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Paula Perin Vicentini Rita de Cassia Gallego Vivian Batista da Silva 2SABERES DOCENTES E O SABER DAR AULA: O INÍCIO DA CARREIRA Licenciatura em ciências · USP/ Univesp 2.1 Introdução 2.2 Quais os saberes docentes? 2.3 Ciclos de vida profissional dos professores 2.4 Conclusão Referências Bibliográficas Di dá tic a 13Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 5 Didática 2.1 Introdução Um dos colegas de Bordeaux, Georges Felouzis, fez um estudo sobre o efeito professor. Ele testa alunos no começo do ano e no fim do ano, e mede o aumento do seu desempenho. Obviamente, o efeito professor é considerável. Isso significa que há professores que ensinam muitas coisas a muitos alunos, há professores que ensinam muitas coisas a alguns alunos, e há professores que não ensinam nada a nenhum aluno. Quando os alunos dizem “depende do professor”, este tipo de medida confirma a sua impressão. (François Dubet, em entrevista concedida a Angelina Peralva e Marília Spósito na Revista Brasileira de Educação, mai/jun/jul/ago e set/out/nov/dez 1997, n. 5 e 6, p. 231) As considerações acima destacadas são parte de uma entrevista concedida por François Dubet, sociólogo francês. Na ocasião, o autor falava sobre o ano em que decidiu lecionar para uma classe de cinquième - 2º ginasial, experimentando os desafios do magistério nesse nível de ensino pela primeira vez. No sistema de ensino da França, essa série começa após os cinco anos de escola elementar, reunindo crianças com 13 e 14 anos de idade. Dubet optou por uma turma de colégio popular, onde os alunos geralmente apresentam níveis baixos de rendimento. Ao lado de suas habituais atividades acadêmicas, ele ensinou história e geografia ao longo de um período letivo, quatro horas por semana, esforçando-se, como ele mesmo diz, “para ser um professor razoável”. É justamente esse anseio que aproxima Dubet de nós neste curso de Licenciatura em Ciências. Ao iniciar o magistério, o que se quer é ensinar muitas coisas a muitos alunos. Do mesmo modo, um dos maiores temores é não conseguir ensinar nada a nenhum aluno. É preciso compreender e fazer funcionar aquilo que Georges Felouzis, em pesquisa citada por François Dubet (1997), denomina “efeito professor”. Por isso, o excerto com o qual iniciamos a presente aula é sugestivo por demarcar a importância de um investimento na formação docente e na reflexão sobre os aspectos relevantes para a atuação Figura 2.1: François Dubet. 14 2 Saberes docentes e o saber dar aula: o início da carreira Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 5 docente. Nossa intenção é a de que, com esta aula, você compreenda que a prática docente está aliada ao desenvolvimento de saberes de naturezas diversas, sendo por isso a armadilha de legar o êxito do professor a um determinado método de ensino ou a uma determinada habilidade pessoal ou, ainda, ao domínio exclusivamente do saber da disciplina a ser ensinada. Além disso, espera-se que você analise essa perspectiva da constituição de diversos saberes ao que chamamos de ciclo profis- sional do professor, ou seja, momento da carreira, intenções profissionais, entre outros fatores, que influenciam o modo como cada um se insere na docência, particularmente no início da profissão. 2.2 Quais os saberes docentes? Lesard, Tardif e Lahaye ajudam a desencadear essa reflexão: Parece banal dizer, mas um(a) professor(a) é, antes de tudo, alguém que sabe alguma coisa e cuja função consiste em transmitir esse saber a outros. [...] Certamente, os professores sabem alguma coisa, mas o que precisamente sabem eles? Qual é esse saber? São eles apenas canais de transmissão de saberes produzidos por outros grupos? Produzem eles, no quadro de sua profissão, um ou mais saberes? (tarDiF, LessarD, Lahaye, 1991, p. 215) Perguntas como essas são fundamentais para compreender de que maneira se constitui o “efeito professor”, ultrapassando a ideia de que o bom docente é aquele que tem vocação ou uma espécie de característica inata. O que queremos evidenciar aqui é, conforme Tardif, Lessard e Lahaye (1991), o fato de que o magistério é composto por vários saberes: • saberes da formação profissional, ou seja, aqueles que abrangem a pedagogia, a didática e as ciências da educação (como é o caso da psicologia educacional, sociologia educacional e estatística educacional, por exemplo); Para refletir! Afinal de contas, de que maneira a docência pode favorecer a aprendizagem em sala de aula? Como podemos ser professores razoáveis? Que saberes devemos dominar para tanto? 15Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 5 Didática • saberes das disciplinas, isto é, aqueles que deverão ser ensinados aos alunos, advindos das diversas disciplinas e conteúdos previstos; • saberes curriculares, relativos aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos, com base nos quais a escola apresenta os saberes que estabeleceu como modelo de cultura erudita; e • saberes da experiência, que são construídos no cotidiano das escolas e das salas de aula e têm por base o conhecimento do seu meio. Os saberes docentes são tomados no plural pelos diversos domínios que compreendem. Isso significa que os professores não lecionam apenas porque gostam, mas porque possuem uma espécie de licença para ensinar, graças à obtenção de um diploma e à inserção num sistema de ensino como profissionais recrutados para atuar nas escolas e salas de aula. Os saberes dos professores são provenientes de fontes variadas e por isso se constituem de uma forma bastante complexa, não linear e de maneira transitória. A complexidade desses conhecimentos nos conduz a algumas questões: a sua heterogeneidade, pois eles são provenientes de diferentes instituições. Primeiro, da própria escola, onde são produzidos os saberes curriculares e os saberes da experiência. Eles são elaborados também no campo acadêmico e no âmbito das instituições que formam os professores, constituindo seus saberes profissionais. Daí a necessidade de reconhecer as relações que associam os professores a outros grupos e que conduzem a uma divisão entre os intelectuais que produzem os saberes docentes, os administradores escolares que direcionam boa parte das decisões curriculares, aqueles que formam os professores e estes últimos, a quem cabe executar e aplicar as técnicas e diretrizes pedagógicas. De todas as dimensões dos saberes docentes, a dos saberes da experiência é aquela que os professores, de modo geral, mais dominam. Não obstante a sua importância, os saberes da experiência ainda carecem de um maior reconhecimento por parte dos outros grupos produtores de saberes. Isso ajuda a explicar algumas das razões pelas quais o magistério não é valorizado: “Os saberes da experiência passarão a ser reconhecidos a partir do momento em que os profes- sores manifestarem suas próprias ideias sobre os saberes curriculares, das disciplinas e, sobretudo, sobre sua própria formação profissional” (tarDiF, LessarD, Lahaye, 1991, p.232). As complexas relações entre os saberes profissionais, os saberes curriculares e os saberes da experiência merecem longas e cuidadosas discussões. Por ora, convém lembrar que estes últimos, os saberes da experiência, compõem o núcleo vital do magistério. Evidentemente, o modo como o professor atua inspira-se e guia-se em boa parte pelas referências aprendidas nos cursos de formação e pelos direcionamentos propostos para a vida escolar. É em seu fazer 16 2 Saberes docentes e o saber dar aula: o início da carreira Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 5 diário que os professores utilizam esses conhecimentos, traduzindo-os segundo as exigências da prática vivida em sala de aula. Uma boa parte daquilo que compreende os saberes dos professores liga-se, portanto, a um saber fazer e ensinar, no início da carreira, é uma arte a ser construída. Essa preocupação é comum – e legítima nesse primeiro momento,mas não deixa de estar presente em todos os períodos da vida profissional de um docente, não importa o nível de ensino em que atue, do primeiro ano da Educação Infantil até os bancos das Universidades, considerando toda e qualquer disciplina que possa lecionar, nas escolas com as características mais diversas. Note que François Dubet busca ser um professor razoável e não o professor razoável e isso faz toda a diferença porque indica justamente a pluralidade de situações e disposições com que o magistério se realiza. Todo professor, mesmo aquele mais experiente, pode se referir a aulas memoráveis que ministrou, nas quais os alunos participaram, empolgaram-se com a matéria, aprenderam bastante. Esse mesmo docente pode ainda lembrar-se de experiências de menor sucesso, de situações de indisciplina, aulas em que não conseguia explicar nada aos alunos, em que eles não prestavam atenção e em que aprenderam muito