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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA JAYNE ORNELAS PEREIRA A PROJEÇÃO TEM COR?: uma discussão sobre a ausência de pessoas negras no Teste de Apercepção Temática, à luz da psicanálise SÃO PAULO 2020 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA JAYNE ORNELAS PEREIRA A PROJEÇÃO TEM COR?: uma discussão sobre a ausência de pessoas negras no Teste de Apercepção Temática, à luz da psicanálise Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para graduação no curso de Psicologia, sob orientação do professor Ricardo Radin Bueno SÃO PAULO 2020 RESUMO Área do conhecimento: 7.07.01.01-6 – História, Teorias e Sistemas em Psicologia Título: A PROJEÇÃO TEM COR?: uma discussão sobre a ausência de pessoas negras no Teste de Apercepção Temática, à luz da psicanálise. Orientanda: Jayne Ornelas Pereira Orientador: Ricardo Radin Bueno No Brasil, vê-se uma gritante disparidade social, econômica, de garantia de direitos entre a realidade de pessoas negras e brancas, construída e mantida historicamente. A compreensão do racismo se configura enquanto um desafio, na medida em que na construção da sociedade brasileira, um de seus mitos fundantes foi o da democracia racial. Ao longo dos anos, a construção teórica do racismo enquanto um fenômeno estrutural representou um avanço na discussão, na medida em que realoca a questão em termos das condições sociais existentes e perpetuadas, retificando a ideia do racismo enquanto uma manifestação individual ou uma questão moral. Assim, compreende-se que o racismo é um operador determinante nas relações sociais, impactando toda a estrutura da sociedade. O objetivo dessa pesquisa foi analisar a construção de sujeito eleito pela psicologia, enquanto o sujeito branco, ao formular suas teorias e práticas, tendo como objeto de análise o Teste de Apercepção Temática, T.A.T. Assim, investigou-se três eixos principais: como o racismo aparece na realidade brasileira; o histórico da psicologia frente ao racismo e a construção do T.A.T., destacando estudos que se propuseram a investigar possíveis efeitos de diferenças etnorraciais e culturais nas respostas e interpretações do teste. Como resultado, constatou-se uma inaptidão por parte da psicologia ao responder as demandas referentes às questões raciais, demonstrando um desconhecimento sobre o tema. Além disso, destacou-se que a questão racial apareceu nos experimentos do T.A.T, de diferentes formas, o que abriu questionamentos sobre as implicações da variável racial no teste. PALAVRAS-CHAVE: psicologia, TAT, racismo SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..............……………………….…………………………………..........….........4 2 MÉTODO ................................………….………………………….............................................11 3 PRIMEIRA PARTE: AINDA EXISTE RACISMO NO BRASIL?………..……...........……..14 3.1 O que é racismo? A concepção estrutural...........……….....……….……...........……..17 3.2 Racismo e produção de conhecimentos ………………………...………......................18 4 SEGUNDA PARTE: QUAL PAPEL DA PSICOLOGIA NO ESTUDO DAS RELAÇÕES RACIAIS? ........................................................................................................................................24 4.1 O sofrimento psíquico produzido pelo racismo………………………...……......……25 4.2 A saúde mental se pintou de branco?.................………………………………....……30 4.3 O racismo enquanto categoria de análise pela psicanálise.……………………….... 34 5 TERCEIRA PARTE: A PROJEÇÃO TEM COR? .................................................................. 37 5.1 O que é projeção………………………………………………………………......……39 5.2 O Teste de Apercepção Temática: sintoma da branquitude ………………………....42 5.3 O racismo enquanto um não-dito na psicologia ………………………………......…58 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.….…….……………………………………………….........……66 7 REFERÊNCIAS..…………………………….………………………………………….........….71 4 1 INTRODUÇÃO O racismo, no Brasil, é parte fundante e estruturante de sua história. Analisar os processos sociais brasileiros implica ter de pensar como se deram as relações raciais no país. Não raro, é dito que um país de dimensões continentais como o Brasil comportaria dentro de si vários países, em termos de diversidade, densidade populacional e, também desigualdades. Tão fundamental é a dimensão racial que determina em qual desses Brasis o sujeito vive e se vive. Em 2017, o Programa para Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) junto ao Instituto de Economia Aplicada (IPEA) e à Fundação João Pinheiro (FPJ), no documento Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, lançaram dados evidenciando a discrepância entre os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) no território nacional. Em 1999, o Brasil era o 79º colocado em termos de desenvolvimento humano no mundo. Contudo, o Brasil branco correspondia à 49º posição, já o Brasil negro, à 108º colocação. Nos anos 2000, o IDH correspondente ao padrão de vida de uma pessoa negra era de 0,530, o de uma pessoa branca: 0,675. Dez anos mais tarde, o índice para uma pessoa negra é de 0,679, e para uma pessoa branca: 0,777. Assim, a população negra tem o índice correspondente ao da década anterior da população branca. Para entender como o racismo opera de maneira tão profunda, se faz necessário entender em que consiste esse fenômeno. Munanga (2003) traz uma primeira definição: (...) O racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça deles é um grupo social com traços culturais, linguísticos, religiosos, etc que ele considera naturalmente inferiores ao qual ele pertence. De outro modo, o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são consequências diretas de suas características físicas ou biológicas (MUNANGA, 2003, p. 8). Contudo, definir o racismo na realidade brasileira é uma tarefa complexa justamente pelo modo como esse fenômeno foi tratado. O Brasil, por anos, foi tido enquanto um modelo do convívio pacífico das diferentes raças, o que é denominado de mito da democracia racial. Como, no Brasil, não houve um processo de institucionalização do racismo, como nos Estados Unidos com as Jim Crown ou na África do Sul, com o Apartheid, por décadas foi aceito que, aqui, racismo não existia. Além disso, a miscigenação foi tomada enquanto uma comprovação disso, negando o aspecto violento desse processo (CARNEIRO, 2018). É preciso considerar que esse fenômeno se configura enquanto um mito fundante da sociedade brasileira e, portanto, persiste até os dias atuais, sufocando discussões sobre as relações raciais. Na área da saúde, em que se encontra a psicologia, foi necessário o contínuo esforço de profissionais da 5 saúde, pesquisadores e instituições para evidenciarem as discrepâncias entre o acesso aos serviços e nos diagnósticos da população negra com relação a branca. Mulheres negras, por exemplo, recebem menos anestesia na hora do parto, por uma crença difundida entre os profissionais de saúde e socialmente, de que seriam naturalmente mais fortes e mais resistentes à dor; em caso de miomas são excessivamente histerectomizadas, bem como esterilizadas em maior proporção em comparação com a população de mulheres brancas. Quando aos homens negros, vigora a crença de que seriam naturalmente maispropensos à criminalidade e ao uso abusivo de drogas (CARNEIRO, 2018). Se faz imprescindível entender de onde partem essas afirmações e questionar esses conhecimentos a fim de garantir o direito desses sujeitos em seus acessos e em constituir uma subjetividade que não seja retalhada pela violência racial. Isso se faz extremamente pertinente no que tange aos saberes da psicologia e de suas abordagens, uma vez que no histórico de formação dessa ciência, vê-se que omissões perante o racismo e práticas que o perpetuavam são a regra, não a exceção. No período pós-abolição da escravidão é visível um ápice de diagnósticos que recluíam pessoas a instituições de reclusão de liberdade, nas quais eram depositados os considerados loucos e desajustados. Não é à toa que um dos maiores hospitais psiquiátricos da história do Brasil, o Juquery, foi construído num período próximo à abolição da escravidão, sendo comum que as pessoas internadas tivessem sido diagnosticadas com base em suas características físicas, como a cor da pele (SANTOS et al, 2012). Também é necessário levar em conta a colocação de Almeida (2019) de que o racismo é, também, uma tecnologia de dominação, foi forjado para tal. Isso significa que é adaptado a novos contextos, mediante a necessidade vigente de impor poder. Com o fim dos chamados hospícios, outras técnicas aparecem como forma de controle do corpo negro na área da psiquiatria e psicologia. “Nesse período [década de 1930], os negros e os mestiços recebiam muito mais diagnósticos de doenças mentais e toxinfecciosas, como a sífilis e o alcoolismo, do que os brancos. E também eram mais acometidos pelas doenças chamadas constitucionais, como a esquizofrenia e a psicose maníaco- depressiva” (SANTOS et al, 2012, p. 169). Mas, para que diagnósticos de tal natureza sejam feitos, de que bases partem os pesquisadores e profissionais que as sustentam? Musatti-Braga e Souza (2018) apontam que no imaginário social é sustentada uma ideia de desumanização do corpo negro, assimilando-o à