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PSICOPATOLOGIA APRESENTAÇÃO Olá, estudante! Seja bem-vindo! A Psicopatologia é essencial para o trabalho em saúde mental, seja em consultórios ou em serviços de tratamento, pois apesar de ser considerada uma área autônoma, a Psicopatologia faz interface e fundamenta a prática de profissionais de saúde mental, como psicólogos, psiquiatras, neuropsiquiatras, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e assistentes sociais. A Psicopatologia é a ciência que trata dos transtornos mentais, suas causas, mudanças estruturais e funcionais e formas de sua manifestação. Esta ciência compreende a ordenação dos fenômenos psicopatológicos, a nosologia psiquiátrica, a semiologia psiquiátrica, a etiopatogenia dos transtornos mentais no desenvolvimento humano e a análise dos fatores de risco e de proteção para a saúde mental. Além disso, ela é usada para analisar as formas de tratamento psicológico do paciente psiquiátrico e conhecer a importância do contexto social e familiar no desenvolvimento das psicopatologias. Ao longo deste curso, vamos apresentar os conceitos centrais da Psicopatologia e as ideias sobre normalidade e patologia, além de analisar as funções mentais e suas alterações. Por fim, vamos conhecer algumas psicopatologias, como neurose, esquizofrenia, transtorno de personalidade antissocial e os transtornos mentais que ocorrem na infância e na adolescência, assim como os contextos de tratamento das psicopatologias (o hospital-dia, o Centro de Atenção Psicossocial e os trabalhos em comunidades). AUTORA A professora Juliana Zantut Nutti é doutora (2001) e mestre (1996) em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR, e é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (1989). É autora de materiais didáticos instrucionais desde 2016, com diversas produções realizadas para uma série de disciplinas de cursos de Graduação e Pós-Graduação na modalidade de educação à distância. Atua como coordenadora de cursos de especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional desde 2001. É docente de diversos módulos em cursos de Pós-Graduação na área de Psicopedagogia, sendo docente do Ensino Superior desde 1999. “Dedico esse trabalho aos meus sobrinhos-netos Nicolas e Julian. Que eles se desenvolvam em uma sociedade digna e promovedora de saúde mental. Dedico-o, também, aos profissionais da área de saúde mental que auxiliam as pessoas que sofrem de enfermidades mentais e são excluídas socialmente.” Objetivos Seção 2 de 6 UNIDADE 1. Aspectos gerais da Psicopatologia Juliana Zantut Nutti OBJETIVOS DA UNIDADE *Conhecer a definição e a evolução histórica da Psicopatologia; *Discutir os conceitos de normalidade e patologia em Psicopatologia; *Analisar a etiopatogenia e as formas de estudo das funções psíquicas. TÓPICOS DE ESTUDO Clique nos botões para saber mais Definição e evolução histórica da Psicopatologia – // Raízes históricas da Psicopatologia // Definição de psicopatologia Saúde e doença em Psicopatologia – // Conceito de normalidade // Critérios de normalidade Etiopatogenia em Psicopatologia – // Determinismos biológicos e o papel do meio // Fatores de risco e de proteção para a saúde mental O estudo das funções psíquicas – // O psicodiagnóstico // A entrevista // O exame psíquico Definição e evolução histórica da Psicopatologia Seção 3 de 6 A Psicopatologia é uma área científica que estuda o transtorno mental nos seguintes aspectos: suas causas; as alterações estruturais e funcionais relacionadas ao quadro; métodos de investigação; e formas de manifestação, como sinais e sintomas. Os transtornos mentais se manifestam por meio do comportamento, cognição e experiências subjetivas anormais (CHENIAUX, 2015). Sua evolução histórica está ligada à Medicina e aos estudos da Filosofia, da Psicologia e da psicanálise. RAÍZES HISTÓRICAS DA PSICOPATOLOGIA O termo Psicopatologia foi usado pela primeira vez por Jeremy Bentham, em 1817, porém Esquirol e Griesinger, a partir da publicação de seus trabalhos na França, em 1837, e na Alemanha, em 1845, respectivamente, são os fundadores oficiais dessa área (CHENIAUX, 2015). As raízes históricas da Psicopatologia estão na tradição médica, o que a levou, em sua evolução, à observação longa e cuidadosa de um número considerável de pessoas com transtornos mentais. Por outro lado, a psicopatologia também decorre da área humanista, como a Filosofia, a Literatura, as artes e a psicanálise, que veem a Literatura, as artes e no sofrimento mental formas de expressão e de reconhecimento das dimensões humanas que, sem a ocorrência desses fenômenos, permaneceriam ocultas. Um dos maiores representantes da área de Psicopatologia é o filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers (1883–1969), que afirmava que a Psicopatologia é uma ciência básica que dá apoio à psiquiatria, e cujo conhecimento é aplicado a uma prática profissional e social concreta (DALGALARRONDO, 2019). Oficialmente, a área de Psicopatologia nasceu e evoluiu a partir da prática psiquiátrica, que é uma especialidade médica que utiliza esses conhecimentos como os seus fundamentos. DEFINIÇÃO DE PSICOPATOLOGIA A palavra Psicopatologia significa, etimologicamente, o discurso ou saber (logos) sobre o sofrimento (pathos) da mente (psykhé) (CECCARELLI, 2005). A área da Psicopatologia estuda uma variedade de transtornos mentais que são considerados como “vivências, estados mentais e padrões comportamentais que apresentam, por um lado, uma especificidade psicológica (as vivências dos doentes mentais (sic) possuem dimensão própria, genuína, não sendo apenas ‘exageros’ do normal)” (DALGALARRONDO, 2019, p. 27). De forma mais ampla, a Psicopatologia é considerada como o conjunto de conhecimentos sistemáticos e elucidativos referentes ao adoecimento mental do ser humano que, por ser uma área científica, não atribui critérios de valor nem de moralidade, nem possui dogmas e/ou verdades absolutas sobre as enfermidades mentais. Ao psicopatologista cabe a observação, identificação e compreensão dos elementos do transtorno mental, rejeitando-se os dogmas religiosos, filosóficos, psicológicos ou biológicos, já que o conhecimento buscado deve ser permanentemente revisto e reformulado (DALGALARRONDO, 2019). Portanto, a Psiquiatria representa a aplicação prática da Psicopatologia, mas se utiliza do conhecimento de outras disciplinas científicas. Também difere da Neurologia e da psicologia, pois é uma ciência autônoma, apesar de se beneficiar das tradições dessas duas áreas. As relações entre a Psicopatologia e a Psicologia possuem três classificações, de acordo com Sonenreich e Bassitt (1979), conforme se vê no Quadro 1: 1. PSICOPATOLOGIA COMO A PATOLOGIA DO PISCOLÓGICO: A psicopatologia é vista como uma subdisciplina da psicologia geral e estuda fenômenos anormais. 