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ESTÉTICA (ARQUITETURA) Marina Comerlato Jardim A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer a percepção da realidade relacionada aos conceitos de belo, feio e grotesco. Identificar em que momento da história surgiram essas definições. Descrever a importância de conhecer e perceber a influência desses conceitos para a estética. Introdução Neste capítulo, você vai estudar a percepção em relação aos conceitos de belo, feio e grotesco, identificar o momento em que esses conceitos foram definidos no contexto histórico e reconhecer a importância deles para a estética. Belo, feio e grotesco na percepção da realidade Antes de começarmos a descrever o que é belo ou feio, é importante entender o que é essa percepção e como ela infl uencia o que vemos e entendemos. Percepção é o substantivo feminino — do latim, perceptione — que descreve o ato, efeito ou a capacidade de perceber alguma coisa. Trata-se de um conceito que descreve a situação em que o espírito capta, de forma intuitiva, os estímulos exteriores. Diversos pensadores e filósofos descreveram a percepção de formas distin- tas. Descartes (1596-1650) define a percepção como um ato de inteligência. O conhecimento sensível (isto é, a sensação, percepção, imaginação e memória) causa erro no entendimento e deve ser afastado da percepção; o conhecimento verdadeiro é aquele puramente intelectual, que parte das ideias inerentes e C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 1 05/04/2018 08:09:20 controla, por meio de regras, essas investigações filosóficas, científicas e técnicas. Em outras palavras, Descartes define percepção como algo regrado, sem a participação de sentimentos. Já Leibniz (1646-1716) entende a percepção como um estado transitório, que envolve diversos processos. Para ele, a percepção se diferencia tanto do senso comum, como da concepção de percepção da maior parte dos filósofos: pertence à natureza interna da alma e, portanto, não provém do objeto. O filósofo justifica que a percepção é algo contido em nós, como se fossem códigos, que podem ser por nós decodificados, à medida que são expressos externamente. Essa é uma visão totalmente inovadora do conceito de percepção; poucas pessoas conseguem refletir sobre ela ou, pelo menos, notá-la. O documentário nacional Quanto tempo o tempo tem?, dirigido por Adriana Dutra e Walter Carvalho, trata da nossa percepção em relação ao transcorrer do tempo, seja ele biológico, cronológico ou social. Para ver o trailer do filme, acesse o link abaixo. https://goo.gl/5AS7yq Enfim, por meio da percepção, podemos captar na arte o que é belo e o que é feio. Porém, isso não pode depender de gosto ou de preferências arbi- trárias da nossa subjetividade. Quando o gosto é entendido dessa forma, ele refere-se mais a si mesmo do que ao mundo dentro do qual ele se forma, e esse julgamento estético acaba sendo atribuído a uma preferência em relação ao que o sujeito é e conhece. Esse tipo de pensamento passa a ser a medida absoluta de tudo: aquilo de que se gosta é bom, e aquilo de que não se gosta é ruim. Entretanto, esse tipo de atitude foge do que se busca na estética, nesse período. A ideia da subjetividade na relação com o objeto precisa estar mais intencionada em conhecer e buscar as singularidades de cada objeto, do que na preferência. Nesse sentido, ter um gosto é conseguir julgar algo sem interferência de sentimentos. Se o sujeito exerce a capacidade de se abrir, desenvolve a capacidade de entender e desvendar tudo o que a obra propicia. Gosto é, finalmente, comunicação com a obra para além de todo saber e de toda técnica. O poder de fazer justiça ao objeto estético é a via da universalidade do julgamento do gosto (DUFRENNE, 1953, p. 100). A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco2 C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 2 05/04/2018 08:09:21 Como definir belo, feio e grotesco, em relação à estética? A palavra estética vem do grego aisthésis, que signifi ca percepção, sensação e sensibilidade. Esse é o termo utilizado para a parte da fi losofi a que estuda a beleza, as emoções provocadas por sua percepção e a noção do feio, que vem a ser