animalidade, enquanto, a branquitude se colocaria em um polo oposto, o da racionalidade e intelectualização e, portanto, da potência de civilidade e superioridade. Essa fantasia que faria valer o negro ao animal expressa a racialização da subjetividade tanto de brancos como de negros, exaltando qualidades que seriam predominantemente corporais. O negro aparece como se fosse uma máquina de sexo e são destacadas suas capacidades de dançar, suas habilidades manuais, desempenho nos esportes, força física descomunal e a fantasia de que nunca recuariam diante de uma ameaça ainda que isso pudesse implicar o dilaceramento do seu próprio corpo (Faustino, 2015). Ou seja, enquanto entre as mulheres 6 brancas e negras a partilha se daria entre a mulher santa mãezinha e a mulher da vida, entre os homens brancos e negros poderíamos dizer que a partilha se daria entre o corpo racional- intelectual e o corpo-animal (MUSATTI-BRAGA; SOUZA, 2018, p. 142). Para que essas noções sejam legitimadas, contudo, há de se produzir conhecimentos que as sustentem, e a própria ciência reivindicou esse papel. No século XX, a raciologia foi fundada e buscava comprovar o a ligação imaginária, apontada por Munanga (2003), entre aspectos físicos e intelectuais, morais, culturais. Mas ela não nasce sem razão, era necessário sustentar toda a barbárie que foi e ainda seria cometida pela dominação colonial no continente africano e nas Américas. “Por isso, não se pode desprezar a importância dos filósofos e cientistas para a construção do colonialismo, do nazismo e do apartheid. O racismo é, no fim das contas, um sistema de racionalidade [...] não é um problema de ignorância” (ALMEIDA, 2019, p. 71). A psicologia também é diretamente marcada pelo racismo científico, a construção dos primeiros testes psicológicos ocorreu sobre a égide do princípio da eugenia. Pesquisadores, como Francis Galton (1822 – 1911), buscavam usar os conhecimentos psicológicos como meio para alcançar o melhoramento racial humano, algo que apontava unicamente à branquitude europeia (ESPINHA, 2017). Esses são aspectos que marcam a construção do pensamento psicológico até os dias atuais, que repercutem em efeitos concretos na prática da psicologia. Ainda hoje as instituições de ensino de psicologia não consideram as relações raciais enquanto pauta em seus currículos; profissionais da psicologia não se implicam nas discussões sobre relações raciais e, não raro, não creditam importância ao debate, como efeito, há um descompasso de diagnósticos patologizantes entre a população branca e negra (BARCELLOS, 2016; SANTOS, SCHUCMAN, 2015; CONSTANTINO, 1988). Um dos principais desafios que se impõem ao pensar práticas antirracistas dentro da psicologia e suas abordagens é justamente sua configuração enquanto uma ciência eurocêntrica, cujos referenciais apontam para uma única visão de mundo, a da branquitude. O entendimento da branquitude enquanto referencial universal é de difícil desconstrução, na medida em quem ocorreu dessa forma por séculos. Como consequência, apenas um grupo legisla sobre o que será produzido, como será produzido, sobre o que será produzido o conhecimento na psicologia, o que é ou não relevante (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2019)1. Musatti-braga (2015) argumenta que uma das formas de negação do racismo recorrentes na psicologia é a desracialização dos objetos de estudo da psicologia, colocando-a como uma ciência neutra, apartada da realidade social, que reduz a compreensão do racismo. Isso se expressa em exemplos como: “o inconsciente não tem cor”, “o psiquismo não tem cor”, muito semelhante aos 1 Esses pontos são aprofundados na primeira e segunda parte desde trabalho, nos capítulos: “3.Ainda existe racismo no Brasil?” e “4.Qual o papel da psicologia no estudo das relações raciais?”. 7 argumentos colocados por Almeida (2019) como “somos todos humanos”, que acabam por negar as diferenças impostas aos sujeitos em função da variável racial. É evidente que ao discutir racismo, e sua interface com a psicologia e a psicanálise, não se trata de essencializar o psiquismo ou o inconsciente atribuindo-lhe uma etnia ou raça específica, mas de ressaltar que as experiências dos sujeitos são marcadas pela raça, o que tem efeitos em sua constituição subjetiva, seus sintomas seus modos de se relacionar com o outro. Vê-se, relatos de pessoas que contam na infância terem colocam pregadores em seus narizes para que se afinem, ou tomado banho com alvejante para clarear a pele, ou ainda sofrido queimaduras ao alisar o cabelo (SCHUCMAN; 2018, SOUZA; 1983). Como pode a psicologia negar o impacto do racismo na subjetividade? Uma afirmação dessa natureza, “a projeção não tem cor”, proferida por um professor da área de testes, em resposta à pergunta: por que apenas pessoas brancas aparecem no T.A.T.?, foi um disparador que norteou este trabalho. A pergunta, nesta pesquisa é, portanto, se a variável racial influenciaria ou não no Teste de Apercepção Temática – T.A.T., uma vez que são retratadas apenas pessoas brancas nas pranchas do teste. Criado em 1935, por Henry A. Murray e Christiana D. Morgan, o teste, como todo teste projetivo, tem o intuito de retratar situações humanas universais, mas ambíguas, sem estímulos definidos, de modo a não influenciar o sujeito em suas respostas e permitindo a projeção dos conteúdos subjetivos nas cenas retratadas (PARADA; BARBIERI, 2017). Ao longo dos anos, contudo, a aplicabilidade universal de diversos testes, incluindo o T.A.T, foi sendo questionada. Parada e Barbieri (2017) apontam que embora os testes projetivos tenham como característica fundamental cenas e imagens ambíguas, o T.A.T. tem a particularidade de refletir imagens e cenas que retratam a concepção de sociedade, homem, mulher, criança e família do estadunidense daquela época, trazendotambém, uma visão de mundo bem particular àquele contexto. Isto pois as imagens que serviram como base para as pranchas foram retiradas de obras e peças artísticas que circulavam naquela sociedade. Assim, vê-se uma concepção de mulher inscrita nos afazeres e responsabilidades domésticas, uma noção de homem voltada ao trabalho e tido enquanto provedor, dentre outras marcadores sociais particulares que remetem a constituição de uma subjetividade referente àquela conjuntura2. A importância de ressaltar essas características se dá no fato de que as subjetividades de diferentes culturas, povos, raças e etnias não se constroem a partir desses parâmetros. A mulher considerada “do lar” e o homem “potente e provedor” são, em última instância, sujeitos brancos. Qual seria a justificativa para que ainda hoje [...] continuem sendo produzidos estudos que abordem os homens e mulheres brancos com uma condição financeira confortável tratados sob a rubrica genérica de ‘sujeitos’, ‘as mulheres’, ou ‘os homens’, e isso não sendo explicitamente mencionado explicitamente nos artigos e muitas vezes nem sendo mesmo percebido. Que se queira produzir pesquisa sobre elas e eles, mulheres brancas e homens 2 Essas noções são ampliadas no item “5.2 O Teste de Apercepção Temática: sintoma da branquitude”. 8 brancos de classe média, média alta, não configura problema algum: sabemos que a presença do dinheiro ou privilégios raciais não é, de maneira alguma, prevenção ao sofrimento psíquico. Mas que não se cometa o abuso teórico de nomear essa minoria absoluta como se representasse o conjunto das mulheres ou dos homens brasileiros de hoje (MUSATTI- BRAGA; SOUZA, 2018, p. 132, grifo nosso). É justamente sobre esse aspecto da afirmação de Musatti-Braga e Souza (2018) que se pretendeu nortear a discussão aqui presente. Não se trata de desqualificar o instrumento ou de questionar sua aplicabilidade, mas de ressaltar possíveis equívocos ocorridos ao longo de sua história, uma vez que partindo de uma única concepção de ser humano se torna quase inviável compreender demais construções subjetivas. “Há a necessidade de padronizar e validar testes de personalidade para minorias étnicas, raciais e linguísticas [...]” (CONSTANTINO et al, 1988, p. 671), o autor sustenta essa afirmação ao se deparar com a constatação de que as aplicações e interpretações de testes, como o T.A.T e o Tell Me a Story (TEMAS), têm patologizado os protocolos e os desempenhos verbais de grupos não brancos. Assim, há indícios de uma insensibilidade e não adaptação por parte do material a diferenças culturais e étnico-raciais. Parada e Barbieri (2017) ressaltam que, por esses motivos, o T.A.T. recebeu diferentes releituras e variações ao redor do globo, contudo, essa discussão parece longínqua quando colocada na realidade brasileira. Experimentos de modificação do T.A.T. colocando personagens negras são encontrados nos Estados Unidos, em especial cinco pesquisadores se destacaram pela produção e contradição que chegaram entre si quanto aos resultados, Thompson (1949), Cook (1953), Light (1955) e Bailey e Green (1977). No capítulo 5.2 “O Teste de Apercepção Temática: sintoma da branquitude”, é feita uma análise detalhada acerca desses experimentos ressaltando, principalmente, que alguns autores desconsideram variáveis importantes das relações raciais. Dentre elas, o processo de embranquecimento pelo qual a população afro-americana foi submetida, bem como possíveis efeitos de desenvolver um experimento