Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
E-book 1 Marcos Gomes TEORIA LITERÁRIA Neste E-Book: INTRODUÇÃO ����������������������������������������������4 ALGUNS ASPECTOS DA LINGUAGEM LITERÁRIA ��������������������������� 6 CONCEITO DE LITERATURA �������������������� 9 A NATUREZA E A FUNÇÃO DA LITERATURA ������������������������������������������������12 CONCEITO E SURGIMENTO DA TEORIA LITERÁRIA ������������������������������������17 PRINCIPAIS CORRENTES DA TEORIA LITERÁRIA ����������������������������������� 22 Teoria Mimética ���������������������������������������������������� 22 Teoria Pragmática ������������������������������������������������� 23 Teoria Expressiva �������������������������������������������������� 25 Teoria Objetiva ������������������������������������������������������ 27 PARTICULARIDADES DO DISCURSO LITERÁRIO �����������������������������31 AS FUNÇÕES DA LINGUAGEM ������������� 32 NOÇÃO DE IMAGEM & QUESTÕES DE RETORICA���������������������������������������������38 FIGURAS DE LINGUAGEM ��������������������� 40 2 FIGURAS DE CONSTRUÇÃO �������������������41 FIGURAS DE PENSAMENTO ������������������43 GÊNEROS LITERÁRIOS ���������������������������49 CONSIDERAÇÕES FINAIS ����������������������57 SÍNTESE �������������������������������������������������������59 3 INTRODUÇÃO Neste módulo, você vai recapitular algumas coisas que aprendeu no ensino médio e vai aprofundá-las� Conhecerá alguns conceitos do que seja literatura; o domínio a que pertence, – a arte –; as particularida- des da linguagem; o campo da literatura; de acordo com as funções que assume a linguagem, destacan- do-se nisso a função poética� Vai examinar alguns textos mais antigos, como algumas passagens de Aristóteles, que são integralmente utilizadas ainda nos dias de hoje, para compreensão do fenômeno literário, bem como as diversas correntes que surgi- ram a partir das reflexões aristotélicas. Vai verificar que a linguagem literária é marcadamente ambígua, bem como o papel que a literatura assume na vida humana� Você há de perceber que as explicações exigirão mui- tos exemplos de obras literárias (e de não literárias também) e que há um modo muito específico para tratar o texto literário� É bem verdade que há método para fazer isso; como o ensino desse método, às vezes, é um pouco abstrato. Assim, fique atento ao modo como os exemplos apresentados são trata- dos: é uma maneira prática de lhe dizer como se faz análise e interpretação de texto� 4 Neste módulo, estudaremos estes tópicos: o que é literatura, algumas particularidades do texto literário; a natureza e a função da literatura; conceito e sur- gimento da Teoria Literária; principais correntes da Teoria Literária; e como se faz análise e interpretação de texto� Este último item vai além deste módulo e será retomado até o final do curso. 5 ALGUNS ASPECTOS DA LINGUAGEM LITERÁRIA Um ponto a ser levado em conta no estudo da Teoria Literária: a linguagem da literatura não é a mesma do linguajar comum� Na comunicação cotidiana e mesmo nos textos de jornais e revista, utilizamos um padrão conhecido para o vocabulário, e obedecemos à ordem natural da língua� Na linguagem literária, nem sempre esse padrão é utilizado� Exemplo disso é o que ocorre na primeira estrofe do Hino Nacional: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas De um povo heroico um brado retumbante E o sol da liberdade em raios fúlgidos Brilhou no céu da pátria nesse instante? Você saberia como explicar o que dizem essas pala- vras iniciais do hino brasileiro? Uma primeira pergun- ta: quem ouviu o quê? O que significam os adjetivos “plácidas”, “retumbante” e “fúlgidos”? Além de utilizar palavras difíceis, o hino apresenta uma ordem arre- vesada para dizer as coisas� Se você respondeu que “plácidas” significam “cal- mas”; “retumbante” é o mesmo que “barulhento”; e “fúlgidos” é sinônimo de “brilhantes”, você acertou� E se acrescentou que foram “as margens plácidas” que “ouviram” alguma coisa, também está correto� 6 Colocado em ordem direta, o início do Hino Nacional ficaria assim: As margens plácidas do Ipiranga ouviram Um brado retumbante de um povo heroico� Por que as palavras estavam naquela ordem com- plicada (e não nesta última) não é tão difícil de res- ponder� Tente cantar o hino com essa disposição das palavras, e verá que não vai dar certo� Tentou? Você deve ter percebido que a letra está assim dis- posta para obedecer ao ritmo da música� Quanto ao assunto do início do hino: você tem alguma dúvida? Para recapitular, essas palavras iniciais dizem res- peito ao momento em que Dom Pedro I proclama a independência do Brasil� Esse momento foi muito idealizado� SAIBA MAIS A cena da proclamação da Independência foi re- gistrada pelo pintor Pedro Américo, mais de 60 anos depois do ocorrido� O quadro denomina-se In- dependência ou morte� Trata-se de uma idealiza- ção do fato� Américo inspirou-se em dois pintores franceses Jean-Louis Meissonier e Horace Vernet� A Batalha de Solferino de Meissonier é claramen- te o modelo da cena pintado por Américo. Confi- ra no site: https://pt.wikipedia.org/wiki/Independ %C3%AAncia_ou_Morte_(Pedro_Am%C3%A9rico) Letra e música – pelo menos se for levado em conta o que se fazia em países como França, Espanha, 7 https://pt.wikipedia.org/wiki/Independ%20%C3%AAncia_ou_Morte_(Pedro_Am%C3%A9rico) https://pt.wikipedia.org/wiki/Independ%20%C3%AAncia_ou_Morte_(Pedro_Am%C3%A9rico) Portugal, há mais ou menos 900 anos – estavam profundamente ligadas� Cerca de duzentos anos de- pois (século 14), essa aliança foi se desfazendo, e a poesia separou-se da música� Desacompanhada da melodia, a poesia manteve o ritmo, mas se afastou da espontaneidade das canções� O Hino Nacional brasileiro (cuja letra é de 1909) obedece a uma es- tética denominada de Parnasianismo, que é exces- sivamente formal� 8 CONCEITO DE LITERATURA Você deve e ter observado que um texto como o Hino Nacional não oferece uma linguagem simples do dia a dia� O vocabulário e a ordem das palavras são dife- rentes do usual� Textos como esse pertencem a um campo diferente da linguagem comum, denominado “Literatura”; e literatura pode ser conceituada como “arte da palavra”� Ela trata as palavras assim como a pintura trata formas e cores; a escultura, formas e volume; o cinema, imagens em movimento� REFLITA Uma vez que se definiu a literatura como arte da palavra, assim como a pintura trata formas e co- res, dê uma passadinha no MASP: ali você terá a oportunidade de conhecer um grande número de obras de arte, principalmente de pintura euro- peia� Se isso não for possível, faça uma visita vir- tual a esse museu no site: https://artsandculture. google.com/partner/masp?hl=p Conceituada a literatura como “arte da palavra”, res- ta saber que características a palavra apresenta� Primeiramente, convém entender o que seja arte� Há várias possibilidades de conceituação, sem que se esgote a noção� Por exemplo, Croce (1866-1952) a entende como “Sentimento forte que se tornou ni- tidíssima representação”� Para Picasso (1881-1973), “A Arte não é aplicação de uma regra de beleza, mas 9 https://artsandculture.google.com/partner/masp?hl=p https://artsandculture.google.com/partner/masp?hl=p aquilo que o instinto e o cérebro podem conceber além da regra”� Não é importante decorar um conceito, que sempre será incompleto, mas perceber que cada um deles toca um ponto importante daquilo que se compre- ende como arte� Pela tradição, ficou este conceito: Arte é a expressão do belo� Isso não é muito esclarecedor, pois transfere para a noção de belo a noção de arte que se pretende conceituar� Acrescente-se aqui que arte, termo ori- ginário do vocábulo latino ars, artis, está vinculado ao domínio técnico de alguma coisa� Isso importa, porque fica bem claro que se está a falar de beleza produzida pelo homem, e não a beleza percebida na natureza, como um pôr do sol� Uma das funções da arte – e por consequência, da literatura – está emreproduzir a realidade a partir de seus aspectos exteriores, tal como se vê num quadro, numa escultura, numa peça de teatro, num espetáculo de dança num poema, num romance, Essa reprodução do mundo não é inocente, mas in- teressada; isto é, está vinculada a uma intenção do artista, que quer valorizar algum aspecto da ordem do mundo, ou denunciar alguma coisa, ou revelar um mundo idealizado a partir dos elementos tomados na realidade comum� 10 SAIBA MAIS Dê uma passada por este site, que apresenta um número significativo de conceituações da litera- tura, esclarecendo a diferença entre os termos definição e conceito: https://recantodasletras. com.br/teorialiteraria/278085 Compreendida “arte” como um dos elementos para conceituar a literatura – literatura entendida como a arte da palavra –, convém verificar a natureza do outro termo, “palavra”. A palavra dificilmente aparece isolada� Geralmente vem acompanhada de outra, num conjunto que denominamos de frase� Alguns exemplos: “Silêncio!”; “A casa é amarela”; “O gover- no anunciou ontem pela manhã novo decréscimo no preço dos combustíveis”. 