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Cartografias dos estudos culturais
uma versão latino-americana
Ana Carolina D. Escosteguy
O cenário contemporâneo,
identificado como globalização,
vem repor questões já clássicas
nos estudos sociais, como a identi-
dade cultural, ao mesmo tempo
em que desafia os particularis-
mos, a diversidade e a possibili-
dade de convivência num mundo
cada vezmais entrelaçado e, para-
doxalmente, mais desigual. A am-
bivalência que emerge dessa reali-
dade exige dos estudiosos e pes-
quisadores tanto a crítica dos tra-
dicionais procedimentos de análi-
se como a criação de novos instru-
mentos de compreensão. É dentro
desse pano de fundo que primei-
ramente deve ser visto este livro
de Ana Carolina D. Escosteguy.
Dizendo de outro modo, ele é na-
turalmente contemporâneo.
Produto de uma tese de dou-
torado realizada sobre fontes ori-
ginais, esta obra traz uma discus-
são teórica densa e esclarecedora
sobre o encontro de duas tradi-
ções intelectuais – a dos estudos
culturais britânicos e a dos estu-
dos culturais latino-americanos. A
autora não só percorre a história
dessas duas perspectivas, o que a
faz deter nas suas especificidades
e identidades, bem como se detém
em seus vasos comunicantes.
Mas, creio que a sua grande con-
tribuição está no verdadeiro tra-
balho de garimpagem bibliográfi-
ca que possibilita uma síntese ex-
plicativa raramente oferecida an-
tes ao público brasileiro e que vai
da origem do projeto dos estudos
culturais britânicos ao seu proces-
so de internacionalização. Essa é
a cartografia que dá título ao livro
www.autenticaeditora.com.br
0800 2831322
Estudos
Culturais
Este livro traça cartografias intelectu-
ais significativas no desenvolvimento dos
estudos culturais. Na Inglaterra, pólo de
origem dessa perspectiva, a trajetória de
Stuart Hall é explorada. Na América Lati-
na, os itinerários de Jesús Martín-Barbero
e Néstor García Canclini evidenciam a
configuração dessa abordagem no espaço
latino-americano.
Esta leitura dos estudos culturais diz
respeito a nós, latino-americanos, e a
eterna discussão de nossas particularida-
des em relação aos Outros.
e por meio da qual são revelados
traços inéditos da contribuição la-
tino-americana aos estudos cultu-
rais e de comunicação. Esta é a
maneira encontrada pela autora
para demonstrar que a atividade
da ciência não é imune ao trabalho
da história e, de forma original,
nos traz o confronto entre o nós e
o eles, o local e o internacional,
marcas do cenário contemporâ-
neo, para dentro dos atuais estu-
dos da cultura e da comunicação.
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Ana Carolina D. Escosteguy é
doutora em Ciências da Comunica-
ção (USP, 2000), professora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Co-
municação Social da Faculdade de
Comunicação Social (FAMECOS)
da Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio Grande do Sul (PUCRS),
além de pesquisadora do CNPq
nas áreas de Estudos Culturais &
Comunicação, Estudos de recepção
e relações de gênero e Teorias da
Comunicação.
Cartografiasdosestudosculturais–
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D
.Escosteguy
Cartografias dos estudos culturais
Uma versão latino-americana
Ana Carolina D. Escosteguy
Cartografias dos estudos culturais
Uma versão latino-americana
Edição on-line, ampliada
Copyright © 2001 Ana Carolina D. Escosteguy
COORDENADOR DA COLEÇÃO “ESTUDOS CULTURAIS”
Tomaz Tadeu da Silva
CAPA
Jairo Alvarenga Fonseca
(Mandala – Massa corrida sobre madeira)
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Waldênia Alvarenga Santos Ataíde
REVISÃO
Erick Ramalho
AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.
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30140-071. Belo Horizonte. MG
Tel.: (55 31) 3222 6819
TELEVENDAS: 0800 283 13 22
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Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma
parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios
mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a
autorização prévia da Editora.
Escosteguy, Ana Carolina D.
Cartografias dos estudos culturais – Uma versão latino-
americana/ Ana Carolina D. Escosteguy – ed. on-line – Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.
240p. (Coleção Estudos Culturais, 8)
ISBN 85-86583-97-9
1. Estudos Culturais. 2. Antropologia.
3. Cultura-América Latina. I. Título. II Série.
CDU 316.75
008(8=6)
D256e
À Elisa, minha filha,
que aos três meses iniciou esta jornada comigo.
Agradeço à Maria Immacolata Vassalo Lopes,
Francisco R. Rüdiger, Nilda Jacks, Eliana Pibernat
Antonini, Dóris Fagundes Haussen, Maria Amélia
Mascena, Cláudia Peixoto de Moura e José Eduardo Utzig,
pelas variadas formas de colaboração, estímulo e afeto.
Gostaria ainda de mencionar as observações de Silvia
Helena Simões Borelli, Mauro Wilton de Sousa, Antônio
Flávio Pierucci e Octavio Ianni que constituíram a banca
que aprovou esta pesquisa como tese de doutoramento
na Universidade de São Paulo, uma fonte valiosa de
incentivo para revisar o texto original e publicar este livro.
A pesquisa que deu origem a este livro recebeu apoio da
CAPES (Bolsa de Doutoramento e Doutorado-sanduíche)
e PUCRS (horas-pesquisa e auxílio às viagens).
Sumário
Prefácio à edição on-line................................................
Introdução.........................................................................................
Estudos culturais: uma perspectiva histórica........................
Uma narrativa possível ou a versão britânica......................................
A construção de uma narrativa ou uma versão latino-americana......
De ideologia para hegemonia......................................................
Ideologia como dominação................................................................
O aporte gramsciano............................................................................
O popular como opção política...................................................
Formas de engajamento intelectual.....................................................
Identidades culturais: uma discussão em andamento
Identidade como diáspora...................................................................
Identidade como descentramento.......................................................
Identidade como hibridismo...............................................................
A título de conclusão.....................................................................
Notas....................................................................................................
Bibliografia........................................................................................
Apêndice
Depoimento de David Morley..........................................................
Depoimento de James Curran..........................................................
Depoimento de Nick Couldry.............................................
17
27
27
45
65
65
97
113
130
145
148
160
177
193
211
229
11
249
269
283
10
11
Cartografias dos estudos culturais – uma versão latino-america-
na, em edição esgotada já há algum tempo, passa a estar disponí-
vel, em acesso aberto, no formato eletrônico. Embora não fosse o
foco central da obra, ela revela, através da explanação dos seus
eixos teóricos – a questão da ideologia, da hegemonia, da proble-
mática do popular e das identidades, que o corpo teórico-meto-
dológico associado aos estudos culturais1, configurado a partir
do final dos anos 50, na Inglaterra, passou por alguns desdobra-
mentos. Portanto, das reflexões embrionárias de sua formação,
em especial sustentadas por Richard Hoggart, Raymond Willia-
ms e E. P. Thompson, à prática contemporânea dos estudos cul-
turais da virada do século XX para XXI, época do lançamento do
livro, observam-se alterações em relação a posições teóricas, me-
todológicas e até mesmo políticas.
Passados 10 anos do primeiro lançamento dessa obra, pode-se
dizer que tais transformações se exacerbaram. É claro que esta não
é uma característica exclusiva dos estudosculturais, ao contrário,
estes sofrem o que Ianni2 (2003, p.331) já problematizou, identi-
ficando que “o processo de globalização envolve uma ruptura de
amplas proporções, abalando mais ou menos profundamente os
quadros sociais e mentais de referência (...) trata[ndo-se] de uma
ruptura simultaneamente histórica e epistemológica”. No que diz
respeito aos estudos culturais, apenas algumas dessas mudanças
foram mapeadas e circulam no meio acadêmico através de textos
que tomam a própria tradição como objeto de análise3.
 Logo, hoje, para fazer juz ao título de Cartografias dos estu-
dos culturais, os capítulos deveriam ser reformulados, acrescen-
tando-se informações novas e atualizando aquelas defasadas. A
produção intelectual e as discussões sobre os estudos culturais,
no meio acadêmico nacional, latino-americano e anglo-america-
no, cresceram num ritmo galopante no último decênio4. Fenôme-
no reconhecido, por exemplo, por Roberto Follari5 (2003, p. 4):
PREFÁCIO À EDIÇÃO ON-LINE
12
“o peso dos estudos culturais é tal na América Latina que se faz
indispensável tomar seu desenvolvimento como objeto. Isto é,
chegou o momento da consciência teórica sobre o fenônemo dos
estudos culturais, fruto precisamente de seu forte desenvolvimen-
to”. Nas nossas fronteiras, isso foi reforçado sobretudo pela cir-
culação mais ágil de bibliografia em língua inglesa, mas também
pela tradução de obras importantes6 e, claro, pela formação de
pesquisadores que se vincularam a esse programa de pesquisa.
De imediato, essa expansão exponencial de produção intelec-
tual demandaria o acréscimo de capítulos, a reestruturação e ampli-
ação do livro. Por um lado, os eixos-teóricos se desdobrariam em
objetos de estudo, tais como a problemática da recepção, das cultu-
ras juvenis, da cibercultura via contribuições do ciberfeminismo,
da crítica feminista aos estudos de mídia, entre os mais prementes.
De outro, as próprias trajetórias intelectuais exploradas – Stuart
Hall, Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini – deveriam
ser continuadas, dado que esses autores permanecem atuantes na
cena intelectual. Também outros itinerários mereceriam ser incor-
porados para dar conta de uma prática em circunstâncias distintas,
como já mencionei, tanto no cenário latino-americano quanto an-
glo-americano. Como resultado final teríamos uma nova obra. O
que se pretende com esta edição não é isso.