2. PSICOLOGIA COMO A PSICOLOGIA DO PATOLÓGICO: A psicologia é uma ciência autônoma que estuda as alterações quantitativas do normal. Essa é a classificação mais utilizada. 3. PSICOPATOLOGIA COMO SEMIOLOGIA PSIQUIÁTRICA: A psicopatologia se restringe ao estudo dos sintomas e sinais dos transtornos psiquiátricos. Ainda sobre as relações da Psicopatologia com as outras áreas de conhecimento, ela se relaciona a variadas abordagens e referenciais teóricos. Para Cheniaux (2015, p. 19), “não há apenas uma Psicopatologia: são várias”. Assim, elas podem ser divididas em dois grupos: explicativas e descritivas. As Psicopatologias explicativas são baseadas nos modelos teóricos, em estudos experimentais e procuram esclarecer sobre a etiologia (conjunto de prováveis causas) dos transtornos mentais. Elas podem seguir uma abordagem psicodinâmica (por exemplo, a psicanálise), cognitiva, existencial, biológica ou social. No grupo das Psicopatologias descritivas estão as linhas que enfatizam a descrição ea categorização das experiências anormais, de acordo com a informação dada pelo paciente e pela observação clínica de seu comportamento. É baseada na semiologia (ciência que estuda os símbolos e signos) e apoia a psiquiatria clínica, como é o caso da Psicopatologia fenomenológica. No entanto, explicar e descrever são comportamentos complementares, pois somente se pode explicar algo que já foi descrito previamente. Em síntese, a Psicopatologia é uma área científica que estuda os transtornos mentais, sua etiologia, sinais e sintomas e as alterações estruturais e comportamentais produzidas no indivíduo. É autônoma, mas dialoga e apoia o trabalho prático do psiquiatra e de outros profissionais de saúde mental. Saúde e doença em Psicopatologia Uma das discussões mais complexas na Psicopatologia envolve os critérios de saúde e doença, isto é, de normalidade e de patologia em saúde mental. A distinção do que se considera como o normal e patológico em Medicina é imprecisa e até mesmo na Psiquiatria e na Psicopatologia, em que se utilizam cotidianamente os termos, são questionados. CONCEITO DE NORMALIDADE Cheniaux (2015) cita três critérios de normalidade: o subjetivo, o estatístico e o qualitativo. De acordo com o critério subjetivo, considera-se como doente quem está sofrendo ou se sente doente. No critério estatístico ou quantitativo, considera-se normal o que é comum ou que está significantemente próximo da média. No critério qualitativo, o normal é considerado como aquilo que é adequado a um padrão funcional considerado como ideal. Um dos principais estudos sobre o conceito de normalidade em Psicopatologia foi realizada por Canguilhem, na obra O normal e o patológico, publicada em 1943. O autor apresenta duas concepções distintas sobre os transtornos mentais: na primeira, apresenta a relação saúde-doença sob o ponto de vista quantitativo e, na segunda, sob o ponto de vista qualitativo. A doença, sob o ponto de vista quantitativo, se diferencia do estado de saúde normal quando há uma perturbação no grau ou quantidade de equilíbrio do corpo: o organismo irá buscar o retorno ao estado quantitativo de equilíbrio, ou seja, a normalidade, anulando a doença e atingindo a cura (CANGUILHEM, 2009). Sob o ponto de vista qualitativo, saúde e doença são tratados como estados distintos, não tendo um grau específico de diferença entre um e outro. A doença é pensada como algo que transforma o indivíduo e que o faz ser diferente do indivíduo anterior. CRITÉRIOS DE NORMALIDADE Existem vários critérios de normalidade em Psicopatologia, como se pode verificar a seguir (DALGALARRONDO, 2019): Normalidade como a ausência de doença – De acordo com esse critério, a saúde é a ausência de sintomas, sinais ou doenças. O indivíduo considerado normal é aquele que não é portador de nenhum transtorno mental definido. Esse critério é considerado significativamente falho, pois se define a saúde não pelo que ela é, mas sobre o que falta ao indivíduo para ser normal. Normalidade ideal – A normalidade é vista de forma utópica, pois se estabelece uma norma idealizada do que se considera suspostamente como sadio e mais evoluído, utilizando critérios socioculturais e ideológicos arbitrários e, às vezes, dogmáticos e doutrinários. Normalidade estatística – O conceito de normalidade é considerado como aquilo que se observa mais frequentemente na população em geral e se aplica a fenômenos quantitativos. Sendo assim, os indivíduos que se encontram nos extremos das curvas de distribuição normal (curva de Gauss) passam a ser considerados anormais ou doentes. Esse critério também é considerado falho, pois nem sempre fenômenos muito frequentes são um sinal de normalidade e seus extremos são anormais. Exemplos: cáries dentárias, uso abusivo de álcool, sintomas ansiosos e depressivos leves, entre outros. Normalidade como bem-estar – Critério definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que concebe a saúde como o completo bem-estar físico, mental e social e não como ausência de doença. Esse conceito também é alvo de críticas por ser de difícil definição objetiva, muito vasto e impreciso, podendo recair na categoria de utopia, pois poucas pessoas se classificariam na categoria de saudáveis. Normalidade funcional – Está fundamentada no critério da funcionalidade da pessoa, já que enquanto o fenômeno patológico é disfuncional a ponto de produzir sofrimento à própria pessoa e/ou ao seu grupo social. Normalidade como processo – Nesse critério, a normalidade