11 https://recantodasletras.com.br/teorialiteraria/278085 https://recantodasletras.com.br/teorialiteraria/278085 A NATUREZA E A FUNÇÃO DA LITERATURA Para Wellek e Warren (1971), a natureza, função da literatura, fica entre dois extremos já identificados pelo poeta romano Horácio, em sua Arte Poética: “Arrebata todos os sufrágios quem mistura o útil e o agradável, deleitando e ao mesmo tempo instruindo o leitor” (HORÁCIO, 1981, p� 65� Os grifos são nossos)� E sua Arte Poética, Horácio recomendava que a com- posição artística unisse o útil (utile) ao agradável (dulce)� Em termos menos formais, pode-se dizer que a leitura da obra literária não pode ser aborre- cida, mas interessante e cativar o leitor para que a leia� Quanto a seu propósito, essa obra deve ensinar algo de valioso, deve conter em si um ensinamento moral, vinculado aos valores mais significativos da vida� A tendência que optasse pelo simplesmente útil, ou o simplesmente agradável, ficaria à margem do propósito maior da arte� Tais conceitos dizem respeito à grande literatura� Até o século 19 era incomum distinguir a grande literatura da mera produção de entretenimento� No entanto, já existiam na época muitas obras, consideradas como simples evasão do mundo comum� Seu propósito é esquecer a seriedade da vida comum, apresentando simplesmente um romance descompromissado, sem vínculos com as questões maiores da vida humana� 12 Na grande obra de arte, os dois valores prazer e uti- lidade se fundem� O prazer da obra de arte foge ao significado comum dos prazeres banais. Está dentro do que Wellek e Warren (1971, p� 38) denominam “contemplação não aquisitiva”� Essa denominação se refere a uma contemplação que não visa à posse de nenhum bem� A obra é contemplada pelo prazer que se obtém gratuitamente ao observá-la� Algumas pessoas atribuem um grande valor ao ro- mance por ele revelar a vida introspectiva das perso- nagens, mas isso acontece porque é hábito dessas pessoas indagarem a respeito da vida psicológica dos indivíduos, e elas transferem esse tipo de ob- servação da vida a sua volta para as personagens� É igualmente falho pensar-se que os poetas e roman- cistas conseguem captar mais facilmente a verdade� Uma linha divisória entre a poesia como percepção de alguma coisa e a concepção da poesia como in- tuição artística é algo muito tênue e difícil de traçar� É complicado afirmar que a verdade consiste em uma das qualidades da produção literária� Platão concebe a poesia como falsificação porque a per- cebe como cópia de cópia� Ele entende a realidade como o conjunto de ideias primordiais, a partir das quais se forma o mundo; por isso, quando um pintor reproduz numa tela determinada cena, está copiando o que já é cópia, a realidade empírica, que já reproduz imperfeitamente o mundo das ideias� Entretanto, o que as obras literárias trazem não é uma verdade, mas uma visão de mundo que contém alguma dose de verdade� Pode-se falar então de verdade na lite- 13 ratura, na medida em que o que ela expressa pode ser relativamente próximo daquilo que aparece na filosofia em termos conceituais. Podcast 1 Talvez a questão possa ser revista, se o conceito de verdade for revisto� Caso se pense numa verdade positiva, verificável metodicamente, a arte não é por- tadora da verdade� A verdade pode ser concebida de um modo plurimodal, concebendo-se, por exemplo, dois modos de conhecer o mundo: o científico, carac- terizado como discursivo, e o artístico, que faz uso do modo “apresentativo”; ou seja, o modo artístico apresenta uma imagem do mundo� O domínio da arte é a beleza; mas essa beleza se caracteriza também por ser verdadeira, ou seja, o mundo reconstruído pela arte não se afasta da verdade nem a contraria� É possível pensar a arte, principalmente a literatu- ra, como propaganda, porque o escritor (poeta ou prosador) a fornece persuasivamente, e assim se aproxima da propaganda, porque difunde algo que parece ser verdadeiro e induz os leitores a admiti-lo como verdadeiro� Por exemplo, o romance 1984, de George Orwell, ainda que o mundo não tivesse se transformado na realidade absurda descrita pelo romancista, esse mesmo mundo absurdo permane- ceu como referência no imaginário de seus leitores� Aristóteles, em sua Poética, propõe uma finalidade para a obra de arte, a catarse, termo que pode ser 14 traduzido por purgação� O proposito da catarse é libertar o espectador de uma peça de teatro (o que é extensível para o leitor de um romance, obra que não existia na época de Aristóteles), das paixões� Conhecendo as personagens no palco, ou na obra lida, e seu destino, o homem liberta-se de suas pul- sões, realizando-as fantasiosamente, por meio da ação das personagens, quer no palco, quer no de- correr da ação de um romance� As emoções terríveis são vividas idealmente� Na volta à vida comum, ter- minado o espetáculo ou a leitura, o indivíduo provi- soriamente se liberta de suas tensões psicológicas mais perigosas� Do que se refletiu até aqui, é possível perceber que nenhuma resposta é inteiramente satisfatória, por- que estamos no campo movediço da literatura� Responder a essa questão – qual é a função da lite- ratura? Ou, para que serve a literatura? – equivale a responder a estas outras: para que servem as pes- soas? Qual é o significado do homem? A literatura não é algo superficial nem um conjunto de palavras e frases bonitas; suas contribuições são valiosas� Basta ler algumas biografias e ali se encontrará a observação de que determinada obra influenciou bastante a vida de uma pessoa, alterando mesmo seu destino� Entretanto, ainda que essa informação seja verdadeira, não há como avaliá-la em termos exatos e positivos� Talvez quem melhor defina a função da literatura seja Leon Tolstoi (1828-1910), em uma nota deixada em seu diário� Ele deveria ter secado um divã, mas ao vol- 15 tar a seu quarto, não mais lembrava se havia secado esse divã ou não: “Então, se sequei e me esqueci, isto é, se agi inconscientemente, era exatamente como se não o tivesse feito� Se alguém conscientemente me tivesse visto, poder-se-ia reconstituir o gesto� Mas se ninguém o viu, ou se o viu inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido”� O automatismo da vida “engole os objetos, os hábitos, os móveis a mulher e o medo à guerra”� Exatamente para essa situação que Tolstoi propõe o papel da arte, para “desenvolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte� O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento”� Ou seja, Tolstoi compreende que a arte devolve à vida comum a sensação de plenitude (Chklovski, V� “A arte como procedimento”� In: Eikhenbaum, B� Os formalistas russos� p� 44-5)� 16 CONCEITO E SURGIMENTO DA TEORIA LITERÁRIA A Teoria Literáriaé uma disciplina voltada ao estudo da literatura não a partir das obras, mas a partir de conceitos, como natureza da literatura, poesia, prosa, gêneros literários etc� As primeiras teorizações da literatura, de acordo com o ponto de vista da civili- zação judaico-cristã, surgiram na Grécia Antiga� Na peça teatral As rãs, de Aristófanes (447-385 a�C�), apresentada no ano 405 a�C� em Atenas, já aparece uma referência à questão de gênero� Esse fato é re- velador de que nessa época já se teorizava a respeito da literatura� Uma reflexão mais apurada a respeito de questões literárias ocorre em Platão, no livro III da República, destaca que a literatura se compõe do gênero dra- mático (comédia e tragédia), o épico (considerem-se aqui as epopeias Ilíada e a Odisseia) e o ditirambo (a designação da poesia lírica pelo metro de que fazia uso)� Aristóteles, alguns anos mais tarde, mantém essa divisão, ampliando-a ao considerar a aulética e a citarística, ou seja, poemas cantados ao som da flauta e da cítara. 