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Camila Borges Dos Anjos CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO Sumário INTRODUÇÃO ������������������������������������������������� 3 FUNÇÕES IDEOLÓGICAS DO DISCURSO ������� 5 FORMAÇÃO IDEOLÓGICA X FORMAÇÃO DISCURSIVA ������������������������������������������������� 16 PÊCHEUX E A DERIVA DOS SENTIDOS �������� 23 O PRIMADO DO INTERDISCURSO ���������������� 30 CONSIDERAÇÕES FINAIS ���������������������������� 37 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS & CONSULTADAS �������������������������������������������� 40 2 INTRODUÇÃO Caro estudante, este e-book abordará um elemen- to determinante em todo e qualquer discurso: a ideologia. A determinação ideológica é de suma importância para que possamos compreender o funcionamento da língua, os gestos de interpreta- ção produzidos para e por sujeitos e os sentidos em jogo numa cena discursiva. A partir da noção de ideologia para a Análise de Discurso de linha francesa (AD), conceituaremos duas noções teóricas muito caras à teoria e direta- mente ligadas à de ideologia: formação ideológica e formação discursiva. Esses conceitos são muito utilizados no campo do discurso e são cruciais para a compreensão dos posicionamentos que assumem ou não os sujeitos como produtores de linguagem. Após essa discussão, mobilizaremos a noção de sentido, que, em Pêcheux, é algo sempre em trânsito, movente, fortuito, afinal trabalhar com a língua é remetê-la à sua opacidade, aos não ditos, à falha, à contradição, à heterogeneidade. Problematizaremos, aqui, a deriva dos sentidos, que podem ser vários, múltiplos, conforme vamos perceber, a partir das posições assumidas pelos sujeitos que enunciam. 3 E, para finalizar, discutiremos a noção de interdis- curso, região que abriga diferentes discursividades, compreendido por Pêcheux ([1975] 2014, p. 162) como “[...] todo complexo com dominante das formações discursivas”, abordando brevemente, na ocasião, suas duas formas: pré-construído e discurso transverso, também muito discutidas no âmbito da AD. Traçado esse percurso, dividimos o e-book em quatro tópicos, a saber: Funções Ideológicas do Discurso; Formação Ideológica X Formação Discursiva; Pêcheux e a deriva dos sentidos; e O Primado do Interdiscurso. Esperamos que o con- teúdo apresentado possa fazer você mergulhar nos conceitos da AD, compreendendo-os de ma- neira mais aprofundada, assim como refletir sobre como os sentidos se organizam no espaço social e também como a AD contribui para investigar esses processos. 4 FUNÇÕES IDEOLÓGICAS DO DISCURSO Diferentemente de Foucault que, conforme Gri- goletto (2013, p. 28), não se apoiou na noção de ideologia, por considerá-la insuficiente para se pensar a formação dos sujeitos, Pêcheux resgata a teoria da ideologia de Althusser, concebendo-a enquanto mecanismo de produção de evidências, que determina o discurso, o sujeito e a produção de sentidos. Silva (2013, p. 72) afirma que Pêcheux, a partir dos conceitos althusserianos em torno da ideologia, sublinha que “[...] os sentidos dos enunciados são produzidos na medida em que a ideologia interpela os indivíduos em sujeito”. Para a AD, a teoria da ideologia de Althusser con- tribuiu para se pensar o processo de interpelação ideológica. Silva (2013, p. 73) enfatiza que Pêcheux utilizou o conceito de ideologia e interpelação ideológica althusseriano para trabalhar a teoria do discurso e pensar essas questões, pois, con- forme o autor, “Pêcheux reconhecia que a teoria social de Althusser tratava da problemática que lhe interessava: a questão do sujeito e do sentido” (SILVA, 2013, p. 73). Grigoletto (2005) menciona que, na obra Verites de la Palice (Semântica e Discurso), Pêcheux utiliza 5 as noções de ideologia e constituição do sujeito ideológico de Althusser, porém compreende o sujeito enquanto pleno, sem falhas, sem hiâncias. Em “Só há causa daquilo que falha”, a autora em- preende que Pêcheux, por outro lado, considera as falhas no mecanismo de interpelação ideológica, colocando em relação inconsciente e ideologia, a partir do modo como ambos constituem o sujeito. A partir daí, então, o autor passa a considerar a ideologia como algo que constitui o sujeito, que é intrínseco a ele, sendo, portanto, o homem um “animal ideológico” (PÊCHEUX, [1975] 2014, p. 152), alçado por determinações sociais de natu- reza ideológica. A ideologia, assim, por meio da língua, base material do discurso, atua produzindo evidências. FIQUE ATENTO Ideologia é o elemento determinante do sentido que está presente no interior do discurso e que, ao mesmo tempo, se reflete na exterioridade, ou seja, a ideologia não é algo exterior ao discurso, mas sim constitutiva da prática discursiva. Entendida como efeito de relação entre o sujeito e linguagem, a ideologia não é consciente, mas está presente em toda manifestação do sujeito, permitindo sua identificação com a formação discursiva que o domina. Tanto a crença do sujeito de que possui o domínio de seu discurso, quanto a ilusão de que o sentido REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 6 já existe como tal, são efeitos ideológicos (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 17-18). Orlandi (2012, p. 85), nessa discussão, vai nos dizer que “Não podemos pensar