pouco. Evidentemente, alguns professores criam alternativas férteis de trabalho e tendem a ser conhecidos pela sua competência. Isso reflete o “efeito professor”. Podemos perguntar-nos se os professores se tornam mais ou menos competentes com o passar dos anos. Para continuar motivando nossas reflexões... Será que há fases no magistério, isto é, etapas marcadas por crises e acontecimentos comuns? Os professores estão mais ou menos satisfeitos com a sua carreira, em momentos precisos da sua vida profissional como docente? O que constitui os melhores anos da docência? Se fosse preciso fazer uma nova opção profissional, os professores continuariam a lecionar? O que provoca momentos de crise? Por que alguns professores chegam ao fim de suas carreiras marcados mais pelo sofrimento enquanto outros se aposentam com mais serenidade? 17Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 5 Didática 2.3 Ciclos de vida profissional dos professores Qual é, então, o “ciclo de vida” profissional do magistério? Michaël Huberman (1992), em artigo escrito sobre o tema, retoma a literatura especializada, na qual se reconhecem certos marcos que caracterizam as carreiras de pessoas em diferentes profissões, entre elas a docência. O autor ainda identifica fases perceptíveis da carreira do professor, que seriam: I. a entrada na carreira; II. a fase da estabilização; III. a fase da diversificação; IV. o momento em que o professor se coloca em questão; V. a serenidade e o distanciamento afetivo; VI. o conservantismo e lamentações ou VII. o desinvestimento. Convém assinalar aqui que essas fases não são vividas numa mesma ordem ou da mesma maneira. Nas palavras do autor (1992, p.38): “O desenvolvimento de uma carreira é, assim, um processo e não uma série de acontecimentos. Para alguns, este processo pode ser linear, mas, para outros, há patamares, regressões, becos sem saída, momentos de arranque, descontinuidades”. As possibilidades de construção da docência são múltiplas e o chamado “efeito professor” não pode ser confundido com uma espécie de capacidade inata composta unicamente por qualidades pessoais, como a dedicação e o compromisso. Sendo assim, o que significa ser um professor em início de carreira? Podemos dizer que os dois, três primeiros anos de ensino, aproximadamente, marcam essa fase. Segundo Huberman (1992), esse período pode ser tomado como o da “sobrevivência” e da “descoberta”. Não podemos tratar aqui com detalhes todas essas etapas; por isso, indicamos a leitura do texto de Huberman (1992) na íntegra. 18 2 Saberes docentes e o saber dar aula: o início da carreira Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 5 O termo “sobrevivência” remete para aquilo que comumente chamamos de “choque do real”, a primeira aproximação com a escola, com os colegas de trabalho e com os alunos. Nessa fase percebe-se, algumas vezes, a distância entre os ideais que construímos enquanto nos formamos para ser professores e as realidades das salas de aulas. É preciso enfrentar as dificuldades das relações pedagógicas, empenhar-se para transmitir os conhecimentos previstos no currículo, aproximar-se dos outros professores, observar as diretrizes da instituição, lidar com os estudantes que criam problemas, seguir o material didático, ainda que ele não nos pareça adequado. A “descoberta” é uma espécie de contrapartida da “sobrevivência”, pois traduz o entusiasmo inicial e os ensejos de concretizar os ideais alimentados na formação inicial. É a sensação entusiasta de, finalmente, ter sob a própria responsabilidade uma turma de alunos, um programa a organizar e cumprir, uma sala de aula para ordenar. Descobrir-se professor é também ter consciência de que faz parte de um corpo profissional, sentindo-se colega e parte de uma organização, que é a escola. Tanto a sobrevivência quanto a descoberta podem ser vivenciadas simultaneamente e, como explica Huberman (1992), é o prazer da descoberta que permite suportar os desafios e dificuldades da profissão. Evidentemente, para alguns professores, a “sobrevivência” pode se impor como elemento dominante. Isso pode acontecer em casos em que a docência tenha sido um ofício escolhido a contragosto. Muitos professores não escolheram o magistério, acabaram ingressando na profissão por falta de alternativas ou esperando que outras oportunidades aparecessem no meio do caminho. Isso está muito relacionado a certa desvalorização social da