17 SAIBA MAIS Platão foi um dos três filósofos gregos que cau- saram um grande impacto na Civilização Ociden- tal� Os outros dois foram Sócrates, seu mestre, e Aristóteles, seu discípulo� A obra de Platão é re- lativamente extensa e consiste de diálogos entre um filósofo de destaque, na maioria das vezes, Sócrates e um jovem ou uma figura significativa da época� A República revela como deveria ser a cidade, e ali há uma crítica ferrenha às tragédias e às epopeias, por valorizarem determinados comporta- mentos falhos do ser humano. Aristóteles escreveu uma obra fundamental sobre o assunto, a Poética� Essa obra foi responsável por grande parte de todas as reflexões mais significati- vas a respeito da Teoria Literária no mundo ociden- tal, com questões relativas aos gêneros literários, à composição da tragédia, noção de catarse, como um de seus efeitos, referências às partes de sua es- trutura, noção de enredo, personagens, propósito da literatura� Muito de suas proposições são válidas até hoje, assim como a nomenclatura proposta por ele� Em Roma, as questões teóricas a respeito da lite- ratura apareceram no poema Carta aos Pisões, de Horácio, mais conhecida com a denominação pos- terior de Arte Poética� Nele o poeta romano faz uma espécie de aconselhamento, destacando algumas qualidades que a obra deve ter – coesão, coerência, verossimilhança – e que falhas devem ser evitadas� 18 Na Idade Média, ocorreram apenas algumas “artes de trovar”, mas sem o devido embasamento filosófico. Fora isso, houve uma ou outra obra sobre o assunto, como um comentário elaborado pelo médico árabe Averróis a respeito da Poética de Aristóteles� Podcast 2 Na Renascença e nos séculos seguintes, houve uma grande produção de obras, geralmente calca- das na Poética de Aristóteles� Moisés (1978) cita esses autores e publicações, como: Giraldi Cinthio, Da Composição de comédias e Tragédias (1543); Giangiorgio Trissino, Poética (1529-1563); Jean Pelletier, Art Poétique (1555), Ludovico Castelvetro, Poetica d’Aritotele Vulgarizzata et Sposta (1570)� Os italianos tiveram o mérito de colocar a lírica como um gênero com a mesma importância da épica� Além disso, “dedicaram atenção pela primeira vez a uma modalidade nova, o romanzo, ou seja, o poema épico de cunho cavalheiresco” (MOISÉS, 1978, p� 242)� No século 16, surge, na França, Nicolas Boileau (1636-1711), que critica o preciosismo (dos italianos), e busca conciliar a grandeza com a simplicidade, sob a influência do Pseudo-Longino, que escreveu Sobre o sublime (século 1 ou 2; a data é incerta)� Há contribuição de críticos ingleses, como Pope, que introduziu o “criticismo”� Na Itália, surge Giambattista Vico (1668-1744), que não introduziu nenhuma arte poética, mas afirmava que a poesia, irredutível às ciências, era a linguagem dos povos primitivos� Além 19 disso, estava interessado na interpretação dos mitos� Na Alemanha, Alexander Gottlieb Baumgarten (1714- 1762) – filósofo que introduziu o termo “estética” nas reflexões sobre a arte –, Friedrich Schiller (1759- 1805) e Immanuel Kant (1724-1804) desenvolvem uma teoria do sublime, atribuindo novo significado ao diálogo entre razão e paixão� Friedrich Höderlin (1770-1843) via esse diálogo pela ótica do ethos religioso� Com o advento do Romantismo, a poética se confun- de com a paixão� Victor Hugo (1802-1885), na França, em seu prefácio da peça Cromwell, rejeita as normas clássicas referentes ao drama, propondo uma visão religiosa e sagrada para a arte� Na América do Norte, aparece uma voz relativamente isolada, Edgar Allan Poe (1809-1849)� Poe foi notável contista, introduzin- do o gênero policial e refletindo sobre a literatura. N’A filosofia da composição reproduz as propostas que Aristóteles dedicava à tragédia, aplicadas ao conto� Pouco depois, Charles Baudelaire (1821-1867), influenciado por Poe, propôs em sua obra a Arte romântica, que a poesia deve ligar-se à vida mo- derna, sem abandonar o ideal do belo� Baudelaire foi um marco importante não apenas na literatura francesa, mas sua obra, particularmente o poema Correspondences, em que destaca que a poesia é simbólica: as palavras poéticas evocam uma reali- dade do indizível� Stéphane Mallarmé (1842-1898) coloca a questão de a poesia ser platônica ou voltada às sensações� Em sua obra, tende a conciliar tais tendências� 20 https://pt.wikipedia.org/wiki/1724 https://pt.wikipedia.org/wiki/1804 No século 20, há várias tendências significativas. Benedetto Croce (1866-1952) escreve Ensaios de estética, obra em que conceitua a arte distinta da ciência, de um simples jogo de imaginação, nem de sentimento, mas contemplação do sentimento� Vincula a estética à filosofia. Com o desenvolvimento da linguística, há uma aproximação entre essa ciên- cia e o estudo da literatura� Nesse campo, destaca-se Roman Jakobson, que examina a literatura a partir de considerações a respeito da linguagem� 21 PRINCIPAIS CORRENTES DA TEORIA LITERÁRIA As reflexões a respeito dos fenômenos literários nem sempre tiveram unanimidade� Conforme o momento histórico, a arte é compreendida de maneira especí- fica. Assim, é possível destacar pelo menos quatro teorias para o estudo da literatura� São elas: • Teoria Mimética • Teoria Pragmática • Teoria Expressiva • Teoria Objetiva Teoria Mimética A primeira corrente teórica a respeito da literatura dizia que a literatura era imitação (o termo “miméti- ca” decorre de mimese: imitação)� Lembramos que, de acordo com Platão, a arte imitava o mundo físico e, como para esse filósofo o mundo físico era uma cópia do mundo real – o mundo das ideias –, um quadro, uma escultura, um poema seriam cópias de uma cópia (pois o mundo físico “copiava” o mundo das ideias)� Platão submetia a apreciação da lite- ratura a um crivo moral� Dessa forma, desaprovava 22 muitas obras trágicas e épicas, valorizando apenas determinadas passagens� Aristóteles também entende a arte como imitação� Essa não seria mera cópia do mundo físico� Ele com- preendia que a obra de arte inspirava-se nos mais altos ideais, de modo que a arte era imitação da re- alidade� Deve-se entender que essa imitação não era mera transcrição, mas uma construção semelhante ao mundo� “O artista deve captar o real, em primeiro lugar, manipulando-o com os meios próprios à sua arte� No caso da literatura, seria o ritmo, a melodia, o verso” (GOMES; VECHI, 1990, p� 34)� Teoria Pragmática Na teoria pragmática, cabe ao artista projetar uma imagem do mundo melhor do que aquele que cos- tumeiramente conhecemos. A finalidade dessa ima- gem melhorada é educar o homem� Assim se podem compreender as produções barrocas� Na igreja bar- roca, as pessoas se encantam com as imagens e a arquitetura do prédio. A finalidade desse encanta- mento é conduzir o olhar do observador para a figura santificada ali reproduzida. FIQUE ATENTO Caso você não tenha se lembrado de exemplos da arte barroca, convido-oa consultar dois si- tes: https://www.historiadasartes.com/nomun- 23 https://www.historiadasartes.com/nomundo/arte-barroca/barroco/ do/arte-barroca/barroco, que contém um texto explicativo satisfatório e um grande número de imagens; e https://br.images.search.yahoo.com/ yhs/search;_ylt=AwrEeGFG5B1dyi4AbAIf7At.;_ y lu=X3oDMTByMjB0aG5zBGNvbG8DYm YxBHBvcwMxBHZ0aWQDBHNlYwNzYw-- -?p=arte+barroca&fr=yhs-avast-securebrowser &hspart=avast&hsimp=yhs-securebrowser, que contém somente imagens. Do ponto de vista literário, o Barroco e o Arcadismo tiveram muitas obras de caráter exemplar� Eis um bom exemplo de uma composição fiel à teoria prag- mática de Bocage (1765-1805): Vem, ó Marília, vem lograr comigo� Deixa louvar da corte a vã grandeza Destes alegres campos a beleza, Quanto me agrada mais estar contigo, Destas copadas árvores o abrigo� Notando as perfeições da Natureza� [BOCAGE (1974), último terceto do poema “Já se afastou de nós o Inverno agreste”] No convite feito pelo poeta a Marília há claros ele- mentos da teoria pragmática� Quem convida não é um apaixonado, mas um homem atento, interessado em ter uma companheira e não uma amante� Ao lado dela, realiza o propósito horaciano, aproveitando-se 24 https://www.historiadasartes.com/nomundo/arte-barroca/barroco/ https://br.images.search.yahoo.com/yhs/search;_ylt=AwrEeGFG5B1dyi4AbAIf7At.;_ylu=X3oDMTByMjB0aG5zBGNvbG8DYmYxBHBvcwMxBHZ0aWQDBHNlYwNzYw--?p=arte+barroca&fr=yhs-avast-securebrowser&hspart=avast&hsimp=yhs-securebrowser https://br.images.search.yahoo.com/yhs/search;_ylt=AwrEeGFG5B1dyi4AbAIf7At.;_ylu=X3oDMTByMjB0aG5zBGNvbG8DYmYxBHBvcwMxBHZ0aWQDBHNlYwNzYw--?p=arte+barroca&fr=yhs-avast-securebrowser&hspart=avast&hsimp=yhs-securebrowser