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Camila Borges Dos Anjos LÍNGUA, ENUNCIAÇÃO E DISCURSO Sumário INTRODUÇÃO ������������������������������������������������� 3 A HISTÓRIA DA ANÁLISE DE DISCURSO FRANCESA (ADF): MATERIALISMO HISTÓRICO, LINGUÍSTICA E PSICANÁLISE �� 4 ANÁLISE DO CONTEÚDO X ANÁLISE DO DISCURSO ���������������������������������������������������� 11 LÍNGUA E LINGUAGEM EM UMA PERSPECTIVA INTERACIONAL ������������������� 18 O DISCURSO: ENTRE A LÍNGUA E A FALA ��� 26 O APARELHO FORMAL DA ENUNCIAÇÃO (BENVENISTE) ���������������������������������������������� 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS ���������������������������� 39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS & CONSULTADAS �������������������������������������������� 42 2 INTRODUÇÃO Caro estudante, neste e-book estudaremos a ori- gem do campo teórico da Análise de Discurso de linha francesa, desde seu surgimento na França, distinguindo-a da análise de conteúdo. Com isso, realizaremos uma discussão em torno de língua e linguagem, passando ao campo do discurso e da enunciação. Para esse estudo, dividimos o e-book em cinco tópicos, a saber: A História da Análise de Discurso Francesa (ADf): Materialismo Histórico, Linguística e Psicanálise; Análise de Conteúdo X Análise de Discurso; Língua e Linguagem em uma perspectiva interacional; O discurso: entre a língua e a fala; e O Aparelho Formal da Enunciação (Benveniste). É por meio dessa sequência didática que se tornará possível compreender o lugar que a Análise de Discurso ocupa nos estudos da linguagem. 3 A HISTÓRIA DA ANÁLISE DE DISCURSO FRANCESA (ADF): MATERIALISMO HISTÓRICO, LINGUÍSTICA E PSICANÁLISE Neste tópico, você conhecerá um pouco sobre o percurso histórico da Análise de Discurso pecheu- tiana, surgida na França ainda na década de 60, contrapondo-se à ideia de um sujeito dotado de intenções e consciente de suas ações. Michel Pêcheux (1938-1983) foi o fundador da Escola Francesa de Análise de Discurso. Pêcheux utilizou-se de diferentes abordagens teóricas, produzindo um novo recorte nas disciplinas, para fundar a teoria do discurso, que compreende a linguagem materializada na e pela ideologia. No entendimento de Carvalho (2008, p. 17, grifos do autor), Podemos tomar como marco deste contexto o ano de 1969. Neste ano, ocorre uma curiosa confluência de distintos projetos, todos eles de alguma forma SAIBA MAIS 4 centralizados em torno da noção de “discurso”: a publicação, por Michel Foucault, de A Arqueologia do Saber; a publicação, por Michel Pêcheux, de Análise Automática do Discurso; o Seminário 17, O avesso da Psicanálise, proferido por Jacques Lacan, no qual o psicanalista formaliza a sua teoria dos quatro discursos. Buscando se afastar dos estudos estruturalistas de língua, Michel Pêcheux, filósofo e linguista francês, publicou a obra Análise Automática do Discurso, em 1969, que deu início ao que se tornaria a Teoria de Análise de Discurso (AD) francesa. No entendi- mento de Leandro-Ferreira (2020, p. 25): A rigor, o que a AD faz de mais corrosivo é abrir um campo de questões no interior da própria lin- guística, operando um sensível deslocamento de terreno na área, sobretudo nos conceitos de língua, historicidade e sujeito, deixados à margem pelas correntes em voga no momento. Nesse entendimento, a Análise de Discurso (AD) surgiu buscando ultrapassar a ideia de língua en- quanto um sistema de códigos, informações ou atos de fala, ao propor um novo objeto de estudo, o discurso, que esteve, desde o início, diretamente relacionado à ideologia, aos fatores sociais, his- 5 tóricos e linguísticos. Nesse sentido, conforme Courtine (1999, p. 16): [...] não é da língua que está se tratando, mas de discurso, quer dizer, de uma ordem própria, distinta da materialidade da língua, no sentido que os lin- guistas dão a esse termo, mas que se realiza na língua: não na ordem do gramatical, mas na ordem do enunciável, a ordem do que constitui o sujeito falante em sujeito de seu discurso e ao qual ele se assujeita em contrapartida. Nesse movimento, Pêcheux investiu numa teoria que não trabalhasse com uma língua abstrata, isolada e impermeável aos processos de signifi- cação, mas com o discurso, objeto sócio-histórico que permite pensar outras maneiras de produzir sentido, de significar. Conforme Baldini (2013, p. 197), “[...] Pêcheux justificava sua empreitada in- telectual como uma Tríplice Aliança que buscava articular três regiões do conhecimento científico: a) o materialismo histórico, b) a linguística e c) a teoria do discurso”. A AD nasce, assim, da inter-relação dessas três áreas, deslocando as noções teóricas do Materia- lismo histórico, da Linguística e da Psicanálise. A Análise de Discurso se constitui, nesse caso, como denomina Orlandi (1996), como uma disciplina de 6 entremeio, por ser atravessada por esses campos do saber, a qual podemos representar da seguinte maneira: Figura 1: Inter-relação teórica AD francesa Materialismo histórico Linguística Psicanálise Análise do Discurso Fonte: Elaboração Própria. Observando a imagem, podemos verificar a articu- lação teórica existente entre a Análise de Discurso e as demais áreas do conhecimento com as quais opera deslocamentos. E, nessa articulação, Baldini (2013, p. 196) afirma que Pêcheux radicaliza