Creio que apesar do que foi dito, o conteúdo original do
texto ainda tem uma função ao recapitular a matéria e preparar o
leitor para acompanhar com alguma propriedade essa produção
mais recente. Persistindo a finalidade didática de apresentar uma
abordagem introdutória, publica-se novamente o texto sem mexer
no seu conteúdo, alertando que este obrigatoriamente precisa ser
lido no seu respectivo contexto, a entrada no século XXI. Nesse
sentido, faz-se imprescindível um registro. Este diz respeito ao
recorte temporal da produção bibliográfica que comparece nesse
estudo. A tese que dá origem à Cartografias dos estudos culturais,
foi concluída no segundo semestre de 1999, tendo sua defesa ocor-
rido em março de 2000, portanto, o texto original alcança, por
exemplo, apenas a publicação das reflexões de Hall até 1998.
Contudo, com o objetivo de suprir essa lacuna em termos de
atualização, à moda das suítes na música, o texto original é suce-
13
dido pelos depoimentos de três intelectuais – David Morley, Nick
Couldry e James Curran – com expressiva importância no debate
internacional sobre os estudos culturais. Tratando-se de um pro-
grama de pesquisa, diverso e heterogêneo como inúmeras vezes
já foi qualificado, é indispensável analisá-lo mediante a elucidação
de trajetórias intelectuais e suas respectivas reflexões e pesquisas
como sustentado na presente obra. Destaco que as características
do atual contexto histórico, bem como da presente institucionali-
zação dos estudos culturais – aqui refiro-me especialmente ao
contexto anglo-americano – têm diferenças do período de sua for-
mação e mesmo do que foi apresentado em 2000, momento de
defesa da tese. Dado que essas transformações estão em anda-
mento e, portanto, ainda não estão disponíveis em relatos mais
sistemáticos ou mesmo em reflexões que tenham tal propósito, a
exposição de testemunhos orais de atores envolvidos nesse pro-
cesso contribui para dar visibilidade a distintas experiências, ofe-
recendo uma oportunidade para refletir sobre a contribuição
contemporânea dos estudos culturais. Com esse objetivo, as en-
trevistas, realizadas por mim, em fevereiro de 2007, com o apoio
do CNPq, versam sobre a história dos estudos culturais e o res-
pectivo lugar ocupado nela pelo entrevistado, bem como de que
forma sua produção intelectual contribui para a reconfiguração e
atualização dos mesmos. Assim, abre-se uma possibilidade para
que o leitor pense como um programa de pesquisa pode ser re-
construído7, a fim de melhor atingir a meta que a própria teoria se
fixou no momento de sua origem.
Ressalto que David Morley e Nick Couldry se destacam na
constituição atual desta área de estudos, atuando no Goldsmiths
College da Universidade de Londres, tanto em nível de graduação
quanto de pós-graduação. No entanto, podem ser identificados como
de gerações distintas na configuração dos estudos culturais. David
Morley faz parte do que se convencionou chamar de segunda gera-
ção de estudos culturais8. Participou do coletivo de pesquisadores
do Centro, no início dos anos 70, momento em que a Escola de
Birmingham se consolida. O encontro de Nick Couldry com os
estudos culturais somente ocorreu no limiar dos 90 quando estes já
tinham se internacionalizado e estavam institucionalizados, na
14
Grã-Bretanha. Esta diferença geracional abarca singularidades de-
correntes das respectivas formações. O primeiro, no próprio CCCS
e o outro, fora daí, no Goldsmiths College. Isto é, ambos vivenciam
situações históricas bastante distintas – o momento de efervescên-
cia do CCCS e a consolidação dos estudos culturais na academia.
Decorre, também, daí a possibilidade de observar um forte reco-
nhecimento, em nível internacional, do primeiro com os estudos
culturais e um vínculo mais fraco, no caso do segundo. Em relação
ao terceiro pesquisador que também está vinculado ao Goldsmiths
College, trata-se de um dos porta-vozes, no contexto britânico, das
críticas aos estudos culturais. Situando-se mais próximo dos estu-
dos de economia política da comunicação, tradição extremamente
forte naquele ambiente acadêmico, o propósito é que ele reavalie os
embates gerados entre essas duas forças teórico-metodológicas,
confronto que teve escasso realce entre nós.
 De resto, considero oportuno trazer à baila pelo menos duas
das críticas que, embora não tenham sido lançadas em referência
direta ao trabalho em questão, circulam no nosso contexto acadê-
mico. Uma delas diz respeito às resistências vigentes em aderir ao
uso do termo estudos culturais latino-americanos e a sua associação
à intelectuais como Martín-Barbero e García Canclini. De um lado,
nega-se a utilização da terminologia, dando-se preferência, por exem-
plo, a estudos de cultura na América Latina ou estudos sobre co-
municação e cultura9 ou ainda estudos de cultura e poder10.
 O que parece estar implicado é que tal enquadramento teó-
rico não sofre influências de repertórios teóricos surgidos em outras
latitudes. E que, no caso específico, não têm afinidades com a
proposta dos estudos culturais. É claro que os estudos sobre cultu-
ra são bem anteriores a essa proposição, mas também é verdadei-
ro que os estudos culturais imprimiram uma determinada forma
de estudá-la e construíram uma diferenciação11. De outro lado,
evoca-se a própria resistência, por exemplo, dos autores citados,
na sua auto-identificação com esse campo, omitindo-se que em
determinados momentos tal associação é aceita, reconhecida e até
mesmo bem-acolhida12.
Tendo assumido como ponto de vista o que chamo de narra-
tiva dominante sobre os estudos culturais, a partir desse marco,
15
considereique era possível esboçar um mapa mínimo sobre os
estudos culturais onde se destacava, além do que já foi menciona-
do, uma possível vinculação entre a vertente britânica de estudos
culturais e a emergência de uma perspectiva latino-americana de
análise cultural, associada fundamentalmente aos itinerários inte-
lectuais de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini. Foi,
sumária e pretenciosamente, isso que tentei cartografar, dado que
uma cartografia dos estudos culturais era impossível, devido à
amplitude do tema, e que meu interesse também era pensar: como
algo denominado como um “marco teórico latino-americano” ti-
nha sido configurado? Isso existia? Em que condições ele tinha
sido constituído? Quem eram seus formuladores?
 O ponto de convergência entre esses autores e os estudos cultu-
rais britânicos se deu através da discussão sobre o uso do aporte
gramsciano em torno da hegemonia o que significa dizer que a cul-
tura devia ser estudada mediante as relações de poder que constituía
e expressava. E que, na comunicação, implicava em pensar, como
diz Martín-Barbero13 (2002, p. 224), que “a inscrição da comunica-
ção na cultura deixou de ser mero assunto cultural, pois é tanto a
economia como a política as que estão comprometidas com o que aí
se produz”. A partir dessa posição é que foram se alinhavando outros
pontos de encontro que tanto podiam ser recuperados retrospectiva-
mente como para além dessa convergência teórica. Essa aproximação
revela a existência de uma espécie de vasos comunicantes entre uma
produção latino-americana e outra, em especial a britânica. Contudo,
a escolha da trajetória de Stuart Hall se deve não a interlocução propri-
amente dita entre os autores em foco na pesquisa, mas pela expressão
de Hall no direcionamento do Centro de Estudos Culturais Contem-
porâneos para especificamente a centralidade do tema da mídia, objeto
central na proposta de Cartografias dos estudos culturais.
Uma outra crítica que circula, sobretudo, entre simpatizan-
tes dos estudos culturais, trata do “eterno retorno” às contribui-
ções de intelectuais que configuraram a formação dos estudos
culturais como se somente esses fossem as vozes autorizadas a
falar em nome dos estudos culturais. Em outros termos, é a acusa-
ção da volta “patriarcal” à herança da Escola de Birmingham como
se estivesse aí a essência dos estudos culturais14.
16
Como parto do pressuposto que, no nosso meio, muito se fala
em estudos culturais, mas pouco se conhece sobre eles - não só sobre
sua história, mas também sobre a reflexão que constituiu essa área de
estudos, assim como ainda se confunde os estudos culturais britâni-
cos com os norte-americanos, desconsiderando suas diferenças, con-
sidero fundamental um retorno aos “clássicos” simplesmente para
armar um ponto de vista mais historicizado. Isto não concede auto-
ridade apenas aos autores consagrados ou à uma determinada narra-
tiva sobre os estudos culturais, nem muito menos desmerece o trabalho
de autores contemporâneos e de outras versões de estudos culturais.
Reivindica, apenas, a formação de um ponto de vista histórico, vin-
culada sim a uma determinada versão de estudos culturais.
Esta contempla o entendimento de uma prática em estudos
culturais que foca na tensão entre a capacidade criativa e produtiva
do sujeito e o peso das determinações estruturais como dimensão
substantiva na limitação de tal capacidade. Em outros termos, a questão
é como falar das estruturas constituindo os sujeitos, sem perder de
vista a experiência desses mesmos sujeitos; manter na análise tanto o
peso objetivo das instituições, revelado nos seus produtos, quanto a
capacidade subjetiva dos atores sociais. Dentro desse marco, tor-
nam-se visíveis intersecções entre três temas-chave: o sujeito e sua
ação num determinado marco histórico; o reconhecimento de pro-
cessos de exclusão, diferenciação e dominação como historicamente
construídos e não, naturais e/ou tanshistóricos; e a compreensão da
esfera cultural e dentro dessa, a comunicação, através da relação
entre produtores, produtos e receptores. modo, o objeto de análise
dos estudos culturais, como nos diz Santiago Castro-Gómez15, é com-
posto pelos “dispositivos a partir dos quais se produz, distribui e
consome toda uma série de imaginários que motivam a ação (políti-
ca, econômica, científica, social) do homem em tempos de globali-
zação. Ao mesmo tempo, os estudos culturais privilegiam o modo
em que os próprios atores sociais se apropriam desses imaginários e
os integram a formas locais de conhecimento”.