acerca da variável racial em meio ao regime de segregação racial3. Contudo, faz-se a ressalva de que esses experimentos também devem ser olhados como concernentes a um período histórico e a uma geografia específica. O modo como o racismo se estrutura varia de acordo com os processos históricos e sociais do local no qual está inserido. Assim, há particularidades concernentes a cada país e o modo como o racismo se estruturou. Essa 3 Não foram achados os estados específicos nos quais os autores desenvolveram os testes, contudo, depreende-se que o regime de segregação racial tenha afetado a dinâmica racial do país como um todo, deixando efeitos até a atualidade. Diangelo (2018) faz um levantamento entre 2016 – 2017 sobre o controle de instituições por sujeitos brancos nos Estados Unidos e chega ao seguinte: “Os dez americanos mais ricos: 100% brancos (...), congresso norte-americano: 90% brancos, governadores norte-americanos: 96% brancos, conselheiros militares de primeiro escalão: 100% brancos, bancada conservadora republicana na câmara dos deputados: 99% brancos, atual gabinete presidencial norte-americano: 91% brancos, os que decidem quais programas de televisão vemos: 90% brancos, os que decidem quais livros lemos: 90% brancos, os que decidem que música será produzida: 95% brancos, os que dirigiram os filmes mais rentáveis de todos os tempos no mundo: 95% brancos, professores: 85% brancos, professores universitários em regime de dedicação exclusiva: 84% brancos (...) (DIANGELO, 2018, p.55). 9 diferenciação se faz importante, uma vez que as condições de produção de subjetividade se tornam diferentes, as problemáticas a serem enfrentadas também. Por exemplo, no Brasil, tem-se o que é chamado de preconceito de marca, através do fenótipo, enquanto nos Estados Unidos é de origem, relativa à ascendência do sujeito (NOGUEIRA, 2006)4. É fundamental discutir racismo e branquitude a partir de suas particularidades e com profundidade, uma vez que a banalização dessas temáticas também são violências, na medida em que endossam uma visão de que essa temática não seria relevante, corroborando com a não adoção de medidas antirracistas, como evidencia Schucman (2015) na fala de seus entrevistados: No Brasil a gente tem uma questão de mistura de raças que acaba perdendo o que é a raça e o que define quem pertence a cada raça. Então, acho que fica mais relativizado se a raça interfere ou não. Por que o que é raça no Brasil quando tem tantas misturas? [...] pensando numa sociedade com relativamente menos preconceito em função da mistura que acontece aqui (entrevista 14, estudante de doutorado, mulher branca, 25 anos) (SCHUCMAN, 2015, p. 129). Bento (2002) define essa atitude de esquiva com relação às temáticas raciais como um pacto estabelecido narcisicamente entre a branquitude. Assim, ao não pontuar o racismo, o grupo branco não tem de se colocar como opressor, não tem de repensar uma estrutura de dominação, muito menos reconhecer uma história de extermínio, tampouco propor medidas de reparação. Essa dimensão é imprescindível pois a classe de psicólogos é composta, majoritariamente, por profissionais brancos5. Filho (2005) coloca que é comum que psicanalistas digam nunca ter atendido uma pessoa negra e que isso não se configura enquanto um questionamento. Assim, os espaços de produção de conhecimento sobre sofrimento psíquico estão, hegemonicamente, sob o julgo de pessoas brancas. A problemática que se desdobra é a de que as bases curriculares são, invariavelmente, eurocêntricas e as discussões sobre relações raciais quando não inexistentes, são superficiais e banalizadas nos espaços de formação, perpetuando uma formação que gera profissionais inaptos frente às demandas raciais (BARCELLOS, 2016; ESPINHA, 2017). Como apontam Bailey e Green (1977) é possível que, com os avanços das pautas raciais, os resultados frente a modificação do teste se alterassem ao longo do tempo. Contudo, as modificações mais recentes do T.A.T datam da década de 1970. Quanto não foi modificado nas dinâmicas das relações raciais e poderia influenciar as respostas ao teste nos últimos 40 anos? Como as condições de criação de subjetividades frente ao racismo e a branquitude foram ressignificadas nesse período? O quão disposta estaria a psicologia a rever sua epistemologia e práticas, tão consolidadas,a fim de 4 As implicações dessa diferenciação, bem como maior aprofundamento constam no capítulo “5.2 O TAT: sintoma da branquitude”. 5 Conselho Federal de Psicologia e DIEESE, 2016 10 responder uma demanda urgente como a das relações raciais? Essas são algumas das perguntas que buscou-se responder ao longo deste trabalho. 11 2 MÉTODO A metodologia da pesquisa se baseia em análise documental e levantamento bibliográfico, por meio da análise de três eixos temáticos principais: 1. O racismo na realidade brasileira; 2. O histórico das respostas e omissões da psicologia frente ao racismo; 3. A construção do Teste de Apercepção Temática, bem como suas variações ao longo de sua história em função da variável étnico-racial e cultura. A articulação entre as temáticas das relações raciais e psicologia é feita através do referencial teórico da psicanálise, em vista da preferência pessoal da autora e pela produção significativa no que tange às relações raciais nesta abordagem, bem como por permitir examinar o fenômeno do racismo através de seu viés discursivo (KILOMBA, 2019), o que é fundamental ao desenvolvimento dessa pesquisa. Os autores (as) e obras utilizados como fonte, escolhidos através de levantamento bibliográfico, são autores referenciados no campo das relações raciais, produtores de vasta bibliografia sobre a temática, além de serem referência pelo movimento negro e/ou para psicólogos (as) antirracistas na atualidade (SANTOS, SCHUCMAN, 2015; MEIRELES et al, 2019). Assim, são autores e autoras que pesquisam a complexa construção das relações raciais, no Brasil e internacionalmente, tomando-a como fundamental na compreensão da realidade brasileira. Portanto, buscou-se referências que discutam o tema de maneira ética e aprofundada, tendo em vista a banalização e negligência com as quais o racismo é tratado no Brasil (CFP, 2017). A pesquisa adota uma análise qualitativa, o que de acordo com Michel (2009), tem como finalidade compreender, para determinado problema ou situação, o porquê, como, quais as implicações, quais as explicações e quais encaminhamentos possíveis. Nessa perspectiva, rejeita-se a suposta neutralidade do conhecimento, considerando uma relação dinâmica, particular, contextual e temporal entre o pesquisador e o objeto de estudo. O pesquisador participa, compreende e interpreta os fenômenos, o que, nesta pesquisa, é indispensável para a compreensão do fenômeno estudado. A pesquisa em psicanálise, da mesma forma, compreende uma indissociação entre o pesquisador e o objeto, uma vez que o foco de estudo da psicanálise se configura na relação que se estabelece entre os inconscientes do psicanalista e do analisando, segundo os princípios da associação livre e da escuta flutuante (BOTELLA; BOTELLA, 2003). Vale ressaltar um ponto importante, a pesquisa em psicanálise não se restringe à situação analítica tradicional, na clínica particular, uma vez que esta se constitui enquanto ciência e método que não está apartada do mundo social, pelo contrário, fornece subsídios para compreendê-lo (FONAGY, 2001). A clínica extensa, ou seja, o 12 setting de análise fora do consultório divã-poltrona, também compreende um método de investigação e intervenção, até mesmo em sentido mais amplo, a níveis socioculturais (HERMANN; LOWENKRON, 2004). A psicanálise extramuros ou em extensão diz respeito a uma abordagem – por via da ética e das concepções da psicanálise – de problemáticas que envolvem uma prática psicanalítica que aborda o sujeito enredado nos fenômenos sociais e políticos, e não estritamente ligado à situação do tratamento psicanalítico [...] tipo de pesquisa da Psicanálise – iniciado por Freud e por ele nomeado psicanálise aplicada (ROSA, 2004, p. 331). Violante (2000) ressalta uma das possibilidades desse tipo de pesquisa em psicanálise, onde o material de estudo é o texto. Pesquisa “[...] que se realiza sobre livros, através da leitura” (p.110), método que foi adotado neste trabalho. Isso é possível ao adotar uma leitura de modo analítico, servindo-se do instrumental técnico da teoria psicanalítica, lendo o texto enquanto categoria de análise e voltando “a atenção ao detalhe dissoante, a reconstrução do texto, a temporalidade própria instaurada pela psicanálise, com seus conceitos-chave de repetição, de retorno do reprimido, de a porteriori [...]” (MEZAN, 1993, p. 53). Rosa (2016), em diálogo com Laplanche e Pontalis, sublinha que a psicanálise incide sobre diversas manifestações humanas, e que o discurso pode ser colhido e saber pode ser produzido sobre ele, a despeito da via pela qual ele for veiculado, sendo portanto, analisável na ausência da associação livre, mesmo em documentos e arquivos. Rosa (2016) define o método psicanalítico enquanto possível de [...]Diferenciar os enunciados das enunciações presentes na cena social sobre os referentes fundamentais da organização social e psíquica; elucidar o imaginário dos grupos sociais, que atribuem lugares sociais rígidos, e muitas vezes