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87 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Unidade II 5 O ESTADO NOVO Quando Vargas decidiu manter o poder em suas mãos aproveitando‑se da histeria anticomunismo, habilmente, estruturou sua ação. Garantiu o total apoio do Exército, a partir dos grandes generais de então, além de promover o continuísmo dos ideais que ainda falavam da Revolução de 1930 – mesmo que agora a democracia não pudesse mais continuar frente à ameaça interna tão grave. Vargas justificava: A contingência de tal ordem chegamos, infelizmente, como resultante de acontecimentos conhecidos, estranhos à ação governamental, que não os provocou nem dispunha de meios adequados para evitá‑los ou remover‑lhes as funestas consequências. Oriundo de um movimento revolucionário de amplitude nacional e mantido pelo poder constituinte da nação, o governo continuou, no período legal, a tarefa encetada de restauração econômica e financeira e, fiel às convenções do regime, procurou criar, pelo alheamento às competições partidárias, uma atmosfera de serenidade e confiança, propícia ao desenvolvimento das instituições democráticas. [...] Os preparativos eleitorais foram substituídos, em alguns estados, pelos preparativos militares, agravando os prejuízos que já vinha sofrendo a nação, em consequência da incerteza e instabilidade criadas pela agitação facciosa. O caudilhismo regional, dissimulado sob aparência de organização partidária, armava‑se para impor à nação as suas decisões, constituindo‑se, assim, em ameaça ostensiva à unidade nacional. [...] Quando as competições políticas ameaçam degenerar em guerra civil, é sinal de que o regime constitucional perdeu o seu valor prático, subsistindo, apenas, como abstração. A tanto havia chegado o país. A complicada máquina de que dispunha para governar‑se não funcionava. Não existiam órgãos apropriados através dos quais pudesse exprimir os pronunciamentos da sua inteligência e os decretos da sua vontade. 88 Unidade II Restauremos a nação na sua autoridade e liberdade de ação: na sua autoridade, dando‑lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa sobrepor‑se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins do governo e deixando‑a construir livremente a sua história e o seu destino (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 264‑272). Figura 29 – O cartaz estampa a criação do Estado Novo. Fica evidente a relação direta do poder de Vargas, mas ainda com uma ideia democrática, já que Vargas segura a nova Constituição. No entanto, a Carta Magna de 1937 era extremamente autoritária e concentrava o poder completamente na figura do presidente Disponível em: https://bit.ly/3Un1ELg. Acesso em: 3 fev. 2016. Praticamente não ocorreu qualquer protesto. Muitos congressistas enviaram mensagens de agradecimento ao presidente por não eximir‑se de sua responsabilidade nesse momento sombrio e temeroso do país. O coronel Eduardo Gomes foi o militar de destaque em oposição. Dos civis, os paulistas Júlio de Mesquita Neto e o governador Armando de Sales Oliveira também foram contrários à ação de 10 de novembro. O sucesso do golpe estava diretamente associado às variações políticas expressas ao longo do tumultuado (e curto) período democrático da década de 1930 no Brasil. No fim das contas, o golpe de 1937 foi possível porque a classe média, esse pequeno, mas importante grupo social, capaz de assegurar o equilíbrio de qualquer sistema de eleições livres restrito a eleitores alfabetizados, estava confusa e dividida. Alguns eleitores de classe média continuavam leais a seu tradicional constitucionalismo liberal, e depositaram suas esperanças em Armando de Salles Oliveira na campanha de 1937. Outros, perdida a confiança em seu liberalismo original, voltaram‑se para o radicalismo de esquerda ou de direita. Ao fazer isso, admitiram na prática que a fórmula liberal já não se aplicava ao Brasil e que estavam, portanto, preparados, ainda que inconscientemente, a aceitar, quase sem protesto, o tipo especial de autoritarismo que Vargas impôs, de súbito, em novembro de 1937. 89 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL O golpe de novembro de 1937 fechou o sistema político. E todas as questões de força eleitoral nas eleições marcadas para janeiro de 1938 se tornaram acadêmicas (SKIDMORE, 2010, p. 62). A Constituição de 1937 recebeu o apelido de “A Polaca”. Era inspirada no autoritarismo da Carta Magna da Polônia. No entanto, o nome foi dado pela oposição também porque “era então um termo depreciativo aplicado às prostitutas provenientes da Europa do leste” (FAUSTO, 2013, p. 101). Seu preâmbulo justifica a mudança rápida da formação política do país: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente a gravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver‑se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente; ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem‑estar do povo; Sem o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas; Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem‑estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o País (BRASIL, 1937). A seguir garantia‑se, sobretudo, o poder completamente voltado à Presidência da República: Art. 73. o Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do País. 90 Unidade II Art. 74. Compete privativamente ao Presidente da República: a) sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e expedir decretos e regulamentos para a sua execução; b) expedir decretos‑leis, nos termos dos arts. 12 e 13; c) manter relações com os Estados estrangeiros; d) celebrar convenções e tratados internacionais ad referendum do Poder Legislativo; e) exercer a chefia suprema das forças armadas da União, administradas por intermédio dos órgãos do alto comando; f) decretar a mobilização das forças armadas; g) declarar a guerra, depois de autorizado pelo Poder Legislativo, e, independentemente de autorização, em caso de invasão ou agressão estrangeira; h) fazer a paz ad referendum do Poder Legislativo; i) permitir, após autorização do Poder Legislativo, a passagem de forças estrangeiras pelo território nacional; j) intervir nos Estados e neles executar a intervenção, nos termos constitucionais; k) decretar o estado de emergência e o estado de guerra nos termos do art. 166; l) prover os cargos federais, salvo as exceções previstas na Constituição e nas leis; m) autorizar brasileiros a aceitar pensão, emprego ou comissão de governo estrangeiro; n) determinar que entrem provisoriamente em execução, antes de aprovados pelo Parlamento, os tratados ou convenções internacionais, se a isto o aconselharem os interesses do País. [...] Art. 75. São prerrogativas do Presidente da República: a) indicarum dos candidatos à Presidência da República; 91 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL b) dissolver a Câmara dos Deputados no caso do parágrafo único cio art. 167; c) nomear os Ministros de Estado; d) designar os membros do Conselho Federal reservados à sua escolha; e) adiar, prorrogar e convocar o Parlamento; f) exercer o direito de graça (BRASIL, 1937). Ficava evidente a força do poder do Executivo – o presidente poderia, e assim o fez, governar o país em estado de emergência (o que já foi declarado na própria Constituição, no artigo 186) e sem a formação do Poder Legislativo. Seus decretos‑lei perpetuavam sua autoridade, inclusive tendo poder para aposentar funcionários civis ou militares. Outro ponto importante foi o direito de instituir os interventores federais nos estados. Assim, além da autoridade federal, Vargas poderia garantir suas decisões em cada um dos estados do país. A Constituição de 1937 ainda mantinha, dentro das linhas gerais do populismo de Vargas, as leis trabalhistas e a nacionalização dos recursos. No entanto, ficavam proibidas as greves e era instituída a pena de morte para aqueles que viessem a tentar subverter a ordem. A ideologia da nova Carta Magna foi formulada por Francisco de Campos e misturava o tradicional centralismo de Vargas com o fascismo e o nacionalismo. Claro que, ao mesmo tempo, havia algumas interseções liberais, para manter certa valorização dos ideais democráticos. Figura 30 – A charge faz uma crítica aos interesses das elites relacionados ao apoio ao fascismo, como modelo a ser implantado no país em virtude da sua forte aceitação na Europa pós‑Primeira Guerra Disponível em: https://bit.ly/3iplWXh. Acesso em: 3 fev. 2016. 