Enfim, cabe ao leitor julgar o mérito tanto das críticas quan-
to da apresentação da matéria.
Ana Carolina D. Escosteguy
Verão de 2010
17
Não creio que seja possível elaborar, neste momento, um
mapa exaustivo e detalhado do que poderia ser chamado aproxi-
mativamente de uma cartografia dos estudos culturais.1 Vários
motivos poderiam ser arrolados para mostrar as dificuldades de
cobrir tal objeto. Porém, o primeiro obstáculo esbarra na própria
amplitude teórica do fenômeno. Além disso, existem diversos mo-
vimentos de apropriação da perspectiva dos estudos culturais, para
não mencionar a anfibiedade das definições que circulam sobre
os mesmos e, também, a existência de uma extensa bibliografia,
sobretudo em língua inglesa, sobre o tema.
Em contraposição, não se dispõe de trabalhos preliminares
que recolham e organizem informações sobre a emergência dos
estudos culturais no território latino-americano. Uma das exce-
ções é o artigo de Fabio López de la Roche (1998) que analisa
algumas contribuições, produzidas a partir do campo de estudo
das relações entre comunicação e cultura, de autores latino-ameri-
canos, sinalizando a existência de uma investigação cultural inter-
disciplinar que poderia ser identificada com uma tradição
latino-americana de estudos culturais.
Acrescenta-se, ainda, outro problema: a pouca difusão na
América Latina de bibliografia que trate dos estudos culturais,
independentemente do contexto geográfico onde sejam pratica-
dos. São escassas, para não dizer quase inexistentes, as traduções
– tanto em português quanto em espanhol – de textos importantes
sobre a configuração dos estudos culturais, seja do ponto de vista
histórico, seja de sua composição contemporânea.
Daí a opção de traçar cartografias intelectuais que possam
ser vistas como significativas no desenvolvimento dos estudos
culturais. Na Inglaterra, pólo de origem dessa perspectiva, a
trajetória de Stuart Hall é explorada. Na América Latina, os
itinerários de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini
INTRODUÇÃO
18
servem para evidenciar a configuração dessa abordagem no es-
paço latino-americano.
Dessa forma, a leitura proposta sobre os estudos culturais e
sua apropriação na América Latina é uma construção nossa, sen-
do que o grifo no pronome implica um duplo registro. Em pri-
meiro lugar, é uma arquitetura decorrente de um percurso e um
posicionamento particular desta autora e, por isso, incompleto e
parcial, como será adiante justificado. A outra via diz respeito a
nós, latino-americanos, e a eterna discussão de nossas particulari-
dades em relação aos Outros.
Em relação ao último aspecto, parece oportuno formular
algumas perguntas, mesmo sabendo de antemão que não serão
totalmente respondidas: o que têm os nossos estudos culturais de
singular em relação ao mais amplo movimento desse corpo
teórico-político-acadêmico? Que desconstruções e reconstruções
efetuamos sobre o empreendimento intelectual dos estudos cul-
turais para iluminar nossa própria realidade? No presente traba-
lho, essas questões sinalizam uma problemática, e não a exigência
de uma solução.
Neste momento, vale recordar, apenas, que a América Lati-
na abarca heterogeneidades culturais, pluralidades étnicas, diver-
sidades econômicas, experiências diferentes e desigualdades
estruturais. Logo, falar de América Latina representa uma cons-
trução incompleta que é um projeto a realizar, pois é uma tentati-
va de uniformizar essas diversidades (ARICÓ, 1988).Portanto, a
referência à América Latina e ao latino-americano, neste livro,
não desconhece essa dimensão do problema e que “enquanto pro-
jeto incompleto, ele está sempre na linha de nosso horizonte e nos
incita a indagar sobre o nosso destino, sobre o que somos ou que
queremos ser”(ARICÓ, 1988, p. 29).
Mesmo assim, presume-se que se existe algo denominado
estudos culturais latino-americanos, estes, ou melhor, seus prati-
cantes, não parecem dispostos a submergir sua identidade nesse
amplo movimento, essencialmente, anglo-americano. Daí a neces-
sidade de compreender essa relação entre uns e outros como “de
tradução”: ou seja, a análise latino-americana pode ser lida tanto
como um exemplo da perspectiva dos estudos culturais quanto como
19
uma exemplificação que retém tudo que é distintivo a seu respeito.
Adotando essa posição, ambas as perspectivas – o programa dos
estudos culturais e a investigação cultural latino-americana –, em-
bora partilhem um mesmo objeto, isto é, a relação comunicação e
cultura, e uma certa afinidade teórica, preservam suas diferenças e
originalidades.2 Portanto, a idéia de tradução, utilizada aqui, não
endossa o princípio de existência de um original – no caso, a pro-
posta dos estudos culturais britânicos – e sua tradução, entendida
como mera aplicação de tal proposta em outros territórios.
Os estudos culturais compõem, hoje, uma tendência impor-
tante da crítica cultural que questiona o estabelecimento de hie-
rarquias entre formas e práticas culturais, estabelecidas a partir de
oposições como cultura “alta” ou “superior” e “baixa” ou “inferior”.
Adotada essa premissa, a investigação da “cultura popular” que assu-
me uma postura crítica em relação àquela definição hierárquica
de cultura, na contemporaneidade, suscita o remapeamento glo-
bal do campo cultural, das práticas da vida cotidiana aos produtos
culturais, incluindo, é claro, os processos sociais de toda produ-
ção cultural.
Na América Latina, uma reflexão crítica começou a emer-
gir, principalmente, na década de 80, tendo como eixo central as
novas configurações da cultura popular a partir da emergência
das indústrias culturais. Dentre as contribuições mais importantes
e originais no repensar dessa problemática, revelando a existência
de empréstimos e negociações entre a cultura considerada “legíti-
ma” e aquelas formas culturais cotidianas tidas como “insignifican-
tes”, dentro do âmbito latino-americano, estão as reflexões de Jesús
Martín-Barbero e de Néstor García Canclini. Por essa razão, este
trabalho se detém na análise da contribuição desses autores.
Porém, tais formulações latino-americanas não podem ser
encaradas como um movimento isolado do restante do pensamen-
to social, ilhadas das idéias em circulação e dos debates atuais.
Daí uma das razões para abordá-las em relação com aquela refle-
xão que legitimou a “outra” cultura – a comum e ordinária, pois
ambas as vertentes coincidem nesse pressuposto. Convergem,
também, na afirmação de relações entre cultura e poder e seu
caráter essencialmente conflitivo, assim como na atenção sobre
20
a cultura mediática e seu envolvimento em processos de resis-
tência e reprodução social. De forma mais genérica, reconhe-
cem o papel constitutivo da cultura e das representações nas
relações sociais.
A presença dessas articulações na análise cultural proposta
pelos autores latino-americanos citados e pelos estudos culturais,
e suas implicações em ver a esfera cultural como um terreno onde
política, poder e dominação são mediados, propicia a este estudo
estabelecer e explorar intersecções, assim como diversidades en-
tre os estudos culturais e a reflexão latino-americana em foco.
Entretanto, como os estudos culturais compõem um vasto,
fragmentado e inter/trans ou antidisciplinar – conforme o ponto
de vista que seja assumido – campo de estudo, o recorte, aborda-
do pelo meu trabalho, trata especialmente das análises que abor-
dam as relações entre comunicação e cultura.
Na tentativa de construir uma abordagem que extrapolasse a
reconstituição histórico-descritiva das trajetórias britânica e latino-
americana, escolhi determinadas temáticas teóricas – eixos-nodais
– que fazem a conexão entre os estudos culturais e o pensamento
latino-americano em foco e que marcam o percurso teórico de
ambas perspectivas. Ao mesmo tempo, constituem-se em ques-
tões centrais que vão sinalizando rupturas e desdobrando-se em
rotas abertas para a continuidade da reflexão.
Esses eixos teóricos são: as relações entre cultura e ideolo-
gia; a opção pela análise da cultura popular; e a construção de
identidades culturais contemporâneas mediadas, intensamente,
pelos meios de comunicação. Como eixos-nodais, permitem que
outras questões a eles relacionados sejam também abordadas. Entre
elas: o conceito de hegemonia, o papel do intelectual na esfera da
cultura e a problemática da recepção. Reconheço, contudo, que
ao destacar e recuperar apenas esses questionamentos, estou omi-
tindo ou subvalorizando outros. Apesar de adotar esse procedi-
mento de seleção de aspectos de uma obra, espero não trair o
pensamento dos autores aqui em destaque.
Seguindo as orientações recém delineadas, este trabalho consis-
te, em primeiro lugar, em propor uma articulação entre os autores
21
latino-americanos citados e os estudos culturais, sobretudo na sua
vertente britânica. Do ponto de vista dos estudos culturais britâ-
nicos, o trabalho de Stuart Hall vai servir como fonte maior desta
exploração na medida em que é, indubitavelmente, uma figura
central no desenvolvimento da versão dominante dos mesmos.
Isso não quer dizer que outros autores e trabalhos não sejam in-
corporados nessa articulação entre os latino-americanos e o cam-
po dos estudos culturais. Ao contrário, a tentativa é compor uma
narrativa, na medida do possível – diante da vasta bibliografia
existente em língua inglesa – mais plural, diversa e polifônica, não
centrada exclusivamente na versão britânica.3
Ao construir o trajeto sobre o tratamento das temáticas ante-
riormente citadas, observa-se como alguns dos praticantes, tanto
da perspectiva latino-americana quanto da anglo-saxônica, com-
preendem-nas e desenvolvem-nas. Porém, nunca com o propósi-
to de aplicar os termos próprios, sobretudo da vertente britânica
enquanto pólo gerador desse projeto, ao contexto latino-ameri-
cano. Mesmo porque a prática dos estudos culturais alcança sua
propriedade dentro de condições históricas específicas – entre
elas a localização nacional e geográfica (GROSSBERG, NELSON E
TREICHLER, 1992; MORRIS, 1992). Contudo, não conta apenas a
diferença de contextos dentro dos quais os argumentos se engen-
dram, mas existe, também, um grau de especificidade cultural na
própria teoria (TURNER, 1993b).