preconceituosos ao sujeito (bandido, doente etc.); analisar as ilusões contemporâneas sobre a organização social, atualmente regidas pelo discurso neoliberal; incluir na análise sociopolítica a escuta do não dito do discurso dos sujeitos e a força de determinação dos não ditos dos enunciados sociais (ROSA, p. 96, 2016). Assim, busca-se analisar o discurso adotado pela psicologia no que tange à temática racial, o que está impresso nas pesquisas, nos programas curriculares, nas explicações proferidas, carregando nas entrelinhas os sujeitos produtores da psicologia. [...] o discurso pode ser considerado como correspondente àquilo que possibilita o laço social e que se dá dentro do campo da linguagem. Afinal, sendo o inconsciente estruturado como uma linguagem, tal como Lacan conceitua em 1953, podemos dizer que a consequência é que o laço social também o seria. Assim, a lógica do significante ordena tanto o sujeito como as relações entre sujeitos, ou seja, o social. (ROSA; ESTÊVÃO; BRAGA, p.363, 2017). Uma vez que o que está sendo colocado em análise é, em última instância, o modo como determinado conhecimento foi produzido (a construção do Teste de Apercepção Temática), quem discursa sobre não é um sujeito, mas instituições nas quais esse conhecimento é difundido e alicerçado, as instituições de ensino de psicologia. O discurso da instituição de ensino é, justamente, 13 sua epistemologia, seu plano curricular, as pesquisas veiculadas por ela, o que se faz objeto de estudo da psicanálise, à medida em que, o inconsciente está na palavra, está no que se diz (JORGE, 2005). O método da psicanálise é interpretativo. Decifrar, traduzir, interpretar é algo que sempre foi feito, mas Freud inventou um método de interpretação próprio, assentado na livre associação do analisando, só possível pela via da transmissão e mediante a escuta flutuante (livremente) do analista [...] Na universidade, em particular, a aposta encosta-se, no limite, na transposição desse método interpretativo para o domínio da leitura de textos (AGUIAR, 2006, p. 114). Dessa forma, objetiva-se fazer uma leitura do que a psicologia diz e deixa de dizer sobre as questões raciais, investigando historicamente as conjunturas produtoras desse discurso. A partir disso, é possível hipotetizar sobre os mecanismos existentes para que a ausência da temática racial ainda seja uma realidade na psicologia. Sob a visão psicanalítica, é a partir da fala que se produzem condições para a direção das intervenções do tratamento, assim, a abordagem adotada é a de, justamente, trazer à tona as entrelinhas, uma vez que só é possível caminhar rumo à solução de um problema tendo consciência sobre a existência dele. Portanto, nomear ereconhecer o racismo enquanto uma problemática na psicologia é o primeiro passo para construir caminhos que possibilitem superá-lo. 14 3 AINDA EXISTE RACISMO NO BRASIL? A história da construção do Brasil se emaranha à história das hierarquias e opressões étnico- raciais que aqui foram introduzidas e se perpetuam. Diferentemente de outras nações do mundo, nas quais, um regime de segregação racial foi forjado enquanto lei, o Brasil não teve oficialmente esse processo. Contudo, as disparidades em acesso a direitos entre brancos e negros (pretos e pardos, segundo classificação adotada pelo IBGE), evidenciam a categoria raça enquanto fundamental para entender as desigualdades no país (SANTOS E SCHUCMAN, 2015; CARNEIRO, 2018). O conceito de “raça” foi construído histórica, social e contextualmente. “Por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder e decisão, de tal sorte que se trata de um conceito relacional e histórico” (ALMEIDA, 2019, p.24). Os primeiros usos dessa categoria datam do século XVI, cujo sentido de hierarquização entre pessoas passa a ser efetivo no campo das relações sociais, principalmente no continente europeu, com a constante disputa por territórios entre os diferentes povos. A partir de então, no século XVIII, em face da crescente exploração desenvolvida pela Europa em territórios africanos, a cor da pele se consolida enquanto um critério para compor a hierarquização racial cientificamente e, também, no imaginário social. Até então, havia predominantemente outros parâmetros para uma divisão hierárquica entre os indivíduos, tais como origem, crenças religiosas e práticas culturais (GROSFOGUEL, 2016). [...] A expansão econômica mercantilista e a descoberta do novo mundo forjaram a base material a partir da qual a cultura renascentista iria refletir sobre a unidade e a multiplicidade da existência humana. Se antes desse período ser humano relacionava-se ao pertencimento a uma comunidade política ou religiosa, o contexto da expansão comercial burguesa e da cultura renascentista abriu as portas para a construção do moderno ideário filosófico que mais tarde transformaria o europeu no homem universal (atentar ao gênero é importante) e todos os povos e culturas não condizentes com os sistemas culturais europeus em menos evoluídas (ALMEIDA, 2019, p. 24). O contexto intelectual e cultural positivista inaugurado no século XIX promove à investigação científica as diferenças humanas, com base na morfologia, transformando o “homem” em objeto de estudo biológico, além de objeto filosófico. Concretiza-se nesse período as ideias de determinismo biológico e determinismo geográfico, ou seja, as noções de que as características físicas e ambientais, respectivamente, seriam decisórias nos traços morais, intelectuais e de personalidade. No século XX, à cor da pele somam-se outros critérios morfológicos, como a forma do crânio, do nariz e dos lábios para a definição de uma raça. A partir disso, a ciência ocidental se propõe a legitimar e justificar o sistema de dominação racial, culminando na criação de uma pseudociência, a raciologia, que fundamentaria a opressão racial ao decorrer do século. Ao longo dos anos, essas ideias se difundiram e se estigmatizam no campo social, sendo usadas como justificativa para barbáries, como a escravização de povos africanos, em diversos lugares no mundo, como ocorreu no Brasil, por 15 mais de três séculos. Assim, o conceito de raça se mostra enquanto uma construção sociológica, presente na realidade social e política, a fim de justificar a dominação e exclusão racial (MUNANGA, 2003). Desta forma, o racismo é mais especificamente entendido como uma construção ideológica, que começa a se esboçar a partir do século XVI com a sistematização de ideias e valores construídos pela civilização europeia, quando estes entram em contato com a diversidade humana nos diferentes continentes, e se consolida com as teorias científicas em torno do conceito de raça no século XIX. (SCHUCMAN, 2012, p.33). Particularmente no Brasil, essa dominação racial, institucionalizada na forma de escravização dos negros, foi sistematicamente mascarada por um constructo social e teórico, o mito da democracia racial. Casa grande e senzala (1980), obra de Gilberto Freyre, é um exemplo icônico da fundamentação e disseminação da falsa harmonia e convivência pacífica entre as raças no Brasil. Em seu escrito, o autor pauta que a miscigenação deletaria as contradições e a distância social entre brancos e não-brancos, negando a existência do racismo. Assim, essa concepção de relações raciais forneceu à elite branca os subsídios necessários para perpetuar seus privilégios, atribuindo as diferenças econômicas e sociais a um insucesso dos próprios mestiços (BENTO, 2014a). Bento (2014a) ressalta o modo como a elite branca brasileira se organizou no período pós- abolição num processo de embranquecimento, extermínio e segregação da população negra. A autora relembra o fato de 3,99 milhões de imigrantes europeus terem sido trazidos como mão de obra substitutiva à escravizada em apenas três décadas, número próximo aos 4 milhões de africanos trazidos em três séculos. Outrossim, um dos maiores manicômios que o Brasil teve, o Juquery, foi construído exatamente nesse período histórico, sendo as internas majoritariamente mulheres negras, cujos laudos de suas supostas patologias eram justificados com base em suas características físicas, os chamados traços negroides: lábios e nariz grossos, cor de pele escura, cabelo crespo. A imigração massiva de europeus, com a consequente não inserção da população negra na economia, e o confinamento a espaços como manicômios, cujas taxas de mortalidade estavam em um intervalo de 80 a 90%, oferecem um retrato de projeto de Brasil que se consolidou e se reformulou ao longo das décadas (BENTO, 2014a). Carneiro (2018) retoma o período das décadas de 1970 e 1980, no qual o Governo do Estado de São Paulo, refletindo os ideais dos demais governantes dos estados do país, começa a discutir as implicações do crescimento da população negra, a qual, segundo as projeções, poderia exceder numericamente a população branca, tendo maior poder de decisão nas urnas. Consequentemente, o objetivo, se tornou: coibir o crescimento da população negra. Como estratégia para alcançar esse fim, foi proposto um projeto de esterilização massiva de mulheres pretas e pardas. Nascimento (2016) constrói em sua obra, O genocídio do negro brasileiro, um percurso histórico de fenômenos visando o extermínio das pessoas, história e cultura negra. Dentre eles, o autor 16 destaca como a exploração