os saberes da psicanálise e do materialismo histórico, investindo “[...] pesadamente numa disciplina de entremeio que busca ver na língua a exterioridade sem que essa se esfumace numa forma sem his- tória ou num sistema fechado” (BALDINI, 2013, p. 7 196). Língua e História estão, portanto, articuladas num mesmo objeto de materialidade linguística: o discurso, definido por Orlandi (2013, p. 21) como “[...] efeito de sentidos entre locutores”. Nas palavras de Santos (2013, p. 233), “Pêcheux, em seu percurso teórico, deixa-nos, como legado, não um modelo fechado. Antes, deixa o terreno aberto, o percurso inacabado em que buscou estabelecer novas formas de entender a linguagem, em uma tensão entre a linguística e as ciências sociais e humanas, a partir de sua relação sujeito/sentido/ideologia. A AD, portanto, apresenta-se como uma disciplina em constante proces- so de desconstrução-reconfiguração-experimentação”. Nessa linha de pensamento, Leandro-Ferreira (2020, p. 25) chama a atenção para o fato de que a AD não se trata de uma disciplina autônoma, mas aquela que “[...] trabalha nos limites das grandes divisões disciplinares”, afinal realiza recortes teóricos tanto no Materialismo histórico quanto na Linguística e na Psicanálise para operacionalizar sua atuação no campo da linguagem. Pensando nisso, podemos afirmar que Pêcheux retorna a Saussure, indo de encontro ao sistema linguístico proposto pelo autor, ao compreender, em AD, a língua enquanto trabalho simbólico na REFLITASAIBA MAISFIQUE ATENTO 8 constituição dos sujeitos e dos sentidos; e faz também uma releitura das noções apresentadas por Althusser, para quem “a História é um proces- so sem sujeito nem fim(s)”, ou seja, a história “[...] não têm sujeitos ou um Sujeito, mas um motor – a Luta de Classes” (BALDINI, 2013, p. 193). Assim, a partir das teses althusserianas de assujeitamento, Pêcheux lança um novo olhar para esse sujeito, buscando, em Freud e Lacan, pensar a natureza inconsciente envolvida na configuração desses processos. Nesse sentido, conforme Mariani e Magalhães (2013, p. 102), “É no entremeio do campo epistemo- lógico formado pela linguística, pelo materialismo histórico e pela psicanálise que Pêcheux localiza a análise do discurso”. A teoria do discurso, assim, nasce da articulação teórica entre essas três áreas do conhecimento, utilizando-se de cada qual para sua formulação e desenvolvimento. SAIBA MAIS Como podemos perceber, Michel Pêcheux foi o precursor da AD na França, na década de 1970; e no Brasil, a pre- cursora da teoria foi Eni Orlandi. Para conhecer melhor esses pesquisadores e também suas obras, assista aos vídeos indicados a seguir:SAIBA MAIS 9 Vídeo 1 – Michel Pêcheux: Análise de Discurso, do Canal Digital Educação Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=T9KJyddpi04 Vídeo 2 – Quem é Eni Orlandi, do Canal Intertexto: Dis- curso e Linguagem Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=PiIg_xHRO90 10 https://www.youtube.com/watch?v=T9KJyddpi04 https://www.youtube.com/watch?v=T9KJyddpi04 https://www.youtube.com/watch?v=PiIg_xHRO90 https://www.youtube.com/watch?v=PiIg_xHRO90 ANÁLISE DO CONTEÚDO X ANÁLISE DO DISCURSO De que maneira a Análise do Discurso se diferencia de outras disciplinas teóricas? Qual a diferença entre análise do discurso e análise do conteúdo? Com base nesses questionamentos, buscamos, nesta seção, apresentar o campo epistemológico da AD francesa, por meio de seus pressupostos teóricos, que nos permitem identificar seu lugar nos estudos da linguagem. Como discutimos no tópico anterior, a AD francesa estabelece contato com áreas do conhecimento com as quais faz fronteira, e de cada qual extrai objetos de estudo que a interessam: da Linguísti- ca, a língua, deslocando-a da ideia estrutural, de um sistema fechado; do Materialismo histórico, os modos de produção da história, das condições materiais de existência; da Psicanálise, o incons- ciente, pelo qual o sujeito é afetado e determinado, juntamente com a ideologia. A AD desponta, nessa perspectiva, como uma categoria teórica que estuda a língua em funcio- namento, considerando sua materialidade histó- rica e a interpelação do indivíduo em sujeito pela ação da ideologia e do inconsciente. Essa base epistemológica trabalha no sentido de desconstruir 11 evidências, a transparência da linguagem, com um olhar voltado à opacidade, aos não ditos, a vários e outros sentidos possíveis. O sentido, em AD, não é único, dado, literal, neutro ou homogêneo, mas sim múltiplo, diverso, emanando da relação existente entre língua e discurso: “[...] para que exista sentido deve-se olhar para aquilo que a língua (não) mostra, já que a relação entre a palavra e a significação é opaca” (VINHAS, 2020, p. 258). Ou seja, o sentido não é ou está, mas se constrói, deriva da interpretação do sujeito, em determinadas condições de produção, na relação que estabelece com a língua e com o discurso. A AD, nesses termos, ao trabalhar com a hetero- geneidade dos sentidos, vai mobilizar a língua no mundo, em funcionamento, dada a exterioridade que a constitui. E é justamente a ampla capacidade de interpretar, justificada pelas condições de produção do discurso, que “[...] compreendem fundamental- mente os sujeitos e a situação” (ORLANDI, 2013, p. 30), que permite