92 Unidade II Diferente de 1930, Vargas procurou garantir interventores que comtemplassem valores regionais e não abrissem espaço para disputas. Assim: A escolha dos interventores obedeceu a diferentes critérios. Parentes de Getúlio (seu genro Amaral Peixoto, no Estado do Rio), militares (o antigo tenente Cordeiro de Farias, no Rio Grande do Sul) receberam a designação. De um modo geral, porém, nos maiores estados algum setor da oligarquia regional foi contemplado. Em Minas Gerais, Benedito Valadares permaneceu no poder; Agamenon Magalhães foi durante certo tempo interventor em seu estado (Pernambuco) e, em São Paulo, o estilo surpreendente dos primeiros anos da década de 1930 também não se repetiu. Os três interventores entre 1937 e 1945 provieram da elite regional, e dois deles tinham sido membros do PRP (FAUSTO, 2004, p. 366). Uma das grandes preocupações do governo foi, justamente, de levar a cabo a força da união nacional contra qualquer tipo de dissidência regional. Emblemática, nesse sentido, foi a cerimônia de queima de bandeiras promovida ainda em novembro de 1937. Prevista para ocorrer no dia 19, ficou para o dia 27 em virtude das fortes chuvas sobre o Rio de Janeiro. Vinte e duas jovens levaram as bandeiras regionais para a chama e, em um forte discurso de defesa nacional, unitarista, o ministro da Justiça, Francisco Campos, se levantou: Não há lugar para outro pensamento no Brasil, nem espaço para outra bandeira que não seja esta hasteada hoje por entre as bênçãos da Igreja e a continência das espadas, a veneração do povo e os cânticos da juventude. [...] Honrai a vossa bandeira, juventude do Brasil. A vocação da juventude deve ser a vocação do soldado. Que cada um, na sua escola, seja um soldado possuído do seu dever, obediente à disciplina, sóbrio e vigilante, duro para consigo mesmo. Isto é o que o Brasil pedia – e é isto o que o Brasil conquistou (LIRA NETO, 2013, p. 314). Lembrete Há de se destacar que a concepção de Vargas, ao chegar ao poder, mudou muito. É bastante provável que ele foi arquitetando suas ações ao longo do tempo. Em 1930, quando chegou ao Rio de Janeiro, fez questão de demonstrar, com seu traje e cavalo, a força do Rio Grande do Sul e o desejo de que o poder federal contemplasse os valores federalistas em busca de interesses plurais aos da elite cafeicultora. Com o passar do tempo, no entanto, passou a desejar muito mais a unidade nacional, contra qualquer regionalismo, que, inclusive, foi o símbolo da oposição paulista pelo país. Assim, a cerimônia da queima de bandeiras foi o marco extremamente preciso dessa nova visão de Getúlio em torno de seu poder e força na ditadura do Estado Novo. 93 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Estruturando, no plano ideológico, a força unitária da Nação, restava ainda angariar meios para que a população fizesse parte desse sistema – o alvo maior dessa participação seria um plebiscito para garantir a aceitação da Constituição, mas nunca foi posto em prática e nem sequer comentado. A roupagem da nova Carta Magna até vestia valores democráticos, porém foram ficando distantes com o passar do tempo. No nível político mais elevado, Vargas contou com os membros mais próximos dele para compor seus ministérios. Assim, o apoio de Dutra ao golpe de 1937 o manteve como ministro da Guerra até o fim do Estado Novo. Francisco Campos, o ideólogo do Regime, era o ministro da Justiça. Oswaldo Aranha, bastante ligado aos EUA, foi mantido no cardo de ministro das Relações Exteriores. No Ministério da Educação e Saúde, Gustavo Capanema continuou no cargo e promoveu uma série de ações culturais e nacionalistas. E o caso mais interessante ficou por conta do Ministério da Fazenda, nas mãos de Arthur de Sousa Costa, desde 1934. [...] de origem humildade, sem formação universitária, Sousa Costa chegou ao ministério passando pelo Banco do Brasil. Visou sempre o equilíbrio das contas públicas, fato que não o impediu de conceder generosos créditos aos industriais. Ao mesmo tempo, vários órgãos técnicos foram criados como canal de aproximação entre o governo e os interesses privados (FAUSTO, 2013, p. 101). Quem acreditava que teria participação no novo governo de Vargas eram os integralistas, inclusive, pelo apoio de Plínio Salgado a Vargas e à força de um Estado ditatorial. No entanto, Getúlio não estava interessado em dividir seu poder com ninguém. E, com isso, em 2 de dezembro de 1937, pelo Decreto‑lei n. 37, foram suprimidos todos os partidos políticos, inclusive, qualquer tipo de “milícia cívica” para garantir a “paz social”, pois “os partidos até então existentes não possuíam conteúdo programático nacional ou esposavam ideologias e doutrinas contrárias aos postulados do novo regime” e ainda era “vedado o uso de uniformes, estandartes, distintivos e outros símbolos dos partidos políticos e organizações auxiliares”. Boa parte dos integralistas viu nessa decisão um ataque direto ao seu grupo. Os integralistas planejaram, a partir daí, um ataque a Vargas. A tomada de poder à força era a única alternativa depois da truculência das leis atingi‑los. A elaboração contou com a participação de militares descontentes e também de liberais opositores, como Euclides Figueiredo, Aureliano Leite, Castro Júnior ou ainda Otávio Mangabeira e Júlio de Mesquita Filho, todos sob a liderança do tenente Severo Fournier. Ajudados pelos militares opositores de Vargas, e até por alguns membros da guarda do palácio, cerca de 30 homens atacaram, à noite, o Palácio do Catete, no dia 10 de maio de 1938. Era o Putsch Integralista. As Forças Armadas demoraram a ir ajudar o presidente. O ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, foi o único comandante militar a ir ao local e se deparou com a força de metralhadoras contra a residência da Presidência da República. Vargas, por sua vez, com a arma em punho, protegia sua filha Alzira e seu filho Maneco e assim ficaram por mais de três horas. Por fim, os rebeldes iam sendo dominados e, muito provavelmente, os que não conseguiram fugir foram fuzilados no dia seguinte nos fundos do jardim do palácio. Severo Fournier foi preso o condenado a 10 anos de prisão (e lá morreu de tuberculose). Plínio Salgado se refugiou em São Paulo, mas, em 1939, foi convidado a se autoexilar. Foipara Portugal. 94 Unidade II A partir daqui fica evidente que o Estado Novo, apesar de sua forte influência, não era fascista, como os de modelo europeu. Vargas não se apoiava em nenhum grupo político, não tinha um partido de apoio, mas estruturava em torno dele toda a sua força. Na prática: [...] todo grupo político significativo tinha sido enganado e suprimido. Os comunistas e esquerdistas radicais sofreram a mais brutal repressão. Os integralistas desapareceram, em parte por causa da repressão, em parte porque a lógica de seu autoritarismo foi enfraquecida pela forma mais brasileira da ditadura de Vargas. Os constitucionalistas liberais foram os que mais perderam. Enquanto os comunistas podiam alegar que seu sofrimento demonstrava a dialética da história, e esperar que a ditadura de Vargas ajudasse a preparar as massas para a revolução, os liberais viram seus ideais de eleições livres, liberdades civis e justiça imparcial serem repudiados sem que houvesse protestos significativos (SKIDMORE, 2010, p. 64). Para garantir suas determinações e acompanhar de perto as atuações estaduais, Vargas criou o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), em 30 de julho de 1938. Assim, organizava‑se o serviço público, a burocracia estatal, em busca de sua racionalização e controle – um dos seus importantes instrumentos foi o uso de concursos para, através do mérito, selecionar os melhores ao serviço do país. Além disso, elaborava as planilhas orçamentárias e fiscalizava seus gastos, ainda que, de início, o Dasp estivesse bastante atrelado ao Ministério da Fazenda. Seu presidente foi Luís Simões Lopes. Estabeleciam‑se as bases da tecnocracia estatal. Apesar de todos os esforços, nada era mais significativo do que trazer o povo para a aceitação e perpetuação do regime. O populismo, faceta central da Era Vargas, precisava demonstrar todos os seus aspectos. Assim, foi criado em dezembro de 1939 o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Ligado diretamente ao presidente, sob a liderança do jornalista Lourival Fontes, funcionava para garantir apoio irrestrito ao Estado Novo através de duas áreas centrais: censura e propaganda oficial. Os seus espaços envolviam todos os aspectos culturais do país (rádio, cinema, teatro e imprensa). Procurou explorar, ao máximo, todos os valores possíveis para garantir a força do regime. Ou seja, na prática, patrocinava obras voltadas à exaltação do Brasil e de suas grandes qualidades. De qualquer forma, não há como negar que os novos meios de comunicação acabaram sendo os mais importantes do novo departamento: Os funcionários do DIP foram especialmente hábeis em aproveitar o impacto tecnológico operado pelos novos veículos de comunicação – rádio e cinema – e propagandear as ações e iniciativas do governo. O rádio já era, na época, um fenômeno de massa: atendia à demanda de entretenimento de uma audiência crescente, estava consolidado como veículo publicitário e conseguia fazer brotar o sucesso (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 377). E foi assim que o programa diário A Hora do Brasil passou a fazer parte da vida dos cidadãos. Às 19 horas, o presidente Vargas falava diretamente, sem a necessidade de jornalistas. E depois o sistema foi ampliando suas funções: 95 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Em 1942, a agência ampliou o foco, e tratou de associar a mensagem do governo a uma programação humorística e de musicais. Eficiente, ela investiu no formidável sucesso dos “programas de auditório”, idealizados para tornar a Rádio Nacional uma espécie de casa de teatro acessível à população pobre, e onde torcidas – os fã‑clubes – assistiam aos cantores de sucesso (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 377). Figura 31 – A Era do Rádio no Brasil foi habilmente utilizada pelo DIP para garantir a propaganda do governo e, aos poucos, trazer programas de entretenimento para boa parte da população Disponível em: https://bit.ly/3imQaKD. Acesso em: 3 fev. 2016. Outra área cultural importante, apropriada pelo regime, foi a música popular e o próprio carnaval. Durante o Estado Novo, o samba – embora causasse algumas inquietações ao regime devido à sua irreverência, origem boêmia e ao elogio que fazia à malandragem com sua suposta vocação para a indisciplina e insubmissão – acabou sendo eleito o gênero musical brasileiro por excelência. Mesmo assim, se viu às voltas com a censura e o padrão ético buscado pelo regime para formar o cidadão trabalhador. Seus compositores tiveram que se submeter e fazer adaptações nas letras de suas composições para que ficassem conforme as exigências do DIP. [...] As palavras de ordem no samba deveriam ser as de moral, trabalho e exaltação da natureza e das tradições cívico‑patrióticas brasileiras. O mesmo se passou com as marchinhas e músicas de Carnaval, compostas para aquela que se tornaria a festa mais popular do país, oficializada e regulada pelo DIP, através do serviço de turismo (DUTRA, 2013, p. 263‑264). 