https://br.images.search.yahoo.com/yhs/search;_ylt=AwrEeGFG5B1dyi4AbAIf7At.;_ylu=X3oDMTByMjB0aG5zBGNvbG8DYmYxBHBvcwMxBHZ0aWQDBHNlYwNzYw--?p=arte+barroca&fr=yhs-avast-securebrowser&hspart=avast&hsimp=yhs-securebrowser https://br.images.search.yahoo.com/yhs/search;_ylt=AwrEeGFG5B1dyi4AbAIf7At.;_ylu=X3oDMTByMjB0aG5zBGNvbG8DYmYxBHBvcwMxBHZ0aWQDBHNlYwNzYw--?p=arte+barroca&fr=yhs-avast-securebrowser&hspart=avast&hsimp=yhs-securebrowser https://br.images.search.yahoo.com/yhs/search;_ylt=AwrEeGFG5B1dyi4AbAIf7At.;_ylu=X3oDMTByMjB0aG5zBGNvbG8DYmYxBHBvcwMxBHZ0aWQDBHNlYwNzYw--?p=arte+barroca&fr=yhs-avast-securebrowser&hspart=avast&hsimp=yhs-securebrowser https://br.images.search.yahoo.com/yhs/search;_ylt=AwrEeGFG5B1dyi4AbAIf7At.;_ylu=X3oDMTByMjB0aG5zBGNvbG8DYmYxBHBvcwMxBHZ0aWQDBHNlYwNzYw--?p=arte+barroca&fr=yhs-avast-securebrowser&hspart=avast&hsimp=yhs-securebrowser da beleza dos campos e do abrigo das árvores� A natureza é propiciadora do prazer contemplativo, e acolhe os indivíduos por meio de suas árvores� Além disso, ela é a fiel depositária dos bens do mundo; é perfeita, como se nota no último verso, e oposta à vida frívola da corte (Deixa louvar da corte a vã gran- deza), repercutindo nessa passagem os ecos das propostas rousseauniana: o homem é naturalmente bom; precisa da vida social para desenvolver-se, mas esta é cheia de falhas� Teoria Expressiva A teoria expressiva está veiculada ao movimento romântico� Nela, o poeta confunde-se com o vate (o profeta), cuja sensibilidade lhe permite o acesso às verdades primeiras e universais� Contudo, as obras são mais reveladoras do artista do que o mundo do artista� O mundo tem menos importância do que a maneira como o artista o apreende� A imaginação é o elemento essencial da criação artística, entrando o esforço racional apenas como complemento� A alma sofredora do artista é quem ocupa o centro da atenção da obra, revelando particularidades de seus sentimentos, de suas emoções, suas paixões, suas escolhas. Uma das produções mais signifi- cativas desse período é Os sofrimentos do jovem Werther, cujo título condiz plenamente com a teoria expressiva� 25 SAIBA MAIS Estes são os dois parágrafos iniciais de Os sofri- mentos do jovem Werther: "Tudo aquilo que me foi dado encontrar na histó- ria do pobre Werther, eu ajuntei com diligência e agora deposito à vossa frente, sabendo que have- reis de me agradecer por isso� Não podereis negar vossa admiração e vosso amor ao seu espírito e ao seu caráter, nem esconder vossas lágrimas ao seu destino� E tu, boa alma, que sentes o Ímpeto da mesma forma que ele o sentiu, busca consolo em seu sofrimento e deixa que o livreto seja teu amigo se, por fado ou culpa própria, não puderes achar outro mais próximo do que ele�" O romance integral pode ser encontrado em: ht- tps://lyrics-letra.com/PDF/Johann-Wolfgang-von- -Goethe/Johann-Wolfgang-von-Goethe-Os-Sofri- mentos-do-Jovem-Werther.pdf� Caso você não consiga ler Os sofrimentos do jovem Werther, verifique o que se passa com o poeta ultrarromântico brasileiro Álvares de Azevedo, que revela uma atitude em relação à vida semelhante aos de Werther� Alguns de seus poemas podem ser encontrados neste site: http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/ alvares-de-azevedo-poemas� 26 https://lyrics-letra.com/PDF/Johann-Wolfgang-von-Goethe/Johann-Wolfgang-von-Goethe-Os-Sofrimentos-do-Jovem-Werther.pdf https://lyrics-letra.com/PDF/Johann-Wolfgang-von-Goethe/Johann-Wolfgang-von-Goethe-Os-Sofrimentos-do-Jovem-Werther.pdf https://lyrics-letra.com/PDF/Johann-Wolfgang-von-Goethe/Johann-Wolfgang-von-Goethe-Os-Sofrimentos-do-Jovem-Werther.pdf https://lyrics-letra.com/PDF/Johann-Wolfgang-von-Goethe/Johann-Wolfgang-von-Goethe-Os-Sofrimentos-do-Jovem-Werther.pdf http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/alvares-de-azevedo-poemas http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/alvares-de-azevedo-poemas Teoria Objetiva A teoria objetiva põe a nu a figura do artista e o pro- cesso de elaboração da obra de arte� Na segunda metade do século 19, na publicação de Parnasse contemporain, na França, surgiram duas proposi- ções artísticas: o Simbolismo, que está vinculado à teoria expressiva, e o Parnasianismo, adepto da teo- ria objetiva� Enquanto o Simbolismo voltou-se para o diáfano, o indizível, o inalcançável, o Parnasianismo primou-se pelo preciosismo, pela objetividade, pelo processo de elaboração poética� Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino, escreve! No aconchego Do claustro, no silêncio e no sossego, Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! Mas que na forma se disfarce o emprego Do esforço; e a trama viva se construa De tal modo, que a imagem fique nua, Rica, mas sóbria, como um templo grego� Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre� E, natural, o efeito agrade, Sem lembrar os andaimes do edifício: 27 Porque a Beleza, gêmea da Verdade, Arte pura, inimiga do artifício, É a força e a graça na simplicidade� (BILAC, 1994; P�385) O poema de Bilac (1865-1918) registra um modo de composição literária em que tanto aspecto criativo, como as particularidades de artista não aparecem, mas devem ser evitados (“Não se mostre na fábrica o suplício do mestre”)� A criação poética é semelhante ao trabalho do escultor ou do arquiteto, produzindo uma estátua (“Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua”) ou um templo grego, e o processo de criação deve ser realizado “longe do turbilhão da rua”� Esse verso, iniciando o poema, já informa ao leitor que a elaboração de um poema requer calma, reflexão e afastamento da vida social. A obra, resultado final desse esforço dirigido, vale por si só e deve reunir três elementos capitais: Beleza, Verdade e Arte, cuja disposição no verso as transforma em sinônimos: o que é belo = o que é verdadeiro = produto artístico Numa proposta poética similar a essa de Bilac, mas muito mais sutil, é o poema Autopsicografia do poe- ta modernista Fernando Pessoa (1888-1935)� Esse título já traduz sua postura, pois psicografia é um termo da doutrina espírita que implica na captação e transcrição de mensagens do além por um médium� Neste poema, o poeta psicografa a si mesmo: 28 AUTOPSICOGRAFIA O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente�E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm� E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração� O poeta coloca-se numa postura de ator, aquele que finge um determinado papel, assumindo a persona- lidade da personagem, com quem se identifica no decorrer do espetáculo� Após sua apresentação, o ator volta a ser quem é na vida comum� No poema, o poeta atua em dois campos: enquanto poeta, pode fingir uma dor; enquanto indivíduo, sente essa dor de verdade� A dor que transmite, utilizando-se da composição literária, é a “dor lida”, ou seja, a dor “fingida”, aquela que os leitores não possuem por 29 não saberem expressá-la� Além disso, esses leitores sentem prazer em contemplar essa dor (“Na dor lida sentem bem”)� A última estrofe faz uma separação bastante precisa entre aquilo que provoca o entre- tenimento, o coração, e aquilo que aprecia, a razão, como uma maneira de explicar o que se passa no processo de criação poética� SAIBA MAIS Fernando Pessoa (1888 – 1945), poeta moder- nista português, produziu obra extensa e muito complexa� Escreveu sob diversos pseudônimos a que denominou de heterônimos� Pseudôni- mo significa “nome falso”; e heterônimo, “outro nome”� Caso você queira conhecer mais desse poeta, consulte, por exemplo, o site https://mun- doeducacao.bol.uol.com.br/ literatura/fernando- -pessoa.htm. 30 https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/%20literatura/fernando-pessoa.htm https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/%20literatura/fernando-pessoa.htm https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/%20literatura/fernando-pessoa.htm PARTICULARIDADES DO DISCURSO LITERÁRIO Toda e qualquer ciência acaba por exigir uma nomen- clatura específica para designar alguns fenômenos que lhe são comuns� No estudo da literatura não seria diferente� Algumas noções são fundamentais para compreender o que se passa na poesia e no romance� Nas páginas seguintes, você vai se deparar com as funções da linguagem, signo linguístico, de- notação e conotação; ambiguidade; imagem; figuras de linguagem, e, dentre elas, metáfora e metonímia� Com o domínio desses termos, o ensino da literatura torna-se mais fácil� 31 AS FUNÇÕES DA LINGUAGEM Jakobson (1896-1982), um teórico russo, considerou a linguagem humana sob dois aspetos fundamentais, que denominou