distinguir a teoria do discurso de outras bases epistemológicas. Assim, enquanto a análise de discurso se preocu- pa com a exterioridade da língua nos processos de significação, frente às condições de produção do discurso, a análise de conteúdo, por exemplo, vai trabalhar, analiticamente, com a materialidade 12 linguística, com o texto como unidade de análise, independentemente das condições em que foi produzido. Partindo desse pressuposto, Santos (2013, p. 210) vai nos dizer que a AD, nesse sentido, “[...] diverge da análise de conteúdos, que concebe o texto como projeção extradiscursiva, sem preocupações referentes às articulações linguísticas e textuais, muito em voga na área das ciências humanas [...]”, ao considerar o funcionamento da língua em condições de produção determinadas. Caregnato e Mutti (2006, p. 679) discorrem que “A principal diferença é que a Análise de Discurso trabalha com o sentido do discurso e a Análise de Conteúdo com o conteúdo do texto”, ou seja, en- quanto a primeira realiza uma articulação entre os aparatos linguístico, histórico e social, percorrendo os modos de produção dos sentidos, a segunda se ocupa, basicamente, com a forma e o conteúdo. [...] a AD trabalha com o sentido e não com o conte- údo; já a AC trabalha com o conteúdo, ou seja, com a materialidade linguística através das condições empíricas do texto, estabelecendo categorias para sua interpretação. Enquanto a AD busca os efeitos de sentido relacionados ao discurso, a AC fixa-se apenas no conteúdo do texto, sem fazer relações além deste. A AD preocupa-se em compreender os 13 sentidos que o sujeito manifesta através do seu discurso; já a AC espera compreender o pensa- mento do sujeito através do conteúdo expresso no texto, numa concepção transparente de linguagem (CAREGNATO; MUTTI, 2006, p. 683-684). Nesse viés, a análise de conteúdo se mostra como um dispositivo pautado principalmente na compreensão textual, numa forma explícita de leitura, não compreendendo a exterioridade como constitutiva do processo. A análise de conteúdo trata-se de uma metodologia que foi proposta por Bardin (1977, p. 42), considerada: [...] um conjunto de técnicas de análise das comu- nicações visando obter, por procedimentos siste- máticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de [...] recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. Como pontua o autor, a análise de conteúdo tra- balha na ordem da descrição de textos. A análise de discurso, por sua vez, leva em consideração as condições sócio-históricas de produção do sentido, os não ditos, as falhas, a incompletude da linguagem. Em AD, portanto, como menciona Orlandi, os sentidos podem ser outros, podem ser 14 vários, mas não podem ser qualquer um. Noutras palavras, um mesmo objeto pode ser interpretado de uma maneira ou de outra a partir da posição discursiva do sujeito que o interpreta. Assim, por exemplo, como sugere a autora, “[...] a palavra ‘ter- ra’ não significa o mesmo para um índio, para um agricultor sem-terra e para um grande proprietário rural” (ORLANDI, 2013, p. 45). A AD dessuperficializa o sentido, desmascara sua evidência. Logo, os sentidos são produzidos com base nas posições ideológicas que os sujeitos assumem no discurso. Cada palavra, e cada ex- pressão, pode ser interpretada de maneira diferente a partir das vivências, crenças e experiências de cada um. Com isso, “Os sentidos não estão assim predeterminados por propriedades da língua” (ORLANDI, 2013, p. 44), como ocorre na análise de conteúdo, mas produzidos mediante a relação do sujeito com a linguagem. Abaixo, buscamos elucidar, por meio de uma tabela, as diferenças presentes nesses dois tipos de análise: Tabela 1: análise de conteúdo e análise de discurso Análise de conteúdo Análise de discurso Busca desvendar o que está por trás do significado das palavras Busca investigar como se constrói o(s) sentido(s) do texto Trabalha com a evidência do sentido Trabalha com a não evidência do sentido 15 Visa à codificação do texto Volta-se ao trabalho com a interpretação do texto Indaga: o que o texto quer dizer? Questiona: como o texto significa? Mobiliza sentidos já dados Trabalha com efeitos de sentido Vincula-se ao conteúdo empí- rico do texto Considera as condições sócio-histórico-ideológicas de produção dos sentidos Fonte: Elaboração Própria. Dessa forma, podemos pensar que a análise de conteúdo vai trabalhar com a codificação do texto, compreendendo-o como transparente, buscando nele uma resposta pronta, atravessando-o em busca de um sentido dado. Na Análise de discurso, por sua vez, o analista vai trabalhar nos limites da interpretação, mobilizando a opacidade textual, ou seja, a multiplicidade de sentidos possíveis de uma palavra ou frase conforme as condições de produção em que é empregada. No campo do discurso, portanto, para investigar como o texto significa, a AD não trabalha com essa materialidade: [...] apenas como ilustração ou como documento de algo que já está sabido em outro lugar e que o texto exemplifica. Ela produz um conhecimento a partir do próprio texto, porque o vê como tendo uma materialidade simbólica própria, como tendo16 uma espessura semântica: ela o concebe em sua discursividade (ORLANDI, 2013, p. 18). Nessa perspectiva, a AD trabalha com o texto discursivamente, como