aquilo que é desprovido de beleza. Na Grécia Antiga, o pensador Platão foi o primeiro a se arriscar na defi nição da beleza. Para ele, o que era belo também era bom, puro e verdadeiro; acreditava em uma beleza absoluta, que poderia se comunicar por meio das lembranças, e isso as tornava belas. O pensamento platônico admite a existência do “belo em si”, independentemente das obras individuais, que, na medida do possível, aproximam-se desse ideal universal. Já para Aristóteles, um de seus seguidores, o belo não está vincu- lado a uma beleza maior, mas à ideia de proporção e de harmonia das partes em relação ao todo. O ideal grego de beleza, que se manteve inalterado até o século XVII, era tudo aquilo que possuía simetria, proporção, equilíbrio e ordem. Esse conceito infl uenciou diversas artes, como a arquitetura, já que as igrejas possuíam o princípio da simetria no projeto (Figura 1). Figura 1. Planta baixa e vista lateral do Partenon, templo grego. Nota-se a simetria da planta baixa e fachada (elevação). Fonte: Procópio e Neres (2014). 3A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 3 05/04/2018 08:09:21 A partir desse século, surgiu o conceito da beleza como algo subjetivo, relativo, de gosto individual e dependente da maneira como cada um percebe o objeto. Aristóteles trouxe à tona a ideia de que cada pessoa carrega uma bagagem e uma cultura, que a fazem ver as coisas de maneiras diferentes. Logo, a beleza seria definida por suas vivências pessoais. O filósofo alemão Georg Hegel, no século XIX, segue evoluindo esse conceito e defende que a noção do que é belo muda de acordo com a época em que se vive, e não é definida em um só conceito. Dessa forma, o que é feio agora pode ser belo amanhã; o que é bonito hoje pode ser feio futuramente. Nos dias de hoje, a partir de uma perspectiva fenomenológica, de percepção do usuário em relação à experiência, consideramos o belo como uma qualidade de certos objetos singulares. Também é beleza a fragilidade de um sentido ao sensível. Entende-se que o objeto é belo porque realiza a sua função singular, carregando um significado que só pode ser percebido na experiência estética. Já não existe mais a ideia de um único valor estético, segundo o qual julgamos todas as obras — cada objeto singular estabelece o seu próprio tipo de beleza. Se isso é belo, o que é o feio? A questão do feio está implícita na proble- mática do belo. Por princípio, o feio não pode ser objeto da arte. No entanto, podemos distinguir dois modos de representação do feio: a representação do assunto “feio” e a forma de representação feia. No primeiro caso, acontece a retratação do que é feio, algo que não era entendido como arte até o século XIX. No segundo caso, o problema do belo e do feio foi deslocado do assunto para o modo de representação. Dessa forma, só haverá obras feias na medida em que forem malfeitas, isto é, que não correspondam plenamente à sua proposta. Em outras palavras, se houver uma obra feia (neste último sentido), não haverá obra de arte. Umberto Eco, autor do livro História da Feiura, explica que a única obra de referência para que ele escrevesse o livro foi uma Estética do Feio, publicada em 1853, pelo alemão Karl Rosenkrantz. É como se existissem objetos feios, mas não um conceito abstrato. Essa ausência teórica não implica de modo algum a ausência do feio na cultura. Em diversos momentos da história, temos abundantes citações e iconografia repugnante. Eco é convincente quando faz história daquilo a que chama de o “feio formal”. Ele estuda isso como sendo os movimentos que se afastam de um ideal clássico de beleza, definido segundo padrões de harmoniae proporcionalidade. Ao longo dos séculos, o “feio” foi sempre justificado por algum motivo — muitas vezes, por razões religiosas, uma vez que o feio também era obra de Deus. O feio também foi usado como uma ferramenta pedagógica e teológica, dos infernos de Dante, passando pela sangria dos mártires cristãos. A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco4 C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 4 05/04/2018 08:09:21 Se o feio e o belo são os opostos, o que é grotesco? O termo deriva da palavra latina la grota, que significa