óleo do lampião para que ela pudesse escrever durante a noite, na senzala. 
Esses gestos de solidariedade racial nos revelam formas de luta entre os escravizados, atrelada ao compromisso comum entre iguais, que nesse caso é a ânsia na busca de restituir sua humanidade por meio da leitura e da escrita. Pensando com Kilomba (2019), a África é o único continente que teve seuspovos desarticulados, divididos e fragmentados e “É essa história de ruptura que une negras e negros em todo o mundo” (Kilomba, 2019, p. 207). Durante as suas trajetórias de vida, a população negra vive inúmeros processos de opressão, e ser forte e solidário entre si não é uma escolha individual, é o modo possível de garantir formas de sobrevivência. 
A partir de uma perspectiva política mais recente no país, torna-se importante assinalar que, felizmente, as longas e históricas lutas das classes populares, que vêm sendo fortemente reconstruídas pelos movimentos sociais, nos mostram que confrontos históricos por direitos têm sido sistematicamente apagados da “memória oficial” do país. Este apagamento tem se dado, sobretudo, nos livros didáticos, das aulas de histórias, dos livros de literatura infantil etc. 
Durante a minha trajetória escolar na educação básica, não me recordo de te ouvido sobre a luta dos escravizados, suas formas de transgredir ao sistema escravocrata, por exemplo. As imagens dos livros que carrego na memória são dos negros e indígenas, principalmente de mulheres negras e indígenas em posições de inferioridade, mecanismo utilizado para reforçar o estigma e manter o status quo, a dominação sobre o Outro. Para Gonzalez (2019), o sistema de ensino destila, em termos de racismo, uma lavagem cerebral, e que quando a criança avança nos estudos e chega ao Ensino Médio, já não se reconhece como negra.
Há pouco mais de um ano, conheci a história da escritora negra Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira, que assim como eu nasceu no estado do Maranhão. A autora publicou, no ano de 1859, o romance Úrsula, de temática abolicionista, que retrata a opressão a negros e mulheres no século XIX. Quando me deparo com essas descobertas, e têm sido tantas, faço-me perguntas do tipo: será que não prestei atenção quando isso foi apresentado na escola básica? Será que eu me esqueci dessas referências? Dessas representações? Será que estamos fadados a um processo hegemônico de negação dessas lutas sociais? De apagamento desses personagens que recontam a história de outro lugar, nos trazendo narrativas outras? 
A partir de pesquisas realizadas pelo IBGE (2019), nota-se que a proporção de negros é maior na faixa de analfabetismo da população brasileira. Os dados indicam que pessoas declaradas negras e pardas representam 9,1% dos analfabetos, 3,9% são a porcentagem de brancos que vivem na mesma situação educacional. Diante deste panorama, destaca-se a desigualdade educacional presente na trajetória da população negra. O que a pesquisa primorosa de Santos (2014) nos mostra é que, para os movimentos sociais negros, a educação formal de qualidade e que ultrapasse os parâmetros eurocêntricos faz parte do presente e de lutas históricas inegociáveis destes movimentos.	Comment by Adrielle Lisboa: Atualizar esses dados.
[...] podemos dizer, sem exageros, que os movimentos negros empenharam-se desde seus primórdios no reajustamento das políticas educacionais com vistas a realocar, com justiça e dignidade, um contingente que esteve desde sempre marginalizado da vida nacional, exceto como força de trabalho escravo. (Santos, Educação um pensamento negro contemporâneo, 2014, p. 16)
O autor nos traz exemplo de lutas organizadas pela escolarização formal em pleno regime escravista. Como o caso do professor negro Pretextato dos Passos e Silva, que em 1853 abriu, em sua própria residência, no Rio de Janeiro, uma escola de instrução para meninos de cor preta. A escola foi uma demanda das famílias dos alunos que a frequentavam. Podemos observar que a população negra já incorporava a ideia de educação como um bem supremo, reivindicando-a e exercendo-a quando possível (Santos, Confluencias entre campos/segmentos/lutas na Educação Popular: Memórias e resistencias -1964 e o tempo presente:os moviemntos sociais negros, 2015). 
A educação formal é considerada, na sociedade contemporânea, um dos fatores mais importantes de ascensão social. Sem qualificações educacionais, torna-se mais difícil ocupar posições que possam proporcionar condições de vida relativamente confortáveis.