materialidade linguísti- co-histórica, e não apenas como materialidade linguística, ou seja, compreendendo a língua para além de sua estrutura e forma, concebendo-a como acontecimento. Para ampliar ainda mais seu conhecimento a respeito da diferença existente entre análise de conteúdo e análise de discurso, assista aos vídeos abaixo, nos quais pesquisadores da área da linguagem explicam em detalhes como cada um desses campos do saber mobiliza seu aparato teórico: Vídeo 1 – Análise de Conteúdo (Bardin), do Canal de Rodolfo Langhi Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=Qylu8-_qB1s Vídeo 2 – Análise de Conteúdo x Análise de Discurso - Pesquisa na Prática #73, do Canal Acadêmica Pesquisa Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=Q2aQHDRPJ6w SAIBA MAIS 17 https://www.youtube.com/watch?v=Qylu8-_qB1s https://www.youtube.com/watch?v=Qylu8-_qB1s https://www.youtube.com/watch?v=Q2aQHDRPJ6w https://www.youtube.com/watch?v=Q2aQHDRPJ6w LÍNGUA E LINGUAGEM EM UMA PERSPECTIVA INTERACIONAL A teoria interacionista de linguagem vai buscar compreender como a interação constitui a lingua- gem e como a linguagem também é constituída pela interação. Dá-se o nome de Sociolinguística interacional ao ramo da linguística que se dedica ao estudo de como os usuários da língua signifi- cam suas práticas nas interações que realizam no cotidiano. Nas palavras de Gumperz (2015, p. 9, tradução nossa): A Sociolinguística Interacional (SI) é uma abordagem da análise de discurso que tem sua origem na busca de métodos replicáveis de análise qualitativa que explicam nossa capacidade de interpretar o que os participantes pretendem transmitir na prática comunicativa cotidiana. É sabido que os conversa- dores sempre confiam no conhecimento que, além da gramática e do léxico, se faz ouvir. Mas como esse conhecimento afeta a compreensão ainda não é suficientemente compreendido. A perspectiva interacional, nesse sentido, se utiliza da análise de discurso para analisar os diferentes atos discursivos, seja na forma oral, seja na escri- 18 ta, que são veiculados no meio social. Assim, as interpretações resultantes das interações entre os interlocutores fundamentam-se nos significados que emanam daquela troca comunicativa em si e de outras experiências vividas pelo usuário em situações de interação anteriores. No ato comunicativo, conforme pressupõe a teoria interacionista, as interações devem ocorrer levando em consideração o ambiente, os interlocutores, a produção linguística dos falantes. Maldonado (2020, p. 15) aponta que “As diferentes estratégias de contextualização discursivas incluem a lingua- gem corporal, bem como manipulação de objetos, gestos, postura, registro, alterações de estratégias discursivas, entre outras”. Podemos pensar, diante disso, que o momento de interação deve contemplar uma série de estraté- gias para que a mensagem seja transmitida ao(s) interlocutor(es). Assim, por exemplo, quando um padre ou um pastor fala aos fiéis de sua religião, deve considerar sua postura como um represen- tante daquela crença, os gestos que faz ao falar ao povo, a produção linguística que produz etc. Embora a teoria interacionista seja um campo de estudo que tem seus desdobramentos da linguística, ela encontra respaldo na análise de discurso para investigar os processos de interação discursiva. 19 Assim, para analisar esse funcionamento interativo, a Sociolinguística interacionista recupera da AD elementos que podem subsidiá-la. E isso é possível verificarmos, por exemplo, quan- do encontramos aproximações teóricas entre a noção de estratégia discursiva, da Sociolinguística interacionista, e a de relações de força, da Análise de Discurso. Segundo Maldonado (2020, p. 15), “O conceito de dicas estratégicas de contextua- lização permite explicar como os participantes criam contexto e orientam os seus interlocutores no traço a uma interpretação apropriada das suas ações verbais ou não verbais”. E no que tange às relações de força, Orlandi (2013, p. 39) vai afirmar que, “Segundo essa noção, podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz”. Em áreas distintas, esses dois conceitos teóricos apontam basicamente numa mesma direção, ao considerarem que o usuário da língua (sujeito, em AD) fala a partir do lugar que ocupa, buscando produzir determinados sentidos, e não outros, no entanto, sabemos que, na teoria do discurso, esse controle é da ordem do impossível. Nesse aspecto, podemos dizer que, embora as teorias interacionista e do discurso considerem o viés social da lingua- gem em suas abordagens, distanciam-se episte- mologicamente, uma vez que a primeira trabalha 20 com a interpretação dotada de intencionalidade, já a segunda, com gestos de interpretação, haja vista que em AD os sentidos não se encontram predeterminados no fio do discurso. As estratégias discursivas, assim, funcionam como mecanismos dotados de intencionalidade, que buscam, sobremaneira, provocar interpretações desejadas no interlocutor. A teoria interacionista pressupõe a transmissão de uma mensagem, que seria ‘decodificada’ pelo(s) receptores/interlocu- tor(es), conforme ilustra a figura 2 a seguir: Figura 2: esquema da comunicação Teoria da Comunicação RUÍDOS E FALHAS CODIFICADO DECODIFICADO EMISSOR MENSAGEM RECEPTOR FEEDBACK Fonte: Galvão, 2017. Adaptado. Como