é vista de forma dinâmica, não estática, considerando os aspectos dinâmicos do desenvolvimento psicossocial, de estruturações e reestruturações ao longo da vida e de cser_educacionals e mudanças próprias do ciclo de desenvolvimento humano. Este critério é muito aplicado na psiquiatria infantil, do adolescente e do idoso. Normalidade subjetiva – Utiliza-se a perspectiva subjetiva do sujeito como o principal indicador de determinação do estado de saúde. É falho porque as pessoas em algumas fases de transtorno mental podem se sentir muito bem e saudáveis, mas na verdade possuírem um quadro psicopatológico grave. Normalidade como liberdade – Muito usado na linha fenomenológica e existencial, que entende o transtorno mental como perda da liberdade existencial, como um constrangimento do ser, fechamento e limitação das possibilidades de existência. Normalidade operacional – É um critério arbitrário, com fins pragmáticos, em que as definições de normal e patológico são decididas por especialistas a priori, e, posteriormente, tenta-se atuar com esses critérios, consciente de suas possíveis consequências. O normal é visto como uma idealização determinada por médias aritméticas ou por estatísticas. No caso dos transtornos mentais, as estatísticas somente podem ser usadas para um certo número de pessoas, mas são aplicadas a um indivíduo. Gráfico 1. Curva de Gauss. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 30/06/2021. (Adaptado). A finalidade dos critérios de normalidade e doença não é a de não emitir julgamento de valor, mas de se verificar da funcionalidade a sua utilização para análise em fenômenos, levando-se sempre em conta a posição filosófica do profissional. ASSISTA Para compreender melhor os critérios de normalidade e doença, assista ao vídeo do canal Doxa e Episteme, História da Loucura na Idade Clássica Michel Foucault resumo, sobre a obra do filósofo Michel Foucault. Nele, vemos um resumo de como o autor estudou a loucura e os critérios de normalidade no decorrer da Idade Clássica. Pode-se concluir que os critérios de normalidade e de patologia, ou anormalidade, em Psicopatologia são variados em função de fenômenos específicos com os quais se atua e das opções filosóficas e técnicas do profissional de saúde mental. Em alguns casos, podem ser utilizadas as associações de vários critérios de normalidade ou doença, de acordo com os objetivos pretendidos. O uso desses critérios exige que os profissionais de saúde tenham uma postura crítica e reflexiva, pois o que se chama de normal e patológico deve ser continuamente estudado. Etiopatogenia em Psicopatologia Para discutir a etiopagenia, que é o estudo das causas das doenças e dos mecanismos patogênicos que atuam para desenvolvê-las, deve-se compreender a relação entre desenvolvimento humano, saúde e transtorno mental. A área da Psicopatologia que estuda os mecanismos de etiopatogenia é a Psicopatologia desenvolvimental, que é uma área dinâmica e em evolução, construída a partir da obra de T. Achenbach, Developmental Psychopathology, publicada em 1974, e dos trabalhos de Sroufe, Cicchetti e Rutter. A Psicopatologia desenvolvimental engloba visões sociais, genéticas e desenvolvimentais e analisa hipóteses por meio de métodos epidemiológicos e estatísticos, a fim de entender as origens e o cursodos transtornos mentais (POLANCZYK, 2009). Os estudos da área da Psicopatologia desenvolvimental enfatizavam, inicialmente, o processo de desenvolvimento e os transtornos mentais da infância, mas passaram a investigar a continuidade dos transtornos entre a infância, a adolescência e a idade adulta, além de realizar estudos sobre a alta proporção de adultos com transtornos mentais já existentes na adolescência. Os achados das pesquisas com a abordagem desenvolvimental integram a epidemiologia, genética, neuropsicologia e estudos de exames de neuroimagem, demonstrando elevado potencial para a compreensão das origens dos transtornos mentais. Portanto, a Psicopatologia desenvolvimental é um modelo conceitual do qual se desenvolvem estratégias de investigação científica e modelos teóricos, elaboram-se abordagens para a compreensão do como e porque determinados indivíduos são mais propensos a desenvolverem transtornos mentais do que outros (POLANCZYK, 2009). DETERMINISMOS BIOLÓGICOS E O PAPEL DO MEIO Sobre as determinações biológicas, a influência ambiental e o papel do meio nos transtornos, a Psicopatologia desenvolvimental afirma existir um consenso entre os pesquisadores de que é a inter-relação entre os fatores biológicos e as características ambientais que estão na origem dos transtornos mentais. Entre os fatores biológicos, destacam-se a carga genética do indivíduo, e, no contexto ambiental, o cuidado parental, os relacionamentos interpessoais e a exposição a eventos estressores. Os principais achados da Psicopatologia desenvolvimental sobre a origem dos transtornos mentais, de acordo com Polanczyk (2009), estão listados no Quadro 2: Existe uma continuidade no processo de desenvolvimento dos transtornos mentais, pois o efeito das experiências prévias vividas pelos indivíduos permanece no decorrer do seu desenvolvimento. Todos os indivíduos possuem uma tendência inata de se adaptarem bem ao meio ambiente, mas se o ambiente é patológico, a adaptação também será. O momento de desenvolvimento em que o indivíduo se encontra é um fator fundamental para a compreensão de todos os outros fatores envolvidos na determinação do transtorno mental . Os transtornos mentais devem ser interpretados e analisados em relação ao contexto em que o indivíduo está inserido. FATORES DE RISCO E DE PROTEÇÃO PARA A SAÚDE MENTAL Para compreendermos o papel dos fatores de risco e de proteção no desenvolvimento da saúde mental na infância e na adolescência precisamos compreender o que é o desenvolvimento humano. Segundo Xavier e Nunes (2015, p. 17), o desenvolvimento humano “é um terreno vasto, cuja natureza central é a de descoberta, mudança, avanços, novas aquisições e crescimento”. O processo de desenvolvimento ocorre a cada momento, desde a concepção do indivíduo até a sua morte e se relaciona à vida cotidiana, indo da aquisição