gruta ou pequena caverna. Essa expressão surgiu no século XIV, quando foram encontrados estranhos adereços soterrados em Roma, nos corredores e salões do antigo Palácio Domus Aurea — uma construção imposta pelo Imperador Nero, após o grande incêndio que devastou boa parte da cidade italiana, em 64 d.C. Nesses espaços subterrâneos, reabertos quase mil e quinhentos anos depois, foram descobertas imagens, figuras e estátuas representando pessoas metade humano e metade animal. Da Antiguidade até hoje, o grotesco sempre esteve presente na cultura, mas mantido numa espécie de subclasse da arte, por não estar em harmonia com a chamada “metafísica do belo”, construída até a Idade Média e difundida como estética artística a partir do Renascimento. O “belo artístico” ficou associado à proporção, harmonia, simetria, forma, perfeição, ao bem e ao verdadeiro. A partir do século XV, o grotesco combinou elementos heterogêneos e se desviava da “norma” artística predominante à época, o que estabeleceu, desde então, a marginalidade do estilo, em relação ao clássico. Independentemente da arte, o grotesco passou a ser associado ao cômico, burlesco, violento e ao mau gosto, ou ainda a representações do fabuloso, do macabro, da aberração — além das temáticas inerentes ao corpo, como a nudez, o sangue, o sexo e as suas funções intrínsecas. Seguindo essa definição, resumidamente, pode-se entender que grotesco é tudo aquilo que se utiliza do rebaixamento, que faz uso de situações absurdas e aparece na animalidade, como forma de atingir o riso. Como categoria estética, o grotesco é estudado sempre associado ao diferente, ao feio. Pode ser repugnante, quando utilizado em referência a dejetos humanos, secreções, partes baixas do corpo; ou teratológico, quando ex- plora a monstruosidade e as aberrações. Nas duas formas anteriores, o objetivo é provocar no espectador um choque de percepção, geralmente com intenções sensacionalistas. Nas artes visuais, o grotesco também é usado para designar um tipo de arte decorativa da Antiguidade Clássica, que influenciou em larga escala os artistas do século XVI — por exemplo, os grotescos de Rafael (1515), no Vaticano. Nesses afrescos, predominavam elementos não exequíveis, baseados na imaginação do artista, como animais brotando de plantas e metamorfoses de todo tipo. Além do propósito original (o ornamental), há algumas carac- terísticas determinantes do grotesco, como o aspecto fantasioso, que fosse algo angustiante e sinistro (KAYSER, 2009), tendo como desdobramentos o desproporcional, o monstruoso, o desordenado e o assustador, assim como uma tendência para o caricatural e o ridículo. 5A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 5 05/04/2018 08:09:21 “Todo mundo ama o belo, a ponto de estudos acadêmicos sobre o feio serem raros”, disse o escritor italiano Umberto Eco (2007), em A História da Feiura. “Mal e Feio não existem no plano divino”, justificou, citando Santo Agostinho. O mal e o feio também não faziam parte do belo artístico; foi só no século XIX que o grotesco passou a ser considerado uma categoria estética. Foi o francês Victor Hugo que iniciou a defesa do grotesco como linguagem. Em Do Grotesco e do Sublime, o escritor contrapõe a estética clássica, defendendo o emprego do grotesco para elevar as artes, por meio da harmonização dos opostos que se completam, como o feio e o belo, o mal e o bem, o grotesco e o sublime, etc (HUGO, 1988). “O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste”, argumentou. A partir do romantismo, o grotesco adquire um caráter sinistro; no entanto, com a vinculação do grotesco com a commedia dell’arte, surge o viés para o cômico. Nas manifestações das artes visuais do século XX, o surrealismo é imediatamente associado ao grotesco, tendo origem na literatura; suas manifestações visuais carregam consigo elementos narrativos e metafóricos. A proposta do surrealismo, segundo André Breton, estava relacionada com as teses de Freud. Suas primeiras obras tridimensionais — os “objetos surrealistas” de Dalí, Man Ray e Giacometti, entre outros —propunham-se a “estimular as projeções inconscientes do observador”, a partir de associações distintas entre diferentes objetos, gerando