podemos observar, esse esquema elementar é constituído por um emissor que transmite uma mensagem ao receptor, com base em um código, o qual a recebe e decodifica, ou seja, interpreta o conteúdo da mensagem de maneira que a informa- 21 ção captada faça sentido. Esse é um esquema de comunicação muito comum, que reúne uma série de elementos, os quais explanam o processo de transmissão de uma mensagem. Ao contrário desse processo que acabamos de discutir, para a AD francesa não há emissor, re- ceptor, mas sujeito, e também não a mensagem, mas o discurso. Desse modo, diremos que não se trata de transmis- são de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sen- tidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação (ORLANDI, 2013, p. 21). Nesse entendimento, portanto, em AD não há, como pressupõe a teoria da comunicação, uma linearidade no ato comunicativo, em que emissor e receptor são categorias isoladas, nas quais al- guém fala e o outro decodifica, numa sequência lógica. A AD francesa, ao trabalhar com um sujeito que não é consciente, com uma língua que não é transparente e com sentidos que não são dados, vai pressupor que o sujeito não é “livre”, apenas tem a ilusão de controlar suas intenções. 22 A dificuldade atual das teorias da enunciação reside no fato de que estas teorias refletem na maioria das vezes a ilusão necessária construtora do sujeito, isto é, que elas se contentam em reproduzir no nível teórico esta ilusão do sujeito, através da ideia de um sujeito enunciador portador de escolha, intenções, decisões etc. (PÊCHEUX, 1997, p. 175). Nesse entendimento, o sujeito, afetado por de- terminações sociais, históricas e ideológicas, é atravessado por um funcionamento inconsciente, que, nesse caso, o faz pensar ser origem do dizer e controlar aquilo que diz. Na teoria pecheutiana, a intenção/intencionalidade trata-se de uma ilusão do sujeito, trabalhada por Pêcheux como esque- cimentos 1 e 2. No esquecimento nº 1, também chamado esqueci- mento ideológico, “[...] é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia” (ORLANDI, 2013, p. 35), que mascara os processos de produção dos sentidos, fazendo-nos pensar que aquilo o que dizemos é nosso, enquanto,na verdade, retomamos dizeres já enunciados, ou seja, os discursos não se originam em nós, trata-se apenas de uma representação da qual pensamos ser origem. O esquecimento nº 2 é da “[...] ordem da enuncia- ção: ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não 23 de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer podia sempre ser outro” (ORLANDI, 2013, p. 35). Nesse tipo de esquecimento, compreende-se que aquilo que o sujeito diz só poderia ser dito daquela forma, enquanto, na realidade, há diferentes modos de dizer – sempre é possível dizer de outra forma. Nesse contexto, Vinhas (2020, p. 91) esboça que, “Por um lado, o esquecimento nº 1 concerne à ilusão subjetiva de que o sujeito se encontra na fonte do sentido; de outro lado, o esquecimento nº 2 diz respeito à ilusão subjetiva de que o sujeito controla enunciativamente o sentido do que fala”. O sujeito, no esquecimento nº 1, ‘esquece’ que não é o embrião do dizer; e no esquecimento nº 2, ‘es- quece’ que outras maneiras de dizer são possíveis. Trouxemos para a discussão, aqui, esses dois tipos de esquecimento para que pudéssemos distinguir a intenção mobilizada pela teoria interacionista — derivada de atos conscientes do usuário da língua — do modo como a AD francesa compreende a relação do sujeito com a língua, considerando a ação do inconsciente nesse processo. Todavia, cabe inferir que a perspectiva interacionista tam- bém problematiza esse ‘controle’ sobre a língua atribuído aos seus usuários, haja vista que leva em consideração as interpretações produzidas na cena comunicativa. 24 Nessa linha de pensamento, “Pode-se compreender que a intenção, conforme a Sociolinguística Inte- racional, não é considerada em si mesma, como um completo ‘controle da situação’, visto que ela é sujeita a interpretações dos participantes da interação” (KHALIL, 2017, p. 361). Assim, embora haja, de fato, na teoria interacionista, uma direção enunciativa para o discurso produzido, o controle sobre ela é parcial, dado que não é possível ao usuário da língua garantir que os sentidos inicial- mente previstos sejam praticados e atendam à finalidade da interação, às intenções comunicativas previamente elencadas. 25 O DISCURSO: ENTRE A LÍNGUA E A FALA As abordagens formalistas, como o gerativismo, o estruturalismo, pautavam-se principalmente no estudo da frase como unidade linguística, sem relacioná-la a elementos extralinguísticos, como outras frases, e ao modo como produziam sentido no texto, bem como ao contexto em que ocorria o ato comunicativo. Buscando romper esse modo de compreender a língua, diversas teorias surgiram abrangendo o texto e o discurso, entre elas a AD francesa, cunha- da por Pêcheux com o propósito de ultrapassar a ideia de língua enquanto um sistema de códigos, informações ou atos de fala, ao ressoar uma nova maneira de compreendê-la, o que se deu por meio do discurso, que esteve, desde o início, diretamen- te relacionado aos fatores sociais, históricos e ideológicos. A AD, nesse caso, não está voltada ao estudo de uma língua abstrata, isolada e impermeável aos processos