96 Unidade II Um dos exemplos mais significativos da ação do DIP em torno da doutrinação do país, afetando diretamente a produção cultural, foi a canção “O bonde de São Januário” de Wilson Batista. A letra original e a nova versão são muito diferentes, pois o DIP determinou que a letra fosse reescrita, já que fazia uma associação negativa à imagem do trabalhador: O Bonde de São Januário O bonde de São Januário Leva mais um sócio otário Só eu não vou trabalhar O Bonde de São Januário Quem trabalha É quem tem razão Eu digo E não tenho medo De errar Quem trabalha... O Bonde de São Januário Leva mais um operário Sou eu que vou trabalhar O Bonde de São Januário... Antigamente eu não tinha juízo Mas hoje eu penso melhor no futuro Graças a Deus Sou feliz, vivo muito bem A boemia não dá camisa a ninguém Passe bem! Fonte: Batista (1940). O serviço ideológico do DIP cumpria, desse modo, enormes funções caracterizadas pela doutrinação em várias áreas culturais, mas também havia uma enorme formação doutrinária para outras áreas, como as esportivas. Em torno de um amplo arcabouço de preconceito, o futebol era visto como um espaço de dedicação para o homem e como algo longe das “funções naturais” para as mulheres. Como analisa: À mulher caberia, entre outras obrigações, contribuir de forma decisiva com o fortalecimento da nação e o depuramento da raça gerando filhos saudáveis, algo que, pensava‑se, só seria alcançado se a mulher preservasse sua própria saúde. Se esta condição não excluía a prática de esporte, é certo que nem todo esporte a ela se adequava. O futebol feminino, portanto, só poderia mesmo representar um “desvio de conduta” inadmissível aos olhos do Estado Novo e da sociedade brasileira do período, pois abria possibilidades outras além daquelas consagradas pelo estereótipo da “rainha do lar”, que incensava a “boa mãe” e a “boa esposa” (de preferência seguindo os padrões hollywoodianos de beleza), principalmente, restrita ao espaço doméstico. Desvio tão inadmissível que a Subdivisão de Medicina Especializada recomendava que se fizesse uma “campanha de propaganda mostrando os malefícios causados pelo futebol 97 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL praticado pelas mulheres, a fim de evitar lamentáveis consequências enquanto se aguarde medidas tendentes a permitir a interferência dos Poderes Públicos em tais questões, medidas estas que muito bem poderiam constar na Regulamentação dos Desportos, presentemente em estudos (FRANZINI, 2005, p. 321‑322). E assim, foi criado o Conselho Nacional de Desportos (CND), em abril de 1941, que garantia que [...] às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país (FRANZINI, 2005, p. 322). Evidencia‑se, portanto, que o arcabouço ideológico do Estado Novo permeava a sociedade na mais variada gama de valores imprimindo preconceitos que,muitas vezes, se perpetuaram no país. Mais do que isso, cristalizou valores considerados até hoje, para boa parcela tradicional da população, “naturais” e longe de uma mudança de paradigma. Observação A História é uma fantástica disciplina para demonstrar que existem formulações que se perpetuam na sociedade que são pura construção ideológica. O futebol ser coisa “para homem” como muitos ainda entendem no país, precisa ser colocado sob uma perspectiva histórica produzida a partir do Estado Novo. Até hoje o futebol feminino é incomparavelmente pouco valorizado no chamado “país do futebol”. A liga não consegue patrocínios eficientes e os resultados obtidos pelas jogadoras são, muito mais, frutos da habilidade excepcional de algumas atletas brasileiras, do que da capacidade desenvolvida nos treinos etc. Assim, o professor de História adquire uma função extremamente importante: de mostrar os processos históricos que se formam e se perpetuam com enorme facilidade, em alguns casos. E, com isso, é capaz de problematizar o aluno para o respeito e tolerância nos mais variados aspectos. Um último exemplo de ação, ainda no campo cultural, foi o continuísmo da política reformista da educação, iniciada com Francisco Campos e que, no Estado Novo, se manteve com Gustavo Capanema. Em 9 de abril de 1942, foi criada a Lei Orgânica do Ensino Secundário, também conhecida como “Reforma Capanema”. Estabelecia‑se o ensino secundário com quatro anos de duração, o famoso “ginásio”, e depois um ciclo de três anos com opção de escolha entre o clássico e o científico, o também famoso “colegial”. 98 Unidade II O caráter elitista do ensino secundário de formação geral foi escancaradamente explicitado na lei. Haveria uma adolescência (diga‑se da classe burguesa) predestinada à condução da sociedade e que teria acesso a um ensino específico, que não se limitasse ao simples desenvolvimento dos atributos naturais do ser humano, mas que tivesse a força de ir além dos estudos de mera informação literária, científica ou filosófica, que fosse capaz de dar aos adolescentes uma concepção de homem e do ideal de vida humana, formando assim as individualidades dirigentes, esclarecidas de sua missão social e patriótica, sendo eles os responsáveis pela divulgação ideológica desses princípios ao povo. Dessa forma, a estrutura da sociedade capitalista que se consolidava, sob o comando da ditadura do Estado Novo, reproduzia a dicotomia da estrutura de classes também na educação. Permitia, em contrapartida, a “ascensão dos menos favorecidos através do ensino profissionalizante” (ZOTTI, 2004, p. 108). Do Manifesto dos Pioneiros, a Reforma trazia o ideal de valorização da ciência. Ao mesmo tempo, trazia a obrigatoriedade da educação militar aos homens, a continuidade do ensino religioso como facultativo e a obrigatoriedade da educação moral e cívica. Nesse último aspecto, vale destacar o quanto o ensino profissional estava relacionado aos valores da pátria e do desenvolvimento propiciado por Getúlio Vargas. Não é à toa, portanto, que Vargas não perdeu de vista sua política trabalhista: “[...] a partir de 1937, ganharam maiores proporções as iniciativas materiais do governo em favor das massas, seguidas da construção da figura de Vargas como grande protetor dos trabalhadores” (FAUSTO, 2013, p. 102). A relação do regime do Estado Novo com o fascismo ficou evidente com o retorno da unicidade sindical e com a proibição de greves, pois tudo girava em torno da subordinação direta ao Estado. O imposto sindical foi estabelecido em 1940. Daí surgiu o famoso peleguismo na política sindical: A expressão deriva de um de seus significados. “Pelego” é uma cobertura de pano ou couro colocada sob a sela de um animal de montaria para amortecer o choque produzido pelo movimento do animal no corpo do cavaleiro. A ideia de amortecedor se mostrou bastante adequada. “Pelego” passou a ser o dirigente sindical que na direção do sindicato atua mais no interesse próprio e do Estado do que no interesse dos trabalhadores, agindo como amortecedor de atritos. Sua existência foi facilitada na medida em que não precisava atrair ao sindicato uma grande massa de trabalhadores. O imposto garantia a sobrevivência da organização, sendo o número de sindicalizados, sob esse aspecto, um fator de grande importância secundária (FAUSTO, 2004, p. 374). 99 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Foi também assim que Vargas garantiu a formação de um salário mínimo: O Presidente da República, considerando o que expõe o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio em cumprimento ao art. 12 da Lei n° 185, de 14 de Janeiro de 1946 e 45 do Decreto‑lei n° 399, de 30 de abril de 1938, e usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da Constituição, resolve: Art. 1° Fica instituído em todo país, o salário mínimo a que tem direito, pelo serviço prestado, todo trabalhador sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, como capaz de satisfazer, na época atual e nos pontos do país determinado na tabela anexa, às suas necessidades normais de alimentação, habilitação, vestuário, higiene, e transporte. O salário mínimo será pago na conformidade da tabela a que se refere o artigo anterior e que vigorará pelo os três anos, podendo ser modificado ou confirmado por novo triênio e assim, seguidamente, salva a hipótese do artigo (BRASIL, 1940). Há de se destacar que a ideia de um “salário mínimo” não significa, como alguns patrões passaram a promover, que aquele deve ser o valor adotado de salário. Na verdade, a ideia seria do mínimo necessário para a vida não impedindo a atribuição de salários maiores e, ao mesmo tempo, garantindo as necessidades básicas de “alimentação, habilitação, vestuário, higiene e transporte”. No entanto, na lógica burguesa, para que oferecer um salário maior se o trabalhador consegue viver com aquele? E não é à toa que o valor do salário mínimo foi se perdendo ao longo de nossa história. Para garantir a força do “pai dos trabalhadores do Brasil”, Vargas, ano a ano, passou a fazer célebres discursos na comemoração do dia 1º de maio, no estádio de São Januário – o maior estádio do Rio de Janeiro até então, a partir de 1939. No entanto, antes desse ano já realizava inflamados discursos, como em 1938: Operários do Brasil: No momento em que festeja o “Dia do Trabalho”, não desejei que esta comemoração se limitasse a palavras, mas que fosse traduzida em fatos e atos que constituíssem marcos imperecíveis, assinalando pontos luminosos na marcha e na evolução das leis sociais do Brasil. Nenhum governo, nos dias presentes, pode desempenhar a sua função sem satisfazer as justas aspirações das massas trabalhadoras (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 350). Em 1939, já elaborou o seu famoso início: Trabalhadores do Brasil: ouvi com particular agrado a eloquência e expressiva saudação que o ministro do Trabalho, em vosso nome e a vosso pedido, acaba de