o sujeito, nessa perspectiva, sem a ideologia, e a ideologia sem a materialidade, a história e os processos da vida social e política”. Ou seja, é pelo mecanismo ide- ológico, pela relação língua e história que o corpo, o indivíduo, se constitui em sujeito. Nessa direção, é pela ideologia que todo sujeito significa, pois as operações ideológicas atravessam os modos de constituição dos sujeitos. Para que possamos compreender melhor, é váli- do pensar que a ideologia está presente em todo discurso, pois nossos dizeres são afetados/deter- minados historicamente, ou seja, não pensamos o que pensamos ou assumimos uma posição e não outra porque queremos assim, mas porque, ideo- logicamente, há sentidos que nos atravessam, que nos constituem, que nos tornam sujeitos, os quais nos fazem nos filiar a determinadas discursividades, enquanto com outras não nos identificamos tanto. Por essa via, Pêcheux ([1975] 2014, p. 161, grifos do autor) assevera que “[...] os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos de seu discurso, pelas formações discursivas que representam ‘na lin- 7 guagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”. Embora os conceitos de formação ideológica e discursiva sejam trabalhados apenas mais adiante, é importante aqui pensarmos que essas são suas noções teóricas que perpassam o trabalho da ideologia na produção de sentidos. Assim, o sujeito se posiciona de maneira x e não y por estar afetado por processos ideológicos que o incitam a essa posição. Isso, porque “[...] os sentidos e os sujeitos são divididos e têm uma direção que não é indiferente à sua relação com a ideologia” (Orlandi, 2012, p. 55). Logo, é porque o sujeito é interpelado ideologicamente que assume uma posição. Pensando nisso, podemos dizer que todo sujeito, ao assumir uma ou outra posição no discurso, é afetado ideologicamente por sentidos que o atravessam e o constituem. Assim, por exemplo, quando alguém afirma ser a favor ou contra algo ou, ainda, que concorda ou discorda parcialmente, esse sujeito se posiciona interpelado ideologica- mente, produzindo sentido e, concomitantemente, assumindo uma posição no discurso. Para que possamos, de maneira prática, observar o trabalho da ideologia no processo de produção de sentidos, trazemos, abaixo, duas imagens sobre uma realidade que tem se tornado cada vez mais presente na atualidade: a questão da migração e 8 do refúgio. A partir delas, podemos observar como o mecanismo ideológico atravessa os sujeitos na produção de sentidos. Vamos a elas: Figura 1: Refugiados, bem-vindos Fonte: G1, 2015, disponível em: https://g1.globo.com/ mundo/noticia/2015/07/conflito-em-protesto-contra-refu- giados-deixa-dois-feridos-na-alemanha.html. Acesso em: 14de junho de 2022. 9 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/07/conflito-em-protesto-contra-refugiados-deixa-dois-feridos-na-alemanha.html https://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/07/conflito-em-protesto-contra-refugiados-deixa-dois-feridos-na-alemanha.html https://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/07/conflito-em-protesto-contra-refugiados-deixa-dois-feridos-na-alemanha.html Figura 2: Refugiados, fora Fonte: DailyMail, 2016, disponível em: https://www. dailymail.co.uk/news/article-3675154/Left-wing-German- -politician-raped-migrants-admits-LIED-police-attackers-na- tionality-did-not-want-encourage-racism.html. Acesso em: 14 de junho de 2022. Essas duas imagens, retiradas de dois portais de notícias, representam, em linhas gerais, as manifes- tações de boas-vindas e de repúdio ao estrangeiro que têm ocorrido em diferentes partes do mundo, principalmente em decorrência da retirada dessas pessoas de seu lugar de origem devido às guer- ras, às crises econômicas, à violação dos direitos humanos e a uma série de outras razões. Com a chegada de imigrantes e refugiados em outro território, as pessoas que lá vivem têm se posicionado de distintas maneiras. É o caso do que podemos observar nas imagens das figuras 1 e 2, que retratam manifestações ocorridas num mesmo país, a Alemanha, mas de caráter distinto: 10 https://www.dailymail.co.uk/news/article-3675154/Left-wing-German-politician-raped-migrants-admits-LIED-police-attackers-nationality-did-not-want-encourage-racism.html https://www.dailymail.co.uk/news/article-3675154/Left-wing-German-politician-raped-migrants-admits-LIED-police-attackers-nationality-did-not-want-encourage-racism.html https://www.dailymail.co.uk/news/article-3675154/Left-wing-German-politician-raped-migrants-admits-LIED-police-attackers-nationality-did-not-want-encourage-racism.html https://www.dailymail.co.uk/news/article-3675154/Left-wing-German-politician-raped-migrants-admits-LIED-police-attackers-nationality-did-not-want-encourage-racism.html na primeira imagem, as pessoas seguram uma fai- xa dizendo “Refugees welcome” ou, em português, “Refugiados, bem-vindos”; na segunda imagem, as pessoas erguem uma outra faixa, na qual está escrito: “Rapefugees not welcome” ou, em portu- guês, algo como “Refupradores, fora”. Como é possível percebermos, essas duas ima- gens nos revelam diferentes posicionamentos: de um lado, parte dos alemães defende a entrada de imigrantes e refugiados em seu território; de outro, uma parcela da população alemã repudia a entrada de qualquer estrangeiro. Os sentidos em jogo, de recepção e negação ao outro, nos dão a ver o trabalho da ideologia, afinal, conforme pressupõe Orlandi (2013, p. 45), “[...] o fato de que não há sentido sem interpretação [...] atesta a presença da ideologia”. Ou seja, os sen- tidos mobilizados pelos alemães que defendem a abertura das fronteiras aos estrangeiros são distintos daqueles atribuídos pelos alemães que rechaçam essas pessoas. Assim, como não há sentido sem interpretação, podemos pensar que o sujeito interpreta a vinda do outro para seu terri- tório de maneira positiva ou negativa, imbuído de discursos de boas-vindas ou de ódio, o que produz sentidos e resulta em posicionamentos ideológicos. 