de eixos: há o eixo de seleção de vocabulário; e outro de ordenação desse vocabulário� Para que isso fique claro, pense numa frase simples como esta: O menino atravessou a rua� Nela, houve uma seleção de vocabulário� Em vez de menino, po- deríamos ter dito “criança”, “guri”; no lugar de rua, poderia ter sido “alameda”, “avenida”; e, em vez de atravessou, “cruzou”� Mas esta frase Atravessou rua menino a o, ainda que tenha os mesmos ingredientes da anterior, não faz sentido algum� É um amontoado de palavras e não uma frase� Para que haja entendimento, há necessidade de uma or- dem. A escolha do vocabulário implica o eixo de seleção; a ordem que submete esse vocabulário corresponde ao eixo da estrutura. Além disso, Jakobson destacou seis funções para a linguagem, a partir de um esquema básico do pro- cesso de comunicação. Seis elementos aparecem no esquema de comunicação: o emissor (quem fala) a mensagem (o que se fala) o destinatário (a quem se fala) Estes são os tópicos básicos de uma comunicação� Além deles, há três outros: contexto (o que está à 32 volta da mensagem), contato (elementos de inicia- ção ou de término de uma mensagem) e código (a linguagem empregada)� o contexto (os elementos a que se refere à mensagem), a contato (elemento de ini- ciação ou término da mensagem) o código (a linguagem empregada) Repare nestes exemplos: a) Lá faz muito frio� b) – Alô? É o Sérgio? c) – Passe-me a salada, Osvaldo� d) Ai como eu sofro! e) As preposições são invariáveis� f) “��� o eco que oco coa”� 33 No primeiro, a frase é muito comum, mas não impre- cisa. Onde fica “lá”? Se não houver uma indicação clara, a mensagem torna-se incompreensível� Se estivesse depois de uma determinada informação, ficaria mais clara, como em: “Estive no Ártico. Lá faz muito frio”� Desse modo, o advérbio “lá” ganhou maior precisão� O que se valorizou nesse exemplo foi o contexto, ou seja, o que está em torno do texto e lhe dá algum tipo de referência� Em “b”, trata-se de uma conversa telefônica� Quem telefonou, sentiu necessidade de identificar a pessoa por quem procurava� O “alô” é o ponto inicial do con- tato, e em “é o Sérgio?”, busca-se a confirmação. Se a pessoa que atendeu ao telefone, depois de algumas trocas de informações básicas (por exemplo, “sim, é o Sérgio� Quem quer falar com ele?”), for o Sérgio, a conversa encaminha-se para seu propósito� Os termos destacados “alô” e “é o Sérgio?” não são o objetivo dessa chamada telefônica� O que ocorreu nesse exemplo foi apenas o contato� Uma vez o con- tato estabelecido, vem a mensagem principal� No exemplo “c”, uma pessoa faz um pedido a um indivíduo, que se chama Osvaldo e, se for uma pes- soa educada, entregará o prato de salada a quem lhe pediu� Frases como essa, que apresentam o verbo no modo imperativo, são dirigidas a um destinatário� Até agora, identificaram-se outros três elementos do processo de comunicação: o contexto, o contato e o destinatário� No exemplo “d” a mensagem “Ai como eu sofro!” destaca o próprio falante� Quando ele fala, 34 seu propósito é comunicar alguma coisa própria de si mesmo. Dificilmente, quando alguém dá uma marte- lada no dedo, dirá: “Que desfortunado sou eu; vejam onde fui bater com este martelo!” Deixará simples- mente escapar “Ai!”, cujo conteúdo não é tão claro, mas a expressividade é extrema� Neste exemplo, o elemento que mais se destaca é o emissor, aquele que remete a mensagem� Em “As preposições são invariáveis�”, a mensagem foi utilizada para falar do código, no caso a língua portuguesa� Normalmente, os falantes usam a lin- guagem para se referir ou ao mundo exterior, ou a elementos de sua vida mental� Entretanto, quando questões relativas ao emprego da língua aparecem, ou seja, quando se utiliza a linguagem para tratar da própria linguagem, o que se destaca é o código� Por fim, o verso de Fernando Pessoa “o eco que oco coa”� Essa mensagem poderia ser expressa deste modo: “no fenômeno do eco, há reverberação do som”� Entretanto, o efeito dessa frase não tem a graça do verso citado� Há certa musicalidade nas palavras, que, por si mesmas, representam o ecoar do eco, numa repetição de consoantes, “c”, e de vo- gais, como o fonema “o”, que se opõe aos outros, a saber, o “e” o “a”� O eco, por não ter sido a produção original do som, é reduzido em intensidade, “oco”, e sua reverberação corresponde a “coa”� Nesse caso, a sonoridade das palavras e sua ordem são funda- mentais para compreender o que se diz� O que esse exemplo mostra é o destaque da própria mensagem� 35 FIQUE ATENTO As seis funções da linguagem aparecem em vá- rias mensagens� Não é impossível, mas ocorre raramente aparecer apenas uma função em uma mensagem� Em frases muito banais, como “O soldado está usando uma farda azul”, ocorre ape- nas a função referencial� No uso habitual da lín- gua, podem ocorrer muitas funções simultâneas� Nestes versos de Casimiro de Abreu (1839-1860), Quando e te fujo e me desvio cauto Da luz de fogo que te cerca, oh! Bela, Comigo dizes, suspirando amores: “Meu Deus! Que gelo, que frieza aquela” há, naturalmente, a função referencial, pois todas as palavras acima são encontradas num dicioná- rio, e esse sentido primeiro não se perde, mesmo estando presentes todos os demais agregados� Mas outras funções aí se somam: há um discur- so em primeira pessoa; quando se dirige a um “tu”, surge um “eu” que confessa seus sentimen- tos em relação à mulher amada, o que marca a presença da função emotiva� Acresce o conjunto de imagens “luz de fogo” (metáfora), “oh!Bela” (sinédoque, pois o atributo de beleza substitui a mulher amada), “suspirando amores” (nova siné- doque: o que a moça suspira implicam ‘amores’, mas, aqui, trata-se de um suspiro extraordinário, já que esse suspiro se confunde com as próprias figuras amorosas); e “gelo”, ainda que explicado por “que frieza aquela”, é metáfora, substituindo parcialmente a indiferença com que se comporta o poeta em relação à mulher amada� 36 Todas estas imagens perfazem a função poética� Se os exemplos de propaganda acima pertencem à função poética, o que os diferencia de um texto poético? Essa diferença se encontra na finalidade de cada texto� A poesia tem sua independência e ela lança mensagens que valem por si mesmas� 37 NOÇÃO DE IMAGEM & QUESTÕES DE RETORICA O dicionário Houaiss registra várias acepções relati- vas à imagem, dentre as quais destacamos esta: “(9) qualquer maneira particular de expressão literária que tem por efeito substituir a representação precisa de um fato, situação etc� por uma alegoria, visão, evo- cação etc�” Desse modo, imagem corresponde a um desvio no uso de um termo� O que vem a ser desvio? Neste exemplo, “nosso zoológico adquiriu um leão”, o termo “leão” corresponde a um animal carnívoro, da raça dos felinos� Sua pelagem é curta com exceção da parte à altura o pescoço, que é coberta por farto pelame, denominada de juba� Compare o exemplo acima, com este: “Sim: ele é baixo, magro, mas quando entra em campo é um leão”� Nesse caso não se espera que o indivíduo apre- sentado como “baixo e magro” ganhe uma juba ao entrar em campo� O que ocorreu aqui foi um desvio da significação habitual da palavra (esse significado não perdeu, mas a ele outro foi acrescentado)� A fra- se acentua o fato de que, dentro do campo, o atleta mencionado transforma-se e ele passa apresentar uma grande energia e coragem, ao que o autor da frase denomina ‘leão’. Assim, o termo abstraiu-se em sua significação habi- tual e passou a emprestar ao homem as qualidades que costumeiramente pertencem ao “rei das selavas”� 38 A linguagem literária pende à conotação� Nela concentram-se vários significados nas palavras. Enquanto a linguagem científica prima pela denota- ção, a linguagem literária, sem abandonar a função referencial, acumula outros significados simultane- amente� O modo como faz isso é o que passamos a estudar agora� 39 FIGURAS DE LINGUAGEM Todo e qualquer termo, ou conjunto de termos que se constituem num desvio em seu emprego, pode ser denominado de imagem� Os trabalhos da retó- rica – arte de falar em público, numa conceituação simplificada – mais presentes nos tempos antigos, procuravam apresentar elementos que melhor enri- quecessem o discurso� Esse enriquecimento podia ser feito pelo menos de duas maneiras: a) Pela ordenação das palavras na frase, visando a um efeito específico. b) Pelo enriquecimento da expressão, empregando ornamentos, conhecidos como figuras de linguagem. 