me dirigir. Melhor do que em palavras de agradecimento, testemunho‑vos 100 Unidade II o meu apreço, compartilhando das vossas comemorações do “Dia do Trabalho”, assim reafirmando o sentido de cooperação e confiança mútua que temos mantido, inalteravelmente, na solução dos problemas sociais. Desde 1930, conservamos a mesma linha de ação, e, sempre que surgiram obstáculos e dificuldades, os trabalhadores manifestaram ao Governo Nacional, de inequívoco, a sua confortadora e espontânea solidariedade, numa eficiente atitude de repulsa aos surtos de anarquia e aos golpes extremistas (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 402). Em 1940, visando a perpetuação de sua imagem e a associação direta aos trabalhadores, dizia: Trabalhadores do Brasil: Aqui estou, como de outras vezes, para compartilhar as vossas comemorações e testemunhar o apreço em que tenho o homem de trabalho como colaborador direto da obra de reconstrução política e econômica da Pátria. Não distingo, na valorização do esforço construtivo, o operário fabril do técnico de direção, do engenheiroespecializado, do médico, do advogado, do industrial ou do agricultor. O salário, ou outra forma de remuneração, não constitui mais do que um meio próprio a um fim, e esse fim é, objetivamente, a criação da riqueza nacional e o surto de maiores possibilidades à nossa civilização (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 406). Nota‑se, evidentemente, a exaltação do trabalhismo, que caminhava de mãos dadas com toda a propaganda política produzida pelo DIP. Ao mesmo tempo, a busca constante de associar o regime de Vargas ao trabalhador resultaria em conquistas e transformações progressivas. Por fim, é possível perceber também que a força da relação de cada um dos trabalhadores coopera, diretamente, para a “riqueza nacional e o surto de maiores possibilidades”, evidenciando a relação corporativista de que todos contribuem para o progresso da pátria. E toda essa ideologia foi sintetizada em 1943, quando foi estabelecida a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que sistematizou as relações entre patrões e empregados e se mantém no país, em linhas gerais, até hoje. Inegavelmente, estava completada a obra de controle sobre os trabalhadores e de seu uso político para as lideranças populistas. Em boa medida, as ideias de esquerda perderam enorme força. Por parte dos patrões, esse controle ideológico era bem visto para garantir a estabilização da mão de obra barata, facilitando novos investimentos. No Estado Novo, ficou evidente o projeto econômico de Getúlio para o país. Era nacionalista, já que defendia que as riquezas nacionais, traduzidas como os recursos do país, precisam ser exploradas pelo Estado. Daqui o segundo sentido de suas ações: a intervenção do Estado na economia, baseada na 101 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL criação de empresas para o setor da indústria pesada. Assim, haveria condições para que, posteriormente, fosse possível surgir a produção dos bens de consumos duráveis e não duráveis. O nacionalismo intervencionista, para o desenvolvimento industrial, foi a principal forma de promover o projeto de modernização que Vargas sempre defendeu ao longo de seu governo. Observação Os que defendem Getúlio Vargas como um dos melhores presidentes do Brasil de todos os tempos argumentam que dele surgiu um projeto de desenvolvimento industrial do país relacionado ao enriquecimento do Brasil em uma política de proteção das riquezas nacionais. Nesse sentido, criou as principais empresas de recursos estratégicos para o país. Por outro lado, os que criticam Getúlio, sob o viés econômico, argumentam que o excesso de intervenção do Estado na economia criou a burocratização do sistema, alimentando a corrupção e impedindo que os capitais estratégicos sejam devidamente aplicados para o crescimento do país. Na prática, essa visão é proveniente das interpretações assumidas pelo neoliberalismo a partir da crise do Estado de Bem‑Estar Social na década de 1970, quando o excesso de gastos produzia um constante déficit orçamentário. Figura 32 – A visão que Vargas procurou associar à modernização do país era a do desenvolvimento industrial Disponível em: https://bit.ly/3F9vKO3. Acesso em: 3 fev. 2016. Para concretizar esses seus projetos, Vargas foi criando uma enorme quantidade de organizações de controle de áreas consideradas estratégicas: 102 Unidade II • 1930 – criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. • 1931 – Conselho Nacional do Café e Instituto do Cacau da Bahia. • 1932 – Ministério da Educação e Saúde Pública. • 1933 – Departamento Nacional do Café e Instituto do Açúcar e do Álcool. • 1934 – Conselho Federal do Comércio Exterior; Instituto Nacional de Estatística; Código de Minas; Código de Águas; Plano Geral de Viação Nacional e Instituto de Biologia Animal. • 1937 – Conselho Brasileiro de Geografia e Conselho Técnico de Economia e Finanças. • 1938 – Conselho Nacional do Petróleo; Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp); Instituto Nacional do Mate e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). • 1940 – Comissão do Plano Siderúrgico Nacional; Comissão de Defesa da Economia Nacional; Instituto Nacional do Sal e Fábrica Nacional de Motores. • 1941 – Companhia Siderúrgica Nacional e Instituto Nacional do Pinho. • 1942 – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). • 1943 – Coordenação da Mobilização Econômica; Consolidação das Leis de Trabalho; Serviço Social da Indústria (Sesi), Plano de Obras e Equipamentos e I Congresso Brasileiro de Economia. • 1944 – Conselho Nacional de Política de Desenvolvimento Industrial e Comercial e Serviço de Expansão do Trigo. • 1945 – Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc). É notório que esse amplo conjunto de medidas revela ações para desenvolvimento econômico comercial, industrial e áreas afins. Um especial destaque deve ser dado ainda à área de burocracia e estatística, considerando que todas essas questões eram fundamentais para o controle e para o estabelecimento de um crescimento real de sua tabulação. “Governar com números” era o lema para garantir o conhecimento central ao direcionamento das ações econômicas do país. A racionalização foi uma temática chave da Era Vargas. Ainda, podem ser mencionados os esforços para renegociar a dívida externa. E isso foi refeito em 1940, para que houvesse prestações mais plausíveis na negociação conduzida por Oswaldo Aranha nos Estados Unidos. Claro que, ao mesmo tempo, uma das questões que mais contribuiu para o crescimento industrial do país foi o aproveitamento da conjuntura favorável gerada pela Segunda Guerra Mundial (1939‑1945). 103 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL 5.1 O Brasil e a Segunda Guerra Mundial A Segunda Guerra Mundial foi o maior conflito que o homem já viu. Foi uma guerra total em todos os seus sentidos. Em todos os continentes havia mobilização e a expectativa de que algum tipo de ataque poderia ocorrer a qualquer momento. Houve mais de 50 milhões de mortos, sendo que, pela primeira vez na história, mais civis perderam a vida do que militares. Para alguns historiadores, nunca ocorreram duas guerras, pois a Segunda Guerra Mundial foi desdobramento direto da Primeira. Um longo e desgastante conflito estava em seu derradeiro momento, em 1918, quando os alemães perceberam que a entrada dos Estados Unidos na guerra havia trazido muitos homens e enorme quantidade de suprimentos. E, assim, decidiram assinar o armistício imaginando um tratado de paz sem vencedores e nem vencidos, já que nenhum de seus territórios foi invadido nesse confronto (ou seja, todas as ações da guerra foram empreendidas pelo avanço alemão). No entanto, não foi isso que ocorreu. O Tratado de Versalhes procurava, ao máximo, humilhar a Alemanha, pois garantiu uma pesada indenização, a perda de territórios e a desmilitarização do país. Os problemas econômicos do pós‑guerra acentuados pela crise de 1929, além do nacionalismo frustrado, foram os fatores centrais para a formação de regimes totalitários que entendiam que a guerra fazia parte da ascensão de seus impérios. Daí a formação do Eixo: Alemanha, Itália e Japão. Figura 33 – A relação estreita ideológica entre o fascismo italiano e o nazismo alemão levou a uma enorme aproximação de Mussolini (à esquerda) com Hitler (à direita), formando o Pacto de Aço Disponível em: https://bit.ly/3XKAr82. Acesso em: 3 fev. 2016. Em pouco tempo, o Eixo passou a promover um programa expansionista. Os fascistas italianos desejavam o controle do Mediterrâneo e dominaram a Albânia e a Etiópia. Os japoneses, por sua vez, partiram para a conquista da Manchúria (região oriental da China), depois avançaram para o interior do país. Os nazistas, por fim, remilitarizaram a Renânia, depois avançaram em direção à Áustria e aos Sudetos (Tchecoslováquia). 