No pós-abolição, as primeiras formas de mobilizações organizadas coletivamente contra o racismo apareceram visivelmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. De acordo com Sales (2015), com a mudança dos centros hegemônicos de poder para a região Sudeste, acentuou nesses estados a disputa entre brancos e negros no mercado de trabalho. Contudo, foi através do lazer e da recreação que surgiram as primeiras organizações de pretos e pardos para contestar a discriminação racial, pois, para terem o direito à cultura, tiveram que criar seus próprios clubes sociais. 
Ainda sobre esse início, Sales (apud SANTOS, 2014), em sua tese de doutorado, buscou construir as memórias das lutas desta população, trazendo informações sobre a Imprensa Negra, narrando que, no início da década de 1920, circularam em São Paulo os primeiros jornais do “meio negro”, que entre os seus objetivos discutiam as condições de existência dos negros no pós-abolição. A partir deste movimento, foram lançadas sementes para o surgimento da Frente Negra Brasileira (FNB), considerada uma das organizações mais importantes dos movimentos negros brasileiros. Sua atuação foi tão expressiva que, em 1936, aconteceu sua transformação de movimento social para partido político. Porém, durou pouco, pois no ano de 1937, o golpe deflagrado pela ditadura de Getúlio Vargas dissolveria todos os partidos, entre eles a FNB. 
Sales (apud SANTOS, 2014), afirma que foi através da FNB que se deu a criação dos cursos noturnos para educação de jovens e adultos, reconhecida a partir da LDB/96 como uma modalidade de ensino denominada Educação de Jovens e Adultos. 
Como a maioria das principais entidades negras brasileiras, a Frente também se preocupou com a educação formal. Desse modo, tomou a educação um dos seus objetivos nucleares, condição necessária para ascensão moral e o progresso material dos negros. (Santos, Educação um pensamento negro contemporâneo, 2014, p. 66)
Outra organização negra importante na luta antirracista foi o Teatro experimental do Negro (TEN), fundado em 1944, no estado do Rio de Janeiro, por Abdias Nascimento. Os seus principais objetivos eram formar atores negros engajados na luta contra o racismo e reconstruir a herança africana na sociedade brasileira. O TEN formou atores/atrizes, produtores e diretores negros, sendo muito/as empregadas domésticas, operários, pessoas oriundas de favelas que recebiam curso de alfabetização e cursos referentes a conhecimentos gerais e culturais.
A Imprensa Negra, a FNB e o TEN nos mostram pontos em comuns: foram movimentos sociais organizados pela população negra para enfrentar o racismo e lutar por direitos elementares, como a educação formal.[footnoteRef:3] [3: Em 2020, fez um ano que a atriz Ruth de Souza nos deixou. Considerada a primeira atriz negra a estrear no Teatro Municipal, ela iniciou a sua brilhante carreira no Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1945.] 
O legado dessas organizações é presente até hoje nos avanços políticos que a população negra alcançou, por exemplo, as políticas de ações afirmativas já eram reivindicadas pelos movimentos negros desde o ano de 1945 (Santos, Educação um pensamento negro contemporâneo, 2014). Dentre elas, a política de cotas foi uma estratégia fundamental que o movimento negro criou para a população negra estar em um espaço educacional historicamente interditado. Afinal, as universidades no Brasil são um espaço de poder e a construção do branco se dá também por ele estar na Universidade. Uma vez que o movimento negro entende que a população negra precisa acessar esse espaço, compreendendo-o como direito, mesmo com todas as suas contradições articulou-se para desordenar essa estrutura.
Por outro lado, a entrada de estudantes oriundos de movimentos sociais e de escola pública em espaços universitários a partir de ações afirmativas tem como datação histórica somente as primeiras décadas doséculo XXI. Em meados dos anos 2000, a UERJ aderiu ao sistema de cotas, por meio de uma lei estadual, destinando 50% das vagas do vestibular para estudantes de escolas públicas. Neste mesmo ano, o debate sobre cotas avança nas pautas políticas, e em 2003 o país passa a ser governado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), que marcou esse período com inegáveis avanços e investimentos na educação.