metáforas (KRAUSS, 1998). Existem alguns aspectos no surrealismo que o aproximam à ideia do grotesco, principalmente a pintura de De Chirico, Dalí e Tanguy, além das “fantasias grotescas” de Ensor. Nas obras produzidas em torno do Manifesto Surrealista, de André Breton (em especial a pintura metafísica), “atinge-se o estranhamento […] pela união do heterogêneo”, porém, “pode faltar inteiramente caráter ameaçador, horror, elemento abissal — e com isto conteúdo dos mais essenciais do grotesco” (KAYSER, 2009). O livro Do Grotesco e do Sublime, de Victor Hugo, aborda a questão do grotesco como algo feio e cômico. “[...] eis uma nova forma que se desenvolve na arte. Este tipo é o grotesco. Esta forma é a comédia” (HUGO, 1988, p. 26). A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco6 C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 6 05/04/2018 08:09:21 O belo e o feio na história Aparentemente, beleza e feiura são conceitos com implicações mútuas. Em geral, entende-se feiura como oposto da beleza, tanto que bastaria defi nir a primeira para saber o que seria a outra. No entanto, as várias manifestações do feio no decorrer dos séculos são mais ricas e imprevisíveis do que se pensa habitualmente. Ao longo dos anos, fi lósofos e artistas sempre elaboraram de- fi nições do belo; graças a esses testemunhos, é possível, portanto, reconstruir uma história de ideias estéticas pelos tempos. Já com o feio, foi diferente: na maioria das vezes, ele era definido em opo- sição ao belo, e quase não se encontram tratados mais extensos consagrados ao tema, mas apenas menções superficiais e marginais. Portanto, se uma história da beleza pode contar com uma ampla série de testemunhos teóricos (dos quais se poderá deduzir o gosto de determinada época), uma história da feiura terá de buscar seus próprios documentos nas representações visuais ou verbais de coisas ou pessoas percebidas de alguma forma como “feias”. No entanto, a história da feiura tem algumas características em comum com a história da beleza. Antes de mais nada, a ideia de que os gostos das pessoas comuns correspondem de alguma maneira aos gostos dos artistas de seu tempo não passa de uma suposição. Por exemplo, caso um visitante vindo do espaço entrasse em uma galeria de arte contemporânea, observasse os rostos femininos pintados por Picasso e ouvisse que eles eram considerados belos pelos demais expectadores, poderia ter uma ideia equivocada dos conceitos de beleza. Porém, se esse mesmo visitante participasse de um desfile de moda ou concurso de beleza, poderia corrigir esse equívoco. Para nós, no entanto, não é possível: ao visitar épocas já distantes, não podemos fazer verificações desse tipo nem em relação ao belo, nem em relação ao feio, pois dispomos apenas dos testemunhos artísticos daqueles períodos. A beleza nas suas diversas facetas De Platão ao classicismo, os fi lósofos tentaram fundamentar a objetividade da arte e da beleza. Platão tem a beleza como única ideia que resplandece no mundo. Esse pensamento platônico nos obriga a admitir a existência do “belo em si”, independentemente das obras individuais que devem se aproximar desseideal universal. O classicismo vai mais longe: deduz regras para o fazer artístico a partir do belo ideal, fundado numa estética normativa. Nessa situação, é o objeto que passa a ter qualidades que o tornam mais ou menos agradável, independentemente do sujeito que as percebe. 7A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 7 05/04/2018 08:09:21 Nos séculos XVII e XVIII, do outro lado da polêmica, o pitoresco e o sublime configuram um fenômeno cultural complexo, conhecido como sensi- bilidade. O conflito com a doutrina clássica com essa sensibilidade acarretou uma série de enfoques contraditórios acerca da arte e da estética. Os filósofos empiristas Locke e Hume relativizam a beleza, uma vez que ela não é uma qualidade das coisas, mas só o sentimento na mente do espectador. Por isso, o julgamento de beleza depende tão somente da existência ou não de prazer em nossas cabeças. Esses julgamentos de beleza são verdadeiros em relação a cada opinião, e todos os gostos são igualmente válidos. Essa subjetividade, que depende de cada