104 Unidade II A guerra chegou quando a Inglaterra e a França se cansaram de sua política de apaziguamento com as pretensões expansionistas de Hitler. Assim, quando efetuou a invasão da Polônia, em 1º de setembro de 1939,estava iniciada a Segunda Guerra Mundial. Contra o Eixo, formavam‑se os Aliados, naquele momento, liderados por Inglaterra e França. Logo, Hitler promoveu uma enorme expansão, dominando a Polônia e dividindo o território com a URSS, conforme o acordo secreto de Ribbentrop‑Molotov, através da tática da guerra relâmpago blitzkrieg, uma ação coordenada que ataca com todos os meios possíveis um ponto dos inimigos para quebrar a linha de defesa e possibilitar, a partir dali, o rápido domínio do adversário. A seguir, a Alemanha continuou sua dominação de territórios com a conquista da Noruega, Dinamarca, Bélgica e Holanda. A guerra portanto começou em 1939 como um conflito puramente europeu e, de fato, depois que a Alemanha entrou na Polônia, que foi derrotada e dividida em três semanas com a agora neutra URSS, como uma guerra puramente europeia ocidental de Alemanha contra Grã‑Bretanha e França. Na primavera de 1940, a Alemanha levou de roldão a Noruega, Dinamarca, Países Baixos, Bélgica e França com ridícula facilidade, ocupando os quatro primeiros países e dividindo a França numa zona diretamente ocupada e administrada pelos alemães vitoriosos, e num governo satélite francês (seus governantes, oriundos dos vários setores da reação francesa, não queriam mais chamá‑la de república), com capital num balneário provinciano, Vichy. [...] Para fins práticos, a guerra na Europa acabara (HOBSBAWM, 1995, p. 46). Logo, no entanto, novos contornos da guerra seriam vistos. Em 22 de junho de 1941, Hitler decidiu abrir uma nova frente de confronto com a invasão da URSS (Operassão Barbarossa). Além disso, ajudaram seus aliados italianos nos confrontos da África com a Afrika Korps, e ainda havia o apoio do Japão. Aqui, os americanos passaram a ficar bastante temerosos: Os EUA encararam essa extensão do poder do Eixo no Sudeste Asiático como intolerável, e aplicaram severa pressão econômica sobre o Japão, cujo comércio e abastecimentos dependiam inteiramente das comunicações marítimas. Foi esse conflito que levou à guerra entre os dois países. O ataque japonês a Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941 tornou a guerra mundial. Dentro de poucos meses, os japoneses tinham tomado todo o Sudeste Asiático, continental e insular, ameaçando invadir a Índia a partir da Birmânia no Oeste, e o vazio Norte da Austrália a partir da Nova Guiné (HOBSBAWM, 1995, p. 47‑48). 105 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Figura 34 – O ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, justificou a entrada dos EUA na guerra Disponível em: https://bit.ly/3Fd0e1B. Acesso em: 3 fev. 2016. Antes, propriamente, da entrada dos EUA na guerra já havia uma forte relação ideológica entre, de um lado, os defensores da extrema direita nazifascista e, de outro lado, os que se mantinham firmes nas ideias democráticas dos aliados, França e Inglaterra, apoiados então pelos Estados Unidos. Umas das questões interessantes à nossa análise é a criação de uma Política de “Boa Vizinhança” na América Latina. Anunciada pelo presidente Franklin Roosevelt, em 1934, antes da Segunda Guerra, cresceu em importância com a entrada dos EUA na guerra e o temor de que os alemães pudessem garantir algum aliado no continente e trazer o confronto para o território americano. De início, o projeto era garantir a disseminação da cultura americana, mas logo ganhou ainda maior razão de existência com o grande conflito. Nesse sentido, os estúdios Walt Disney passaram a atuar diretamente para garantir a simpatia nos países latino‑americanos. No Brasil, a figura criada foi a do Zé Carioca, a partir do filme Alô, Amigos, de 1942, em que o brasileiro apresenta ao Pato Donald a cidade do Rio de Janeiro. Foi uma produção patrocinada por Rockefeller, grande símbolo das relações entre Brasil e EUA. Trata‑se de uma personagem caracterizada pela malandragem, pela preguiça e pela “embriaguez” do samba: Disney foi um grande colaborador no esforço de guerra. Muitos dos seus desenhos animados foram financiados pelo Office de Rockefeller. Ao menos dois de seus filmes comerciais envolveram a América Latina. Ambos fazem um tour pelo subcontinente, com uma parada mais demorada no Brasil. O primeiro foi Alô, Amigos, que entrou em cartaz em 1942 nos cinemas das grandes cidades brasileiras. Foi nesse filme que Donald apareceu contracenando com Zé Carioca pela primeira vez. Um ano depois, o estúdio lançou Os Três Cavaleiros, com vários animais representando regiões da América Latina, mas com destaque para Donald e Zé Carioca. Nos dois filmes sobre o Brasil, o “nosso esforço de guerra” era reduzido a aulas de manuseio de chocalhos, reco‑recos, tamborins e pandeiros. 106 Unidade II [...] Se compararmos com o filme analisado a seguir, sobre Donald pagando imposto de renda nos Estados Unidos, os que representam o Brasil podem ser interpretados como uma forma de “divisão internacional” do esforço de guerra. Nós contribuíamos com bens simbólicos que remetiam ao prazer, numa espécie de sociologia da preguiça; e eles, com bens materiais identificados com o trabalho, com o vigor das fábricas (TOTA, 2014, p. 132‑133). Figura 35 – Zé Carioca foi o símbolo central da política norte‑americana de criar um símbolo de simpatia dentro do estereótipo do brasileiro Disponível em: https://bit.ly/3AUCHAa. Acesso em: 3 fev. 2016. Outra ação cultural importante foi de exportação da cultura brasileira. Isso foi possível a partir da figura central de Carmen Miranda: A celebração da diversidade racial e cultural proporcionou ao país as condições para acertar o relógio com a cultura importada dos europeus e dos norte‑americanos e colocar a originalidade mestiça no centro de seu investimento sociocultural para exportação. Em 1939, o Brasil despachou para os Estados Unidos a cantora Carmen Miranda, sua mais bem‑sucedida versão internacional. Carmen já havia se transformado na grande estrela do disco, do palco e dos cassinos brasileiros, era adorada pelo público, e desembarcou em Nova York a convite de produtores norte‑americanos, para cantar na revista musical Street of Paris. Reza a lenda que ela levou exatos seis minutos para conquistar a Broadway e necessitou de apenas um filme, Serenata Tropical, para ganhar fama mundial (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 379). 107 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Figura 36 – Carmem Miranda tornou‑se o grande símbolo da cultura nacional Disponível em: https://bit.ly/3ubuVhq. Acesso em: 3 fev. 2016. Vargas, de qualquer forma, se aproveitou ao máximo de tudo que esses anos poderiam lhe proporcionar para fazer crescer sua economia industrial. O foco industrial voltado para a guerra (a produção bélica) fez com que o país necessitasse suprir uma demanda de, pelo menos, 40%, pois: [...] tornou‑se difícil importar, não apenas por conta o bloqueio econômico britânico, da guerra submarina alemã e da escassez de divisas, mas porque o esforço de guerra, em diversas nações, afetou as possibilidades de manter o suprimento dos países na periferia da economia mundial (ABREU, 2013, p. 192). Lembrete O desenvolvimento industrial do Brasil na Segunda Guerra Mundial fez parte da “industrialização por substituição de importação”, típica dos períodos de crise na Europa e nos Estados Unidos, e foi de enorme importância, não só aqui, mas em outros países da América, como Argentina e México. Estabelecia‑se, assim, a industrialização por substituição de importados. Daí o projeto mais ambicioso de Getúlio começou a ser desenvolvido. A simpatia do presidente com o fascismo italiano era evidente e ainda mais clara se fossem observadas as leis do país e suas relações políticas. Claro que havia espaço para particularidades aqui produzidas. De qualquer forma, um conflito na Europa e se propagando para o restante do mundo trazia à tona a importância estratégica do Brasil. Seu extenso litoral poderia patrulhar, em grande medida, o Atlântico. 108 Unidade II Além disso, as colônias tradicionais de imigrantes,sobretudo italianos e alemães, fomentavam as ideias ultradireitistas. Foi assim que Vargas se aproveitou disso e passou a criar uma política pragmática de jogo duplo. Por um lado, parecia apoiar os países do Eixo, pois em janeiro de 1939 oficiais da FAB foram conhecer os avanços alemães, sendo recebidos diretamente por Goering e Hitler. Já o ministro Oswaldo Aranha foi para os Estados Unidos costurar acordos financeiros com os vizinhos do Norte. Depois foi a vez de o Brasil receber visitas. De um lado, Edda Ciano, filha de Mussolini, e, de outro lado, o general Marshall, chefe do Estado‑Maior do Exército Norte Americano. Seu projeto mais ambicioso, a construção de uma siderúrgica, necessitava de muitos recursos e transferências de tecnologias. Os militares varguistas que implantaram a Ditadura do Estado Novo preocuparam‑se com a industrialização do país e com a produção interna de bens de capital, ou seja, de máquinas utilizadas na produção de outras máquinas. Para eles, a produção de bens de capital era fator de segurança nacional: assim, os militares não dependeriam mais do fortalecimento externo para reequipar as Forças Armadas. Além disso, a produção interna desses bens daria impulso ao desenvolvimento de outras indústrias e, também, condições de autonomia política do país diante das potências industrializadas (LOPEZ; MOTA, 2015, p. 666). Outro exemplo de colaboração com os nazistas foi o caso de Olga Benário. Filha de pais judeus com boas posses em Munique, decidiu vir ao Brasil lutar pela revolução socialista. No entanto, a derrocada da Intentona Comunista de 1935 fez a militante ser deportada, mesmo grávida. No fim, acabou sendo morta em uma câmara de gás. Saiba mais Se você se interessa pela vida de Olga Benário, assista à produção cinematográfica a seu respeito: OLGA. Direção: Jayme Monjardim. Brasil: Europa Filmes; Globo Filmes, 2004. 