da fala, passando pelo processo de aprendizagem escolar, pelas transformações físicas da adolescência, até as mudanças biopsicossociais da vida adulta e do processo de velhice. O desenvolvimento gera mudanças profundas, especialmente nas duas primeiras décadas de vida, as quais resultam em avanços significativos nas dimensões neuropsicomotora, cognitiva, afetiva, comportamental, social, dentre outras, com vários níveis de complexidade. O estudo do desenvolvimento humano analisa os marcos maturativos universais, como as transformações físicas e hormonais características da puberdade, que irão ocorrer em todos os indivíduos, independente da sua cultura. Entretanto, devido à singularidade dos seres humanos, as diferenças individuais precisam ser consideradas no estudo do desenvolvimento. Isso significa que cada adolescente vive as mudanças corporais de uma maneira única e irá atribuir-lhes um significado específico de acordo com as suas experiências. As três principais concepções ou correntes explicativas do desenvolvimento nas ciências humanas são: • bullet Inatismo: parte da ideia de que as situações que ocorrem depois do nascimento não são importantes e pouco interferem no desenvolvimento. As qualidades e capacidades básicas de cada ser humano, como a personalidade, valores, hábitos, crenças, a forma de pensar e a conduta social, já estão prontas e em sua forma final no nascimento, não sofrendo quase nenhuma ou pouca diferenciação ao longo do desenvolvimento (XAVIER; NUNES, 2015). O papel do ambiente seria, portanto, não interferir ou interferir minimamente no processo do desenvolvimento natural da pessoa. As origens do inatismo podem ser encontradas, por um lado, na teologia (na ideia de destino individual determinado pela graça divina) e, por outro, em um entendimento incorreto das contribuições da proposta evolucionista de Darwin, da embriologia e da genética (como as mudanças no desenvolvimento das espécies que decorrem de variações hereditárias no qual o papel do ambiente seria limitado). A concepção inatista produziu uma abordagem autoritária e até pessimista para a educação de crianças e adolescentes, pois se o ser humano já nasce pronto, só se pode aprimorar o que ele é ou virá a ser. O ditado “pau que nasce torto morre torto” expressa a concepção inatista, que aparece ainda hoje nas escolas, camuflada pela ideologia das aptidões, da prontidão e do coeficiente de inteligência (QI) (XAVIER; NUNES, 2015); • bullet Empirismo ou ambientalismo: a concepção empirista/ambientalista atribui questões filosóficas a partir do comprometimento científico. O empirismo busca refletir o sobre o comportamento a partir de uma análise científica, partindo de problemas específicos de laboratório e aplicáveis a como o mundo é conhecido (BATISTA, 2007). Esta concepção deriva do empirismo, que é a corrente filosófica que enfatiza a experiência sensorial como a única fonte do conhecimento, e que é possível identificar, controlar e manipular os fatores que estão associados a essas experiências. Na Psicologia, o maior defensor do empirismo é o estadunidense B. F. Skinner, que se preocupou com a criação da filosofia do behaviorismo radical e, a partir dela, o desenvolvimento da ciência do comportamento, a qual analisa o comportamento humano sem descartar aspectos como raciocínio, desejos, fantasias e sentimentos, classificando-os como comportamentos internos. Na concepção de Skinner, o papel do ambiente é tão importante quanto a maturação biológica, distinguindo, neste ponto, da corrente filosófica do empirismo; • bullet Interacionismo: para essa concepção, o desenvolvimento é decorrente do processo da constante interação entre sujeito e objeto. O sujeito tem um papel ativo na incorporação das estruturas cognitivas aos dados do ambiente, modificando-as para criar estruturas cada vez mais complexas que lhe permitem o domínio do ambiente e a sua transformação (XAVIER; NUNES, 2015). O desenvolvimento da aprendizagem é fruto desse processo que ocorre no sujeito através da interação com o ambiente, em que as estruturas vão sendo construídas. Os estímulos e as informações a que os indivíduos estão expostos vão sendo processados através de um processo de construção, o que torna essa perspectiva também denominada como construtivismo. Várias correntes aparecem nesta tendência interacionista, com implicações importantes para o entendimento do desenvolvimento, do ensino e da aprendizagem. Uma delas é a que vem sendo denominada de sociointeracionista construtivista (ou construtivismo sociointeracionista) e que envolve uma interrelação entre as concepções de Piaget e Vygotsky (XAVIER; NUNES, 2015). O conhecimento é um processo socialmente construído. Através da interação do sujeito com o outro, torna-se possível a incorporação dos conhecimentos sistematizados e o reconhecimento de sua determinação histórica, ao mesmo tempo em que esse mesmo sujeito se reconhece como participante do processohistórico de produção do conhecimento. Figura 2. B. F. Skinner (1904–1990), fundador do behaviorismo radical. A compreensão sobre as concepções explicativas do desenvolvimento humano auxiliam no estudo sobre os fatores de risco e de proteção na determinação da saúde e do transtorno mental na infância e adolescência, pois esses fatores são extremamente importantes para a compreensão da trajetória de vida do sujeito em momentos posteriores de seu desenvolvimento. Estudos epidemiológicos apontam que há entre 10% e 20% de probabilidade de haver o desenvolvimento de transtorno mental entre crianças e adolescentes, o que chama a atenção para a importância da identificação desses fatores e para a necessidade de identificação e tratamentos precoces de transtornos nesses momentos do desenvolvimento. Estudos e intervenções voltadas para o público infanto-juvenil revelam que os fatores envolvidos no desenvolvimento e na trajetória da saúde mental dessa população são denominados fatores de risco e fatores de proteção. Os fatores de risco para a saúde mental de crianças e adolescentes se caracterizam como eventos ou características de desenvolvimento que aumentam as chances da ocorrência de desfechos