de significação, mas ao estudo do discurso, objeto sócio-histórico e ideológico que permite pensar outras maneiras de produzir sentido, de significar. E para compreender a concepção de língua da qual trata a AD, é preciso, no entendi- 26 mento de Radde (2020, p. 181), “[...] desconstruir a dicotomia língua/fala, única forma de ultrapassar a visão idealista que concebe a língua como um sistema fechado e autônomo”. Nessa linha de pensamento, diferentemente do que propõe Saussure, ao focar rigorosamente no sistema formal da língua, realizando um corte entre língua e fala, que são tomadas em dois momen- tos distintos, Pêcheux realiza uma crítica a essa separação, tratando a fala não como um meca- nismo fisiológico, como uma tradução da língua, mas como uma possibilidade de se dizer, de se produzir discursos. Assim, portanto, na teoria do discurso, a fala coloca o sujeito como um produto histórico, afinal tudo o que o sujeito diz encontra-se atravessado pela historicidade da língua. O discurso não corresponde à noção de fala, pois não se trata de opô-lo à língua como sendo esta um sistema, onde tudo se mantém, com sua natureza social e suas constantes, sendo o discurso, como a fala, apenas uma ocorrência casual, individual, realização do sistema, fato histórico, a-sistemático, com suas variáveis etc. (ORLANDI, 2013, p. 21-22). As ressonâncias que a AD francesa produziu apontam para o fato de que esse campo teórico se encontra sempre vivo, atualizando-se e ressig- 27 nificando-se, pois lida com o discurso, “E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando” (ORLANDI, 2013, p. 15). Pensar o discurso enquanto objeto teórico da AD implica compreender como acontece o movimento dos sentidos na língua. Orlandi afirma que “Em suma, a Análise de Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos” (2001, p. 26). Nesse modo de compreensão da língua significando e, consequentemente, o discurso, não é possível analisá-la isoladamente sem levar em consideração os fatores extralinguísticos, afinal é a exteriorida- de, nesse caso, que investe significância à língua, sendo a materialidade histórica que permite o trabalho com os sentidos. Nesses termos, “[...] para a análise de discurso, o que interessa não é a organização linguística do texto, mas como o texto organiza a relação da língua com a história no trabalho significante do sujeito em sua relação com o mundo” (ORLANDI, 2013, p. 69). Isso traz à tona, mais uma vez, a discussão que vínhamos empreendendo anteriormente, quando discutimos que as palavras mudam de sentido a 28 partir da posição no discurso daqueles que as em- pregam, afinal, “[...] o discurso é o lugar do trabalho da língua e da ideologia” (ORLANDI, 2013, p. 38). Quer dizer: a ideologia se materializa na língua via discurso, por meio dos sentidos atribuídos pelo sujeito a um objeto simbólico. O discurso, portanto, pode ser compreendido como um efeito da relação que se estabelece entre a língua e a ideologia, sendo a linguagem, nesse entendimento, apreendida não como passível de decodificação, mas como um efeito das relações estabelecidas pelos sujeitos. Portanto, conforme postula Pêcheux (1997, p. 53), “[...] todo enunciado é intrinsicamente capaz de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente para derivar para outro”. Nesse entendimento, o sujeito, ao enunciar, recupera dizeres e os atualiza, produzindo novos movimen- tos, pois “[...] o fazer sentido não ocorre fora da historicidade que marca a relação do homem com a linguagem” (GRIGOLETTO, 2011, p. 80), mas em dadas condições de produção, atravessado pela historicidade da língua. A materialidade histórica trabalha no sujeito a possibilidade da construção de sentidos outros, uma vez que, como afirma Baldini (2013, p. 194), o homem não é uma unidade pronta, mas um in- 29 divíduo que, interpelado pela história, se subjetiva, isto é, se torna sujeito, pois “[...] a subjetividade é exatamente esse processo constante e histórico de constituir indivíduos em sujeitos” (2013, p. 194). Essa constituição do sujeito, portanto, está atrelada ao fazer sentido na língua, nessa relação intrínseca que estabelece com a história. O sentido, no discurso, é da ordem da repetição e da deriva. Isso, porque na fala a repetição se esburaca, dado que a palavra repetida escapa à regularidade do sentido, rompendo com a organização da língua. Afinal, sempre que se diz, embora seja o mesmo, ao repetir-se já se torna outro. A língua se mexe, se move, num movimento de resgatee de abertura a novos sentidos, pelo efeito do discurso. A repetição desloca o dizer de modo que ele já é diferente. Ou seja, a palavra e o sentido já não são os mesmos, ocorre deslizamento, ruptura, e a significação é outra. Isso pode ser ilustrado, por exemplo, a partir do enunciado On a gagné, discutido por Pêcheux em Discurso: estrutura ou acontecimento, em que o On a gagné das torcidas nos jogos não é o mesmo das ruas, da língua políti- ca. Nesse uso da língua, o grito já não é o mesmo, e a repetição já não é da ordem da repetição; o dizer é outro, pois a expressão que nasce no meio esportivo é deslocada para a política, provocando fissura na língua. 