sexual de mulheres negras – no discurso social entendido enquanto uma forma de conciliação das raças, fomentando o mito da democracia racial – foi e continua sendo um mecanismo de opressão perpetuado pelo homem branco europeu e continuada pela elite branca brasileira. O Brasil, até a atualidade, se constitui enquanto um polo de turismo sexual, no qual homens brancos estrangeiros, guiados pelo imaginário construído historicamente sobre a mulher negra brasileira, buscam por mulheres que se prostituam a baixos preços, as quais, majoritariamente, encontram-se em extrema vulnerabilidade econômica e social (CARNEIRO, 2018; PISCITELLI, 2010). O mito da “democracia racial” enfatiza a popularidade da mulata como “prova” de abertura e saúde das relações raciais no Brasil. No entanto, sua posição na sociedade mostra que o fato social exprime-se corretamente de acordo com o ditado popular [Branca para casar/Negra para trabalhar/Mulata para fornicar]. [...] Já que a existência da mulata significa o “produto” do prévio estupro da mulher africana, a implicação está em que após a brutal violação, a mulata tornou-se só o objeto de fornicação, enquantoa mulher negra continuou relegada à sua função original, ou seja, o trabalho compulsório. Exploração econômica e lucro definem, ainda outra vez, seu papel social (NASCIMENTO, 2016, p. 75). Além da violência sexual, diversos outros processos sistêmicos materializam a opressão e hierarquização racial. Na atualidade, um dos principais mecanismos do genocídio da população negra, como nomeia Nascimento (2016), é a violência de Estado. Esse fato se concretiza, por exemplo, no relatório apresentado pelo Atlas da Violência 2019, cujo levantamento de dados mostra que 75,5% das vítimas de homicídio foram sujeitos negros. Aos 21 anos, tem-se a idade mais propensa para um jovem ser vítima de homicídio no Brasil, nessa faixa etária, jovens pretos e pardos tem 147% mais chances de serem vítimas de homicídio que um jovem não-negro (IPEA, 2017). Da classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação da “mancha negra”; da operatividade do “sincretismo” religioso à abolição legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão censitária – manipulando todos esses métodos e recursos – a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro (NASCIMENTO, 2016 p.111). Assim, evidencia-se que as questões concernentes à temática das relações raciais são múltiplas, de extrema complexidade e urgem de atenção. Discussões e pesquisas acerca das relações étnico-raciais são imprescindíveis na realidade brasileira, considerando as desigualdades sociais que ainda perpetuam uma discrepância desmedida na realidade de pessoas brancas e não-brancas. [...] o racismo é concebido como decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas, e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. Aqui, considera-se que comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra, e não exceção. Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo pensar a forma com que se constituem as relações políticas e econômicas. (ALMEIDA, 2018a, p.83). 17 3.1 O que é racismo? Diversas são as concepções sobre o que é o racismo e quais seus impactos nos sujeitos racialmente oprimidos e opressores. Três noções básicas, desenvolvidas historicamente, sobre a conceituação do racismo se fazem necessárias na compreensão desse fenômeno: racismo individual, racismo institucional e racismo estrutural. O racismo individual é compreendido enquanto uma disfunção social, derivado de um caráter ético ou psicológico de um indivíduo ou grupo. Assim, considera-se a natureza psicológica do fenômeno em detrimento da dimensão política. Sob essa visão, não há sociedades racistas, e sim, pessoas ou grupos agindo isoladamente. O racismo se manifestaria, então, na discriminação direta e a providência adequada seria a sanção penal ou civil. É uma concepção que insiste em flutuar sobre uma fraseologia moralista inconsequente – “racismo é errado”, “somos todos humanos”, “como se pode ser racista em pleno século XXI?”, “tenho amigos negros”, etc. – e uma obsessão pela legalidade. No final das contas, quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados “homens de bem” (ALMEIDA, 2019, p.37) O racismo institucional aborda o racismo enquanto fruto do funcionamento das instituições, as quais, atuariam, com base no exercício de seu poder, de modo a categorizar os indivíduos e conferir privilégios ou prejuízos de acordo com a raça. As instituições são entendidas enquanto sistemas que conferem orientações e normalidade às ações sociais, sendo assim, o que provém os significados que estruturam a sociedade (KILOMBA, 2019). As instituições são lógicas [...] significam a regulação de uma atividade humana[...]. Um exemplo de uma instituição: a instituição da linguagem. Ela caberia nesta definição que formatamos quando a pensamos em termos gramaticais. A gramática não é nada mais que um conjunto de leis, de normas que regem a combinatória de elementos fônicos, de unidades de significação na linguagem. [...]Temos também a instituição da religião[...], as instituições de justiça, as instituições da administração da força, e assim por diante. Em um plano formal, uma sociedade não é mais que isso: um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra e a relação com os homens (BAREMBLITT, 1992, p. 25,26 e 27). Na concepção institucional, o racismo não é produto de ações isoladas, mas do poder desigual destinado aos grupos dominantes nas instituições, o que resulta na imposição de interesses econômicos e políticos aos grupos racialmente dominados. Além disso, a desigualdade é mantida pelo estabelecimento de mecanismos de sua manutenção, como parâmetros de discriminação, de tal maneira que, os padrões estéticos, práticas culturais e de poder de um grupo se faça horizonte a ser alcançado pelo resto da sociedade. Outro fato crucial no funcionamento das instituições é que as sociedades, via de regra, chegam a conflitos. Assim, a fim de evitar o colapso, o grupo dominante 18 necessita controlar a instituição não somente pelo uso da força, mas também, pela produção de consenso acerca de sua dominação (KILOMBA, 2019; ALMEIDA, 2019). Destarte, as instituições se apropriam das demandas dos grupos subalternos e os confere concessões sem, contudo, alterar a posição do grupo hegemônico, como por exemplo, o estabelecimento de ações afirmativas, o que aumenta a representatividade de um grupo específico, sem que o grupo dominante deixe de exercer seu poder sobre os demais. Em suma, “[...] as instituições são conflituosas e sua coesão depende da capacidade de absorver conflitos, tanto ideológica quanto repressivamente, [...] a instituição precisa se reformar para se adaptar à dinâmica dos conflitos sociais, o que implica alterar suas próprias regras, padrões e mecanismos de intervenção.” (ALMEIDA, 2019, p. 42). Assim, a concepção institucional do racismo constitui um avanço na compreensão do fenômeno na medida em que ultrapassa o horizonte individual e coloca o poder de um grupo sobre o outro enquanto central para a manutenção das desigualdades raciais. Contudo, a visão institucional deixa questões em aberto, [...] As instituições reproduzem as condições para o estabelecimento e a manutenção da ordem social. Desse modo, se é possível falar de um racismo institucional, significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social que ela visa resguardar. Assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente – com todos os conflitos que lhe são inerentes –, o racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura. As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista (ALMEIDA, 2019, p. 47). Assim, a concepção estrutural considera que os processos institucionais e individuais derivam de uma sociedade na qual o racismo é regra, não exceção. Dessa forma, a reprodução sistêmica de práticas racistas se encontra nas diversas organizações políticas, econômicas, jurídicas da sociedade. Portanto,o racismo enquanto processo histórico e político produz condições para que grupos raciais sejam discriminados sistematicamente, levando a compreensão de que, embora os sujeitos que cometem atos racistas não devam ser desresponsabilizados, a responsabilização jurídica não é suficiente para que a sociedade cesse a produção de desigualdade racial. “[...] Se o racismo é inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas” (ALMEIDA, 2019, p.48). 3.2 Racismo e produção de conhecimento A compreensão do racismo enquanto uma questão unicamente do grupo oprimido passou a ser tensionada e desconstruída, uma vez que a postura até então mantida segundo a qual “o foco da 19 discussão é o negro, e há um silêncio sobre o branco” não abarcava a dimensão relacional desse fenômeno (BENTO, 2014a). Assim, o que se observa é uma relação dialógica: por um lado, a estigmatização de um grupo como perdedor, e a omissão diante da violência que o atinge; por outro, um silêncio suspeito em torno do grupo que pratica a violência racial e dela se beneficia, concreta ou simbolicamente, [...] um modelo de isenção da sociedade branca e, por conseguinte, de culpabilização da população negra [...]