negativos em saúde mental em fases posteriores da vida e em diferentes domínios, como na vida afetiva, acadêmica, profissional e financeira. Também estão associados ao maior uso de serviços e de substâncias na fase adulta (ZAYAT et al., 2018). A maior parte das evidências científicas sobre fatores de risco para a saúde mental na infância e adolescência é originada de estudos longitudinais, realizados em países desenvolvidos, e foram pesquisados nos ambientes em que essas populações mais circulam, como no contexto familiar, escolar e comunitário. Os fatores de risco na infância e adolescência mais citados na literatura incluem a existência de transtornos mentais maternos, o pertencimento à família, a residência em bairros de nível socioeconômico baixo, a exposição a diferentes formas de violência e o uso de práticas parentais negativas e/ou cuidado parental empobrecido. O nível socioeconômico familiar baixo implica na escassez de recursos materiais, sociais e financeiros e no acesso limitado ou insuficiente a serviços, aumentando a vulnerabilidade na infância e adolescência. Há evidências de que o nível socioeconômico familiar baixo aumenta o risco de desenvolvimento de todos os tipos de psicopatologias na infância, como a hiperatividade, problemas emocionais, problemas de relacionamento entre pares e de conduta. A moradia em bairros com piores condições socioeconômicas na infância também é apontada como um fator de risco para taxas mais elevadas para a ocorrência de transtornos psiquiátricos na infância (ZAYAT et al., 2018). A exposição a diferentes formas de violência é frequentemente associada ao risco aumentado para psicopatologias na infância e adolescência. Em geral, as diferentes formas de exposição à violência podem ser classificadas em física, psicológica, sexual e negligência. A exposição aos conflitos familiares se configura como uma forma de violência doméstica. Um estudo longitudinal realizado por 17 anos revelou que a convivência e a comunicação entre pais e filhos permeadas por críticas, gritos e discussões foram definidas como uma forma de exposição aos conflitos familiares, e que quanto maior a frequência e a precocidade de exposição aos conflitos familiares, pior será o desfecho de saúde mental na vida adulta. As práticas parentais utilizadas pelos pais na criação de seus filhos são o conjunto de estratégias usadas para o cuidado e a socialização durante a infância e adolescência. Práticas parentais negativas de ambos os pais agem como um dos fatores de risco para a saúde mental na infância e adolescência (ZAYAT et al., 2018). Apesar disso, muitos indivíduos que são expostos a esses fatores de risco parecem lidar bem e resistir às consequências prejudiciais desses fatores, indicando que essa adaptação positiva é um importante processo que os mantêm protegidos de um transtorno de saúde mental e que podem contar com fatores que os auxiliam no desfecho positivo. Já os fatores de proteção são definidos como as características, eventos ou experiências que atenuam o impacto das experiências adversas ou fatores de risco, diminuindo a probabilidade de ocorrência de desfechos negativos ou aumentando a chance de desfechos positivos. Portanto, os fatores de risco e proteção costumam estar interrelacionados e formam um sistema complexo e interdependente. Destacam-se enquanto fatores de proteção, a qualidade das interações sociais e do ambiente de desenvolvimento na infância e adolescência (ZAYAT et al., 2018). Assim, é a qualidade do fator investigado que irá determinar o impacto no bem-estar na saúde mental de crianças, adolescentes e de futuros adultos. As práticas parentais, quando negativas, acarretam prejuízos para a saúde mental. Se forem positivas, serão benéficas para o desenvolvimento na infância e adolescência (ZAYAT et al., 2018). Entre as práticas interpretadas como positivas, temos a permissão de autonomia supervisionada ao adolescente, a compreensão, o cuidado e o ser solícito e generoso com o filho. Outros fatores de proteção podem ser o suporte social materno, que pode aumentar a sensação de bem-estar da mãe e permitir respostas mais adaptativas frente a eventos estressantes; e a residência, durante a infância, em bairros com maiores níveis de participação em atividades sociais, esportivas e culturais (ZAYAT et al., 2018). O estudo das funções psíquicas Seção 6 de 6 A alteração patológica das funções psíquicas e a desorganização mental podem levar a pessoa à incapacidade de exercer ou exercer de modo disfuncional (com dificuldade) os seus papéis sociais e as atividades do cotidiano, causa sofrimento psicológico a ela e às pessoas ao redor (DALGALARRONDO, 2019). Os transtornos mentais são condições que devem ser diagnosticadas por profissionais de saúde capacitados para essa tarefa e que sejam treinados para o uso de métodos específicos de estudos das funções psíquicas alteradas. A seguir, iremos abordar as principais características do psicodiagnóstico, da entrevista e do exame psíquico, que são métodos que auxiliam o estudo ou avaliação das funções psíquicas dos pacientes da área de saúde mental. O PSICODIAGNÓSTICO A psicologia clínica desenvolveu o psicodiagnóstico, que é um instrumento auxiliar ao diagnóstico psicopatológico e que o psicólogo e demais profissionais da área de saúde mental podem utilizar, desde que sejam devidamente capacitados. Porém, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia, quando utilizado pelo psicólogo, considera-se que esse profissional deve: Construir argumentos consistentes da observação de fenômenos psicológicos; empregar referenciais teóricos e técnicos pertinentes em uma visão crítica, autônoma e eficiente; atuar de acordo com os princípios fundamentais dos direitos humanos; promover a relação entre ciência, tecnologia e sociedade; garantir atenção à saúde; respeitar o contexto ecológico, a qualidade de vida e o bem- estar dos indivíduos e das coletividades, considerando sua diversidade (CFP, 2019, p. 2). A aplicação dos testes projetivos para o conhecimento da estrutura de personalidade é um dos procedimentos mais utilizados na avaliação psicodiagnóstica. No Brasil, a compra, aplicação e análise da maioria desses testes é restrita a psicólogos. Um dos testes projetivos mais usados é o teste de Rorschach (teste das manchas). Figura 3. Exemplo de placa de Rorschach. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 30/06/2021. Podem-se, ainda, ser usados os testes de apercepção temática (TAT), de relações objetais de Phillipson, das pirâmides de pfister e o desenho da casa-árvore-pessoa (HTP). A escolha dos testes dependerá do conhecimento e daexperiência do profissional. Para o rastreamento de possíveis alterações cerebrais, há a possibilidade de usar os testes de Bender e testes neuropsicológicos direcionados e destinados à detecção de alterações cognitivas mais específicas (DALGALARRONDO, 2019). A ENTREVISTA O principal instrumento de avaliação do paciente em Psicopatologia é a entrevista. Entrevistar é considerada uma arte a ser adquirida apenas por meio do treinamento supervisionado e com a experiência prática, mas assistir a aulas e vídeos sobre entrevistas e estudar textos sobre o assunto pode auxiliar o iniciante. A técnica e a habilidade em realizar entrevistas são atributos fundamentais e insubstituíveis do profissional de saúde em geral e de saúde mental em particular. Tal habilidade é, em parte, aprendida e, em outra, intuitiva, patrimônio da personalidade do profissional, de sua sensibilidade nas relações pessoais (DALGALARRONDO, 2019, p. 66). É por meio de uma entrevista tecnicamente bem realizada que o profissional irá obter as informações necessárias para emitir uma hipótese diagnóstica clínica e sistematizar a intervenção e o planejamento terapêutico mais adequado ao caso (DALGALARRONDO, 2019). A entrevista é um dos pilares da prática profissional em saúde mental, porque o profissional consegue extrair conhecimentos relevantes do encontro com o paciente e pode agir de forma útil e criativa, possibilitando a realização de duas etapas importantes da avaliação. A primeira etapa é a anamnese, que é o nome dado ao histórico dos sinais e sintomas que o paciente apresenta ao longo de sua história de vida, dos seus antecedentes pessoais e familiares e de seu contexto social. A segunda etapa é o chamado exame psíquico ou mental. EXPLICANDO Entre os manuais de psiquiatria, não existe uma uniformidade ou padronização absoluta quanto à estrutura da anamnese, pois algumas informações podem se adequar a mais de um item desse instrumento, sendo a sua divisão arbitrária e convencional. A anamnese psiquiátrica deve fornecer elementos para a formulação de uma hipótese diagnóstica e identificar os fatores que podem ter causado o transtorno, precipitando-o e perpetuando-o. De acordo com Cheniaux (2015), os objetivos básicos da entrevista para a obtenção de dados psiquiátricos são: a formulação de um diagnóstico, de um prognóstico e o planejamento terapêutico. Sobre a entrevista inicial, ela é considerada um momento essencial no diagnóstico e no tratamento em saúde mental. Dalgalarrondo (2019) adverte que o primeiro contato, se for bem conduzido, deverá produzir uma sensação de confiança no paciente em relação ao alívio de seu sofrimento. A entrevista inicial mal realizada, no entanto, em que o profissional é negligente ou hostil com o paciente, em geral, são seguidas de abandono do tratamento. Assim, é a partir da entrevista que irá se estabelecer ou não a chamada aliança terapêutica entre médico e paciente. De acordo com Zuardi e Loureiro (1996, n. p.), existem diferentes tipos de entrevistas que podem ser agrupadas em: abertas, estruturadas e semiestruturadas. Na entrevista aberta não há um roteiro pré-determinado a ser seguido, o que permite ao entrevistado falar mais livremente, determinando o curso da entrevista. Este tipo de entrevista permite um acesso mais fácil ao material inconsciente, através da observação da ordem em que os assuntos são comunicados pelo paciente, a associação que faz entre esses, as interrupções e as respostas emocionais. As principais desvantagens são: a pouca possibilidade de concordância entre os diferentes entrevistadores; a dificuldade para formulação de diagnósticos consistentes, em razão de uma investigação assistemática dos sintomas; e o tempo imprevisto de realização. Nas entrevistas estruturadas a obtenção das informações, o sequenciamento das perguntas e os registros dos resultados são sempre pré-determinados. Os formulários das entrevistas contêm glossários que descrevem os termos empregados. A principal vantagem desse tipo de entrevista é elevar o grau de confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico, facilitando a concordância entre os diferentes entrevistadores. A pequena flexibilidade desse tipo de entrevista, em determinadas circunstâncias, pode prejudicar a colaboração do paciente. As entrevistas semiestruturadas têm um nível de estruturação maior ou menor de acordo com a entrevista, possibilitando maior flexibilidade na sequência e/ou formulação das perguntas do que nas estruturadas. Estas entrevistas têm níveis elevados de confiabilidade (ZUARDI; LOUREIRO, 1996). A entrevista pode ocorrer no momento da internação do paciente, seja voluntária ou involuntária, na consulta ambulatorial, ao responder a uma solicitação da enfermaria de um hospital geral, no domicílio de um paciente e, eventualmente, em via pública. Deve ser realizada, preferencialmente, em ambiente fechado, com isolamento acústico e sem interrupções. Ao iniciar, é essencial a apresentação do profissional, a explicação sobre os objetivos da entrevista e a obtenção do consentimento do paciente, se possível. Caso seja possível que o paciente conceda a entrevista, deve-se entrevistar os familiares ou pessoas de seu convívio que possam oferecer as informações, preferencialmente, com a concordância e a presença do paciente (CHENIAUX, 2015). De qualquer modo, sempre existem algumas regras básicas que devem ser seguidas. No início da entrevista, recomenda-se deixar o paciente falar livremente para, posteriormente, perguntar sobre temas mais específicos e/ou assuntos duvidosos. Também é necessário saber quando e de que forma interromper a fala do paciente, sem cortar o seu fluxo de comunicação, e não permitindo que ele seja muito minucioso ou prolixo, o que pode prejudicar a obtenção dos dados da história clínica. O importante é saber como controlar e dirigir a entrevista. Não se deve formular perguntas de maneira mecânica ou monótona, mas em forma de um diálogo informal (CHENIAUX, 2015). Deve-se evitar o uso de perguntas sugestivas e que podem ser respondidas de forma monossilábica (sim, não ou talvez). Assim, em vez de perguntar: perguntar "você está deprimido hoje?", pergunte: "como você está se sentindo hoje?”