141 min. Para muitos historiadores, de qualquer forma, é evidente que Vargas, apesar de toda sua simpatia ideológica ao Eixo, sabia que não poderia entrar em um conflito contra os Estados Unidos. O tradicional avanço americano sobre o continente, expresso desde a doutrina Monroe – América para os americanos – fatalmente faria com que, em pouco tempo, a guerra se mostrasse desastrosa para o Brasil. No entanto, o jogo duplo funcionou como forma central de ameaça para o projeto nacionalizante e industrializante, inclusive de jogo estratégico para o país. 109 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Como os brasileiros estavam oferecendo bases vitais para a Batalha do Atlântico e para a linha de comunicações do norte da África, o governo dos Estados Unidos se prontificou a ajudar o esforço de mobilização de Vargas. O governo americano já se comprometera a dar assistência ao desenvolvimento econômico básico do Brasil em 1940, disponibilizando empréstimos de longo prazo do Export‑Import Bank em troca da garantia de uso das bases brasileiras. O primeiro grande comprometimento foi um empréstimo de 20 milhões de dólares para a nova Companhia Siderúrgica Nacional. Esse apoio para investimentos públicos em indústrias de base num país subdesenvolvido refletia uma mescla de motivos do ponto de vista dos Estados Unidos. De um lado, demonstrava o desejo da administração New Deal, de Roosevelt, de dar substância econômica à Política de Boa Vizinhança e ao mesmo tempo representava uma tentativa de concretizar antigas ambições americanas de maior penetração econômica na América Latina por intermédio da nova e heterodoxa decisão americana de dar ajuda a programas de industrialização patrocinados pelo Estado. A disposição americana foi, sem dúvida, fortalecida pela informação de que Vargas negociara ativamente com a Alemanha nazista em busca de assistência para a criação da indústria siderúrgica (SKIDMORE, 2010, p. 77). Então, com o empréstimo e apoio tecnológico americano, Vargas conseguiu concretizar o projeto de criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 1942. Figura 37 – O aço tornou‑se rapidamente o modelo de desenvolvimento industrial proporcionado por Getúlio Vargas Disponível em: https://bit.ly/3FmjQk9. Acesso em: 3 fev. 2016. Outra concepção bastante importante desse projeto de desenvolvimento industrial nacionalista com intervenção direta do Estado foi a Companhia Vale do Rio Doce, em virtude do contexto mundial da guerra. 110 Unidade II [...] a Companhia Vale do Rio Doce, outra sociedade de economia mista emblemática no campo da mineração de ferro, teve origem em decisões externas e não em consequência de qualquer visão estratégica do governo quanto ao papel das empresas controladas pelo Estado. Preocupações britânicas quanto à disponibilidade de minério de ferro de baixo teor de fósforo levaram a negociações que redundaram na solução do impasse com relação aos direitos de mineração detidos pela Itabira Iron, na obtenção de empréstimo norte‑americano para a modernização da ferrovia Vitória‑Minas e na criação da CVRD, em 1942 (ABREU, 2013, p. 95). De qualquer forma, é inegável o quanto a ajuda americana foi crescente nesse contexto, mas, como se vê, não foi o único processo em curso para o crescimento industrial de um país essencialmente agrário agarrado, há até tão pouco tempo, na riqueza que se esperava ser eterna do café. Em 1942, o governo americano preparou uma missão de apoio ao país, tendo como chefe Morris Llewellyn Cooke, que fez um amplo estudo dos recursos brasileiros e de suas enormes potencialidades, tanto de exploração como de investimentos. Figura 38 – A imagem reproduz o encontro de Roosevelt, Vargas e militares norte‑americanos e brasileiros na base militar norte‑americana Parnamirim Field, cedida pelo Brasil, em Natal Disponível em: https://bit.ly/3XHeKFY. Acesso em: 3 fev. 2016. Certa relação de proximidade do Brasil com os Estados Unidos, sobretudo a partir de dezembro de 1941, quando ocorreu o ataque de Pearl Harbor, começou a ser desenhada por Vargas em um telegrama ao presidente Roosevelt: Ao tomar conhecimento da agressão sofrida por parte do Japão, convoquei membros do governo e tenho a honra de informar a V. Ex.a que ficou resolvido, por unanimidade, que o Brasil se declarasse solidário com os Estados Unidos, coerente com as tradições e compromissos na política continental (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 427). 111 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Apesar do apoio dado aos americanos e já do recebimento dos benefícios em torno disso, o Brasil procurou manter sua neutralidade no conflito até 1942. Em janeiro de 1942, o ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, anunciou o rompimento das relações diplomáticas com o Eixo: As conquistas desta conferência não as poderão apreciar devidamente os contemporâneos. As grandes obras só podem ser bem compreendidas quando o tempo dá à inteligência a sua perspectiva divina e a sua eterna luz. Desde já, porém, podemos afirmar que transformamos uma utopia em realidade, e que já esplendem, realizados em sua plenitude, o anseio, o sonho e o ideal de nossos maiores. A paz dos povos e a união das nações na Ásia, na África e na Europa é a história mesma de uma sucessão trágica de fracassos e de esforços vãos dos homens, em séculos de porfia, de desenganos e de conflitos. Os povos americanos a realizarem, e nós, seus chanceleres, a confirmamos hoje, porque proscrevemos da comunhão continental a violência, o império, o predomínio, afim de dar lugar à confiança, à solidariedade, à justiça, colunas sobre as quais repousam a igualdade das nações americanas, a independência de seus povos e a liberdade de todos nós, cidadãos da América. [...] A neutralidade do Brasil foi sempre exemplar, mas nossa solidariedade com a América é histórica e tradicional. As decisões da América sempre obrigaram o Brasil e, mais ainda, as agressões à América. Essa foi a vossa História, essa há de ser a nossa História, porque o curso de tempo não reduziu, antes aumentou nos brasileiros, não só a confiança em si mesmos,mas a consciência da solidariedade com seus irmãos americanos. Essa é a razão pela qual, hoje, às 18 horas, de ordem do senhor presidente da República, os embaixadores do Brasil em Berlim e Tóquio e o encarregado de Negócios do Brasil em Roma passaram nota aos governos junto aos quais estão acreditados, comunicando que, em virtude das recomendações da III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, o Brasil rompia suas relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, a Itália e o Japão (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 452‑454). É muito interessante perceber o quanto o discurso envolvia um pan‑americanismo em contraposição às relações estabelecidas na Ásia, África e Europa. As relações de defesa seriam iniciadas justamente pelo ataque a um dos seus membros, ao mesmo tempo que a decisão da América unida trazia uma força muito maior, mais pertinente e, inclusive, de significado simbólico: a união da liberdade, solidariedade, justiça e igualdade contra a ditadura e o domínio dos povos. 112 Unidade II A resposta não demorou a chegar. Em fevereiro, surgiram as notícias do afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães. Conforme descreve o depoimento do radiotelegrafista Francisco Lustosa Nogueira: Eu, abaixo assinado, Francisco Lustosa Nogueira, 2° radiotelegrafista do S.S. Olinda, de propriedade da Companhia de Comércio e Navegação, declaro ao senhor cônsul do Brasil em Norfolk o seguinte: mais ou menos às 12:40 hora do dia 18 achava‑me eu na estação do rádio, de quarto, quando fui avisado pelo Comissário que o submarino se acha na superfície do mar, a uma milha mais ou menos do navio, do lado boreste à retaguarda. O submarino emitia sinais sonoros em código Morse, telegrafia visual. Incontinente voltei à estação, pois tinha deixado a mesma para ver o submarino, para emitir o S.O.S caso necessário. Infelizmente um dos projéteis do submarino inutilizou a antena do rádio, sendo desse modo impossível qualquer providência por intermédio da estação, o submarino já tinha dado uns sete tiros dos quais dois ou três acertaram o alvo, na popa, à meia‑nau e na antena. Por ordem do imediato, a quem estava designado, ajudei a baixar a baleeira n° 2 e pusemo‑nos ao mar, eu e mais uns 21 homens. Nesse ínterim o submarino cessou de ativar para dar tempo à tripulação pôr‑se ao mar. A baleeira em que eu me achava foi descida em primeiro lugar. Fomos descendo ao sabor das ondas, digo, a baleeira com a tripulação e fomos abordados pelo submarino. O capitão alemão escolheu‑me para ir a bordo da nave alemã e fez‑me diversas perguntas entre as quais: de onde vínhamos, para onde íamos, qual a carga do navio, se levávamos material de guerra. Disse‑me depois que queria conversar com o comandante do navio brasileiro. Foram depois batidas duas fotografias, uma na baleeira com os tripulantes e outra da minha pessoa. Cinco minutos depois abordava a baleeira em que se achava o meu comandante. Logo após ter conversado com o mesmo e deixado a baleeira seguir o seu rumo, vi o submarino recomeçar o seu ataque. Atirou umas 15 vezes mais ou menos com três e quatro minutos de intervalo de um tiro para outro. Diversos projéteis já tinham atingido o navio, que se incendiava e adernava pouco a pouco. A tripulação alemã, prevendo a chegada de um avião americano, fez movimentar o submarino, submergindo. Já tínhamos traçado o rumo e remávamos. Pouco depois apareceu um avião americano que percorreu os arredores. Apareceram, cinco minutos após, mais dois aviões americanos, um dos quais, em seguida, nos jogou uma boia com as palavras “vem socorro”. Já se passava mais ou menos 1:00 hora e o nosso navio ainda não tinha afundado, embora tivesse adernado bastante. Depois disso afundou pouco a pouco de tempo com a quilha fora d´água. Depois desapareceu. Nesse interim dois aviões já se tinham ido, ficando aquele que nos jogou a boia, o qual também mais tarde desapareceu, depois de fazer o possível para chamar a atenção de um outro navio que passava muito longe. Sós, continuamos a navegar em direção a costa americana. Já noite, muito frio e com o mar de vez em quando invadindo a baleeira, avistamos, mais ou menos às 20:30 113 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL horas, um holofote. Pensamos imediatamente em um socorro. Imagino que fosse um navio de guerra americana que estivesse à nossa procura. O dito navio soltou