11 Orlandi (2013, p. 30) vai nos ensinar que os “[...] sentidos têm a ver com o que é dito ali mas tam- bém em outros lugares, assim como com o que não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi”. Assim, podemos pensar que os cartazes que con- denam o livre acesso de imigrantes e refugiados no território alemão contêm ditos – estupradores – e não ditos, sentidos que ecoam: pessoas que violam a lei, fazem o mal, são violentas, desordeiras. Assim também, as boas-vindas aos estrangeiros configuram ditos e não ditos sobre essas pessoas: precisam de acolhida, proteção, de um novo lugar para se estabelecerem. E todos esses sentidos só existem porque derivam de movimentos de interpretação do sujeito, nesse caso, dos anfitriões alemães. E o trabalho da inter- pretação se dá em virtude dos efeitos da ideologia, pois é na interpretação que a ideologia funciona. Nessa instância, os sentidos vêm à tona pelo funcionamento ideológico, pela interpretação do sujeito em relação a um determinado objeto. Orlandi (2007, p. 18) considera que “[...] A interpretação é o vestígio do possível. É o lugar próprio da ideo- logia e é ‘materializada’ pela história”, intervindo propriamente no modo como o sujeito se relaciona com o mundo. 12 Ideologia, história, língua, discurso e interpretação são noções teóricas da AD que estão imbricadas, que atravessam o sujeito em seu processo de constituição. Em uma entrevista concedida a Barreto (2006), Orlandi afirmou que “a materiali- dade da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a língua”, que trabalha produzindo sentido por meio do mecanismo de interpretação. Abaixo, trazemos um recorte do livro Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia, de Eni Orlandi, no qual a autora escreve brevemente um tópico sobre a relação existente entre língua e ideologia: Há um princípio discursivo que diz que não há dis- curso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. O discurso é o lugar em que podemos observar a articulação entre a língua e a ideologia. Discursiva- mente, consideramos que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua. Por isto, ao observarmos como a língua produz sentidos temos acesso ao modo como a ideologia está presente na constituição dos sujeitos e dos sentidos. A ideologia, por sua vez, está em que o sujeito, na ilusão da transparência e sob o domínio de sua memória discursiva – alguma coisa fala antes, em outro lugar e independente- mente – pensa que o sentido só pode ser “aquele” quando na verdade ele pode ser outro. O que lhe atribui esta evidência é, na verdade, o fato de que 13 não há sentido sem interpretação e a interpretação é um gesto do sujeito carregada de ideologia, que torna evidente o que na realidade se produz por complexas relações entre sujeitos, língua e história, resultando em diferentes formações discursivas (ORLANDI, 2012, p. 153). Como é possível observarmos, língua, discurso e ideologia estão intrinsecamente conectados, pois é no discurso que a ideologia se expressa, e é na língua que o discurso se materializa. A ideologia, portanto, permeia a relação do sujeito com a lingua- gem, afetando-o e interpelando-o em suas tomadas de posição, gestos de interpretação, produção de sentidos no fio do discurso. A ideologia é o que ‘orienta’ a prática discursiva do sujeito. Para ampliar seu conhecimento em AD, principalmente no batimento entre teoria e prática, há alguns trabalhos na área com a temática de migração e refúgio que contêm análises mais aprofundadas a respeito do funcionamen- to da ideologia na constituição do sujeito, abordando também outras noções teóricas do campo do discurso: ANJOS, C. B. dos. Sujeitos à deriva: migração, refúgio e processos de subjetivação. 2021. 280 p. Tese (Dou- torado em letras) – Universidade Federal do Rio Grande SAIBA MAIS 14 do Sul, Porto Alegre, 2021. Disponível em: https://lume. ufrgs.br/bitstream/handle/10183/226324/001130804. pdf?sequence=1&isAllowed=y. RAMOS, T. V. O sujeito entre culturas: o espaço da diferença no encontro com o outro/Outro [tese de doutorado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras, Porto Alegre, 2017. Disponível em: https://lume. ufrgs.br/bitstream/handle/10183/159110/001022955. pdf?sequence=1&isAllowed=y. 15 https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/226324/001130804.pdf?sequence=1&isAllowed=y https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/226324/001130804.pdf?sequence=1&isAllowed=y https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/226324/001130804.pdf?sequence=1&isAllowed=y