opinião pessoal, não pode ser discutida de forma racional — já diz o ditado: “Gosto não se discute”. O belo, por conseguinte, não está mais no objeto, mas nas condições de percepção de cada um. No século seguinte, a Crítica do Juízo, de Immanuel Kant (1724-1804), é um divisor de águas entre a velha estética pitagórica, de intenção objetiva, e a estética fundamentada no sujeito e na expressão da sua individualidade. Nesse caso, o autor se debruça sobre os julgamentos estéticos (ou de beleza), e não sobre a experiência estética. O princípio do juízo estético, então, é o sentimento do sujeito, e não o conceito do objeto. Entretanto, esse sentimento é despertado pela presença do objeto. Embora seja um sentimento (e, portanto, subjetivo), há a possibilidade de universalização desse juízo, pois as condições subjetivas da faculdade de julgar são as mesmas em cada ser humano. Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhe- cimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento não pode ser senão subjetivo (KANT, 1993, p. 47-48). Logo, belo é uma qualidade que atribuímos aos objetos para exprimir certo estado da nossa subjetividade. Assim, não há uma ideia de belo, nem pode haver regras para defini-lo. Há objetos belos, modelos exemplares inimitáveis. A partir do século XIX, Hegel introduz o conceito de história ao estudo do belo, e a beleza muda de face e de aspecto com o passar dos tempos. Essa mudança, que se reflete na arte, depende mais da cultura e da visão de mundo vigentes, do que de uma exigência interna do belo. Para Hegel, existe uma diferenciação fundamental entre o belo artístico e o belo natural. O belo da arte está diretamente relacionado com a pureza do espírito, enquanto o belo natural se encontra vinculado à realidade da natureza. Nessa perspectiva, o “belo artístico exclui o belo natural”, já que, para o espírito, é preciso desenvolver A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco8 C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 8 05/04/2018 08:09:21 as suas características, enquanto a natureza já possui todas as determinantes e leis mais rígidas. A estética hegeliana foi desprezada no século XIX, vencida pelo psico- logismo dominante. Na Itália, Francesco de Sanctis preservou a lição de Hegel; o seu sucessor, Benedetto Croce, com as obras Estética come scienza dell’espressione e Linguistica generale (1902), redescobre a visão idealista do belo. Propondo a união de todas as artes, Croce defende todo o ato artístico como expressão. No marxismo, as ideias de Hegel também encontraram defen- sores. Os fundadores do marxismo pouco se entregaram à problemática do belo, mas outros autores contemporâneos, como Lukács e Brecht, dedicaram-se a definir o belo artístico como expressão do homem social, trabalhador e criador. Visando a junção do verdadeiro, do bom e do belo, a estética marxista-leninista vai mais além da obra de arte para buscar um significado do belo. Esse período justifica a obra de arte como um reflexo da consciência social. O belo não é uma realidade absoluta e intocável pelo humano: o belo é o desdobramento do trabalho humano, realizado em comunidade. O surgimento do feio Tanto em relação ao feio quanto ao belo, devemos limitar a trajetória desses dois valores na história a partir da civilização ocidental. Para as civilizações arcaicas e os povos primitivos, temos apenas achados arqueológicos e artísticos, sem nenhum caráter teórico que pudesse informar se eles eram destinados a provocar “[...] deleite estético, terror sacro ou mesmo hilariedade”, como coloca Humberto Eco (2007). Dessa forma, a história do feio começa a aparecer no mundo grego quando vemos estátuas em mármore branco com uma beleza idealizada, como Afrodite e Apolo. No século IV a.C., Policleto produziu uma estátua que priorizava as regras de proporção ideal. Mais tarde, Virtúvio determinou as proporções ideias do corpo humano em frações: o rosto com do tamanho total; a cabeça, ⅛; o comprimento do tórax, ¼, entre outros. O ideário grego de perfeição era representado pela união do belo (kallos, em grego) com o bom (agathos, em grego). Essa definição, no mundo anglo-saxônico, refere-se ao gentleman, uma pessoa de