40 FIGURAS DE CONSTRUÇÃO Quando se pensa na ordenação de uma frase ou do discurso, empregam-se figuras de construção. Denominam-se figuras de construção, a anáfora, o hipérbato, a anástrofe, o anacoluto etc� A anáfora corresponde à repetição de um termo, ou de alguns termos no início da frase, como em: Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus� Tempo de absoluta depuração� Tempo em que não se diz mais: meu amor� Porque o amor resultou inútil� E os olhos não choram� E as mãos tecem apenas o rude trabalho� E o coração está seco� [Carlos Drummond de Andrade (2013, p� 74) – Os ombros suportam o mundo�] A repetição do termo tempo no início dos versos dois e três pode ser considerada anáfora; nos três últimos versos, iniciados pela repetição da conjunção “e”, ocorre um polissíndeto (poli= muito; síndeto= con- junção)� A construção que apresenta orações, uma seguida da outra sem qualquer conjunção, denomina- -se assíndeto (a= não; síndeto= conjunção)� No início do hino brasileiro há duas inversões: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um 41 povo heroico o brado retumbante� O termo grifado, “do Ipiranga” é um elemento que refere a “margens plácidas”� Como já se observou a ordem direta des- ses versos seria “As margens plácidas do Ipiranga ouviram/ o brado retumbante de um povo heroico”� Fica mais fácil perceber que os termos grifados fa- zem referência a “margens” e “brado” respectiva- mente� Esse tipo de inversão denomina-se hipérbato (literalmente, ‘sobrepasso’). Há um conjunto muito grande de figuras de constru- ção� Seu emprego implica efeitos de leitura: surpre- sas, ênfase em pontos específicos do texto, ritmo entre outros efeitos. As figuras de linguagem fazem com que um discurso se torne mais interessante� 42 FIGURAS DE PENSAMENTO As denominadas figuras de pensamento lidam com o significado das palavras ou de um conjunto de palavras� A hipérbole (‘excesso’), por exemplo, cor- responde a algum tipo de exagero� Se alguém diz “eu trouxe um caminhão de sugestões”, ninguém espera que tenha chegado ali um grande veículo, carregado de propostas, mas que a imagem exage- rada diz respeito a um número bastante grande de “palpites” apresentados por determinada pessoa� Nem se espera que alguém que se queixe dizendo assim “demoraram um século para me atender” diga exatamente a verdade, mas que ele tenha exagerado para revelar sua insatisfação com a espera� A Ironia (de acordo com Houaiss, do grego eirōneía, as ‘ação de interrogar, fingindo não saber’) é uma figu- ra de pensamento que consiste em expressar certas palavras visando a seu efeito contrário� Por exemplo: ouve-se uma grande gritaria numa sala� Alguém co- menta: “Você pretende conversar com o chefe? Ele não apresenta o melhor de seus humores hoje”� Ou: “Como engenheiro, ele é bom churrasqueiro”� Nesses dois casos, desviou-se do que se pretendia dizer� No primeiro, o que se dá entender é que o “chefe” está com péssimo humor; no segundo, que “ele” não tem nenhuma condição de ser engenheiro� A retórica tradicional destaca um conjunto de ima- gens como Figuras de Palavras� Elas consistem em Comparação, Metáfora, Metonímia, Sinédoque e Catacrese� 43 A mais simples delas é a catacrese: trata-se de uma figura de linguagem que, pelo uso costumeiro, perdeu o aspecto fantasioso� Exemplos: cotovelo da rua, boca da noite, dente de alho, orelha de livro, mão de tinta, braço da cadeira, pé da mesa e tantos outros termos semelhantes� Nesses casos, na falta de um termo específico, apelou-se para uma imagem me- tafórica (como “cotovelo da rua”, uma construção metafórica, pela semelhança entre um ângulo agudo e um cotovelo) ou metonímica (“mão de tinta” – não se espera uma medida de tinta, mas um trabalho ‘manual’ de distribuí-la sobre determinada superfície; a mão que executa o trabalho passa a designar o próprio trabalho)� A metáfora (etimologicamente, esse termo significa “transposição”) consiste numa substituição de um termo por outro em virtude de uma semelhança� No verso camoniano “Amor é fogo que arde sem se ver”, estabelece-se a equação “Amor = fogo (que queima invisivelmente)”� Ao fazê-lo, Camões destaca uma característica do sentimento amoroso, ligada à for- ça, ao calor, à ardência e tantos outros significados. Entre amor e fogo, há um ponto comum que pode ser simbolizado pela intercessão da dos círculos A e B, como no esquema abaixo� Os pontos em comum são aqueles que permitem a aproximação de A a B, de tal sorte que uma vez que se nomeie B, pensa-se em A e vice-versa� No exemplo camoniano, “A” pode- ria ser amor; “B”, fogo� As noções de ardência, calor, força são os pontos em comum entre um elemento e outro “C”: 44 A BC Figura 1: Fonte: Elaboração própria. A comparação é um tipo de imagem próxima da me- táfora� A diferença consiste em que a comparação deixa evidentes os elementos que estabelecem a semelhança entre uma coisa e outra, ao passo que a metáfora salta esse ponto� Observe o que sucedeneste poema de Manuel Bandeira: O Rio Ser como o rio que deflui Silencioso dentro da noite� Não temer as trevas da noite� Se há estrelas nos céus, refleti-las. E se os céus se pejam de nuvens, Como o rio as nuvens são água, Refleti-las também sem mágoa Nas profundidades tranquilas� (BANDEIRA, Manuel� Estrela da vida inteira� 1993, p� 203�) 45 No primeiro verso, Ser como o rio que diflui, o termo “como” estabelece uma relação entre o leitor (pois a ele o poema se dirige, tal como um conselho dado a alguém) e o rio, cujo comportamento serve de exem- plo para quem o observa; a conjunção comparativa, como, é o elemento de ligação� O mesmo acontece no sexto verso, Como o rio as nuvens são água, quan- do se comparam os termos “rio” e “nuvens”� Por que se escolheu a noite para apresentar o procedimento do rio? Porque a escuridão noturna (“trevas da noite”, 3º verso) é reveladora do lado sombrio da vida, dos momentos de incertezas e dificuldades que o ser humano enfrenta� E nesse aconselhamento, o rio diflui (isto é, “escorre”) quer haja estrelas nos céus, quer haja nuvens� E “pejar”, neste caso, é sinônimo de encher, mas com um significado a mais, dado que a primeira acepção desse verbo é “pôr obstáculos, estorvar, impedir” (cf� o dicionário Houaiss)� Ou seja, fica implícito que a presença de nuvens é um obstá- culo para o movimento do rio, que fica refletindo o céu� Este céu corresponde a um elemento positivo, as estrelas� As nuvens, apesar de serem um estorvo, têm a mesma consistência do rio (Como o rio as nuvens são, água), por isso não devem ser rejeita- das, mas acolhidas “sem mágoa” (7º verso), “nas profundidades tranquilas”� Esta última imagem diz respeito ao íntimo do ser humano: o poeta aconselha o leitor a manter uma atitude estoica, uma espécie de indiferença relativa aos fatos da vida, como as alternâncias entre prazeres e dores� 46 SAIBA MAIS Os estoicos eram adeptos do estoicismo, dou- trina fundada por Zenão de Cítio (335-264 a�C�) e desenvolvida por várias gerações de filósofos, que se caracteriza por uma ética em que a im- perturbabilidade, a extirpação das paixões e a aceitação resignada do destino são as marcas fundamentais do homem sábio, o único a expe- rimentar a verdadeira felicidade� O estoicismo exerceu profunda influência na ética cristã. (HOU- AISS, 2001) Outra imagem importante é a metonímia e/ou siné- doque (significado aproximado: ‘abrangência’). Há uma diferença sutil entre uma imagem e outra, mas para este estudo, consideraremos metonímia e sinédoque sinôni- mas. A metonímia é um processo de substituição basea- do em contiguidade (ou seja, vizinhança). Por exemplo, há um homem que é conhecido por seu bigode, e outro, por sua careca. Se alguém disser “Hoje me encontrei na praça com o Bigode e o Careca”, estará fazendo uso de uma metonímia. Diferentemente da metáfora, que se baseia na se- melhança, a metonímia procura tomar uma coisa por outra� Quando alguém chamado Bigode vem nos visitar, não se supõe com isso que, ao atendermos ao chamado da campainha, estará no lado de fora da porta um enorme bigode, mas um homem que porta um bigode� Diferente da metáfora, na meto- nímia parte da coisa simbolizada está presente no 47 símbolo; é o que sucede como o termo “bigode” que ganha um processo de ampliação em seu significa- do, passando-se pela pessoa que o usa� O mesmo raciocínio se estende ao indivíduo denominado de Careca� SAIBA MAIS Consulte estes endereços para fixar melhor o que são as figuras de linguagem: em https://www. todamateria.com.br/figuras-de-linguagem você encontra não apenas explicações a respeito das figuras de linguagem como um conjunto significa- tivo de exercícios de fixação, algo que você en- contrará também em https://geekiegames.geekie. com.br/blog/figuras-de-linguagem. Neste outro, https://www.infoescola.com/portugues/figuras- -de-linguagem, há bastante variado de exemplos encontrados na linguagem comum. Observação: esses sites são para um público juvenil do ensi- no médio, mas, por sua simplicidade, são ótimos para a fixação de conteúdos. 