https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/159110/001022955.pdf?sequence=1&isAllowed=y https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/159110/001022955.pdf?sequence=1&isAllowed=yhttps://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/159110/001022955.pdf?sequence=1&isAllowed=y FORMAÇÃO IDEOLÓGICA X FORMAÇÃO DISCURSIVA No tópico anterior, falamos sobre a ideologia, um mecanismo que está presente na constituição do sujeito do discurso. Aqui, desdobraremos nossa discussão discorrendo sobre duas noções teóricas da AD que estão intrinsecamente interligadas à de ideologia, que são: formação ideológica (FI) e formação discursiva (FD). Pêcheux ([1969] 1993), resgatando a noção de ide- ologia proposta por Althusser, formula o conceito de FI, definida como: Formação ideológica é o conjunto complexo de atitudes e representações, não individuais nem universais, que se relacionam às posições de classes em conflito umas com as outras. A FI é um elemento suscetível de intervir como uma for- ça em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social. Pêcheux (1975) afirma que as palavras, expressões, proposições, mudam de sentido segundo as posi- ções sustentadas por aqueles que as empregam, sentidos esses que são determinados, então, em referência às formações ideológicas nas quais se inscrevem estas posições (ver formação discursiva) (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 15-16). 16 Atrelada à noção de FI está a noção de FD, que, segundo Pêcheux (2014, p. 147): “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada [...] determina o que pode e deve ser dito”, ou seja, a FD encontra-se no interior da FI e corresponde ao espaço possível de constituição dos sentidos pela assunção do sujeito a determinadas posições discursivas. Va- mos observar mais detalhadamente o que esboça o Glossário de Termos do Discurso (2001): Formação discursiva é a manifestação, no discur- so, de uma determinada formação ideológica em uma situação de enunciação específica. A FD é a matriz de sentidos que regula o que o sujeito pode e deve dizer e, também, o que não pode e não deve ser dito (Courtine, 1994), funcionando como lugar de articulação entre língua e discurso. Uma FD é definida a partir de seu interdiscurso e, entre forma- ções discursivas distintas, podem ser estabelecidas tanto relações de conflito quanto de aliança. Esta noção de FD deriva do conceito foulcauteano (1987) que diz que sempre que se puder definir, entre um certo número de enunciados, uma regularidade, se estará diante de uma formação discursiva. Na AD, este conceito é reformulado e aparece associado à noção de formação imaginária (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 15-16. 17 Como podemos perceber, a noção de FD nasceu em Foucault e ganhou novos desdobramentos na AD, com os estudos de Pêcheux sobre o conceito, vinculando-o à noção de ideologia. Em leitura às definições aqui apresentadas, podemos perceber que o sujeito assume posição no discurso por ser/ estar afetado ideologicamente, pois filia-se a FDs que, por sua vez, encontram-se no interior de FIs. As FIs, assim, comportam diferentes e múltiplas FDs, conforme buscamos elucidar na imagem da figura 3: Figura 3: Formação Ideológica e Formações Discursivas FD FD FD FD Formação Ideológica Fonte: Elaboração Própria 18 No cerne de uma FI estão uma série de FDs, regiões de sentido que são ou não habitadas pelo sujeito, conforme os saberes aos quais se identifica. Logo, por estar filiado a uma FD no interior de uma FI dada, o sujeito toma uma posição: “O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discur- siva e não outra para ter um sentido e não outro” (ORLANDI, 2013, p. 43). Os estudos de Indursky, que culminaram em seu livro Discurso do/sobre o MST: Movimento social, sujeito, mídia (2019), nos permitem identificar as distintas posições ideológicas em jogo assumidas pelos sujeitos sobre os quais tece sua análise: de um lado, os sem-terra, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), e, de outro, os latifundiários, fazendeiros, proprietários da terra. A autora analisa as diferentes designações atribuí- das à posse da terra no Brasil por meio de recortes de matérias veiculadas na Folha de São Paulo, entre os anos de 1995 e 1996, sobre a temática. Em sua análise, ela identifica suas designações que remetem à luta pela terra: invasão e ocupação. 19 SAIBA MAIS Para ter acesso aos textos, na íntegra, publicados por Indursky em torno da questão do MST, leia os textos indicados a seguir: INDURSKY, F. De ocupação a invasão: efeitos de sentido no discurso do/sobre o MST. In: INDURSKY, F; LEAN- DRO-FERREIRA, M. C. (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 1999. INDURSKY, F. O entrelaçamento entre o político, o jurídico e a ética no discurso do/sobre o MST: uma questão de lugar-fronteira. Rev. ANPOLL, n. 12, p. 111-131, jan./jun. 2002. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens. com.br/revista/article/view/507. INDURSKY, F. A emergência do sujeito desejante no discurso do MST. Gragoatá, v. 18, n. 34, p. 27-38, 2013. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gragoata/article/ view/32957/18944. No entendimento de Indursky (2002, p. 121), “Na Formação Discursiva em que os sem-terra se ins- crevem, as terras são ocupadas, é lícito mesmo fazerem-se ocupações, pois ‘as terras são impro- dutivas’ ou devolutas e há famílias que querem, mas não têm ‘onde plantar’”. Assim, portanto, o MST, ao referir-se à legalidade do movimento que encampa, de seu direito a uma terra que está improdutiva, filiam-se a uma FD denominada por SAIBA MAIS 20 https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/507 https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/507 https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/32957/18944 https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/32957/18944 Indursky como FD Sem Terra. Nela, a ocupação da terra é legítima. Ao dizer “ocupação”, o sujeito se filia a uma FD cujos sentidos remetem à lega- lidade, à ética. De maneira distinta, no discurso dos proprietários da terra predomina a questão da violação da pro- priedade privada, referindo-se, estes, ao movimento como “invasão”, filiados a uma FD que Indursky nomeia como FD dos Latifundiários. No entendi- mento da autora, “A designação invasores, com todos os efeitos de sentido que dela provêm, está garantida por um discurso que sacraliza e imobiliza a noção de direito de propriedade [...]” (INDUSRKY, 2002, p. 124). Ou seja, para os proprietários rurais, os sem-terra estão violando a lei ao invadirem as propriedades privadas. Como foi possível percebermos, a partir da análise realizada por Indursky, a qual trouxemos um recorte aqui, há posições ideológicas antagônicas que se mostram na filiação dos sujeitos a FDs distintas, afinal ocupação representa aí a legalidade da ação dos sem-terra, enquanto invasão, o desrespeito à lei. Trouxemos essa materialidade, analisada por Indursky, de modo que pudéssemos perceber, de maneira prática, como as noções teóricas aqui mobilizadas se imbricam no objeto de estudo, 21 contribuindo, também, para a contextualização das noções aqui trabalhadas. SAIBA MAIS Para compreender melhor as noções de formação dis- cursiva e formação ideológica, leia esses verbetes no livro Glossário de termos do discurso e assista também aos vídeos indicados abaixo: PRUINELLI, A. M. Formação discursiva. In: LEANDRO- -FERREIRA, M. C. Glossário de termos do discurso. 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. p. 115-120. PRUINELLI, A. M. Formação ideológica. In: LEANDRO- -FERREIRA, M. C. Glossário de termos do discurso. 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. p. 121-124. Vídeo 1 – Formação Discursiva I – Freda Indursky (UFRGS) Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=Qs1KtjJI8Ik Vídeo 2 – Formação Discursiva II – Freda Indursky (UFRGS) Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=B5ktV9VO6hg SAIBA MAIS 22 https://www.youtube.com/watch?v=Qs1KtjJI8Ik https://www.youtube.com/watch?v=Qs1KtjJI8Ikhttps://www.youtube.com/watch?v=B5ktV9VO6hg https://www.youtube.com/watch?v=B5ktV9VO6hg PÊCHEUX E A DERIVA DOS SENTIDOS As noções de formação ideológica e formação discursiva, explicitadas na última seção, nos permi- tem perceber o modo pelo qual o sujeito é afetado por processos sócio-histórico-ideológicos e toma partido com base nas posições que assume, nos lugares que ocupa. O trabalho com o sentido, em AD, é uma constante (re)construção. Isso, porque a teoria formulada por Pêcheux não trabalha com sentidos dados, prontos, acabados, mas com processos de produção de sentidos. Isso significa que cada palavra, termo, enunciado pode ter um sentido ou outro dependen- do do sujeito que fala, de onde fala, quando fala, ou seja, das condições de produção do discurso. FIQUE ATENTO O sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo, só pode ser constituído em refe- rência às condições de produção de um determinado enunciado, uma vez que muda de acordo com a formação ideológica de quem o (re)produz, bem como de quem o interpreta. O sentido nunca é dado, ele não existe como produto acabado, resultado de uma possível transparên- cia da língua, mas está sempre em curso, é movente e REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 23 se produz dentro de uma determinação histórico-social, daí a necessidade de se falar em efeitos de sentido. Fonte: Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 22. Nesse entendimento, Orlandi (2013, p. 44) vai nos dizer que “Palavras iguais podem significar dife- rentemente porque se inscrevem em formações discursivas diferentes”. Ou seja, o sentido não se encontra na palavra em si, em sua literalidade, mas se constitui na relação do sujeito com o mundo, levando em conta a historicidade da língua, as condições de produção do discurso. Afinal, pensar no sentido requer considerar a relação da língua com a história. Diante disso, é importante refletir que em AD não estamos lidando com uma língua transparente, como pressupõe a análise de conteúdo, mas com a língua em relação à história para produzir sentidos, pois na teoria do discurso forma e conteúdo são inseparáveis e busca-se compreender a língua, conforme pontua Orlandi (2013), não como es- trutura simplesmente, mas como acontecimento. Pensando nisso e buscando explicitar como ocorre o funcionamento dos sentidos na língua, vamos a uma questão prática: o que vem à sua mente quando ouve a palavra ‘casa’? Que sentidos podem ser atribuídos a esse significante? Abaixo, de modo 24 que