Outra consideração decorrente da escolha dos autores em
foco neste livro diz respeito ao reconhecimento de que são vozes
posicionadas geograficamente em lugares distintos. Ou seja, em
termos talvez não muito apropriados para a época vigente, mas
que ainda guardam uma certa potencialidade, são posições situa-
das no “centro” e na “periferia”. Mesmo que esteja em curso o
debilitamento de uma noção de centro que tem sua capacidade
explicativa fragilizada e a concentração de poder um pouco mais
dispersa, percebe-se ainda a exclusão de experiências e saberes
“periféricos” daquele identificado como “centro”.
De qualquer modo, o propósito não é reavivar esse confron-
to esquemático, mas localizar-se num outro ponto fora dessa opo-
sição binária. Nessa direção, os três autores estudados como eixo
22
central deste livro experimentam todos um deslocamento seme-
lhante. Partindo cada um de posições particulares, encontram-
se, como disse Martín-Barbero (1987a, p. 229) a respeito de sua
busca pessoal por um novo mapa para explorar o campo cultural
contemporâneo, assumindo “as margens não como tema, mas
como enzima”.
Apesar da discussão proposta concentrar-se nesta tríade de
autores – Stuart Hall, Jesús Martín-Barbero e Néstor García Can-
clini –, não é de forma algumaminha intenção localizar os estu-
dos culturais em “textos canônicos” ou elevar a obra de cada um
desses autores a um estatuto canônico. Sobretudo porque é justa-
mente contra a oposição entre o cânone e seu outro, a cultura
popular, que os estudos culturais vicejaram.
Nesse contexto geral, embora reconheça uma singularidade
na reflexão latino-americana, representada, aqui, por Martín-Bar-
bero e García Canclini,4 isso não pode ser motivo para assumi-la
sem questionamento, deixando de ser objeto de crítica. Logo,
pretende-se tanto recuperar e reconstituir alguns procedimentos
ao longo dessa trajetória quanto, também, discuti-los sistematica-
mente, mediante uma leitura crítica e reflexiva, no sentido de ver
para onde apontam, que via descortinam para prosseguir o estudo
em torno das vinculações entre cultura e comunicação. Esse é,
também, o norte da crítica ao atual desenvolvimento dos estudos
culturais como um todo.
Delimitados os contornos da temática deste trabalho, é im-
perativo esclarecer a partir de que lugar esta análise de um deter-
minado aporte teórico-metodológico se realiza, ou seja, explicitar
o lugar de enunciação que o analista privilegia para operacionali-
zar essa leitura. Proponho, então, situar-me genericamente den-
tro dos estudos de comunicação e cultura, denominação corrente
na América Latina.
Porém, é mais preciso dizer que o ponto de partida se esta-
belece mediante a vinculação dos estudos culturais e a comunica-
ção5. Isso significa que a investigação da cultura mediática,
incluindo tanto os meios, os produtos e as práticas culturais – ou
seja, refere-se tanto à natureza e à forma dos produtos simbólicos
quanto ao circuito de produção, distribuição e consumo – está
23
inserida numa concepção mais abrangente de sociedade vista como
o terreno contraditório de dominação e resistência onde a cultura
tanto se engaja na reprodução das relações sociais quanto na aber-
tura de possíveis espaços para a mudança.
Sinteticamente, pode-se dizer, ainda, que essa investigação
está integrada a um contexto maior demarcado por uma teoria
social crítica que insere essas análises da cultura e comunicação
no âmbito do estudo da sociedade capitalista. Conseqüentemente,
tenta analisar tanto as formas pelas quais cultura e comunicação
são produzidas dentro desse ordenamento quanto os papéis e fun-
ções que exercem na sociedade, entendida enquanto um conjunto
de relações sociais hierarquizadas e antagônicas.
Vale a pena citar que, por exemplo, Douglas Kellner (1995a,
1995b, 1997a, 1997b) reivindica superar a bifurcação entre estu-
dos culturais versus estudos de comunicação, propondo a denomi-
nação “estudos culturais dos meios de comunicação”. Sua proposta
implica uma prática crítica, multicultural e que abranja múltiplas
perspectivas ou dimensões: a produção e a economia-política da
cultura, análise textual e crítica e, por fim, o estudo de recepção de
audiência e usos dos produtos dos meios de comunicação.
Em contraste, o argumento de Grossberg (1994) trata esse
tipo de perspectiva ou, segundo seus termos, os “estudos cultu-
rais comunicacionais” como uma redução do projeto dos estudos
culturais. Isso porque os “estudos culturais comunicacionais” en-
campam uma aproximação tripartite – produção, texto e consumo
– da comunicação, transformando-a num modelo geral de análise
que reproduz o modelo linear de comunicação: emissor, mensa-
gem, receptor. Na verdade, tais estudos não conseguem situar prá-
ticas culturais específicas dentro de seus contextos, complexamente
determinados e determinantes (GROSSBERG, 1994, p. 335).
Daí minha preferência pelo termo estudos culturais ao invés
de estudos de comunicação e cultura. Pois os últimos necessitam
da moldura teórica recém descrita de inserção numa teoria social
crítica. E os primeiros, no caso particular deste estudo, apenas
uma ênfase num determinado objeto de estudo – a comunicação.
Quando observado esse último aspecto, os estudos culturais podem
ser incluídos nos estudos críticos de comunicação, inaugurados nos
24
anos 30 pela Escola de Frankfurt, embora entre ambas as aproxi-
mações haja, também, profundas diferenças.
Finalmente, gostaria de ressaltar que este livro, pauta-se por,
mediante escrutínio de determinadas posições, apontar algumas
críticas e pistas, contribuindo para o debate sobre os estudos cul-
turais contemporâneos e sua divulgação no nosso meio acadêmi-
co. O texto publicado, aqui, toma como ponto de partida a tese
de doutoramento apresentada na Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo, em março de 2000, mas é uma
versão modificada e resumida daquela pesquisa.
Assim, apresenta-se no primeiro capítulo um ponto de vista
histórico sobre as origens e constituição dos estudos culturais, de-
marcando o contexto britânico como a base dessa experiência. A
reconstituição dessas origens é tratada como pano de fundo para
situar a discussão central do livro. Diante das múltiplas versões hoje
disponíveis sobre o início do projeto dos estudos culturais, que dão
relevância ora para a constituição de um objeto de estudo próprio
(JOHNSON, 1996), ora para uma situação histórica específica
(SCHWARZ, 1994), aqui resgato aquela que trata da história das idéi-
as, indicando o trio fundador – Hoggart, Williams e Thompson –
e suas obras. Isso não significa desconsiderar nem desconhecer o
aspecto problemático da indicação das origens dos estudos cultu-
rais, mas reconhecer que o debate em torno de suas origens é de
importância periférica no contexto maior da minha pesquisa.
A partir deste momento é obrigatório um esclarecimento em
relação ao próprio termo “estudos culturais”. Os textos anglo-ame-
ricanos na sua grande maioria utilizam cultural studies, com minús-
culas e sem nenhum grifo em especial, para referir-se a tal campo
de estudos. Por essa razão, também conservo as minúsculas.
No caso latino-americano, dada a ausência de relatos conso-
lidados sobre a formação dos estudos culturais, opto por construir
uma narrativa que privilegia a constituição dessa perspectiva nas
intersecções com o campo da comunicação. Portanto, registro um
cenário panorâmico e parcial, sobretudo pela seleção de um enfo-
que específico e a brevidade de sua história.
Contudo, esse mapa provisório foi construído com o objeti-
vo de localizar a contribuição teórico-metodológica e, assim, ser
25
analisada num determinado ambiente. Deste modo, a obra indivi-
dual estabelece vínculos com um contexto sócio-histórico e teóri-
co-acadêmico, mas o autor e seu texto não são explicados pelos
contextos que o envolvem.
A partir do segundo capítulo é desenvolvida a análise dos
eixos temáticos, considerados marcos centrais no debate teórico
dos estudos culturais. Assim, demarca-se a discussão sobre ideo-
logia e hegemonia, sobre cultura popular numa época em que os
meios de comunicação impregnam o meio social e, finalmente,
sobre a problemática da construção das diversas identidades cul-
turais que caracterizam os grupos sociais contemporâneos. Cada
uma das seções concentra-se na recuperação de tais temáticas nas
formulações dos três autores selecionados como fundamentais na
constituição da perspectiva dos estudos culturais, seja no conti-
nente europeu, seja na América Latina.
Reitero que todas essas questões são construídas de acordo
com o posicionamento deste pesquisador, que se localiza no cam-
po de investigação da comunicação, ou melhor, no espaço de co-
nexão que se estabelece entre os estudos culturais e a comunicação.6
A estratégia adotada é aproximar-se do objeto de estudo já deline-
ado a partir de um ponto de vista que pretende compreender as
relações entre cultura e sociedade, reivindicando uma abordagem
crítica como indispensável para uma visão mais compreensiva da
experiência cultural contemporânea.