virtude, com aparência digna, estilo e habilidades esportivas, militares e morais. Com isso, todos os seres que não se encaixassem nesses quesitos seriam vistos como feios. A cultura grega não considerava que o mundo todo era belo. Em sua mi- tologia, narrava feiuras e coisas errôneas e, para Platão, a realidade sensível era apenas uma imitação inapropriada da perfeição do mundo das ideias. Em 9A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 9 05/04/2018 08:09:22 contrapartida, a arte via nos deuses o modelo de beleza suprema, e era essa a intenção colocada nas estátuas que representavam o povo do Olimpo. Em contradição, essa relação se inverte no mundo cristão: do ponto de vista teológico-metafísico, todo o Universo é belo, porque é obra divina. Em com- pensação, a expressão da divindade humana, o Cristo, é representada em seu momento de máxima humilhação. Desde os primeiros séculos, a Igreja sempre se referiu ao mundo como belo. Em Gênesis, o primeiro livro da Bíblia (tanto da Bíblia Hebraica como da Cristã), a história contada é que, ao final do sexto dia da criação do mundo, Deus analisou o que tinha feito, e “tudo era muito bom” (1, 31). Além disso, esse mundo criado por Deus levaria em conta número, peso e medida, ou seja, seguindo critérios de proporção e matemática perfeita. Visto como terrível e diabólico, o feio ingressa no mundo cristão com o Apocalipse. Embora o demônio e o Inferno fossem mencionados no Antigo Testamento, é nesses textos que o diabo assume o seu papel, pelas ações que executa e pelos efeitos que gera. No livro Gênesis, essa feiura diabólica é representada pela serpente (Figura 2). Mesmo assim, ainda não assume um papel tão sombrio como na representação da Idade Média. Figura 2. A feiura, segundo o livro Gênesis. O diabo é representado pela serpente. Fonte: Eco (2007). A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco10 C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 10 05/04/2018 08:09:22 Umberto Eco, escritor italiano, trabalha o belo e o feio em dois livros: História da Beleza (2004) e História da Feiura (2007). Essas obras reúnem diversos fatores estéticos no mundo, desde a aparição dos termos, seguindo pelo seu emprego com o passar dos anos. Belo e feio como determinantes da estética A estética é uma especialidade fi losófi ca que visa investigar a essênciada beleza e as bases da arte, procurando compreender as emoções, as ideias e os juízos que são despertados ao se observar uma obra de arte. O senso estético busca levantar questões sobre a natureza da arte, as causas de seu êxito, seus objetivos, seus meios de expressão, sua relação com a esfera emocional de quem a produz. Ele deriva de intenções instigantes acerca do potencial humano de entendimento do conteúdo da produção artística e do signifi cado do prazer estético. As pesquisas realizadas nesse campo buscam atingir a natureza dos juízos e da intuição sobre o belo, compreender como agem os sentimentos na confl uência com os eventos estéticos, assim como analisar os variados estilos artísticos e as modalidades de produção. Da mesma forma, a estética também se ocupa com o feio, que é a ausência do “belo”. O que é estético atrai os sentidos. Logo, tudo o que passa pelas sensações humanas poderia ser considerado “coisa” estética. Entretanto, as teorias acerca da estética com o olhar para o homem como produtor de conhecimento sobre suas experiências sensoriais só acontecem, como é possível perceber hoje, a partir do século XVIII, quando a abordagem da estética é redirecionada para as discussões a partir de uma perspectiva antropocêntrica. Voltada principal- mente para a beleza e a arte, a estética está intimamente ligada à realidade e às pretensões humanas de dominar, moldar, representar, reproduzir, completar, alterar, apropriar-se do mundo como realidade humanizada. Na contempo- raneidade, a estética nos leva para além da técnica, das máquinas e da arte como produto comercial, ou do belo como conceito acessível para poucos, na busca de espaço de reflexão, pensamento, representação e contemplação do mundo. A estética começou sobretudo como uma teoria do belo, passando posteriormente a ser entendida como teoria do gosto, e hoje