possamos visualizar alguns sentidos possíveis que podem ser conferidos ao termo (lembrando que podem haver muitos outros), elaboramos um esquema que pudesse representar esse processo: Figura 4: alguns sentidos de ‘casa’ casa lar família proteção violênciaimóvel amor dor Fonte: Elaboração Própria Qual sentido você atribuiu à ‘casa’? Foi algum desses que dispomos acima? Como podemos perceber, há um rol de sentidos possíveis que podem ser atribuídos à ‘casa’, entre tantos outros que não citamos aqui, pois, lembremos, os sentidos não 25 são dados, mas são construídos historicamente, resultado da relação que o sujeito estabelece com o mundo, do uso que faz da língua em suas práticas sociais. Em AD, assim, o sentido não está dado a priori, porque há sempre movimento, deslocamento, ruptura, falha, deriva, deslize. Isso representa dizer que os sentidos podem ser uns ou outros depen- dendo das posições ideológicas assumidas pelo sujeito do discurso, assim como das condições históricas de produção. Nesse caso, por exemplo, um sujeito que atribuiu um determinado sentido a um dado enunciado hoje pode não o fazer em outro momento, em decorrência das circunstâncias da enunciação, as quais não serão as mesmas, portanto o sentido também poderá não ser. REFLITA Para que você possa se familiarizar ainda mais com o processo de produção de sentido em AD, faça um exercício questionando aos seus familiares e/ou amigos quais sentidos eles atribuem a determinadas palavras. Sugestão: FAMÍLIA / VIDA / TRABALHO / RIQUEZA / AMOR / NATUREZA Os sentidos certamente não serão os mesmos, pois em AD eles estão em relação com a historicidade da língua, REFLITA 26 com o lugar que ocupa o sujeito, com as condições de produção do discurso, com o mecanismo ideológico. Trabalhar com o sentido em AD, portanto, vai na contramão da concepção de língua como algo transparente, reflexo do pensamento, afinal essa ilusão é produzida pela ideologia, que mascara o modo como os sentidos se constituem, fazendo parecer que eles já estivessem sempre já-lá. Or- landi (2013, p. 46), nesses termos, afirma que “[...] a evidência do sujeito – a de que somos sempre já sujeitos – apaga o fato de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia”, ou seja, o efeito de evidência e transparência apaga a histo- ricidade da língua. A AD, assim, indo de encontro às teorias tradicionais: Desconfia do óbvio e vai ao encontro da opacidade do texto, na escuta do dito e do não dito, dos sentidos que aparentemente faltam e dos que se mostram saturados, em excesso, e que acabam por produzir o equívoco, o sentido-outro e o desconforto do sujeito (LEANDRO-FERREIRA, 2020, p. 24). Os sentidos podem sempre ser outros porque a língua, em AD, é tomada em sua forma material, e não abstrata ou homogênea, mas portadora da opacidade, que se refere, assim, à intervenção da história na produção dos sentidos. É importante 27 frisar que a história, em AD, não diz respeito a uma ordem cronológica de fatos, mas ao “[...] acontecimento do texto como discurso, o trabalho dos sentidos nele. Sem dúvida, há uma ligação entre a história externa e a historicidade do texto (trama de sentidos nele)” (ORLANDI, 2013, p. 68). A historicidade, assim, faz parte das relações de sentido estabelecidas pelo sujeito em contato com a língua. FIQUE ATENTO Historicidade é o modo como a história se inscreve no discurso, sendo a historicidade entendida como a relação constitutiva entre linguagem e história. Para o analista do discurso, não interessa o rastreamento de dados históricos em um texto, mas a compreensão de como os sentidos são produzidos. A esse trabalho dos sentidos no texto e à inscrição da história na linguagem é que se dá o nome de historicidade (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 17). A historicidade e a opacidade fazem com que na língua haja sempre espaço para o diferente, es- tando aberta a novos processos de significação, à multiplicidade dos sentidos, a tudo aquilo capaz de romper com sua estabilidade aparente. O trabalho com o sentido requer pensarmos também em dois conceitos de suma importância para sua REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 28 produção: paráfrase e polissemia. Orlandi define essas noções explicando que a paráfrase consiste na reiteração do mesmo (do igual), enquanto a po- lissemia refere-se à produção da diferença. Diante disso, a autora pontua que no mesmo, “apesar da variedade da situação e dos locutores, há um retorno ao mesmo espaço dizível (Paráfrase) ”, e no diferente, “nas mesmas condições de produção imediatas (locutores e situação), há no entanto um deslocamento, um deslizamento de sentidos (Polissemia)” (ORLANDI, 1998, p. 15). Como podemos observar, tanto a paráfrase quanto a polissemia compreendem a produção de sentido como um efeito. Naquela, o sentido é retomado, recuperado, constituindo-se a partir do que Pêcheux ([1975] 2014) chama de ‘matriz de sentido’; nesta, o sentido sofre deslocamento, deslize, ruptura, novas rotas de significação. O sentido, portanto, é esse constante movimento, num trabalho com o mesmo e com o diferente, que é delineado pelas posições discursivas assumidas pelo sujeito num dado contexto sócio-histórico-i- deológico, em que a língua não se configura como um sistema fechado, mas, pela historicidade que a constitui, é opaca e, por isso, aberta a novos processos de significação. 