Na obrigatoriedade de consultar e trabalhar com bibliografia
em inglês e espanhol, gostaria de registrar que tive grande cuida-
do com as traduções, mantendo-me sempre alerta e receosa de
não ser suficientemente rigorosa nessas transposições.Mesmo
tendo sempre como meta ser fiel ao texto e, por sua vez, ao autor,
proponho em inúmeros casos traduções aproximadas para termos
que não têm equivalentes em português.7
26
27
UMA NARRATIVA POSSÍVEL OU A VERSÃO BRITÂNICA
As primeiras manifestações dos estudos culturais têm ori-
gem na Inglaterra, no final dos anos 50, especialmente em torno
do trabalho de Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward
Palmer Thompson. Esta afirmação é lugar-comum em muitas das
reconstituições das origens deste campo de estudo. De outro lado,
tem-se tornado também motivo gerador de debates, discussões e
contendas, sobretudo, nos últimos tempos.
O campo dos estudos culturais surge, de forma organizada,
através do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), di-
ante da alteração dos valores tradicionais da classe operária da In-
glaterra do pós-guerra. Inspirado na sua pesquisa, The Uses of Literacy
(1957), Richard Hoggart funda em 1964 o Centro. Este surge
ligado ao English Department da Universidade de Birmingham,
constituindo-se num centro de pesquisa de pós-graduação desta
mesma instituição. As relações entre a cultura contemporânea e a
sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas cul-
turais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças
sociais, vão compor o eixo principal de observação do CCCS.
Três textos que surgiram nos final dos anos 50 são identifica-
dos como a base dos estudos culturais:1 Richard Hoggart com
The Uses of Literacy (1957), Raymond Williams com Culture and
Society (1958) e E. P. Thompson com The Making of the English
Working-class (1963). O primeiro é em parte autobiográfico e em
parte história cultural do meio do século XX. O segundo constrói
um histórico do conceito de cultura, culminando com a idéia de
que a “cultura comum ou ordinária” pode ser vista como um
modo de vida em condições de igualdade de existência com o
mundo das Artes, Literatura e Música. E o terceiro reconstrói
ESTUDOS CULTURAIS:
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
28
uma parte da história da sociedade inglesa de um ponto de vista
particular – a história “dos de baixo”.
Na pesquisa realizada por Hoggart,2 o foco de atenção recai
sobre materiais culturais, antes desprezados, da cultura popular e
dos meios de comunicação de massa, através de metodologia qua-
litativa. Este trabalho inaugura o olhar de que no âmbito popular
não existe apenas submissão mas, também, resistência, o que,
bem mais tarde, será recuperado pelos estudos de audiência dos
meios massivos. Tratando da vida cultural da classe trabalhadora,
transparece nesse texto um tom nostálgico em relação a uma cul-
tura orgânica dessa classe.
A contribuição teórica de Williams3 é fundamental para os
estudos culturais a partir de Culture and Society [Cultura e socieda-
de, 1780-1950. São Paulo: Nacional, 1969]. Através de um olhar
diferenciado sobre a história literária, ele mostra que a cultura é
uma categoria-chave que conecta a análise literária com a investiga-
ção social. Seu livro The Long Revolution (1961) avança na demons-
tração da intensidade do debate contemporâneo sobre o impacto
cultural dos meios massivos, mostrando um certo pessimismo em
relação à cultura popular e aos próprios meios de comunicação.
É o próprio Stuart Hall que avalia a importância desse últi-
mo livro: “ele [The Long Revolution] transformou toda a base do
debate, de uma definição moral-literária de cultura, para uma de-
finição antropológica. Porém, definiu esta [a cultura] como o ‘pro-
cesso integral’ pelo qual significados e definições são socialmente
construídos e historicamente transformados, sendo, neste contex-
to, a literatura e a arte uma única forma especialmente privilegia-
da de comunicação social” (Hall apud Turner, 1990, p. 55). Essa
mudança no entendimento de cultura fez possível o desenvolvi-
mento dos estudos culturais.
Em relação à contribuição de Thompson,4 pode-se dizer que
influencia o desenvolvimento da história social britânica de den-
tro da tradição marxista. Para ambos, Williams e Thompson, cul-
tura era uma rede vivida de práticas e relações que constituíam a
vida cotidiana, dentro da qual o papel do indivíduo estava em pri-
meiro plano. Mas, de certa forma, Thompson resistia ao entendi-
mento de cultura enquanto uma forma de vida global. Em vez
29
disso, preferia entendê-la enquanto um enfrentamento entre mo-
dos de vida diferentes.5
Esses quatro textos recém mencionados foram seminais para
a configuração dos estudos culturais. Entretanto, Hall (1996b,
p. 32) ressalta que
eles não foram, de forma alguma, ‘livros didáticos’ para a fundação
de uma nova subdisciplina acadêmica: nada poderia estar mais
distante de seu impulso intrínseco. Quer fossem históricos ou
contemporâneos em seu foco, tais textos eram, eles próprios, foca-
lizados pelas pressões imediatas do tempo e da sociedade na qual
foram escritos, organizados através delas, além de serem elementos
constituintes de respostas a essas pressões.
Embora não seja citado como membro do trio fundador, a
importante participação de Stuart Hall6 na formação dos estudos
culturais britânicos é unanimemente reconhecida. Avalia-se que,
ao substituir Hoggart na direção do Centro, de 1968 a 1979,
incentivou o desenvolvimento da investigação de práticas de re-
sistência de subculturas e de análises dos meios massivos, identi-
ficando seu papel central na direção da sociedade; exerceu uma
função de “aglutinador” em momentos de intensas distensões teó-
ricas e, sobretudo, destravou debates teórico-políticos, tornando-
se um “catalizador” de inúmeros projetos coletivos.7 Tem uma
abundante produção de artigos, sendo que sua reflexão faz parte
da maioria das coletâneas mais importantes sobre estudos cultu-
rais, sejam eles publicados pelo próprio Centro ou não.
Enfim, esses são os principais atores e uma parte da história
do início da configuração deste campo de estudos. Em outras
palavras, essa mesma narrativa poderia ser assim contada:
Desde o final da década de 1950, tem existido, dentro da vida
cultural e intelectual de língua inglesa, um projeto que causou
impacto significativo no trabalho acadêmico no campo das Ar-
tes, das Humanidades e das Ciências Sociais. Nos anos 50, tal
projeto não tinha um nome. Não tinha nem sequer uma única
fonte. Surgiu dentro de um contexto histórico e social especí-
fico, a partir do trabalho de três indivíduos. Raymond Willia-
ms, Richard Hoggart e E. P. Thompson estavam preocupados,
30
de forma diferente, com a questão da cultura na sociedade es-
tratificada em classes da Inglaterra. Os autores estavam tentan-
do, cada um a seu modo, entender o papel e o efeito da cultura
em um momento crítico da própria história da Inglaterra: um
momento marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, a
herança, em um ambiente já mudado e em constante mudança,
de uma política de classe de limitada resistência, e, finalmente, a
importação ou invasão, através dos meios de comunicação de
massa, da cultura americana, o que tornou público e ressaltou a
todos o dominador caráter de classe da vida cultural inglesa.
(BLUNDELL ET AL., 1993, p. 1)
O trecho em questão replicaria a versão recém apresentada,
não fosse esta escrita por autores canadenses que, embora relatem
esse ponto de vista de sua fundação, questionam, logo a seguir, a
existência de uma narrativa única sobre sua constituição como
um projeto maior que transcendeu as fronteiras da Grã-Bretanha.
O propósito dessa publicação – Relocating Cultural Studies – Deve-
lopments in Theory and Research (1993) – é mostrar justamente a
versão britânica sobre as origens dessa trajetória em contraste
com a particularidade do caso canadense, revelando, simultanea-
mente, o descentramento contemporâneo dos estudos culturais.
Através desse tipo de posicionamento, em que a coletânea
citada é apenas um exemplo,8 problematiza-se o ‘“cânone” – a
versão dominante – sobre as origens dos estudos culturais. Em
contraposição a essa versão dominante, afirma-se que em outras
localidades e em outros momentos podem ser identificadas“ou-
tras” origens para esse campo de estudos. Enfim, a existência de
diferenças nacionais e a confluência de um conjunto particular de
propostas de cunho teórico-político geraram outros exemplos de
estudos culturais que desestabilizam a narrativa sobre uma ori-
gem centrada, sobretudo, em Birmingham, na Inglaterra.
Ainda, em outra versão que discute a emergência histórica
dos estudos culturais enquanto desenvolvimento organicamente
britânico, desenvolvimento determinado por forças nacionais in-
ternas, é obrigatório identificar as condições históricas existentes
naquele momento. Pelo menos duas características são marcantes:
o impacto da organização capitalista das formas culturais no campo
31
das relações sócio-culturais e o colapso do império britânico.
No primeiro espaço, observa-se a ruptura das culturas tradicio-
nais de classe em conseqüência do alastramento dos meios de
comunicação de massa; no segundo, percebe-se que a suposta
integridade da nação britânica começa a implodir. Dessa forma, a
ascensão dos estudos culturais britânicos coincide com uma crise
de identidade nacional.
Porém, não existem motivos para descartar seus princípios
fundadores: “a identificação explícita das culturas vividas como
um objeto distinto de estudo, o reconhecimento da autonomia e
complexidade das formas simbólicas em si mesmas; a crença de
que as classes populares possuíam suas próprias formas culturais,
dignas do nome, recusando todas as denúncias, por parte da cha-
mada alta cultura, do barbarismo das camadas sociais mais bai-
xas; e a insistência em que o estudo da cultura não poderia ser
confinado a uma disciplina única, mas era necessariamente inter,
ou mesmo anti, disciplinar”, tão bem sumarizados por Schwarz
(1994, p. 380) –, pois estes princípios revelaram-se instigantes
nestes últimos trinta anos. A rápida expansão dos estudos cultu-
rais em parte é atribuída aos mesmos.