. O silêncio, a omissão, a distorção do lugar do branco na situação das desigualdades raciais no Brasil têm um forte componente narcísico, de autopreservação, porque vem acompanhado de um pesado investimento da colocação desse grupo como referência da condição humana” (BENTO, 2014a, p. 30). Passou-se à concepção de que o racismo se configura enquanto um produto da relação entre o grupo dominante e o grupo oprimido. Posto isso, o entendimento do lugar em que os sujeitos brancos ocupam na produção e manutenção do racismo revela um avanço na discussão, na medida em que o racismo passa a ser entendido enquanto relacional, produto de um processo histórico, político, no qual há agentes ativos produtores de desigualdades; não apenas sujeitos negros que sofrem de uma violência abstrata cujo agressor é oculto. Assim, o conceito de branquitude se faz essencial para a compreensão da constituição das relações raciais. Bento (2014a) descreve branquitude enquanto a identidade racial branca, segundo a qual sujeitos brancos experienciam o mundo, através de privilégios simbólicos e materiais acumulados e construídos historicamente. Essa configuração racial, parte do pressuposto que a brancura corresponde ao universal da humanidade e, portanto, o que se afasta disso, ou seja, aqueles identificados enquanto não-brancos, é menos desejável, menos aceitável e, portanto, passível de ser eliminado concreta e simbolicamente (MBEMBE, 2018). Ver-se enquanto parâmetro de universalidade, como apontam Bento (2014a) e Freud (1980) possui um forte componente narcísico, no qual o investimento em si contém um elemento preservativo, em que o eu, o similar é tido enquanto ideal, mantendo-se enquanto parâmetro, horizonte de humanidade. O modo escuso como o racismo é tratado na realidade brasileira, ora como problemática superada, ora como nunca existente, marca do mito da democracia racial, remonta à postura adotada pela branquitude e descrita por Bento (2014a) [...] o legado da escravidão para o branco é um assunto que o país não quer discutir, pois os brancos saíram da escravidão com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho de quatro séculos de outro grupo. Há benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco na história do Brasil. Este silêncio e cegueira permitem não prestar contas, não compensar, não indenizar os negros: no final das contas, são interesses econômicos em jogo. Por essa razão, políticas públicas compensatórias são taxadas de protecionistas, cuja meta é premiar a incompetência negra [...] (p.27) Contudo, esse processo se desdobra em ações concretas na realidade, tendo em vista que o racismo se constitui enquanto estrutural, assim, as produções e explicações acerca do mundo, uma 20 vez que partem desse referencial trazem em sua constituição essa visão. Portanto, faz-se um imperativo contestar a noção de conhecimento neutro, imparcial e universal. A construção de conhecimento diz respeito, também, a formação de consenso acerca da dominação racial, como colocado por Almeida (2019). Uma vez estabelecidos conhecimentos que reproduzem uma lógica narcísica de autopreservação da branquitude enquanto norma, outros mecanismos também se constroem de maneira que as críticas e reformulações sobre estes não encontrem espaço de erguimento. A ausência da temática do racismo, e mais especificamente, da discussão acerca da branquitude enquanto hegemônica nos espaços de produção formal de conhecimento, bem como nas pesquisas é levantada por Schucman (2014). A autora aponta duas hipóteses plausíveis, a primeira de que a imensa maioria dos psicólogos e pesquisadores são brancos e, portanto, se acreditam desracializados, adotando a branquitude enquanto identidade racial normativa. E, a segunda, de que se posicionar na branquitude implica a exposição de privilégios tanto materiais quanto simbólicos, o que seria contrário ao ideal de igualdade racial brasileira, que visa legitimar as desigualdades raciais. No racismo, a negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão racial: “Elas/es querem tomar o que é Nosso, por isso Elas/es têm de ser controladas/os”. A informação original e elementar – “Estamos tomando o que é Delas/es” – é negada e projetada sobre a/o “Outra/o” – “elas/es estão tomando o que é Nosso” – o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado. Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se a vítima compassiva, ou seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido, o tirano. [...]O sujeito negro torna-se então tela de projeção daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo (KILOMBA, 2019, p.34). Grosfoguel (2016) aponta para a problemática do monopólio do conhecimento construído historicamente a partir óptica do homem ocidental branco nas universidades ocidentais. O autor argumenta que o Eu cogito, “penso, logo existo” de Descartes, que fundamenta até hoje a filosofia e epistemologia ocidental, foi possibilitado pelo Eu conquiro, “conquisto, logo existo”. Esse movimento foi possível, segundo ele, pelas conquistas territoriais de países europeus, uma vez que a pretensa universalidade da filosofia cartesiana “vem da perspectiva de alguém que se pensa como centro do mundo porque já conquistou o mundo” (p. 31). Assim, a noção de construção de conhecimento não pode estar apartada do exercício de poder e soberania. O autor assinala como o racismo e o sexismo epistêmico se constituíram ao longo dos séculos e, dessarte, fundamentam a estrutura epistêmica das universidades. O pensamento cartesiano, alicerce de majoritária parte da produção intelectual ocidental é tido enquanto reflexo do conhecimento absoluto, relegando outras formas de produção de conhecimento, bem como a produção de outros grupos que não exclusivamente os europeus. Assim, A inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais) tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico 21 de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais. Essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais têm gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que re-gem o sistema-mundo. (GROSFOGUEL, 2016, p.25). Outro fato importante que se desdobra na realidade brasileira éque o acesso aos locais de produção de conhecimento se dá de maneira extremamente desigual – na qual aspectos regionais, de classe, gênero e raça necessitam ser considerados. Embora haja algumas medidas que visam reverter o panorama de desigualdades – como a lei 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira nas instituições privadas e públicas de ensino fundamental e médio – ainda existem entraves para a implementação destas, como relatam Santos et al (2018). Em primeiro lugar, as autoras apontam o apagamento físico de sujeitos negros do espaço acadêmico, já na educação básica, é visto que crianças negras possuem menor assiduidade e maiores índices de evasão escolar. A taxa de analfabetismo demonstra, também, essa desigualdade. Dentre os sujeitos brancos, acima de 15 anos, os analfabetos correspondem a 7,1%, enquanto dentre a amostra da população negra, esse número chega a 16,9%, mais que o dobro. Outro dado alarmante é o analfabetismo funcional, que chega a 64,6% da população negra, em contraposição a 18,4% de analfabetos funcionais na população branca. A realidade se mostra ainda mais complexa, tendo em vista o despreparo presente na realidade dos profissionais da educação no que tange às questões raciais, uma vez que o desconhecimento dos conteúdos acerca da cultura afro-brasileira resulta de uma lacuna em suas próprias formações. Soma- se a isso, uma parcela de profissionais que não considera a temática da cultura afro-brasileira enquanto prioritária, adotando como referencial exclusivamente o prisma da educação eurocentrada. Assim, embora haja a adoção de um referencial teórico e prático, tal qual uma visão de mundo, europeia e colonizadora, prevalece a ideia de que o conhecimento ensinado é universal, uma vez que é oriundo do único locus legitimado para dotar o saber. Outros referenciais, como a história, cultura e saberes da África, por exemplo, são subvalorizados ou tem a proposta de serem trabalhados transversalmente, o que enfrenta intrincados entraves para a aplicação. Assim, cabe-se questionar a quais propósitos serve essa suposta universalidade, posto que esse é o principal argumento que encoberta os vieses da produção de conhecimento ocidental. “Centrar-se, portanto, num universo não implica contemplar os demais” (SANTOS et al, 2018, p. 959). Dessarte, tanto a construção de conhecimento quanto as condições para produzi-lo são permeadas pelo olhar e aval da branquitude. O conhecimento tido enquanto universal e neutro serve como um dos fatores que sustentam a produção de consenso acerca da dominação racial, uma vez que esse “universal” sempre se refere ao mesmo objeto de estudo: o branco. Portanto, uma vez que os 22 espaços educacionais estão majoritariamente ocupados e dirigidos por sujeitos brancos, cabe pensar que o conhecimento produzido por eles diz respeito às suas visões brancas de mundo. A ciência tem o poder de produzir um discurso de autoridade, que poucas pessoas têm a condição de contestar, salvo aquelas inseridas nas instituições em que a ciência é produzida. Isso menos por uma questão de capacidade, e mais por uma questão de autoridade. É da natureza da ciência produzir um discurso autorizado sobre a verdade (ALMEIDA, 2019, p.70) A compreensão do ensino