docência. Assim, o início da carreira pode ser vivido entre múltiplas possibilidades, passando não só pela “sobre- vivência” e pela “descoberta”, como também por alguma “indiferença” ou pela “frustração”. Os estudos realizados sobre o ciclo de vida profissional dos professores indicam que, se a fase inicial da carreira for favorável, segue-se outra fase, chamada de “estabilização”. Trata-se de firmar um compromisso profissional e, na maioria dos casos, os professores buscam aprimorar sua formação e suas condições de trabalho. É comum que passem a investir em lugares de maior responsabilidade na escola e no sistema de ensino, buscando assim papéis de maior importância e prestígio. Depois de iniciarem a profissão docente, “há pessoas que ‘estabilizam’ cedo, outras que o fazem mais tarde, outras que não o fazem nunca e outras ainda que estabilizam, para desestabilizar de seguida” (huberman, p. 36-37). Muitos de nós nos perguntamos: Será que aguentamos tudo isso? 19Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 5 Didática Talvez a descrição de uma das situações vividas por Dubet quando ele começou a ensinar a turma do ginasial possa ser exemplar de experiências comuns a quem está no início da carreira ou mesmo no início do trabalho com uma classe específica. O autor conta que: Lá, na primeira aula, os alunos me testaram, eles queriam saber o que eu valia. Começaram então a conversar, a rir (...) Um aluno, um menino que estava no fundo da sala, fazia tanto barulho que eu pedi para ele vir se sentar na frente. Ele se recusou. Fui buscá-lo, o levantei e o trouxe para frente. Ele gritava: “Ele vai quebrar meu ombro!” Bom, finalmente, depois de dez minutos, houve um contato (...) fiquei muito contente que o menino tivesse 13 anos, pois se tivesse pego uma classe de troisième (3º ginasial) e que o menino tivesse 1,80 m e pesasse 75 quilos, eu estaria com problemas. Ou se eu fosse uma jovem professora de 22 anos, não sei como teria reagido (Dubet, 1997, p.223). Em sua entrevista, Dubet (1997) conta essa e outras experiências. Questiona o currículo, constata que o que se espera ensinar para os adolescentes em história e geografia é ambicioso demais e que isso, por si só, já pode conduzir ao fracasso. Ele conta uma de suas maiores lições: manter os alunos ocupados o tempo todo. À tensão da primeira aula, outras histórias são somadas e os alunos podem apresentar rendimentos e disposições variadas ao longo do ano letivo. A narrativa de Dubet (1997) permite-nos considerar outros tantos casos comuns decrianças muito disciplinadas quando começam a sua vida escolar e que, com os anos, aprendem outras estratégias: não prestam atenção ao professor, colam ou fogem da aula. E, já na epígrafe com que iniciamos a presente aula, temos chamado a atenção para o fato de que as disposições dos alunos também variam de acordo com o chamado “efeito professor”. Daí a importância de se considerar, além das diferentes fases do ciclo de vida profissional docente (Huberman, 1992), o modo como os professores se mobilizam para organizar a sala de aula, os programas e as relações com seus estudantes, favorecendo – ou não – a aprendizagem. 20 2 Saberes docentes e o saber dar aula: o início da carreira Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 5 2.4 Conclusão Retomar a complexidade da constituição da identidade docente tem o objetivo de nos mobilizar para a questão nuclear que permeia a atividade dos professores de todas as áreas todos os dias de sua atuação: como levar os alunos a aprender os diferentes conteúdos? Para tanto, é importante discutir diversos fatores que se fazem presentes nessa façanha cotidiana e constituem desafios. Esses fatores serão tratados nas próximas aulas, sendo o primeiro deles as relações entre professores e alunos. Referências Bibliográficas Dubet, F. Quando o sociólogo quer saber o que é ser professor. Revista Brasileira de Educação, nºs 5-6, p. 222-231, mai./dez. 1997. tarDiF, m., LessarD, C., Lahaye, L. Os professores face ao saber – esboço de uma problemática do saber docente. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 4, p. 215-233, 1991. huberman, m. O Ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, António (org.). Vidas de Professores. Porto: Porto Editora, p. 31-61, 1992. Agora é a sua vez... Acesse o Ambiente Virtual de Aprendizagem e realize a(s) atividade(s) proposta(s).
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