Entretanto, seria demasiado ingênuo explicar sua emergên-
cia somente em termos do trio fundador e de seus textos-chave,
tendo em vista os questionamentos existentes a esse respeito. Con-
tudo, faz-se necessário reconhecer que existem desacordos entre
os considerados “pais fundadores” dos estudos culturais: Willia-
ms, Thompson e Hoggart. Porém, para a constituição dos estu-
dos culturais é mais significativo destacar os pontos de vista
compartilhados entre eles.
É importante ressaltar, então, que os três autores citados
como os fundadores deste campo de estudos, embora não te-
nham uma intervenção coordenada entre si, revelam um leque
comum de preocupações que abrangem as relações entre cultu-
ra, história e sociedade.
O que os une é uma abordagem que insiste em afirmar que através
da análise da cultura de uma sociedade – as formas textuais e as
32
práticas documentadas de uma cultura – é possível reconstituir o
comportamento padronizado e as constelações de idéias com-
partilhadas pelos homens e mulheres que produzem e conso-
mem os textos e as práticas culturais daquela sociedade. É uma
perspectiva que enfatiza a “atividade humana”, a produção ativa
da cultura, ao invés de seu consumo passivo”. (STOREY, 1997, p. 46,
grifo meu)
É possível apontar, a partir daí, duas grandes reorientações
na análise cultural proposta pelos estudos culturais: o padrão esté-
tico-literário de cultura, ou seja, aquilo que era considerado “sé-
rio” no âmbito da literatura, das artes e da música passa a ser
visto apenas como uma expressão da cultura. Esta refere-se, en-
tão, a um amplo espectro de significados e práticas que move e
constitui a vida social. O fato de se alargar o conceito de cultura,
incluindo práticas e sentidos do cotidiano, propiciou, por sua vez,
uma segunda mudança importante: todas as expressões culturais
devem ser vistas em relação ao contexto social das instituições,
das relações de poder e da história.
Tendo como ponto de partida um conjunto de proposições
que à primeira vista mostra-se tão amplo quanto aberto a entendi-
mentos diversos, Hall (1996a, p. 263) reivindica manter sua plu-
ralidade, mas simultaneamente estabelece um fio condutor:
Ainda que os estudos culturais, como um projeto, estejam em
aberto, não podem ser simplesmente pluralistas desta maneira.
Recusam-se, sim, a ser um discurso dominante ou um metadiscurso
(grifo meu) de qualquer espécie. Constituem, sim, um projeto
sempre aberto àquilo que ainda não conhece, àquilo que ainda
não pode identificar. Porém, tal projeto possui, também, um certo
desejo de conectar-se, um balizamento nas escolhas que faz. Por-
tanto, realmente fará diferença interpretarem-se os estudos cultu-
rais como sendo uma coisa ou outra.
Conclui-se que, se a versão britânica sobre as origens e cons-
tituição deste projeto não apresenta implicitamente uma posição
teórica unificada, também, não está composta por um conjunto
tão díspar que não apresente uma unidade. Indagar-se sobre “a
unidade na diferença” (GROSSBERG, 1993) é reconhecer que esta
33
responde, em parte, a condições particulares – a um contexto
intelectual, político, social e histórico específico.
As peculiaridades do contexto histórico britânico, abran-
gendo da área política ao meio acadêmico, marcaram indelevel-
mente o surgimento deste movimento teórico-político. Os estudos
culturais ressaltaram os nexos existentes entre investigação e for-
mações sociais onde se desenrola a própria pesquisa. “Os estu-
dos culturais não dizem respeito apenas ao estudo da cultura.
Nunca pretenderam dizer que a cultura poderia ser identificada
e analisada de forma independente das realidades sociais concre-
tas dentro das quais existem e a partir das quais se manifestam”
(BLUNDELL ET AL., 1993, p. 2).
Em primeiro lugar, deve-se acentuar o fato de que os estudos
culturais britânicos devem ser vistos tanto do ponto de vista polí-
tico, na tentativa de constituição de um projeto político, quanto
do ponto de vista teórico, isto é, com a intenção de construir um
novo campo de estudos. “[...] Não se pode entender um projeto
artístico e intelectual sem entender, também, sua formação; sem
entender que a relação entre um projeto e uma formação é sempre
decisiva; e que [...] a ênfase dos estudos culturais está precisa-
mente no fato de que eles se ocupam de ambas as concepções”
(WILLIAMS, 1996, p. 168). A partir desta dupla agenda é que os
estudos culturais britânicos devem ser pensados.
Do ponto vista político, são sinônimos de “correção políti-
ca” (JAMESON, 1994), podendo ser identificados com a política
cultural dos vários movimentos sociais da época de seu surgimen-
to. Por essa razão, sua proposta original é considerada por alguns
como mais política do que analítica.
Autores como Michael Green (1995) apontam como motivo
primordial para o surgimento dos estudos culturais britânicos uma
condensação política em torno de um conjunto de novos e com-
partilhados temas de interesse que convergiram com o momento
de emergência da New Left. “[...] os estudos culturais oferecem
um espaço no qual se pode explorar – e refletir sobre – uma vari-
edade de questões políticas, e jamais negaram que sua agenda tem
dimensões políticas e não pode ser ‘objetiva’”, afirma Green. (1995,
p. 229).
34
A titulo de ilustração, os estudos culturais australianos, como
os britânicos, também, são vistos como decorrentes de uma con-
juntura política.
A questão aqui, contudo, é simplesmente o fato de que os estudos
culturais australianos não apenas foram uma resposta aos movi-
mentos políticos e sociais das últimas três décadas (o que pode ser
dito em relação aos estudos culturais como projeto geral), mas
também produziram muitos de seus temas, suas prioridades de
pesquisa, suas polêmicas e, de certa forma, sua ênfase teórica e seus
principais métodos de trabalho, a partir de um engajamento com
estes movimentos. (Frow e Morris, 1996, p. 351)
Pela perspectiva teórica, resultam da insatisfação com os li-
mites de algumas disciplinas, propondo, então, a inter/trans ou,
ainda para alguns, a antidisciplinaridade.9 Isto não impediu, en-
tretanto, que em algunslugares tenham se institucionalizado.10
Os estudos culturais não configuram uma “disciplina” mas
uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando ao estu-
do de aspectos culturais da sociedade. A área, então, segundo um
coletivo de pesquisadores do Centro de Birmingham que atuou,
principalmente, nos anos 70, não se constitui numa nova discipli-
na, mas resulta da insatisfação com algumas disciplinas e seus
próprios limites (HALL ET AL, 1980, p. 7). É um campo de estu-
dos em que diversas disciplinas se interseccionam no estudo de
aspectos culturais da sociedade contemporânea, constituindo um
trabalho historicamente determinado.
Em análises que tentam mapear o centro de atenção deste
campo, enfatiza-se seu diálogo entre disciplinas: “Os estudos cul-
turais são um campo interdisciplinar onde certas preocupações e
métodos convergem; a utilidade dessa convergência é que ela nos
propicia entender fenômenos e relações que não são acessíveis
através das disciplinas existentes. Não é, contudo, um campo uni-
ficado” (TURNER, 1990, p. 11).
Em termos de disciplinas, no seu primeiro momento de for-
mação, o encontro entre Literatura Inglesa, Sociologia e História
propiciou pensar uma conexão entre três níveis distintos. A pri-
meira contribuiu com a preocupação com as formas culturais
35
populares, assim como com textos e textualidades, estes últimos
podendo estar situados além da linguagem e literatura;11 à socio-
logia atribui-se o exame da reprodução estrutural e da subordina-
ção e da história vem o interesse da “história de baixo” e, também,
o reconhecimento da história oral e da memória popular.
Entretanto, é preciso ressaltar que, na sua fase inicial, os fun-
dadores desta área de pesquisa tentaram não propagar uma defini-
ção absoluta e rígida de sua proposta. Nas palavras de Stuart Hall,
o órgão de divulgação do Centro – Working Papers in Cultural Stu-
dies12 – não deveria preocupar-se em “[...] ser um veículo que defi-
na o alcance e extensão dos estudos culturais de uma forma definitiva
ou absoluta. Nós rejeitamos, em resumo, uma definição descritiva
ou prescritiva do campo” (HALL, 1980a, p. 15).
Na realidade, os estudos culturais britânicos se constituem
na tensão entre demandas teóricas e políticas. Embora sustentem
um marco teórico específico (não obstante, heterogêneo), am-
parado principalmente no marxismo, a história deste campo de
estudos está entrelaçada com a trajetória da New Left, de alguns
movimentos sociais (Worker’s Educational Association, Cam-
paign for Nuclear Disarmament, etc.) e de publicações – entre
elas, a New Left Review – que surgiram em torno de respostas
políticas à esquerda. Ressalta-se seu forte laço com o movimen-
to de educação de adultos.
A multiplicidade de objetos de investigação também caracteri-
za os estudos culturais. Resulta da convicção de que é impossível
abstrair a análise da cultura das relações de poder e das estratégias
de mudança social. A ausência de uma síntese completa sobre os
períodos, enfrentamentos políticos e deslocamentos teóricos contí-
nuos de método e objeto faz com que, de forma geral e abrangente,
o terreno de sua investigação circunscreva-se aos temas vinculados
às culturas populares e aos meios de comunicação de massa e, pos-
teriormente, a temáticas relacionadas com as identidades, sejam
elas sexuais, de classe, étnicas, geracionais etc. Mas é necessário
esperar até os anos 70, principalmente, com a implantação da pu-
blicação periódica dos Working Papers, para que a produção cientí-
fica do Centro passe a ter visibilidade e repercussão.
36
Numa tentativa de reconstituir uma narrativa histórica sobre
os interesses e temáticas que predominaram neste campo de estu-
dos, podem-se identificar alguns momentos bem diferenciados.
No início dos anos 70, o desenvolvimento mais importante con-
centrou-se em torno da emergência de várias subculturas que pa-
reciam resistir a alguns aspectos da estrutura dominante de poder.