enquanto antirracista também é necessária no ensino superior, a desconstrução do racismo e de práticas racistas nas mais variadas áreas de saber é uma ação constante e cotidiana. Vale ressaltar que a lei 10.639 é regida pelo parecer CNE/CP n° 03/2004 e pela Resolução CNE/CP n° 01/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, no que tange ao ensino superior, público e privado, a Resolução estabelece que: Art. 1° A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores. § 1° As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004. § 2° O cumprimento das referidas Diretrizes Curriculares, por parte das instituições de ensino, será considerado na avaliação das condições de funcionamento do estabelecimento. Art. 2° As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africanas constituem-se de orientações, princípios e fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da Educação, e têm por meta, promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas, rumo à construção de nação democrática. § 1° A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira [...] (BRASIL, 2004). A fim de que tais diretrizes fossem de fato concretizadas, em 2009, foi lançado o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares da Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009). Com relação ao ensino superior, o documento faz menção a diversas ações que requerem ser exercidas, como a inclusão de disciplinas relacionadas à educação para as relações étnico-raciais; o desenvolvimento de atividades acadêmicas; encontros; jornadas e seminários que promovam o debate das relações étnico- raciais; o desenvolvimento nos estudantes de habilidades que os permitam contribuir para a educação antirracista; bem como senso crítico com os materiais didáticos e paradidáticos utilizados; a criação de bolsas de iniciação científica para pesquisas que veiculem essa temática; dentre outras medidas 23 possíveis. Dessa forma, evidencia-se que há caminhos pelos quais seguir rumo a uma educação antirracista, contudo, resta o questionamento de se essas práticas são desejadas pelas instituições de ensino e pela comunidade estudantil. 24 4 QUAL PAPEL DA PSICOLOGIA NO ESTUDO DAS RELAÇÕES RACIAIS? A ausência da discussão acerca das relações raciais e, mais especificamente, do conceito de branquitude, se faz regra nos espaços de produção formal de conhecimento, tanto de outras ciências quanto da psicologia. Schucman (2014) aponta duas justificativas plausíveis para esse acontecimento, a de que a imensa maioria das(os) psicólogas(os) e pesquisadores (as) são brancos e, portanto, se acreditam desracializados, adotando a branquitude enquanto identidade racial normativa. E a segunda, de que se posicionar na branquitude implica a exposição de privilégios tanto materiais quanto simbólicos, o que seria contrário ao ideal de igualdade racial brasileira, o qual remonta ao mito da democracia racial, que visa legitimar e perpetuar as desigualdades raciais. Santos e Schucman (2015) colocaram em análise como o conceito de raça aparece no entendimento sobre desigualdade, bem como sua relevância na formação dos psicólogos durante e após a graduação. De imediato,a temática do racismo gerou um desconforto geral por parte dos sujeitos e, em seguida, se evidenciou um distanciamento e despreparo com relação ao assunto: destacou-se a não propriedade com relação ao tema e a reprodução de um discurso esvaziado, que serve unicamente ao não comprometimento com uma discussão efetiva acerca do racismo e seus efeitos. Muito embora os autores apontem que alguns – não todos – entrevistados considerem a discussão importante, ainda é presente o discurso que deslegitima as hierarquias raciais existentes, mesmo por parte de uma profissional formada em psicologia, mestranda da área: “Na verdade a classificação de raça pra mim é uma coisa que é uma bobagem tão grande, todo mundo tem dois olhos, um nariz, uma boca, todo mundo tem um cérebro, um coração, enfim” (SANTOS; SCHUCMAN, 2015, p. 123). A psicologia, enquanto campo teórico e prático, tem um dever ético de se posicionar e não ser conivente com as práticas racistas e genocidas do Estado e de grupos maioritários, como estabelecido e decidido pelo órgão de classe das psicólogas e psicólogos, o Conselho Federal de Psicologia – CFP –, na resolução N.º 018/2002, segundo a qual, Art. 1º - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo. Art. 2º - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito de raça ou etnia. Art. 3º - Os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante o crime do racismo. Art. 4º - Os psicólogos não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação racial. Art. 5º - Os psicólogos não colaborarão com eventos ou serviços que sejam de natureza discriminatória ou contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias. Art. 6º - Os psicólogos não se pronunciarão nem participarão de pronunciamentos públicos nos meios de comunicação de massa de modo a reforçar o preconceito racial. 25 Essas resoluções se fazem imprescindíveis no contexto da saúde pública: em 2018, o Ministério da Saúde publicou a pesquisa Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros: 2012 a 2016, que traz dados alarmantes quanto à saúde mental dos jovens negros. Segundo o relatório, enquanto a porcentagem referente ao número de suicídios entre os jovens brancos permaneceu estável, a porcentagem referente aos jovens negros e pardos aumentou significativamente, constatando a variável raça enquanto fator indissociável da saúde mental. Assim, é fundamental que a psicologia, enquanto ciência e prática, não se valha de seus saberes como forma de perpetuação de opressões e barbáries, tais como o racismo. É importante ressaltar que, historicamente, o posicionamento da psicologia ora criticou, ora reforçou práticas higienistas e racistas advindas de práticas médicas e sanitaristas: [...]Mesmo a perspectiva comunitária da Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2005 e 2001), de planejamento territorial, com paradigma de desinstitucionalização das práticas e saberes psiquiátricos, inspirada na psiquiatria italiana (Rotelli, 2001); e ainda com a Lei 8.080 de 19 de Setembro de 1990, a saúde mental não abandona a referência do sanitarismo médico- psiquiátrico-psicológico da loucura, dos distúrbios ou transtornos. Não altera, portanto, o modo de negligenciar as condições históricas da população negra. [...] Pelos meios da assistência psiquiátrica, o racismo de Estado determina os que devem ter saúde mental, e os que podem viver atormentados em seu sofrimento produzido pelas condições sociais, os que devem viver e os que devem morrer, como diz Foucault (2005). É o Estado racista também que determina sob quais condições tratamos da saúde mental da população brasileira, que tipo de investimento, com quais psicologias e quais abordagens (SANTOS, 2017, p.247). 4.1 O sofrimento psíquico produzido pelo racismo A concepção do racismo enquanto um fenômeno estrutural implica na radicalização da sua compreensão em todas as esferas da vida social, enquanto regra e não exceção, como pontuado por Almeida (2019). Dessa forma, mesmo as construções histórico-sociais teoricamente blindadas de desigualdades e hierarquias, como o discurso do “amor romântico”, “amor puro” estão perpassadas pelo racismo e as demais violências produzidas socialmente, “se o amor é uma construção social, o racismo também o é” (ALMEIDA, 2018b, p.13). Schucman (2018) coloca essa afirmação em análise ao pesquisar “como a branquitude é deslocada, negociada, desconstruída e também afirmada nas relações interpessoais entre brancos e negros. Ali poderia estar a chave para se compreender as múltiplas relações de dominação na unidade familiar [...]” (p. 22). Um dos aspectos abordados na pesquisa da autora é a negação da negritude pela família daqueles que são autoidentificados enquanto não-brancos. Para exemplificar esse aspecto, a autora utiliza as falas de uma das famílias composta pela mãe, Valéria, a filha, Maria, ambas autoidentificadas como brancas, e o filho, João, autoidentificado como negro. Na entrevista, Valéria e Maria fazem as seguintes considerações ao referirem-se à autoclassificação racial do filho, João, 26 enquanto negro: “ele começou com isto depois de ir para a universidade, mas ele não é negro” (Valéria), “[...] eu tenho desconfiança que tenha alguma ascendência árabe [na família do pai] ou alguma coisa assim, porque são muito escuros” (Maria), e “o João é o árabe da família, a gente vive chamando ele de terrorista [risos] (Valéria)” (p.52 e 53). A pesquisadora também pergunta a João: “teu pai é negro?”, o que é respondido por Maria com “a nossa origem é meio estranha, não dá pra saber. Porque da família dela [da mãe], por parte do meu avô, tem italianos e tal. Da parte da minha avó, não dá pra saber muito”; e por João: “do meu pai sim, também tem negros. Tanto que minha irmã, por parte de pai, ela é negra” (p. 53). Schucman (2018) aponta que Valéria e Maria reconhecem a cor de João enquanto não branco, uma vez que até estabelecem uma possível ascendência árabe, contudo, negam a possibilidade de uma origem negra dessa cor – embora seja mais plausível pelo histórico familiar uma ascendência negra do que árabe. A pesquisadora aponta significados distintos para