48 https://www.todamateria.com.br/figuras-de-linguagem/ https://www.todamateria.com.br/figuras-de-linguagem/ https://geekiegames.geekie.com.br/blog/figuras-de-linguagem/ https://geekiegames.geekie.com.br/blog/figuras-de-linguagem/ https://www.infoescola.com/portugues/figuras-de-linguagem/ https://www.infoescola.com/portugues/figuras-de-linguagem/ GÊNEROS LITERÁRIOS A literatura é um conjunto aleatório de formas? Ou as produções literárias se agrupam em conformidade com determinadas características? Seria possível fazer uma antologia misturando o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, ao lado de Meus oito anos, poema de Casimiro de Abreu? “A teoria dos gêneros é um princípio ordenador: classifica a literatura e a história literária não em função da época ou do lugar [...], mas sim de tipos especificamente literá- rios de organização ou de estrutura” (WELLEK; WARREN, 1971, p. 286). Pela tradição, os gêneros se dividem em poesia e prosa, sendo a poesia escrita em versos e a prosa em linha contínua, caracterização que descreve es- ses grandes gêneros por fora� Mais adiante, vai-se perceber que nem o verso define a poesia, nem a linha contínua, a prosa� Além disso, há na poesia dois gêneros: a lírica e a épica; a primeira, como bem a define Emil Steiger (1969), corresponde à “recordação”, traduz o mundo introspectivo ligado ao sentimento� A épica, que Steiger caracteriza como “a apresentação”, refere-se ao mundo da ação de grandes figuras, os heróis� O drama, por fim, “a tensão”: são as personagens que ganham independência e se digladiam no palco de um teatro� 49 Outros comentadores, como Karl Viëtor (WELLEK & WARREN, op� cit�, pp� 287-8), colocam a poesia lírica como o poeta falando de sua própria pessoa� Na épica, o poeta é um narrador, apresentando a ação das personagens. No drama, a figura do poeta desa- parece: são as personagens que tomam a palavra� O crítico inglês E� S� Dallas (apud WELLEK; WARREN, op� cit�, pp� 287-8) considera os gêneros da seguinte forma: Gênero Pessoa Tempo Drama 2ª pessoa Presente Épica 3ª pessoa Passado Lírica 1ª pessoa Futuro/ (ou passado) Se a lírica é o futuro ou o passado (cf� Steiger, que denominou a lírica como “recordação”) é uma ques- tão complexa, com pouca possibilidade de chegar-se a uma conclusão indiscutível� Até o século 18, os gêneros eram a lírica, a épica e o drama, porque todas as obras dessa natureza eram escritas em versos� Com o Romantismo, a separação rígida que se empunha até então, foi dissolvida� Os românticos não apenas abandonaram o verso na elaboração de peças teatrais, como “inventaram” a tragicomédia, mistura antes considerada inconcebível (ainda que Shakespeare já tivesse avançado nesse terreno, colocando cenas típicas de comédia no meio de algumas de suas tragédias)� 50 Para nossas considerações, o melhor é apresentar exemplos claros de cada uma dessas espécies lite- rárias, a começar pelo gênero lírico� GAITA DE LATA Se o amor ainda medrasse, aqui ficava contigo, pois gosto da tua face, desse teu riso de fonte, e do teu olhar antigo de estrela sem horizonte� Como, porém, já não medra, cada um com a sorte sua! (Não nascem lírios de lua pelos corações de pedra���) [Cecília Meireles (1973), p� 233] Neste poema, domina um tom confessional� Quem fala é um “eu”, função expressiva destacada, que se queixa da perda amorosa. A figura do amado é apresentada pela face, composta do riso e olhar� Não são os órgãos, boca e olhos, mas a expressão por eles conotada: o riso de fonte, e olhar antigo de estrela sem horizonte, ambas as imagens designando algo contínuo e ilimitado� Ao que tudo indica, cada um segue seu destino (“sorte”), porque o amor não cresce ou segue adiante (“já não medra”)� A última 51 estrofe aparece como uma explicação, e nela, a po- etisa não acusa a figura amada de indiferença, pois aambiguidade do último verso (“pelos corações de pedra”) aponta para os corações de pessoas como aquela que tem um belo sorriso e um olhar atraente, ou quer dizer que tanto um quanto outro, a poetisa e o amado, endureceram seus corações? O título do texto Gaita de Lata chama a atenção a seu oposto “Gaita de Fole”, tendo esta última certo caráter solene em sua execução� O termo “lata” de- signa algo mais vulgar, conotando algo menor, sem destaque, apequenando sua situação e sua sorte, que a leva à exclusão da pessoa de um contato social, destacando-se com isso sua solidão. Enfim, a pro- posta deste poema implica intimidade, introspecção� A prosa permanece longe dessa linguagem introspec- tiva, ainda que o tema sejam os sentimentos, como revela este trecho de Machado de Assis (1839-1908): – Que é que você tem? – Eu? Nada� – Nada, não� Você tem alguma coisa� Quis insistir que nada, mas não achei língua� Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora� Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada num vestido de chita, meio desbotado� Os cabelos gros- sos, feitos em duas tranças, com pontas atadas uma à ou- tra, à modo do tempo, desciam-lhe pelas costas� Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns 52 ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula� Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos� (Dom Casmurro, capítulo XIII) Ao contrário do poema de Cecília Meireles, que é uma reflexão atemporal sobre a perda amorosa, o texto machadiano mostra o mundo por fora, mesmo sendo um narrador em primeira pessoa� Bentinho (o narrador do romance) está diante de Capitu� Ele apresenta-a ao leitor, e, ao fazê-lo, revela alguns da- dos da condição social da moça, que não cheira a sabões finos ou a perfumes, mas a sabão comum. A roupa apresenta alguns sinais de uso: o vestido de chita (um tecido barato) é apertado e “meio des- botado”, os sapatos, velhos e remendados� As mãos tinham enfrentado algum trabalho mais rude, o que valoriza sua apresentação limpa� Misturadas a essas qualidades estão os dados “alta, forte e cheia”� E o que traduz os sentimentos desse narrador por Capitu são as frases iniciais, “Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora� Não podia tirar os olhos daquela criatura���” Ainda que preso a esses sentimentos, a narração não perde a objetividade de apresentar a personagem Capitu: em momento algum sua imagem é falsifi- cada� Há uma análise minuciosa da aparência dela, não apenas para apresentá-la fisicamente, mas a somatória de indícios vai além, fazendo referência à situação econômica dessa personagem, que não revela nenhum sinal de riqueza� O retrato propiciado 53 por esse trecho é, em primeira instância, revelador de uma determinada realidade tal qual a gente consegue entender no cotidiano� Desse modo, percebe-se que o gênero poesia tende a revelar o interior de uma maneira quase que dire- ta, tomando os sentimentos com que se apresenta o mundo de imediato� Já a prosa retrata o mundo tal qual nós, leitores, o observamos numa primeira instância, para depois sondar sua significação, ainda que esse grau de compreensão se dê imediatamente� No drama, representado por aquilo que se conhe- ce como teatro, não há um “eu” que sente, ou que apresenta: as personagens conduzem diretamente a ação� É o que se observa na cena inicial de Mãe, peça escrita por de José de Alencar (1829-1977): Ato Primeiro (Em casa, sala de visitas) Cena primeira: Elisa e Gomes� GOMES – Já estás cosendo, minha filha? ELISA – Acordei tão cedo��� Não tinha que fazer� GOMES – Por que me ocultas o teu generoso sacrifício? Cuidas que não adivinhei? ELISA – O que, meu pai?... Que fiz eu?... GOMES – São as tuas costuras que me têm suprido esta se- mana nossas despesas� Conheceste que eu não tinha dinhei- ro para os gastos da casa e não me pediste��� trabalhaste! ELISA – Não era minha obrigação, meu pai? 54 GOMES – Oh! É preciso que isto tenha um termo! ELISA – Também hoje é o 3 do mês��� Vm� Receberá o seu ordenado� GOMES – Meu ordenado? Já o recebi� ELISA – Ah! Precisou dele para pagar a casa? No trecho acima, a peça já se inicia com um proble- ma: a falta de dinheiro, que obriga Elisa a costurar