E, a partir da segunda metade dessa mesma década, percebe-se a
importância crescente dos meios de comunicação de massa, vis-
tos não somente como entretenimento mas como aparelhos ideo-
lógicos do Estado.
Nessa época, os estudos das culturas populares pretendiam
responder a indagações sobre a constituição de um sistema de valo-
res e de um universo de sentido, sobre o problema de sua autono-
mia e, também, como esses mesmos sistemas contribuem para a
constituição de uma identidade coletiva e como se articulam as
dimensões de resistência e subordinação das classes populares.13
Já o estudo dos meios de comunicação caracterizava-se pelo
foco na análise da estrutura ideológica, principalmente, da cober-
tura jornalística. Esta etapa foi denominada por Hall (1982) de
“redescoberta da ideologia”, sendo que uma das premissas bási-
cas desta fase pressupunha que os efeitos dos meios de comunica-
ção podiam ser deduzidos da análise textual das mensagens emitidas
pelos próprios meios.
Ainda nessa década, a temática da recepção e a densidade
dos consumos mediáticos começam a chamar a atenção dos pes-
quisadores de Birmingham, ou melhor, do CCCS. Este tipo de
reflexão acentua-se a partir da divulgação do texto “Encoding and
decoding in the television discourse”,14 de Stuart Hall, publicado
pela primeira vez em 1973. Desencadeado um processo de deslo-
camento do olhar, dentro do espectro dos estudos culturais, co-
meçam a aparecer outras produções: David Morley publica “Texts,
readers, subjects” (1977-1978) e, logo em seguida, algumas pes-
quisas empíricas começam a tomar corpo.
Depois de um período de preocupação com análises textuais
dos meios massivos, tais estudos de audiências começam a ser
desenvolvidos como uma tentativa de verificar empiricamente tanto
as diversas leituras ideológicas construídas pelos próprios pesqui-
37
sadores quanto as posições assumidas pelo receptor.15 Porém, é na
segunda metade dos anos 80 e já não mais circunscrito às investi-
gações do CCCS, que se nota uma clara mudança de interesse do
que está acontecendo na tela para o que está na frente dela, ou
seja, do texto para a audiência.
Entretanto, ainda nos anos 70, o trabalho em torno das dife-
renças de gênero através do feminismo que irrompe em cena, e os
desenvolvimentos em torno da idéia de “resistência”, também
marcam o período. Hall (1992, 1996a) aponta o feminismo como
uma das rupturas teóricas decisivas que alterou uma prática acu-
mulada em estudos culturais, reorganizando sua agenda em ter-
mos bem concretos. Desta forma, destaca sua influência nos
seguintes aspectos: a abertura para o entendimento do âmbito
pessoal como político e suas conseqüências na construção do ob-
jeto de estudo dos estudos culturais; a expansão da noção de po-
der, que, embora bastante desenvolvida, tinha sido apenas
trabalhada no espaço da esfera pública; a centralidade das ques-
tões de gênero e sexualidade para a compreensão da própria cate-
goria “poder”; a inclusão de questões em torno do subjetivo e do
sujeito e, por último, a “reabertura” da fronteira entre teoria social
e teoria do inconsciente – psicanálise.
De forma assumidamente deliberada, Hall (1996a, p. 269)
utiliza a seguinte metáfora sobre a “irrupção” do feminismo nos
estudos culturais e, em especial, na vida intelectual do CCCS:
“Não se sabe, de uma maneira geral, onde e como o feminismo
arrombou a casa. [...] Como um ladrão no meio da noite, ele
entrou, perturbou, fez um ruído inconveniente, tomou a vez, es-
tourou na mesa dos estudos culturais”.
E, em outro lugar, conta como ele e Michael Green, perce-
bendo a importância das questões em torno do feminismo, “con-
vidaram” algumas feministas para destravar essa discussão dentro
do Centro e como esta tomou forma por si própria.
Em um dado momento, Michael Green e eu decidimos experi-
mentar e convidar algumas feministas, que não estavam trabalhan-
do conosco, para vir para o Centro, visando a projetar a questão
do feminismo no interior dele. Assim sendo, a tradicional história
38
de que o feminismo surgiu de dentro dosestudos culturais não é
bem verdadeira. Estávamos muito ansiosos para estabelecer aquele
vínculo, em parte porque nós dois, à época, vivíamos com feminis-
tas. Trabalhávamos com estudos culturais, mas mantínhamos uma
conversação com o feminismo. As pessoas pertencentes aos estudos
culturais estavam se tornando sensíveis à política feminista. Sendo
clássicos ‘novos homens’, a verdade é que, quando o feminismo
realmente emergiu de forma autônoma, fomos pegos de surpresa
pela própria coisa que havíamos tentado, de forma patriarcal, iniciar.
Aquelas coisas eram simplesmente muito imprevisíveis. O feminis-
mo, então, realmente irrompeu no Centro, em seus próprios ter-
mos, de sua própria e explosiva maneira. Mas não era a primeira vez
que os estudos culturais pensavam sobre política feminista ou se
tornavam cientes dela. (HALL, 1996d, p. 499)16
Embora esta versão não seja bem vista pelas feministas, tanto
as do CCCS quanto as que trabalham com estudos culturais, vale
a pena resgatá-la. Representando as feministas e em oposição ao
relato de Hall, Brunsdon (1996) nomeia como importantes na
reconstituição desta trajetória trabalhos produzidos a partir de
1974, demonstrando assim a existência deste nicho de interesses
dentro do Centro.
O artigo mimeografado de 1974, ‘Images of women’, de Helen
Butcher, Rosalin Coward, Marcella Evaristi, Jenny Garber, Rachel
Harrison, Janice Winship; o artigo de Jenny Garber e Angela
McRobbie sobre ‘Girls and subcultures’, nos Working Papers in
Cultural Studies de 1975 – Resistance through Rituals e a publica-
ção de 1978 Women Take Issue, todos marcam diferentes disputas
neste campo. [...] Assim, se há uma primeira fase no encontro
entre as feministas e o CCCS, começando, talvez, em 1973-4, eu
sugeriria que seu texto final é a coletânea de 1981, de McRobbie
e McCabe, Feminism for Girls, a qual, em seu uso de ‘feminismo’ e
‘meninas’, sugere uma distância dos anos 70. Este livro marca,
também, o fim da primeira fase com uma percepção muito forte
dos problemas com a categoria ‘mulher’, bem como com a diferen-
ça entre (grifo meu) as mulheres. (BRUNSDON, 1996, p. 278)17
É necessário notar que estas primeiras produções aparecem
de forma ainda esparsa. Em 1976, influenciadas pelo Women’s
Liberation Movement, as mulheres do CCCS questionaram sua
39
própria posição dentro do centro de pesquisa e propuseram a
criação de um grupo de estudo somente composto por mulhe-
res. Embora fortemente contestada, essa proposição foi refe-
rendada.
Reconstituindo, então, de uma outra forma a história do fe-
minismo no CCCS, Brunsdon (1996, p. 280) nega veementemen-
te a versão paternalista de Hall.
Na primeira vez em que li esta avaliação, eu queria esquecê-la ime-
diatamente. Negá-la, ignorá-la, desconhecê-la – não reconhecer a
agressão ali contida. Não tanto para negar que as feministas do
CCCS, durante os anos 70, haviam feito um poderoso desafio
aos estudos culturais, na forma como estavam constituídos na-
quele momento e naquele lugar, mas para negar que tivessem acon-
tecido da forma aqui descrita [por Hall].
Nota-se, entretanto, no relato de Brunsdon, a problematiza-
ção da existência de duas esferas nos estudos culturais: a comum
e ordinária e a feminina/feminista. Mas há um tom de questiona-
mento sobre a propriedade de existir “em separado” uma versão
feminista deste campo de estudos.
Apesar das divergências na reconstituição dessa experiência,
o volume Women Take Issue (1978) é considerado o primeiro re-
sultado prático de maior envergadura na divulgação dos trabalhos
do Women’s Studies Group do CCCS. Na realidade, este seria
originalmente o 110 Working Papers in Cultural Studies, sendo que
nas suas edições anteriores somente pouquíssimos artigos preo-
cupavam-se com questões em torno da mulher.18 Embora somen-
te algumas pesquisadoras estivessem em contato mais intenso com
o Women’s Liberation Movement, que tinha surgido no final dos
60, revelava-se aí uma primeira tentativa de realizar um trabalho
intelectual feminista.
A preocupação original deste coletivo era ver como a catego-
ria “gênero” estrutura e é ela própria estruturada nas formações
sociais. “Argumentávamos que a sociedade deveria ser compreen-
dida, em sua constituição, através da articulação sexo/gênero e
antagonismos de classe, embora algumas feministas priorizassem
a divisão sexual em suas análises” (1978, p. 10).
40
Num primeiro momento, o desafio foi examinar as imagens
das mulheres nos meios massivos (1974) e, a seguir, o debate
travou-se em torno da temática do trabalho doméstico.
Mais especificamente, tal mudança foi vista como uma tentati-
va de considerar a relação entre classe e subordinação da mulher
em um nível teórico. Porém, de certa forma, tal mudança foi
um passo seguinte ao artigo ‘Images’. Junto à mulher como
objeto sexual, estava a mulher como mãe e dona-de-casa, que
nós entendíamos ser a imagem básica e determinante nos meios
de comunicação. De forma mais geral, este trabalho representava
um engajamento educativo com as difíceis categorias econômicas do
marxismo. (1978, p. 13, grifo meu)
Grande parte da contribuição deste coletivo reside neste últi-
mo aspecto.
Embora esse livro tenha dado visibilidade a uma produção
intelectual em torno de um projeto feminista, mostrou também as
diferenças e fragilidades existentes no grupo. Mesmo assim, de-
marcou uma área de atuação com especificidade dentro do cam-
po acadêmico, servindo para delinear novos objetos de estudo.