29 O PRIMADO DO INTERDISCURSOO interdiscurso pode ser compreendido como uma região de sentidos que é recortada, via memória, pelos sujeitos em suas tomadas de posição. A definição presente no Glossário de Termos do Discurso (2001) é: Interdiscurso compreende o conjunto das formações discursivas e se inscreve no nível da constituição do discurso, na medida em que trabalha com a ressigni- ficação do sujeito sobre o que já foi dito, o repetível, determinando os deslocamentos promovidos pelo sujeito nas fronteiras de uma formação discursiva. O interdiscurso determina materialmente o efeito de encadeamento e articulação de tal modo que aparece como o puro “já-dito” (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 18). Pêcheux (1993, p. 314) vai nos dizer que o in- terdiscurso representa “o exterior específico de uma formação discursiva”, espaço dos múltiplos sentidos, por isso é definido pelo autor como “todo complexo com dominante das formações discursivas” (PÊCHEUX, [1975] 2014, p. 149), pois é no espaço do interdiscurso e na relação entre as diferentes FDs que o sentido se produz. 30 O interdiscurso é categorizado de duas formas: pré-construído e discurso transverso. Os senti- dos presentes no interdiscurso podem ser, nesse entendimento, preestabelecidos ou atravessados por discursos outros, a depender do modo como o sujeito assume sua posição. O pré-construído institui relações de sentido na língua que aparecem como evidentes, pelo efeito da ideologia. Os sentidos, assim, mostram-se sempre já-lá, como já ditos, marcando aquilo que se repete materialmente na língua, que lhe é exterior. Gatti compreende que, “[...] para o sujeito, trata-se de uma evidência, como se aquilo que é da ordem do pré-construído fosse simplesmente um reflexo da verdade” (2014, p. 398), daí a reprodução contínua dos mesmos dizeres na língua trata de marcar sen- tidos que são da ordem “daquilo que todo mundo sabe” (PÊCHEUX, [1975] 2014, p. 171). No discurso transverso, a ressignificação ocorre na retomada, no deslizamento de sentidos que se atravessam, se confundem, se misturam. Nesse movimento, portanto, há uma mexida nos modos de significar, e torna-se possível pensar que a “[...] repetição discursiva, nesse caso, se faz pelo viés do discurso transverso” (INDURSKY, 2011, p. 80). Nesse trajeto, dado o processo de repetição no (e do) discurso, podemos considerar que o discurso 31 transverso irrompe como um “[...] processo de retomada [que] se faz no discurso do sujeito: o discurso-outro entra de viés no discurso do sujeito, tangenciando-o e nele fazendo eco de algo que foi dito em outro lugar” (INDURKY, 2011, p. 70). Nessa discussão, podemos dizer que o discurso-outro de um dado período da história, por exemplo, emerge pelo funcionamento da memória discursiva, fa- zendo eco e produzindo novos dizeres em outras condições de produção. Pré-construído é o enunciado simples proveniente de discursos outros, anteriores, “como se esse elemento já se encontrasse sempre-aí por efeito da interpelação ideológica”(Pêcheux, 1975). Essa formulação de um já-dito assertado em outro lugar permite a incorporação de pré-construídos à FD, concebida como um domínio de saber fechado, fazendo-a relacionar-se com seu exterior (Glossário de Termos do Discurso, 2001, p. 18). O discurso-transverso, assim como o pré-construído, diz respeito ao funcionamento material do interdiscurso que opera pela articulação e/ou sustentação de enunciados, REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 32 reproduzindo os saberes da forma-sujeito com a qual o sujeito se identifica (AMARAL e VINHAS, 2020, p. 75). Sob essas duas formas – pré-construído e discurso transverso –, o interdiscurso se configura como um lugar de acesso aos sentidos que integram as diferentes regionalizações do saber, as FDs. Na relação do sujeito com a língua, ele é afetado por sentidos presentes no interdiscurso. Pruinelli (2018), em sua dissertação de mestrado, utiliza metaforicamente o termo ‘nuvem discursiva’ para se referir ao interdiscurso. Para ela, a nuvem “[...] funciona como um espaço/local não físico que armazena/condensa todas as informações que, quando acessadas pelo usuário, advêm dela, funcionando como um repositório, um local onde todos os sentidos estão, a priori, armazenados (PRUINELLI, 2018, p. 50). Abaixo, trazemos uma imagem elaborada pela autora para representar a nuvem discursiva (interdiscurso): 33 Figura 5: Representação do ‘interdiscurso’ Interdiscurso (nuvem discursiva) Discurso transverso Discurso Memória Pré- construído Ideologia Língua História Inconsciente Fonte: Pruinelli, 2018, p. 51. Adaptado. O esquema nos permite compreender que o sujeito, ao acessar as informações, enunciados e já ditos presentes na nuvem, materializa no discurso tudo aquilo que o atravessa. Ele resgata sentidos, via memória, que podem ser da ordem do pré-cons- truído ou do discurso transverso e formula seu próprio dizer, num movimento de repetição ou reformulação, afetado pela ideologia da língua. Assim, portanto, a nuvem discursiva representa “[...] o espaço não físico onde habitam todos os dizeres, fonte de todos os sentidos, de todos os já ditos que, ao serem recortados/reavivados pela