 Neste período, é possível notar o aumento de escolas e universidades federais, assim como diversos programas assistenciais voltados para acesso e permanência em espaços escolares, que ganharam força nos últimos anos. Após décadas de debates, a Lei Federal 12.711, conhecida como a Lei das cotas, é decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pela então presidenta da república Dilma Rousseff, em 2012. A lei decreta que todas as universidades federais devem reservar, no mínimo, 50% das suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas, autodeclarados negros, pardos ou indígenas, e estudantes oriundos de famílias com renda per capita inferior ou igual a 1,5 salário-mínimo. Portanto, a referida lei estabelece cotas com teor social, econômico e racial.
Com relação às disputas sobre a questão das cotas na sociedade brasileira, não posso deixar de apontar uma mulher negra que discursa e defende com força e autoridade de uma vida de lutas contra o racismo e as opressões, a filósofa Sueli Carneiro. Em março de 2010, na audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para debater a constitucionalização das cotas no ensino superior para a população negra, Carneiro, pioneira em trabalhar conceitualmente com a intersecção de raça, classe e gênero, sendo uma das primeiras ativistas a enegrecer o Feminismo no Brasil, nos fala:
Exmo. Sr. Ministro: Se essa Corte entende que pode haver racismo mesmo não havendo raças, se essa Corte também entende que o racismo está assentado em convicções raciais, que “geram discriminação e preconceito segregacionista”, se todas as evidências empíricas e estudos demonstram o confinamento dos negros nos patamares inferiores da sociedade e, se a inferioridade social não é inerente ao ser negro posto que raças biológicas não existem, então esta persistente subordinação social, só pode ser fruto do racismo que como afirma a ementa do referido acórdão, repito, "gera a discriminação e o preconceito segregacionista. Isto requer, portanto, medidas específicas fundadas na racialidade segregada para romper com os atuais padrões de apartação. (Carneiro, 2019, p. 292)
Sabemos que o acesso ao ensino superior no Brasil é marcado pelo acesso majoritário da classe média, tendo como pano de fundo a meritocracia, o que por décadas tem significado a exclusão das classes populares, principalmente de estudantes negros e negras das universidades. Para Almeida (2019), o discurso da meritocracia em uma sociedade marcada por antagonismos de classe, raça e sexuais nos coloca diante de uma manifestação altamente racista, visto que possibilita a conformação ideológica dos sujeitos às desigualdades raciais.
A meritocracia se manifesta por meio de mecanismos institucionais, como os processos seletivos das universidades e os concursos públicos. Uma vez que a desigualdade educacional está relacionada com a desigualdade racial, mesmo nos sistemas de ensino públicos e universalizados, o perfil racial dos ocupantes de cargos de prestígio no setor público e dos estudantes nas universidades mais concorridas reafirma o imaginário que, em geral associa competência e mérito a condições como branquitude, masculinidade e heterossexualidade e cisnormatividade. (ALMEIDA, 2019)
No entanto, após décadas do fim da escravização no Brasil, a população negra ainda enfrenta processos árduos na sua trajetória escolar, resquícios de um país colonial e escravagista. Mesmo perante as políticas educacionais como a Lei 10.639/03[footnoteRef:4], ainda podemos observar que a maioria das escolas de ensino básico oferece uma educação que distancia a criança negra de uma identidade negra valorizada positivamente, por exemplo. Ou seja, a transformação do sistema de ensino historicamente racista ainda é uma demanda presente na pauta dos movimentos sociais negros, que acreditam no acesso à escolarização como um forte dispositivo para romper com o racismo estrutural no Brasil. [4: É uma lei do Brasil que estabelece nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, o ensino obrigatório sobre História e Cultura Afro-Brasileira, no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História.] 
Vale a pena lembrar que todos os dados apresentados neste trabalho só foram possíveis devido às lutas dos Movimentos negros, que exigiram veemente a inclusão do quesito "cor" em quaisquer sistemas de informações e registro sobre a população (Santos, Educação um pensamento negro contemporâneo, 2014). Afinal, sem essa especificação nos dados públicos, não seria possível testificar a situação de direitos civis, políticos, sociais, econômicos, sociais e culturais da população negra na sociedade brasileira, considerando que somos parte de um país ideologizado por uma democracia racial, ainda muito presente no nosso cotidiano. Mesmo diante dos dados que não negam as disparidades em que vivem negros e brancos neste país, ainda escutamos frases do tipo: “somos todos iguais” e que tudo não passa de “mera coincidência” ou “falta de sorte”.

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