três foguetes luminosos, pois havia muita cerração, tendo ido embora sem nos ter visto, continuamos navegando até a madrugada em direção à costa quando um vento contra começou a nos levar para o lugar de onde tínhamos saído. Mais ou menos às 8:00 horas avistamos um navio de pesca, pequeno. Fizemos sinais, mas o barco não nos veio socorrer. Uns 15 ou 20 minutos depois avistamos um destroier que aproou para o nosso lado. Quinze minutos mais tarde e o mesmo destroier nos socorria. Além do que expus acima só tenho a acrescentar a boa acolhida que nos foi dada pela tripulação do destroier e os elementos da base americana em Norfolk. Norfolk, 21 de fevereiro de 1942 (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 434‑435). A guerra chegava ao Atlântico Sul. A ameaça passava a ser real e o temor de novas ações era cada vez maior. Quando o Brasil decidiu entrar na guerra ao lado dos Aliados, uma das preocupações emergenciais para os suprimentos bélicos era a borracha para os Estados Unidos. A desestruturação do mercado mundial reativou a produção na Amazônia. Com isso, o governo brasileiro criou, em 1942, o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta). Todos seriam voluntários e grandes cooperadores da causa nacional ao decidir por essa iniciativa econômica de migração. O ciclo da borracha da virada do século XIX‑XX durou pouco tempo ali em virtude da competitividade criada pelas produções implantadas na Ásia, mas agora dominadas pelos japoneses. Ao mesmo tempo, a esperança de uma vida melhor, mais uma vez, gerou um significativo fluxo de migrantes do Nordeste – pelo menos 55 mil trabalhadores foram recrutados pelo Semta. No entanto, as condições eram extremamente precárias. Acredita‑se que mais de 20 mil pessoas perderam a vida no que ficou conhecido como a Batalha pela Borracha. Os nordestinos que foram trabalhar na borracha na esperança de uma vida melhor e contribuir para a vitória aliada contra o nazifascismo no mundo sofreram com as mazelas de uma produção que se esperava rápida e as péssimas condições ali estabelecidas. Ficaram conhecidos como os “soldados da borracha”. Há de se mencionar que ali morreram muito mais brasileiros do que aqueles que foram com a FEB lutar na Itália. Nesse sentido, depois de 70 anos do fim da guerra, o governo brasileiro aprovou uma indenização aos sobreviventes e aos descendentes. 114 Unidade II Saiba mais Para aprofundar seus conhecimentos sobre o tema, leia: NECES, M. V. A heroica e desprezada batalha da borracha. História Viva, [s.l.]. 2014. Disponível em: https://bit.ly/3XHnJHm. Acesso em: 3 fev. 2016. REIS, L. Após 70 anos, “soldados da borracha” são indenizados. Folha de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: https://bit.ly/3u85MUK. Acesso em: 3 fev. 2016. AGÊNCIA SENADO. Soldados da borracha já recebem indenizações. Senado Federal, Brasília, 2015. Disponível em: https://bit.ly/3EGBu04. Acesso em: 3 fev. 2016. O acordo com os americanos garantiu o estabelecimento de bases navais e aéreas no território brasileiro de Natal, Belém, Salvador e Recife. Um dos momentos marcantes foi a visita do presidente Roosevelt, quando foi prometido a Vargas um lugar de membro fundador na ONU e, em troca, o presidente brasileiro aceitou enviar tropas de combate à Europa. E, assim, organizava‑se a preparação de tropas do único país da América Latina a enviar exército ao conflito. Em novembro de 1943, surgia a Força Expedicionária Brasileira (FEB): Art. 1° É criada a Força Expedicionária Brasileira, recrutada das Forças Armadas Nacionais, destinadaa tomar parte, oportunamente, em operações de guerra fora do continente, ao lado dos exércitos dos Estados Unidos da América, nas condições reguladas pelos respectivos governos. Art. 2° A Força Expedicionária Brasileira, que se designará abreviadamente “FEB”, compor‑se‑á, inicialmente, de um corpo de exército de três divisões de infantaria e dos elementos orgânicos de corpo de Exército, inclusive aviação e os órgãos de comando e de serviços (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 462). Ficava evidente a relação direta do destacamento militar com os Estados Unidos. Além disso, além da infantaria, seria formado corpo de aviação e dos mais variados serviços necessários à guerra. O lema dos soldados brasileiros surgiu, segundo a tradição, de uma frase comum à época: “o Brasil só irá à guerra no dia em que a cobra fumar”. Daí a FEB se apresentar com “A cobra está fumando”. 115 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Figura 39 – O símbolo da FEB com a cobra fumando Disponível em: https://bit.ly/3GSGNMQ. Acesso em: 3 fev. 2016. Figura 40 – Senta a Pua – emblema da Força Aérea Brasileira (FAB) Disponível em: https://bit.ly/3UlNk5E. Acesso em: 3 fev. 2016. Os brasileiros que formaram o contingente FEB estavam ligados à baixa condição social: Como em situações anteriores, a maioria dos soldados provinha de camadas mais pobres da população. A maioria dos filhos dos setores médios e altos da população encontrou meios para evitar a participação na guerra: rapazes em idade de serem convocados casavam‑se às pressas, subornavam os recrutadores ou conseguiam empregos no governo e eram repentinamente requisitados a permanecer no Brasil. O mesmo aconteceu no corpo de oficiais (LOPEZ; MOTA, 2015, p. 668‑669). Ao todo, a FEB contou com 23.334 homens, sendo que, efetivamente, participaram 15.000. Concentraram suas ações na Itália, em apoio aos americanos em Monte Castello, maior batalha, ou ainda Castelnuovo ou Montese. O comandante foi Mascarenhas Morais. Futuras importantes figuras do país participaram, como Celso Furtado, Rubem Braga, Jacob Gorender ou mesmo o professor Eurípedes Simões de Paula, da USP. 116 Unidade II Figura 41 – Mapa das operações com apoio da FEB na Itália Disponível em: https://bit.ly/3VpwGUk. Acesso em: 3 fev. 2016. Figura 42 – Campanha de arrecadação de fundos para os aliados Disponível em: https://bit.ly/3ERjFeO. Acesso em: 3 fev. 2016. Há de se destacar também que a FEB contava com a participação de mulheres enfermeiras que viram e sofreram o horror da guerra, principalmente no transporte de feridos e nos primeiros atendimentos em pleno voo. 117 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL A Força Aérea Brasileira (FAB) foi treinada pelos americanos e chegou a contar com 400 homens, dentre os quais estava o filho mais velho do presidente, Lutero Vargas. Eles deram suporte às atividades dos aliados e defenderam o litoral do Brasil. No total, oito pilotos perderam a vida. Um dos marcos da participação do Brasil na guerra foi a composição “Canção do Expedicionário Brasileiro”: Você sabe de onde eu venho? Venho do morro, do engenho, Das selvas, dos cafezais, Da boa terra do coco, Da choupana onde um é pouco, Dois é bom, três é demais. Venho das praias sedosas, Das montanhas alterosas, Do pampa, do seringal, Das margens crespas dos rios, Dos verdes mares bravios, Da minha terra natal. [...] Nossa Vitória final, Que é a mira do meu fuzil, A ração do meu bornal, A água do meu cantil, As asas do meu ideal, A glória do meu Brasil! (ALMEIDA; ROSSI, s.d.). 5.2 Redemocratização A participação do Brasil na guerra, apesar de todo heroísmo e defesa da pátria tantas vezes atribuída aos valorosos soldados da FEB, fez Vargas perder o controle do país. Em pouco tempo, a associação da Segunda Guerra Mundial com democracia e contra a ditadura no mundo logo foi também feita no país. Como os brasileiros lutavam pela liberdade no mundo sem vivê‑la por aqui? O maior documento, nesse sentido, foi o manifesto dos mineiros de 24 de agosto de 1943: Este não é um documento subversivo; não visamos agitar nem pretendemos conduzir. Falamos à comunidade mineira sem enxergar divisões ou parcialidades, grupos correntes ou homens. Assim como não pretendemos conduzir, não temos o propósito de ensinar. Mas ensinar é uma coisa e recordar, retomar consciência de um patrimônio moral e espiritual, que seria perigoso considerar uma vez por todas como definitivamente adquirido, é outra muito diferente. 118 Unidade II [...] A democracia não era mais, há alguns anos passados, um bem, assegurado. Vivia ameaçada de dentro e de fora das nações, e em muitos países falhou completamente. Em consequência desses acontecimentos, que atingiram várias das maiores nações do Ocidente, o povo de Minas Gerais como, afinal, o de todo o Brasil, vê‑se forçado a uma atitude de total retraimento e absoluto mutismo. [...] Se lutamos contra o fascismo, ao lado das Nações Unidas, para que a liberdade e a democracia sejam restituídas a todos os povos, certamente não pedimos demais reclamando para nós mesmos os direitos e as garantias que as caracterizam. A base moral do fascismo assenta sobre a separação entre os governantes e os governados, ao passo que a base moral e cristã da democracia reside mútua e confiante aproximação dos filhos de uma mesma pátria e na consequente reciprocidade da prática alternada do poder e da obediência por parte de todos, indistintamente (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 464‑468). Os ideais democráticos estavam expressos justamente na oposição ao mal ditatorial da opressão causada pelo fascismo. A censura e a propaganda oficial já não conseguiam calar a voz dos anseios por uma política com participação popular. Além disso, deve‑se ter claro que já se passavam 8 anos sem nenhum tipo de levante comunista para tentar perpetuar, ainda mais, a manutenção de um regime de defesa da ordem. Com a aproximação da vitória dos Aliados cada vez mais evidente em 1945, já que Hitler estava muito perto de ser completamente cercado, após o sucesso nas três frentes de contra‑ataque: Oeste, com o desembarque na Normandia (Dia D – 6 de junho de 1944); Sul, com os avanços nas campanhas na Itália (das quais o Brasil participava); e Leste (cada vez mais