é predominante- mente identificada com a filosofia da arte. 11A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 11 05/04/2018 08:09:22 O sentimento do belo é agradável aos olhos, ou proporcional; o seu oposto, então, é o feio. No livro História da Feiura, Eco (2007) cita Karl Rosenkrantz, que coloca o feio como o “inferno do belo”, ou um erro que o belo contém em si. O feio tem uma dimensão estética que não se identifica com outras dimensões ou valores negativos (o falso, o mal, o inútil), com os quais costuma ser associado por sua negatividade. Consequentemente, não é sinônimo de não estético. Como todo o senso estético, o feio ocorre em um objeto concreto e na experiência de um sujeito, ao percebê-lo de maneira sensível. A sensibilidade estética que aflora na Grécia Clássica se volta para o império do belo. O feio, para o grego antigo, dificilmente existe e, quando é forçado a representá-lo, o faz de forma idealizada — de alguma maneira, nega-o. Para eles, o feio não é somente uma antítese do belo, mas também do bom em seu sentido moral. Acreditam que o feio é o lado escuro e mau da vida. Com relação à arte, Platão refere-se negativamente ao feio como discórdia ao que ele pensa (aqui se encaixa a teoria do belo). Aristóteles é o primeiro — e por muito tempo o único — a dar confiança ao feio. Na sua concepção, não só as coisas belas, mas também as feias podem ser representadas na arte, desde que de forma artística. Na estética da Idade Média, reaparece o dualismo do ideal e do real, en- tendido como dualismo do divino e do humano. O feio, nesse mundo, é o limite do belo; por esse caminho, ao acolher o feio, a arte mostra o rosto do ser mundano e permite, assim, elevar o divino como o verdadeiramente belo. No Renascimento, com o antropocentrismo, a beleza se desdiviniza. Para a consciência estética ocidental até o século XIX, no paradigma renascentista do belo, a natureza e o homem devem ser representados seguindo uma beleza ideal, ou seja, incompatível com o desarmônico, desproporcional ou disforme (isto é, com o feio). A estética passa a aceitar o feio de forma mais clara após o século XVIII, quando a singularidade da maneira de pensar passa a ser aceita. Essa sub- jetividade, contudo, não relega o objeto a um plano secundário. Anzolch (2009) justifica, em relação ao pensamento de Kant: A relação de intensidade das sensações, atrelada a uma compreensão ainda mais elementar da linguagem artística, procura identificar o correlativo ob- jetivo que, nos objetos, produz tal efeito. Na medida em que deixa de lado esquemas pré-concebidos da beleza, a percepção moderna constrói um juízo muito mais específico e particular (ANZOLCH, 2009, p.29). A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco12 C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 12 05/04/2018 08:09:22 Agradar o senso estético de alguém: quem nunca tentou? De uma forma muito descontraída, Jout Jout aborda essa problemática! Para assistir ao vídeo, acesse o link abaixo ou código ao lado. https://goo.gl/niACcs A associação entre o belo e o bom teve por consequência a associação entre o feio e o mau. Dessa forma, as personagens más das histórias infantis são feias, como as bruxas, enquanto as heroínas são formosas, de corpos esguios e longos cabelos, como as princesas. Satanás é representado em formas monstruosas nas catedrais góticas, e a sua feiura não é por acaso: a intenção é colocar o fiel no caminho da virtude por meio medo. Se toda a arte clássica, desde os gregos, buscava ser bela, o século XX vai resgatar o feio como um instrumento da luta modernista contra o classicismo. A intenção, agora, é quebrar ainda mais os dogmas que bloqueiam o feio e o separam da arte. Com o alargamento do conceito de arte, ela passou a incluir em si o oposto do belo, como forma de colocar em questão os seus próprios fundamentos. Ao abandonar o belo, as vanguardas abriram um leque de novos sentimentos estéticos. O objeto feio pode conter novas características: ser expressivo, trágico, grotesco, perturbador ou inventivo. Além disso, é claro, a sua observação pode causar grande prazer. Umberto Eco resume esse século pela produção do “feio artístico”, arte que foi sendo modificada