essa negação, tanto a mais comum na sociabilidade brasileira, que seria o distanciamento das representações atreladas ao ser negro em uma sociedade racista. Assim, a operação seria retirar o ente amado do grupo dos negros, mantendo as representações negativas sobre os negros preservadas. Assim, “Valéria mantém e legitima os significados negativos construídos sobre o negro, sem precisar rever, ressignificar ou desconstruir o racismo em que foi socializada” (p.55). A autora acrescenta outra característica da branquitude, a construção de uma identidade em torno de si mesma. Resgatando as formulações de Bento (2002), Schucman (2018) aponta a branquitude enquanto narcísica, no qual o centro subjetivo não permite espaço para alteridade, mesmo em contextos que, teoricamente, promoveriam encontros, como as famílias inter-raciais. Assim, elimina-se o outro, o qual coloca em questão a unidade racial quista, identificando-se ou projetando com aquilo que a branquitude não deseja se aproximar: o ser negro. A autora conclui: “Não à toa, João pode ser moreno claro, pode ser árabe, pode até tomar banho de cândida. João só não pode ser o que ele mesmo diz que é: negro” (p. 55). O trabalho de Schucman (2018) é uma rica fonte de material acerca de como a branquitude lida com as relações afetivas inter-raciais. Em outra entrevista aparecem outra forma de negação do ser negro, Juliana (auto identificada como parda), também filha de mãebranca, relata: Minha mãe falava que eu era quase branca, mas que meu nariz não era de branco, ela falava rindo. Quando eu era pequena, sempre tinha esta sensação de tentar ser algo que não sou, uma sensação corporalmente inadequada. E quando eu tive filho, ela disse que se eu passasse bastante a mão no nariz dele enquanto ele era bebê, afinando a forma, o nariz podia melhorar porque ainda era só cartilagem (Idem, p.57). A autora pontua como a negação exercida pela mãe sobre corpo negro da filha, impacta violentamente a própria percepção de si de Juliana e aceitação de seu corpo. Nessa e nas demais 27 entrevistas, é explicitado como nas dinâmicas das famílias inter-raciais, é comum que o racismo velado se manifeste na negação impetuosa de um dos membros, o negro. Dessa maneira, Suas consequências podem ser brutais para o psiquismo de quem nasce e cresce com a ambiguidade de ser uma mãe que ama seu filho e mesmo assim o violenta. Não à toa, Juliana diz que se sentia fisicamente inadequada. Pois, parece-nos, este é um amor narcísico, que acha feio o que não é espelho. (SHUCMAN, 2018, p. 57) Do mesmo modo, a rejeição ao corpo negro é trabalhada por Nogueira (1998) a partir da intrarracialidade, da mãe negra e seu bebê também negro. Em sua tese, ela traz que “a criança do projeto e do desejo da mãe não está representada no pequeno corpo negro, que o olhar materno, inconscientemente, tende a negar. A mãe negra deseja o bebê branco, como deseja, para si, a brancura” (p. 108). Não obstante, o ideal de brancura da mãe não é só da mãe, criado e mantido por ela, mas é emprestado da sociedade na qual ela está inserida e que busca tal ideal (CHNAIDERMAN, 2018). Para Nogueira (1998), o estádio do espelho da criança negra se desenvolveria com a marca de que a criança negra se reconheceria naquela imagem, mas não reconheceria a imagem do desejo da mãe. A partir disso, a criança negra seria mobilizada a procurar nessa imagem o que a reconciliaria com o desejo materno, introjetando um ideal de eu branco; e “é este corpo negro que, para atingir o ideal branco, sofre querendo tomar banho de cândida, desfazendo as tranças e afinando o nariz” (SCHUCMAN, 2018, p.57). Farias (2018) argumenta, a partir da noção laplancheana de trauma, que o caráter traumático do encontro com o outro adviria de mensagens transmitidas não simbolizadas, permanecendo enclavadas no psiquismo do sujeito. Esses elementos não metabolizáveis seriam o que Laplanche denomina de intromissão do outro – processo cujo resultado é a incapacidade de simbolizar esses conteúdos, que permanecem como externos no interior do psiquismo. “As experiências traumáticas que o racismo engendra, como vimos, permanecem no psiquismo como enclaves – que podemos denominar de enclaves brancos – que passam a ameaçar o narcisismo, ameaçar a existência permanentemente” (FARIAS, 2018, p. 110). Diante dessas acepções, Kilomba (2019) teoriza que o racismo é vivido enquanto trauma, embora, apesar de ser incomum que essa noção seja articulada ao racismo – possivelmente, por uma descrença da nocividade de seus efeitos. A autora inicia sua argumentação definindo trauma enquanto um evento violento intenso, no qual o sujeito se encontra incapaz de produzir uma resposta adequada a ele e cujos efeitos são perturbadores e duradouros na psique. A escravização, o colonialismo e o racismo cotidiano necessariamente contêm o trauma de um evento de vida intenso e violento, evento para o qual a cultura não fornece equivalentes simbólicos e aos quais o sujeito é incapaz de responder adequadamente porque, como Claire Pajaczkowska e Lola Young (1992, p. 200) argumentam, “a realidade da desumanização do povo negro é aquela que não há palavras adequadas para simbolizar” (KILOMBA, 2019, p. 214). 28 Em continuidade, a autora se apoia na formulação freudiana – Além do princípio do prazer (1923) – na qual ele aponta, como ponto inicial para compreender o trauma, a dificuldade em descarregar a violência. Existiria, portanto, no psiquismo de cada sujeito, um quantum suportável de excitação que, quando excedido e agregado de violência e imprevisibilidade, resultaria no trauma. “O racismo [...] é o acúmulo de eventos violentos que, ao mesmo tempo, revelam um padrão histórico de abuso racial que envolve não apenas os horrores da violência racista, mas também as memórias coletivas do trauma colonial” (KILOMBA, 2019, p. 215). A autora, então, parte para os pressupostos trazidos pela psicanálise enquanto fundadores do trauma, a saber, o choque violento que retira a possibilidade de o sujeito responder; a separação ou fragmentação, uma vez que não são fornecidos correlatos que possibilitem a simbolização, privando o sujeito de sua relação com a sociedade; e a atemporalidade, na qual a linha do tempo que separa quando ocorreu o trauma do agora é desfeita, sendo possível que ele seja vivido no presente. Kilomba (2019) argumenta que esses três pontos estão presentes ao experienciar o racismo e exemplifica-os com as entrevistas que realizou em sua pesquisa. Uma das entrevistas, Alicia, indaga após um episódio de ter sua nacionalidade [alemã] questionada pela cor de sua pele, na qual a pessoa infere que Alicia não poderia ser negra e alemã: “O que você pode dizer?” (p. 217), remontando à sua reação de estaticidade. Kilomba (2019) sustenta que “o choque é a resposta à violenta irracionalidade do racismo cotidiano, [...] em outras palavras, uma pessoa nunca está preparada para assimilar o racismo [...]” (p. 218). A separação ou fragmentação é exemplificada pela autora também numa fala de Alicia: “Eu não tenho a história que se pareça comigo. Sinto que não tenho história nenhuma na verdade, porque a minha história – a história alemã, a história afro-alemã – não é bem-vinda” (KILOMBA 2019, p. 220). Assim, a autora demonstra que esse sentimento de ruptura, corte e perda causado pela violência do racismo constitui a separação das conexões com a sociedade característica do trauma clássico. A violência exercida pelo sujeito branco reside na tentativa de destruir a identidade do sujeito negro, através da introjeção compulsória de um ideal de eu branco, o ser negro se vê obrigado a construir um projeto identificatório que negue a sua própria condição biológica, histórica, geográfica, ancestral (COSTA, 1983). O terceiro ponto, a atemporalidade, se mostra nos episódios de racismo cotidiano, dado que “a violência aumenta à medida que o presente se aproxima do passado” (KILOMBA, 2019, p. 222), a autora aponta como acontece uma reatualização da cena colonial6 nos relatos trazidos por suas entrevistadas. Perguntas ouvidas por elas como “como você lava o seu cabelo?” ou “você sabe o que 6 A autora nomeia enquanto “cena colonial” episódios cotidianos nos quais pessoas brancas exercem violência para com pessoas negras, a partir de um lugar de naturalidade e autoridade, tal qual existia no período de colonização. Assim, essas pessoas se sentem autorizadas a ter falas e atitudes racistas, na atualidade, à semelhança dos senhores de engenho de séculos antes, remetendo, portanto, a esse passado de opressão que se atualiza na situação de discriminação. 29 é um pente?” remontam a uma sujeição do corpo negro ao colonizador, o qual, invadia, violentava e desqualificava esse corpo a seu bel prazer. Essa sensação de imediatismo e presença é o terceiro elemento do trauma clássico. Um evento que ocorreu em algum momento do passado é vivenciado como se estivesse ocorrendo no presente e vice-versa: o evento que ocorre no presente é vivenciado como se se estivesse no passado. O colonialismo e o racismo coincidem (KILOMBA, 2019, p. 223) Assim, foram expostas algumas possíveis compreensões de como o racismo impacta psiquicamente os sujeitos que o sofrem. O racismo enquanto uma categoria de análise pela psicanálise se apresenta como
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