memória, vão (res)significar no discurso pela inscrição dos sujeitos nas FDs” (PRUINELLI, 2018, p. 51). Os sentidos são, pois, recortados do interdiscurso para significarem, na língua, a partir 34 da posição discursiva assumida pelo sujeito numa dada conjuntura. A posição assumida pelo sujeito é determinada ideologicamente, numa relação que ocorre entre a língua e a história, articulação necessária para a produção de sentidos. Do interdiscurso, ele fil- tra saberes exteriores às FDs e se inscreve nelas quando de sua identificação aos sentidos em jogo. O interdiscurso funciona, assim, como um lugar de dispersão, casa dos sentidos, sendo condição necessária para a existência das FDs, para sua emergência no fio do discurso. SAIBA MAIS Para compreender melhor a noção de interdiscurso, pré-construído e discurso transverso, leia as definições desses conceitos publicadas no “Glossário de Termos do Discurso – edição ampliada”: COSTA, I.; GUIMARÃES, G. T. D. Interdiscurso/Intradiscurso. In: LEANDRO-FERREIRA, M. C. Glossário de termos do discurso. 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. p. 161-166. GARBIN, S. R. Pré-construído. In: LEANDRO-FERREIRA, M. C. Glossário de termos do discurso. 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. p. 241-244. AMARAL, P. C. do; VINHAS, L. I. Discurso transverso. In: LEANDRO-FERREIRA, M. C. Glossário de termos do SAIBA MAIS 35 discurso. 1. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. p. 75-78. 36 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apresentamos, ao longo deste e-book, noções teóricas muito caras à AD de Escola France- sa – ideologia, formação ideológica, formação discursiva, sentido, historicidade, interdiscurso, pré-construído, discurso transverso – e que se encontram entrelaçadas na teoria. Afinal, traba- lhar com a noção de ideologia remete à noção de sujeito, sentido, formação ideológica, formação discursiva, discurso, interdiscurso, e por aí vai. Além disso, também buscamos relacionar algumas dessas noções na teoria com situações presentes na vida em sociedade. Visamos, assim, num primeiro momento, situá-lo teoricamente em relação ao conceito de ideologia na seara discursiva. Analisamos, assim, que a ideologia nos afeta e nos constitui sujeitos, logo, é por meio dela que a interpretação se dá, que o sentido se produz. Isso porque a ideologia nos torna sujeitos, afinal, quando assumimos uma posição no discurso e não outra, somos sujeitos do discurso. Como foi possível atestarmos, o estudo em torno do mecanismo ideológico, nesses termos, fez com que, na teoria discursiva, surgissem duas noções teóricas basilares na AD: a de FI, compreendida como um conjunto de saberes, dizeres, práticas 37 aos quais nos filiamos por meio das FDs,que são zonas que representam os recortes que realizamos ao tomar uma posição. Trouxemos para a conversa uma análise resultan- te de uma série de pesquisas desenvolvidas por Indursky em relação às designações “invasão” e “ocupação” atribuídas ao MST. A partir da análise empreendida pela autora, verificamos que os sem-terra e os proprietários rurais, ao utilizarem diferentes designações para se referirem ao mo- vimento, estão situados em FDs antagônicas. Posteriormente, empreendemos uma discussão em torno da noção de sentido em AD, compreendido como aquilo que “[...] é estabelecido na relação entre a língua e o discurso” (VINHAS, 2020, p. 258). Estudamos também que trabalhar com o sentido na teoria discursiva requer pensá-lo sempre em suspenso, dada a heterogeneidade da língua, de sua não literalidade/transparência. Nesse entendimento, o sentido é construído na relação do sujeito – que é interpelado ideologica- mente – com o social – mediado pela historicidade da língua. No processo de construção/produção de sentidos, há espaço para o mesmo e para o dife- rente, compreendidos na teoria como movimentos de paráfrase e polissemia – aquilo que é retomado e aquilo que origina novos dizeres/sentidos. 38 Por fim, mobilizamos a noção de interdiscurso e duas noções teóricas que estão a ele interligadas: pré-construído e discurso transverso. Na discussão que empreendemos, verificamos que o sujeito, pela memória do dizer, canaliza do interdiscurso deter- minados sentidos, o que possibilita sua inscrição nas FDs. Para Orlandi (2012, p. 171), “Uma coisa ou outra – a estabilização ou a transformação – vai depender da natureza do gesto de interpretação produzido, da posição do sujeito em sua filiação ao interdiscurso”. Quer dizer: o sujeito pode repro- duzir já ditos, sob a forma de pré-construídos, ou deslocar sentidos, pela articulação do discurso transverso. 39 Referências Bibliográficas & Consultadas BARRETO, R. G. Análise de Discurso: Conversa com Eni Orlandi. Revista Teias, Rio de Janeiro, 2006, ano 7, n. 13-14, p. 1-7, jan/dez. 2006. Disponível em: https://www.e-publicacoes. uerj.br/index.php/revistateias/article/ view/24623/17602. Acesso em: 14 de junho de 2022. BRAIT, B. (Org.). Bakhtin dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. [Biblioteca Virtual]. BRAIT, B.; SOUZA-E-SILVA, M. C (Orgs.). Texto ou discurso? São Paulo: Contexto, 2012. [Biblioteca Virtual]. CONFLITO em protesto contra refugiados deixa dois feridos na Alemanha. G1, 2015. 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