de acordo com as grandes e ligeiras revoluções culturais. Assim se explicam as obscenidades de Chaucer em pleno mundo cristão, Boccaccio com as Beatrizes e as Lauras renascentistas, ou as estranhas representações humanas em Vesálio e Rembrandt. O maneirismo preferia que algo fosse expressivo ao belo, os românticos descobriram a dimensão sublime do terrível e, depois disso, o romance gótico nos traz as mulheres deformadas de Picasso (Figura 3). Durante mais de 2.000 anos, a arte foi identificada com o belo, mas esse conceito vai mudando, até que, na época contemporânea, é atravessado pela industrialização e a tecnologia, e a estética anterior passa a ser negada. 13A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 13 05/04/2018 08:09:22 Figura 3. As mulheres de Argel, de Pablo Picasso. O dese- nho deformado debate o feio na arte. Fonte: Eco (2007). Se pararmos para pensar, o território do feio é extenso. Na natureza, uma fruta podre ou alguns animais despertam em nós a estética do feio. O mesmo ocorre com o corpo humano, seja por alguns criticarem a magreza excessiva ou a gordura exagerada. Portanto, se compararmos o lugar do feio na reali- dade com aquele ocupado por outras categorias estéticas (especialmente o belo), veremos que preenche uma ampla faixa, tanto na natureza quanto nas concentrações urbanas. O sucesso das assim chamadas vanguardas foi tão retumbante nessa em- preitada, que hoje é quase uma heresia colocar em uma mesma frase o nome de Van Gogh (tão criticado por sua arte “derretida” e que não representava fielmente o homem e a natureza) e a palavra “feio”. Entretanto, parte do que motivou a rejeição dos contemporâneos de Van Gogh à sua arte foi justamente essa inconformidade do pintor holandês para com os padrões estéticos da beleza formal, simétricae proporcional. A pintura de Van Gogh é, formal e intencionalmente, feia. Todavia, nessa recusa da beleza clássica reside o seu maior valor. Por meio da feiura, Van Gogh nos mostrou que existem outros valores possíveis na arte, além da beleza. Muitas vezes, um artista deforma o objeto de sua pintura para que ela possa expressar mais intensamente a emoção que ele está sentindo. Em outras palavras, o artista moderno trocou a beleza pela expressividade, a estranheza que chama a atenção do espectador. Essa atitude criativa teve muitas consequências e desdobramentos culturais. Uma dessas consequências é termos aprendido a gostar do que é feio, isto é, aprendemos a aceitar, em arte, A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco14 C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 14 05/04/2018 08:09:23 aquilo que não é belo ou clássico. Nós aprendemos a buscar outros valores artísticos, para além da beleza (MARIOTTI, 2015). O valor da estética, independentemente do contexto histórico que ela representa, sempre se encontra na dualidade do belo e feio, do bom e do mau. Considerando as últimas teorias, que seguem regendo o modo como o sujeito compreende a arte, é possível que o objeto em questão seja admirado por uns e odiado por outros, simplesmente por uma questão cultural. Hegel segue atual. Qual é o valor estético do belo? E do feio? A obra ilustrada na Figura 3, As mulheres de Argel, de Pablo Picasso, é um exemplo da feiura admitida no século XX, já que não segue os padrões estéticos a que estamos acostumados. Porém, em 2015, tornou-se a obra de arte mais cara arrematada em um leilão. Com o valor US$ 179,3 milhões, o equivalente a aproximadamente R$ 537 milhões, superou o valor da venda de Três estudos de Lucian Freud, do inglês Francis Bacon — a obra mais cara vendida em um leilão até então. Será que é feio mesmo? 15A percepção da realidade como algo belo, feio, grotesco C02_A_percepcao_belo_grotesco.indd 15 05/04/2018 08:09:23 ANZOLCH, R. Geometrias do estilo: genealogia da noção de estilo em arquitetura. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Arquitetura, Porto Alegre: 2009. DUFRENNE, M. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Paris: Presses Universitaires de France, 1953. ECO, H. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007. HUGO, V. Do grotesco e do sublime. 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