reconquistado por Stalin). Assim, Vargas, em pouquíssimo tempo, contemplou o aumento da pressão pela democracia. Em janeiro de 1945, o Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores declarava a luta por completa liberdade de expressão e também eleições livres. Assim, o presidente se viu obrigado a autorizar em 28 de fevereiro desse ano um Ato Adicional à Constituição de 1937, que previa que em 90 dias sairia a data das próximas eleições. Era o princípio da redemocratização. Logo de início, surgiu o primeiro candidato para as eleições: o brigadeiro Eduardo Gomes, antigo participante do movimento tenentista, mas que não havia defendido o golpe do Estado Novo. 119 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Figura 43 – A propaganda da campanha de Eduardo Gomes rememora que, em 1937, o país acabou sofrendo com o golpe do Estado Novo e o fim da democracia Disponível em: https://bit.ly/3Uh22uP. Acesso em: 3 fev. 2016. Os estudantes surgiram no cenário político desse contexto com a União Nacional dos Estudantes (UNE), que logo fez uma manifestação também em defesa da democracia. Os partidos políticos passaram a ser estabelecidos. Em 18 de abril foi declarada a autorização do pluripartidarismo (regulamentado em 28 de maio). Já nesse primeiro momento surgiu a União Democrática Nacional (UDN), que era a reunião de uma oposição liberal que defendia diretamente a democracia. Na verdade, defendiam também até algum tipo de golpe contra a perpetuação varguista ou qualquer ação golpista do comunismo. Na economia, eram favoráveis ao uso do capital estrangeiro “necessário para os empreendimentos da reconstrução nacional”. Escolheram apoiar a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes. Ainda nesse mês, foi estabelecida a anistia dos presos políticos,garantindo, por exemplo, a libertação de Luís Carlos Prestes e de seu retorno ao jogo político do país. Sendo assim, surgiu o Partido Comunista Brasileiro (PCB), tendo como candidato o engenheiro Yedo Fiuza. Em maio, de 1945, finalmente saiu a Lei Eleitoral e a data marcada para as eleições: 2 de dezembro daquele ano. Em junho, foi criado o Partido Social Democrático (PSD), liderado por Benedito Valadares e que se tornaria o maior partido do período. Em agosto, nasceu o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), presidido por Vargas e que se colocava como perpetuador de todos os avanços do país de 1930 a 1945, ou seja, da indústria, do trabalhismo e do sindicalismo. Em julho, por fim, os integralistas se reorganizaram sob a liderança de Plínio Salgado e a fundação do Partido de Representação Popular (PRP). Nas discussões dos candidatos à Presidência, de início, houve um alvoroço. Não cabia, para muitos, a possibilidade de Getúlio se candidatar – afinal, já estava no poder por quinze anos. Em julho, uma 120 Unidade II conversa por cartas mostra o apoio de Vargas à candidatura oferecida para um dos homens próximos a ele, o general Eurico Gaspar Dutra, apoiado pelo PSD. Em 28 de julho de 1945, Dutra escrevia: Como Vossa Excelência bem sabe, as delegações credenciadas pelas mais expressivas forças do país, reunidas em notável convenção nacional, nesta capital, decidiram homologar meu nome para honrosa investidura de candidato à presidência da República, nos pleitos que se vão processar em 2 de dezembro do corrente ano. Havendo aceito tão nobre quão distinguida prova de confiança das forças majoritárias do Brasil, cumpre‑me, em consequência, o dever de iniciar, de logo, a campanha de minha candidatura através dos estados da Federação, tarefa por demais absorvente, que requererá não apenas todas as minhas horas de atividade, como por completo minha identificação com os problemas políticos em equação no âmbito de toda a nação, impedindo‑me de prosseguir no exercício normal de minhas funções ministeriais. [...] Encerrando minha longa gestão ministerial, permita‑me Vossa Excelência lhe refirme meus protestos de profunda admiração e de grande e franca estima, assegurando‑lhe tudo haver feito, com lealdade e que estivesse ao meu alcance, pelo fortalecimento e pelo engrandecimento do Exército, dentro aliás, de suas diretrizes governamentais e sob a inspiração de meus mais íntimos sentimentos de soldado e cidadão (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 595). O tom, de todo elogioso, e, ao mesmo tempo, a necessidade da saída do cargo de ministro da Guerra, receberam rápida resposta de Getúlio, escrita em 1º de agosto: Acuso recebimento da sua carta de 28 do corrente, comunicando‑me a resolução de deixar as funções de ministro da Guerra, a fim de iniciar a campanha da sua candidatura à presidência da República, de acordo com as deliberações das forças políticas reunidas há pouco nesta cidade, em convenção nacional. Diante dos motivos invocados, só me cabe concordar e acatar os nobres propósitos da resolução de apresentar‑se aos sufrágios dos seus concidadãos para concorrer a tão alta investidura, para a qual possui, sem dúvida, títulos incontestáveis de homem público. Ao agradecer os grandes serviços que prestou ao meu governo como ministro da Guerra, durante um longo período e em momentos graves da vida nacional, com toda dedicação às responsabilidades do cargo e aos superiores interesses do país, quero formular sinceros votos pelo êxito da campanha que vai empreender e na qual estou certo o inspiram sentimentos e ideias de um patriotismo esclarecido e construtivo (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 596). 121 REPÚBLICA NOVA E REPÚBLICA LIBERAL Claro que, se as condições permitissem, Getúlio gostaria de continuar no poder. Já havia demonstrado, e muito, sua forma de ser. Na aparente impossibilidade, respeitar um candidato próximo seria algo sensato. No entanto, essa impossibilidade foi, a princípio, muito mais “aparente”. Aos poucos, surgiu o movimento queremista. O populismo varguista, mais uma vez, mostrou sua força na agitação dos populares. Os comunistas e os sindicatos levaram os trabalhadores a defender a Assembleia Constituinte com a continuidade de Getúlio na política – daí o nome do movimento, “Queremos Getúlio”. Há de se destacar que a determinação internacional dos comunistas dizia que todos aqueles que lutaram contra o nazifascismo deveriam ser apoiados naquele ano. Isso fez Prestes, mesmo com a perda recente de Olga por Vargas enviá‑la para a Alemanha, apoiar Getúlio. E os sindicatos, sob o controle do peleguismo, garantiam o apoio irrestrito ao governo, ainda que questões econômicas começassem a dar margem para possibilidades de greves no país. As manifestações já eram evidentes em agosto daquele ano. Assim, Vargas, aparentemente comovido pelo movimento, discursa em frente a eles: Ao homem que se aproxima do fim de suas atividades públicas, e que outro desejo não tem senão o de recolher‑se à tranquilidade de seu lar, é profundamente comovedor e eloquente este movimento a que acabo de assistir, do povo da capital da República, símbolo de bravura cívica, de grandeza e de entusiasmo. É que eu compreendo o significado desta manifestação. Ela constitui uma reação do povo contra as injúrias dos gazeteiros, contra aqueles que, cegos pelas paixões políticas, procuram, pela injúria e pela facécia, amesquinhar a pessoa do Chefe da Nação. A resposta foi esta: o protesto do povo. Estou vingado, porque nenhuma outra vingança desejaria exercer. Eu fiz sempre a política do trabalhador, a política dos homens que trabalham e produzem, nos campos e nas cidades, nas oficinas, nos escritórios, nas fábricas ou nas estradas de ferro, nos navios, no mar e na terra, nos guichês dos bancos e nos estabelecimentos onde trabalha o funcionalismo público, em toda parte procurei atender às necessidades dos que trabalham. [...] O Brasil adquiriu uma situação invejável de prestigio no conceito internacional, pela firmeza com que o governo manteve seus compromissos, junto aos aliados, pela cooperação que deu a tudo que lhe foi solicitado e sobretudo pela bravura dos seus soldados nos campos de batalha. É preciso, pois, que saibamos à altura das circunstâncias e possamos resolver os problemas por nós mesmos (BONAVIDES; AMARAL, 2002b, p. 602‑603). É emblemática a exaltação do trabalhismo para Vargas, em todas as suas vertentes, com sua defesa pelo “protesto do povo”, garantindo que a maior plataforma política dele passasse a ser a relação direta, cristalizada e perpetuada, como “pai dos trabalhadores”. Chama a atenção ainda o desejo de que as 122 Unidade II relações do país não sejam decididas pelos estrangeiros, mas que a vitória dos Aliados transmita a força brasileira para “resolver os problemas por nós mesmos”. Observação O populismo era um elemento extremamente voltado ao nacionalismo. Sendo assim, era natural que Getúlio se aproveitasse das relações vitoriosas da guerra para que, mesmo em discurso democrático, procurasse se perpetuar no poder. Com a proximidade das eleições, o acordo para a participação de Vargas no pleito era seu licenciamento por três meses. O presidente decidiu não ter essa interrupção. Assim, os blocos principais eram, de um lado, Eduardo Gomes, da UDN, e de outro lado, Eurico Gaspar Dutra, do PSD – ambos militares, o que revela a evidente relação de proximidade, nesse momento, do militarismo com a democracia. No entanto, o temor de que Vargas preparasse algo contra a disputa democrática se manteve. No início de outubro, o presidente conferiu autorização para que também em 2 de dezembro de 1945 houvesse eleições estaduais – muitos analistas entendiam que trariam grande força a Getúlio. No dia 25 de outubro, de qualquer forma, a medida mais polêmica de Vargas ganhou corpo: decidiu nomear seu irmão Benjamin Vargas chefe de Polícia no Distrito Federal. Estaria o presidente articulando para se perpetuar no poder?
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