30 Daí, portanto, a compreensão do discurso para Pêcheux (1990, p. 56), que o considera “[...] um índice potencial de uma agitação nas filiações só- cio-históricas [...]”, afinal, como estamos verificando, o sentido pode sempre ser outro, pois é histórico e passível de deriva, deslocamento. Dessa forma, tal como ocorreu no enunciado explicitado no pa- rágrafo anterior, os sentidos são ressignificados na e pela história, a partir do movimento da língua na esfera social, da inscrição do sujeito na seara do discurso e das condições de produção em que são produzidos. 31 O APARELHO FORMAL DA ENUNCIAÇÃO (BENVENISTE) Enquanto Saussure, como temos discutido, realiza um corte entre a língua e a fala, estabelecendo uma linguística da língua e outra da fala, compreendendo a linguagem como instrumento de comunicação, mecanismo de transmissão de mensagens, Ben- veniste vai observar a língua como uma estrutura que é posta em funcionamento, como aquilo que possibilita a enunciação, e verificar como ela acontece. Assim, em 1970, questionando os conceitos de língua e fala, principalmente no que tange à pas- sagem de um para o outro, Benveniste, em leitura à linguística saussureana, desenvolve a teoria da enunciação. No entendimento do autor, era preciso se atentar às condições de uso da língua, não apenas à sua forma, como o fez Saussure, ao desconsiderar o sujeito falante. SAIBA MAIS Émile Benveniste (1902-1976) foi um linguista estrutu- ralista francês que se dedicava aos estudos das línguas indo-europeias. Foi responsável por expandir o paradigma SAIBA MAIS 32 linguístico estabelecido por Ferdinand de Saussure ao mobilizar teoricamente o contexto enunciativo. Em 1966, Benveniste consagrou seus estudos entre os linguistas ao publicar o primeiro volume de Problemas de Linguística Geral, que, mais tarde, em 1974, teve seu segundo volume lançado. Com essas publicações, Benveniste ganhou notoriedade no campo da linguagem por introduzir uma abor- dagem, de ordem enunciativa, que se diferenciava dos estudos realizados até então. Benveniste propôs que entre a língua e a fala havia uma instância comunicativa, a qual foi denominada pelo autor como enunciação. O objetivo do pesqui- sador era investigar o processo de transformação da língua em fala, conforme buscamos representar na figura 3 a seguir. Figura 3: Língua e Fala Língua Fala ENUNCIAÇÃO Fonte: Elaboração Própria 33 Benveniste vai buscar, assim, compreender qual é a condição de possibilidade da fala, e essa passagem da língua para a fala, como podemos observar na figura apresentada, é compreendida pelo estudioso como mediada pela enunciação, compreendida como o ato de “[...] colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1989, p. 82). A formula- ção do autor se mostra distinta dos pressupostos teóricos de Saussure ao compreender a língua em funcionamento no mundo, e não apenas como um conjunto de signos abstratos. As reflexões de Benveniste contribuíram para o surgimento de uma teoria enunciativa do discurso, cujos sentidos não se encontram colados aos sig- nificantes. Benveniste, quando explica o aparelho formal da enunciação, esboça alguns pressupostos da (e para) a enunciação, ou seja, mecanismos possíveis para se enunciar. O primeiro deles tra- ta-se da língua, que, para o autor, não é alheia às práticas humanas, portanto só pode ser analisada em seu contexto de uso, num espaço real, levando em consideração o sujeito e o momento histórico. O segundo pressuposto é o reconhecimento do locutor como eu, ou seja, que ele consiga assumir a posição de sujeito perante o alocutário, afinal é no momento da enunciação que o sujeito se diz, 34 na relação entre eu e tu, pois um depende do outro para existir. É importante destacar, nesse sentido, que a língua, para Benveniste, não está desvinculada do social, pois, como afirma o próprio autor, “[...] somente a língua torna possível a sociedade” (BENVENISTE, 1989, p. 63). A enunciação, portanto, sempre vai ocorrer de forma social, coletiva, quando há inter- locução com outros possíveis sujeitos. Benveniste identificou a existência de signos linguísticos dentro do sistema de enunciação. A esses signos linguísticos, o autor chamou de dêiticos – aqui, lá, agora, amanhã, eu, tu etc. –, sendo fundamental que alguém se coloque como enunciador desse conteúdo linguístico, que reúne a pessoa, o tempo e o espaço. O enunciado, assim, deve ser analisado levando em consideração esses elementos: o enunciador, o enunciatário e o tempo e espaço em que os sujeitos estão inseridos. A enunciação trata-se do processo de uso da língua, o próprio ato de dizer de alguém que enuncia; e o enunciado refere-se ao produto, àquilo que foi dito ao enunciatário em determinado lugar, num determinado momento, conforme podemos ob- servar na figura 4: 35 Figura 4: Quadro da Enunciação EU TU Quadro da Enunciação Aqui/ Espaço Agora/ Tempo Fonte: Silva, 2013. Adaptado. Ao observarmos o quadro da enunciação, perce- bemos que, conforme pressupõe Benveniste, é preciso considerar, na análise enunciativa, o locutor e o alocutário, bem como a situação na qual o ato de enunciação se realiza, compreendida, nesse viés, como espaço e o tempo. [...] na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação [...] (BENVENISTE, 1989, p. 84). 