. Também não é adequado aceitar expressões usadas no cotidiano como: estou nervoso, estou tenso ou tenho pânico, mas deve-se pedir ao paciente que explique o que isso significa de uma forma mais abrangente, com suas próprias palavras. Outro aspecto importante sobre o manejo da entrevista é se certificar de que o paciente está compreendendo o significado das perguntas, utilizando uma linguagem acessível, evitando termos médicos e de uso restrito (CHENIAUX, 2015). DICA Uma dica importante sobre o manejo da entrevista é evitar a realização de muitas anotações ou de digitação constante no computador, pois isso transmite ao paciente que as anotações são mais importantes que a própria entrevista. O profissional precisa observar se isso incomoda o paciente, e diminuir esses comportamentos (DALGALARRONDO, 2019). O EXAME PSÍQUICO Nos serviços de saúde pública, a falta de tempo dos profissionais, o excesso de trabalho, o estresse e as condições físicas de atendimento precárias são condições adversas para a realização de entrevistas. O profissional de saúde pode ficar impaciente para ouvir as pessoas com queixas pouco precisas, os chamados poliqueixosos, e acabarem rejeitando os pacientes que são mais vagos ou que são desorganizados psiquicamente. Porém, nesse tipo de atendimento, a resiliência do entrevistador é mais do que necessária. Mesmo que o profissional não tenha mais do que alguns minutos para entrevistar, deve tentar ouvir e examinar o doente com respeito e criar um clima de confiança, a fim de propiciar o início de um vínculo e um atendimento de boa qualidade. Nem sempre é a quantidade de tempo com o paciente queconta, mas sim a qualidade da atenção dispensada pelo profissional. A comunicação não verbal tem muita importância, pois inclui “uma carga emocional do ver e ser visto, do gesto, da postura, das vestimentas, do modo de sorrir ou expressar sofrimento” (DALGALARRONDO, 2019, p. 69). Desse modo, a primeira impressão produzida pelo paciente no entrevistador é o produto de uma mistura de fatores, como a experiência do profissional, a transferência que o paciente estabelece com ele, os aspectos contratransferenciais do entrevistador e os valores pessoais e julgamentos que o profissional realiza, mesmo que se esforce para que isso não ocorra. Sobre os processos de transferência e contratransferência, estudados por Sigmund Freud, são considerados fundamentais para o profissional realizar entrevistas de forma mais consciente e habilidosa, pois fazem com que ele entenda determinados comportamentos dos pacientes de forma menos ingênua e mais aprofundada. Como transferência, entendem-se as atitudes e sentimentos do paciente com origens inconscientes, isso inclui sentimentos positivos, como confiança, amor e apego, e negativos, como raiva, desconfiança e hostilidade. Tais sentimentos, de acordo com Freud (1986), têm origem inconsciente em eventos da história de vida do paciente e fazem com que, no caso, o profissional de saúde passe a ocupar, no presente, o lugar que o pai ou a mãe ocupavam no passado. Como o paciente não tem consciência desse processo, considera esses sentimentos como experiências reais e não como reflexos ou repetições de sentimentos do seu passado. Figura 4. Sigmund Freud, fundador da psicanálise. Para Jung (2013), a transferência é a projeção que o paciente faz, de forma inconsciente, na figura do médico, dos afetos básicos que nutria pelas figuras significativas de sua vida. Este é um fenômeno geral, não exclusivo da relação analítica, que pode ser observado nas relações íntimas entre duas pessoas. No caso do atendimento em saúde mental, o paciente projeta no médico e em outros profissionais, de forma inconsciente, os sentimentos que nutria por seus pais na infância. Pode sentir que o médico age como um pai severo, cruel e autoritário e que a enfermeira é como uma mãe carinhosa e preocupada, por exemplo. A contratransferência, por sua vez, é a transferência que o profissional estabelece com os pacientes da mesma maneira que o paciente, inconscientemente, com sentimentos que ele, o profissional, nutria no passado por pessoas significativas de sua vida (DALGALARRONDO, 2019). Isso explica o porquê de alguns pacientes despertarem sentimentos de raiva, medo, piedade, carinho e repulsa nos profissionais de saúde, sem motivos mais concretos. Quando essas reações contratransferenciais são identificadas, o profissional de saúde deve estar consciente de que elas são originadas de seus conflitos pessoais, a fim de que ele lide com elas de forma mais objetiva. Passaremos, agora, a analisar os aspectos do chamado exame psíquico, que pode ter as denominações de exame do estado mental, exame mental, exame psicopatológico ou exame psiquiátrico. O exame psíquico é um dos principais instrumentos para a realização do diagnóstico em psiquiatria e visa o estabelecimento de um diagnóstico psiquiátrico, criação e desenvolvimento de aliança de trabalho e prognóstico do paciente. No exame psíquico, examina-se, de forma isolada, cada função psíquica do paciente, para depois formular-se a análise do todo psíquico (DALGALARRONDO, 2019). A Psicopatologia importa-se, fundamentalmente, com a forma de cada função psíquica. Os conteúdos têm uma importância secundária. Por exemplo, a forma de um livro é aquilo que faz com que o reconheçamos e saibamos que se trata de um livro (que é a essência do objeto), o conteúdo é aquilo que define tal livro (a sua mensagem). Assim, o exame psíquico é uma forma de abstração da realidade e da totalidade do psiquismo humano, ao decompor a totalidade psíquica em conceitos operativos para formular, mais tarde, os quadros nosológicos, ou seja, os quadros classificatórios e explicativos da doença. O exame psíquico se inicia no primeiro contato com o paciente, antes da obtenção dos dados de identificação. O profissional experiente é capaz de realizar a maior parte do exame do estado mental simultaneamente à coleta da história do transtorno do paciente. No modelo médico, a história sempre é vista como algo subjetivo, mas o exame psíquico, assim como o exame físico da Medicina Geral, é considerado um método objetivo de avaliação. Na avaliação psiquiátrica, o que é observado pelo examinador representa o exame psíquico e as expressões de como o paciente se refere, bem como se elas são mais apropriadas à história do transtorno do que ao exame psíquico. 