para ajudar nas despesas da casa� A indignação do pai é evidente, pois desejaria uma sorte melhor para a filha. Entretanto, a situação financeira é de tal modo flagrante, que é difícil escapar dela; brota naturalmente pela simples observação paterna à tarefa com que a filha se ocupa. A cena por si só faz um rápido retrato daquilo que costumamos de “situação dramática”. As peças teatrais dificilmente começam “neutras”, mas tendem a revelar nas ce- nas iniciais um conflito. Esse conflito é convincente pela forte presença de pessoas (os atores) no palco� Isso faz com que a “ilusão” da obra de arte mais se aproxime da realidade comum� O espectador não se dá ao trabalho de imaginar como Gomes e Elisa estariam conversando a respeito da triste situação em que vivem, mas a simples troca de palavras en- tre um e o outro são reveladores de seu momento econômico difícil� Com esses três exemplos, demos uma “amostra- gem” daquilo que se conhece como poesia, prosa e drama� No decorrer do curso, você vai se defrontar 55 com outros textos e a repetição poderá facilitar-lhe o entendimento� Essa última observação vale para ou- tras questões que esse módulo apresentou� Teremos sempre de recorrer a esses princípios ao considerar as obras literárias� Por fim, a questão da metodologia de análise e de interpretação de texto vai sendo apresentada de maneira indireta� Ao discutirmos, no próximo mó- dulo, questões relativas à poesia, assim como mais adiante, as relativas à prosa, vamos oferecer a você elementos relevantes para a o tratamento do texto� 56 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste módulo, você entrou em contato com a teo- ria literária, partindo de um conceito bem elástico: literatura é arte da palavra� Percebeu que a natureza e a função da literatura gira em torno dos valores o “útil” e o “agradável”, palavras anunciadas pelo poeta Horácio em sua Arte Poética� Mas esse não foi o primeiro autor a refletir sobre a literatura no mundo ocidental. Platão e Aristóteles já o fizeram antes� Platão considerava a arte como falsa cópia do mundo; Aristóteles considerava a arte também como cópia (mimese), mas da essência do mundo� Posteriormente, as reflexões sobre a arte dividiram-se em quatro teorias: mimética, pragmática, expressiva e objetiva� A literatura divide-se em gêneros: poesia, drama e prosa� Sua linguagem difere-se do uso comum que se faz da língua� As funções da linguagem se destacam a partir da ênfase num dos elementos da comunica- ção: remetente, mensagem, destinatário, contato, có- digo e contexto� A mensagem que destaca a própria mensagem é a função poética, que permite vários empregos, como o que ocorre na propaganda� Mas é na literatura que a função poética é empregada com maior destaque, principalmente porque as mensa- gens literárias não visam a uma finalidade prática, tal como ocorre nas mensagens de marketing� 57 Por fim: você, estudante, tirará grande proveito deste e dos demais módulos se ler o maior número possível de obras literárias, quer de poesia, quer do teatro, quer da prosa� Vamos lá? 58 Síntese Teoria Literária a) Particularidades da linguagem literária A linguagem literária possui algumas características que a dis- tinguem da linguagem comum; isso pode ser observado no vo- cabulário, que costuma ser diferenciado (o que nem sempre ocorre, principalmente nos textos modernos), e na alteração da ordem habitual das frases. A linguagem da poesia apresentaum ritmo mais condizente com a música. b) A função e natureza da literatura A literatura pode ser conceituada como arte da palavra. Isso coloca a literatura ao lado da dança, da música, da pintura, da escultura e das demais modalidades artísticas. Sua natureza e função, de acordo com os comentaristas, de Aristóteles até nossos dias, permanecem entre dois valores: o útil e o agradável. Esses elementos não devem estar desassociados. Tolstoi pensa a literatura como uma maneira de devolver o homem uma percepção renovada do mundo e uma com- preensão mais aguda da realidade. c) Conceito e Surgimento da Teoria Literária O estudo da literatura a partir de conceitos fundamentais – iniciou-se com as reflexões de Platão. Ganhou força com a Poética de Aristóteles, obra que ainda impacta ainda hoje nas considerações sobre o fenômeno literário, e ganhou força no Re- nascimento. Nas propostas estéticas entre os séculos 16 e 18 esses conceitos foram tomadas como dogmas indiscutíveis. Com o advento do Romantismo no século 19, muitas ideias preconce- bidas foram desfeitas, como, por exemplo, a questão dos gêneros literários. Os românticos misturaram tragédia e comédia, subverteram algumas regras e criaram muita coisa nova. d) Principais correntes da Teoria Literária Quatro teorias se destacam na compreensão do fenômeno literário: a mimética, que entende a arte como imitação e/ou re- produção da realidade; a pragmática, a arte deve ter algum en- sinamento (e um propósito moral); a teoria expressiva: maior valorização do artista do que parte do mundo objetivo que ele possa transmitir; e, finalmente, a objetiva, voltada ao processo de criação da obra literária. e) As funções da linguagem A linguagem humana, de acordo com Jakobson, de acordo com o esquema de comunicação, possui seis funções. As três primei- ras, que compreendem respectivamente o emissor, a men- sagem, o destinatário são respectivamente emotiva, poética, conativa, As três outras, voltadas ao contexto, ao contato e a linguagem, são referencial, fática e metalinguística. A função poética, apesar do nome, não se refere apenas ao discurso literário, mas refere-se também a toda mensagem que valoriza a si mesma, como o trocadilho e a linguagem da propaganda. A função poética se destaca como um modo de compreender as particularidades do discurso literário. A noção de desvio – o que não segue a norma, mas desvia-se dela – leva às figuras de linguagem. As figuras de construção, como o hipérbato percebi- do logo no início do Hino Nacional; as de pensamento, como a ironia; e as figuras de palavras, as mais importantes, destacan- do-se a metáfora e a metonímia. Estas duas últimas são figuras de substituição. A metáfora substitui um termo pelo outro em virtude da semelhança entre ambos; a metonímia substitui um termo pelo outro, em razão da vizinhança entre eles. f) Os gêneros literários Três são os gêneros literários fundamentais: a poesia, a prosa e o drama, que estão baseados em alguns pressupostos. Na poesia é o poeta quem fala; na prosa ele é apenas um narrador do que acontece com os outros; no drama, são as personagens que falam por si mesmas. g) Análise e interpretação de texto Por fim a análise e interpretação de texto. O curso de Teoria Literária vai municiá-lo com noções significativas e um conjunto de termos específicos para tratar os textos literários. Entretanto, preste bastante atenção no modo como os exemplos de poemas, de prosa e de peças de teatro são tratadas no decorrer do curso: são exemplos “vivos” de análise e interpretação de texto. Referências ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO� A poética clás- sica. São Paulo: Cultrix, 1981. CÂNDIDO, Antônio. Na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Ática, 2010. EIKTENHBAUM, Boris. et al. Teoria da literatura: for- malistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971. FABRINO, Ana Maria Junqueira. História da Literatura universal. Curitiba: InterSaberes, 2014 (Série Literatura em foco). GOMES, Álvaro C.; VECHI, Carlos. Introdução ao estu- do da literatura. São Paulo: Atlas, 1990. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1973. INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. MEIRELES, Cecília. Vaga música. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1973. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1978. STEIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 2. ed. Lisboa: Europa América, 1971. MICHEL, Alain. Arts poétiques. In: Encyclopedia Universalis: Encyclopedia Universalis France S. A., 1990, p. 106-109. INTRODUÇÃO ALGUNS ASPECTOS DA LINGUAGEM LITERÁRIA CONCEITO DE LITERATURA A NATUREZA E A FUNÇÃO DA LITERATURA CONCEITO E SURGIMENTO DA TEORIA LITERÁRIA PRINCIPAIS CORRENTES DA TEORIA LITERÁRIA Teoria Mimética Teoria Pragmática Teoria Expressiva Teoria Objetiva PARTICULARIDADES DO DISCURSO LITERÁRIO AS FUNÇÕES DA LINGUAGEM NOÇÃO DE IMAGEM & QUESTÕES DE RETORICA FIGURAS DE LINGUAGEM FIGURAS DE CONSTRUÇÃO FIGURAS DE PENSAMENTO GÊNEROS LITERÁRIOS CONSIDERAÇÕES FINAIS Síntese
Compartilhar