36 Ocorre, nesse processo, uma instrumentalização da língua pelo enunciador, que se “apropria” desse elemento para dizer. Isso, no entanto, não ocorre de maneira separada, como se a língua fosse um instrumento alheio ao sujeito, afinal o sujeito só é sujeito pela possibilidade de uso da língua. Essa apropriação ocorre, portanto, pela possibilidade de o locutor assumir o papel de sujeito e, assim, expressar suas ideias e pensamentos. Benveniste concebe a enunciação, nesses termos, como um conjunto de mecanismos e situações que conduzem à produção de enunciados, em sua forma prática e também social. Para tanto, as línguas devem ser estudadas em seu exercício, na produção mesma do discurso. A partir das formulações propostas por Benvenis- te, podemos afirmar que a Linguística inaugura os estudos em torno do discurso, possibilitando visualizar a língua sendo empregada em suas reais situações de uso, portanto a enunciação nunca ocorre da mesma maneira, pois a cada nova escrita ou leitura produzimos novos enunciados. 37 SAIBA MAIS Para aprofundar seu conhecimento sobre a teoria da enunciação proposta por Benveniste, assista à sequência de videoaulas apresentadas por José Fiorin, no canal da TV Cultura no YouTube: Vídeo 1 – Enunciação (1) - Conceito de enunciação Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=RQzJaFYiqhc Vídeo 2 – Enunciação (2) - A categoria de pessoa Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=Htrw8tTmigY Vídeo 3 – Enunciação (3) - A categoria de tempo Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=Z6HUcpg8NoQ Vídeo4 – Enunciação (4) - A temporalização do discurso Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=_iNfwEO86yQ Vídeo 5 – Enunciação (5) - A categoria de espaço Link de acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=jjuU3SJromc SAIBA MAIS 38 https://www.youtube.com/watch?v=RQzJaFYiqhc https://www.youtube.com/watch?v=RQzJaFYiqhc https://www.youtube.com/watch?v=Htrw8tTmigY https://www.youtube.com/watch?v=Htrw8tTmigY https://www.youtube.com/watch?v=Z6HUcpg8NoQ https://www.youtube.com/watch?v=Z6HUcpg8NoQ https://www.youtube.com/watch?v=_iNfwEO86yQ https://www.youtube.com/watch?v=_iNfwEO86yQ https://www.youtube.com/watch?v=jjuU3SJromc https://www.youtube.com/watch?v=jjuU3SJromc CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desse e-book, buscamos trabalhar com os elementos língua, enunciação e discurso. Apre- sentamos, para tanto, o território da AD francesa, buscando compreender o lugar que a Análise de Discurso ocupa nos estudos da linguagem. Como estudamos, a teoria, que nasceu na década de 60 pelos estudos de Michel Pêcheux, elegeu como categoria de estudo, e análise, o discurso, que, como o próprio nome refere, dá a ideia de ‘curso’, da língua em funcionamento, distanciando-se, portanto, de sua classificação como um sistema abstrato, da compreensão dessa materialidade de maneira transparente. A noção de discurso per- mite-nos abarcá-lo como “[...] essa configuração necessária da língua com a história, produzindo a impressão de realidade” (ORLANDI, 2007, p. 40). Além disso, apresentamos ainda contribuições teóricas de outras áreas do conhecimento para a AD francesa, como da Linguística, do materialismo histórico e da Psicanálise, assim como diferenças conceituais, como na abordagem da teoria intera- cionista, respaldada num processo de interação que consiste na transmissão de uma mensagem, e também na análise de conteúdo, que buscas respostas prontas na estrutura textual. 39 Vale ressaltar que essa diferenciação entre análise de conteúdo e análise de discurso sempre está pre- sente nas discussões principalmente de analistas do discurso, uma vez que a análise do objeto estu- dado deve se dar num viés discursivo, remetendo o texto à sua opacidade, por isso a importância de conhecer o campo de inscrição dessas áreas, de modo que o analista, nesse sentido, não incorra num movimento de análise conteudista. Avançamos, ainda, numa discussão que visou demarcar o lugar da língua e da fala no discurso, que, diferentemente do que pressupôs Saussure, são elementos que, na AD francesa, encontram-se indissociáveis, afinal a teoria do discurso não trabalha com dicotomias. Assim, conforme apresentamos, Benveniste, ao contrário do sistema saussureano, considerou língua e fala como elementos que inte- gram o discurso, problematizando, nessa instância, como ocorre a passagem da língua para a fala. Nessa empreitada, Benveniste desenvolve, como mencionamos, a chamada teoria da enunciação, a qual, diferentemente da teoria da comunicação, que apresentamos na figura 2, não ocorre de ma- neira estática, alheia aos processos sociais, mas considerando o funcionamento da língua em sua materialidade histórica. 40 As discussões que empreendemos ao longo desse e-book permitem que nos situemos no arcabouço teórico da AD de linha francesa, que teve como seu precursor Michel Pêcheux, na França da década de 1970, e hoje encontra-se no Brasil bastante difundi- da, principalmente nas publicações de Eni Orlandi, autora que há mais de 30 anos vem desenvolvendo suas pesquisas e formando pesquisadores na área do discurso. 41 Referências Bibliográficas & Consultadas BALDINI, L. J. S. Sujeito e subjetividade: psicanálise e análise do discurso. In: PETRI, V.; DIAS, C. (Orgs.). Análise do Discurso em perspectiva: teoria, método e análise. Santa Maria: Editora da Ufsm, 2013, p. 191-201. BARDIN, L. 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