1. Aspecto geral: cuidado pessoal, trajes, postura mímica e atitude global do paciente. 2. Nível de consciência. 3. Orientação alo e autopsíquica. 4. Atenção. 5. Memória (fixação e evocação). 6. Sensopercepção. 7. Pensamento (curso, forma e conteúdo). 8. Linguagem. 9. inteligência. 10. Juízo de realidade. 11. Vida afetiva. 12. Volição. 13. Psicomotricidade. 14. Consciência e valoração do eu. 15. Vivência do tempo e do espaço. 16. Personalidade. 17. Sentimentos contratransferenciais. 18. Críticas em relação a sintomas e insight. 19. Desejo de ajuda. 20. Tratamento voluntário ou involuntário. Apesar de alguns aspectos do exame psíquico serem subjetivos, como a análise dos processos de pensamento, isso também ocorre no exame físico. Por exemplo, há elementos subjetivos relacionados diretamente às manipulações do examinador no exame físico, como dor à palpação abdominal e a pesquisa da sensibilidade térmica do paciente. Porém, as vivências internas e subjetivas dos pacientes são expressas em seu comportamento não verbal e verbal, passando a ser observáveis e passíveis de descrição por outras pessoas, o que as torna objetivas. Jaspers (1979) relata a ausência de fidedignidade em relatos de muitos pacientes, afirmando que os doentes histéricos não merecem confiança e que a maioria das autodescrições psicopáticas deve ser considerada de modo crítico. Afirma, também, que as pessoas com psicopatologias podem relatar o que se espera deles para serem agradáveis ou quando notam interesse do médico por algum tema específico. No exame psíquico devem ser descritas as alterações presenciadas apenas durante a entrevista, pois é comum que a sintomatologia psiquiátrica mude de um momento para outro. Porém nos casos em que a sintomatologia é intermitente, como em pacientes com alucinações e alterações do nível de consciência, é necessário fazer um exame psíquico mais amplo, com mais de uma observação e com intervalos de horas, ou, às vezes, de dias, entre um e outro exame. Na redação do exame, deve-se descrever as condições em que se realizou o diagnóstico, se foi no domicílio do paciente, em consultório ou ambulatório, no leito do hospital e se havia mais alguém presente. É importante entender que há uma influência mútua entre as funções mentais, e que a subdivisão dessas funções é meramente didática, pois as funções psíquicas são avaliadas de forma praticamente simultânea. Além disso, as funções psíquicas podem alterar-se quantitativa ou qualitativamente. Além do registro das alterações psicopatológicas das funções psíquicas, deve-se descrever, no exame, como estão as funções mentais preservadas. Não devem ser consideradas as possíveis causas das alterações, mesmo que haja hipóteses. Para a avaliação de algumas funções, como a memória, orientação e inteligência, devem ser realizadas perguntas específicas ou, até mesmo, testes. A redação do exame psíquico deve se restringir à descrição dos fenômenos observados, sem o uso de termos técnicos. Agora é a hora de sintetizar tudo o que aprendemos nessa unidade. Vamos lá?! SINTETIZANDOA Psicopatologia é a área interdisciplinar do conhecimento que trata dos transtornos mentais, suas causas, mudanças estruturais, funcionais e formas de manifestação. Historicamente, a área de Psicopatologia se desenvolveu por meio da Medicina, da qual herdou a preocupação com a observação cuidadosa das pessoas com transtornos mentais e de áreas humanistas, como a Filosofia, a Literatura, as artes e a psicanálise. Por isso, concebe o transtorno e o sofrimento mental como expressões da humanidade que permaneceriam desconhecidas se esses fenômenos não se manifestassem. Os conhecimentos da Psicopatologia são essenciais para o trabalho na área de saúde mental, pois dão o fundamento para a prática de psicólogos, psiquiatras, neuropsiquiatras, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e assistentes sociais. Os conceitos de saúde e doença e os critérios para determinar a normalidade e a patologia são complexos, pois tratam de aspectos subjetivos, estatísticos e qualitativos. Sobre a etiopatogenia ou análise do conjunto de causas dos transtornos mentais, há consenso de que é a interrelação entre os fatores biológicos e as características ambientais que originam os transtornos mentais. Os fatores biológicos são relacionados especialmente à herança genética do indivíduo, e o contexto ambiental se relaciona aos fatores de risco e de proteção para o desenvolvimento de transtornos mentais. Na avaliação do paciente com transtornos mentais utilizam-se, dentre outros procedimentos, o psicodiagnóstico, a entrevista e o exame psíquico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATISTA, T. M. O legado filosófico de B. F. Skinner: as influências filosóficas iniciais e a epistemologia da análise experimental do comportamento. 2007. 121 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós- Graduação em Filosofia, Florianópolis, 2007. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/89830/247093.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2021. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. CECCARELLI, P. O sofrimento psíquico na perspectiva da psicopatologia fundamental. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 10, n. 3, p. 471-477, 2005. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/pe/a/FmK5qrc9BB5ZksDdRKFK6pj/?lang=pt>. Acesso em: 30 jun. 2021. 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