Somos um grupo de mulheres e homens que produziram, juntos,
este livro com idéias diferentes do que é e deveria ser o trabalho
intelectual feminista. Isso depende parcialmente da maneira pela
qual entendemos ‘feminismo’ e ‘trabalho intelectual’ como práti-
cas políticas (e de suas relações).Todos consideramos que o traba-
lho intelectual feminista é um engajamento, tanto intelectual
quanto político, no âmbito do próprio trabalho intelectual. Possu-
ímos opiniões diferentes, porém, em relação a se isso é, em si, uma
prática política adequada, e se a adequação política é um critério
relevante e direto para o trabalho intelectual. Quanto ao relaciona-
mento entre marxismo e feminismo, temos abordagens diferentes
em termos de prática política. Divergimos sobre o que o feminis-
mo é, no que concerne aos homens poderem ou não ser feminis-
tas. Além disso, nossas opiniões também são diferentes quanto à
idéia de devermos estar nos dirigindo primordialmente a homens
ou mulheres, e se é possível nos dirigirmos a ambos simultanea-
mente, nos mesmos termos. (1978, p. 13)
41
É dessa forma que se estabelece o encontro com a produção
feminista. Apesar da polêmica em torno da forma como tal se
efetuou, este foco de atenção propiciou novos questionamentos
em redor de questões referentes à identidade, pois introduziu novas
variáveis na sua constituição, deixando-se de ver os processos de
construção da identidade unicamente através da cultura de classe
e sua transmissão geracional.
Na avaliação da Michael Green, “se há um tema que possa
ser identificado na primeira fase dos estudos culturais, é o da
cultura como espaço de negociação, conflito, inovação e resistên-
cia dentro das relações sociais das sociedades dominadas pelo poder
e fraturadas por divisões de gênero, classe e raça” (GREEN, 1996b,
p. 125). Em suma, no período de maior evidência do CCCS acres-
centa-se ao seu interesse pelas subculturas às questões de gênero
e, logo em seguida, as que envolvem raça e etnia.19 Além, é claro,
como já foi anotado, a atenção sobre os meios de comunicação.
A partir dos anos 80, há indícios de que a importância do
CCCS como pólo de difusão da proposta dos estudos culturais
começa a arrefecer, isto é, começa a ser observada uma força de
descentralização. Durante esse processo, nota-se a expansão do
projeto dos estudos culturais para outros territórios, para além da
Grã-Bretanha, ocorrendo mutações importantes, decorrentes, prin-
cipalmente, de uma observação sobre a desestabilização das iden-
tidades sociais, ocasionada, sobretudo, pela aceleraçãodo processo
de globalização. O foco central passa a ser a reflexão sobre as
novas condições de constituição das identidades sociais e sua re-
composição numa época em que as solidariedades tradicionais
estão debilitadas. Enfim, trata-se de uma ênfase à dimensão subje-
tiva e à pluralidade dos modos de vida vigentes em novos tempos
– ‘New Times’ (HALL, 1996g).
Armand Mattelart e Eric Neveu (1997, p. 131) sugerem que
um dos fatores- chave nesta orientação se refere a uma redefini-
ção das modalidades de análise dos meios de comunicação social.
“Se existiu uma ‘virada’ no início da década dos anos 80, consis-
tiu em prestar uma atenção crescente à recepção dos meios de
comunicação social, tratando de operacionalizar modelos como o
da codificação-decodificação”.
42
Vale lembrar, no entanto, que a incorporação do modelo de
Hall, num primeiro momento, desembocou em estudos do âmbi-
to do ideológico e do formato da mensagem, sobretudo, da televi-
siva. Ainda o poder do texto sobre o leitor/espectador domina
esta etapa de análise dos meios, embora desafie a noção de textos
mediáticos enquanto portadores “transparentes” de significados,
rompendo, também, com a concepção passiva de audiência. É
exemplar a esse respeito o trabalho de Morley e Brundson (1978)
sobre o programa Nationwide que a seguir é levado em frente
num estudo específico de audiência (MORLEY, 1980b).
No contexto britânico, a trajetória de pesquisa de David
Morley exemplifica o deslocamento da análise da estrutura ideoló-
gica de programas factuais de televisão em direção aos processos
multifacetados de consumo e codificação nos quais as audiências
estão envolvidas. A primeira pesquisa envolveu uma análise deta-
lhada da estrutura interna de uma edição deste programa televisi-
vo de sucesso na época junto à sociedade britânica. Já The Nationwide
Audience (1980b) é um estudo de audiência considerado o marco
inicial de uma área de investigação que se consolida como pró-
pria dos estudos culturais.
Assim, aos poucos, nos anos 80 vão definindo-se novas mo-
dalidades de análise dos meios de comunicação. Passou-se, então,
à realização de investigações que combinam análise de texto com
pesquisa de audiência. São implementados estudos de recepção
dos meios massivos, especialmente, no que diz respeito aos pro-
gramas televisivos. Também são alvo de atenção a literatura popu-
lar, séries televisivas e filmes de grande bilheteria.20 Todos estes
tratam de dar visibilidade à audiência, isto é, aos sujeitos engaja-
dos na produção de sentidos. Também há um redirecionamento
no que diz respeito aos protocolos de investigação. Estes passam
a dar uma atenção crescente ao trabalho etnográfico.
A importância que a etnografia assumiu nas análises da re-
cepção, funcionando como uma forma de relativizar os achados
da tendência anterior marcada pela crítica ideológica, precisa
ser sumariamente avaliada. Ao operar no ponto de encontro
onde determinadas condições sociais transformam-se em con-
dições especificamente vividas, trabalha-se por dentro de frontei-
43
ras. Nesse estreito espaço, de difícil acesso, corre-se o risco per-
manente de celebrar as resistências ao reconhecer que as audiên-
cias respondem ativamente às formas culturais massivas,
principalmente, se for levado em consideração o trabalho anteri-
ormente executado de “desmistificar, denunciar e condenar” o
poder dos meios sobre a audiência.
Embora seja plausível a consideração de que a audiência
estabelece uma ativa negociação com os textos mediáticos e com
as tecnologias no contexto da vida cotidiana, esse posiciona-
mento pode tornar-se tão otimista que perde de vista a margina-
lidade do poder dos receptores diante dos meios. A euforia com
a vitalidade da audiência e por sua vez com a cultura popular fez
com que esta fosse entendida como um espaço autônomo e re-
sistente ao campo hegemônico. Algo que aconteceu com várias
das pesquisas dessa época.
No contexto dos estudos de audiência, uma avaliação crítica
dos resultados obtidos nesse tipo de investigação reivindica: “O
que uma etnografia crítica das audiências dos meios de comuni-
cação precisa esmiuçar, então, é a não reconhecida, inconsciente
e contraditória efetividade do hegemônico dentro do popular, as rela-
ções de poder que estão inscritas no interior da textura das práticas de
recepção” (ANG, 1996, p. 245). Para tanto, o entendimento da
concepção de hegemonia não pode permanecer no nível teórico-
abstrato. É necessário dar conta de alcançar um sentido concreto
das forças hegemônicas que regem o mundo atual. A mesma au-
tora conclui: “Precisamos ir além dessas conceitualizações para-
digmáticas de hegemonia e desenvolver um sentido de hegemonia
mais específico, concreto, contextual, em resumo, mais etnográfi-
co” (grifo meu). Posição semelhante é reivindicada por McRob-
bie (1992, 1994).
Nos anos 90, este leque de investigações sobre a audiência
procura ainda mais enfaticamente capturar a experiência, a capa-
cidade de ação dos mais diversos grupos sociais vistos, principal-
mente, à luz das relações da identidade com o âmbito global,
nacional, local e individual. Questões como raça e etnia, o uso e a
integração de novas tecnologias como o vídeo e a TV, assim como
seus produtos na constituição de identidades de gênero, de classe,
44
bem como as geracionais e culturais, e as relações de poder nos
contextos domésticos de recepção, continuam na agenda, princi-
palmente, das análises de recepção.21 Destacam-se, como ênfases
mais recentes neste tipo de estudo, os recortes étnicos e a incor-
poração de novas tecnologias. Em relação às estratégias metodo-
lógicas, estas redundam na etnografia e na observação participante
embora possam parecer mais diversificadas – (auto)biografias,
depoimentos, histórias de vida.
De maneiras variadas, esses estudos de audiências estão preocupa-
dos em situar as leituras e práticas dos meios de comunicação den-
tro de redes complexas de determinações, não apenas dos textos,
mas também daqueles determinantes estruturais mais profundos,
como classe, gênero e, ainda, em menor grau, raça e etnia. Estes
estudos também iluminam os caminhos em que se intersectam e
são vividos os discursos públicos e privados, nas práticas rotinei-
ras e íntimas da vida cotidiana. Além disso, a maioria reflete sobre
os métodos de pesquisa e, especialmente, sobre a localização do
pesquisador ou pesquisadora em seu estudo [...]. Desta forma,
apesar de sua pequena escala, cada um deles, de maneiras diferen-
tes, coloca questões mais amplas de estrutura e atuação dentro
do mundo socialmente estruturado das práticas e da subjetivida-
de, e muitos refletem sobre o contexto institucional da própria
pesquisa. (GRAY, 1999)
Enfim, estes estudos dos anos 90 revelam alguns dos objeti-
vos que, com diferentes ênfases, continuarão sendo perseguidos
pela linha de investigação de audiências. Ainda é cedo para elabo-
rar um balanço deste último período, é possível apenas identificar
as tendências recém citadas.
Aqui se enfatizou esta orientação na análise dos meios de
comunicação de massa – a recepção – porque a finalidade é refle-
tir sobre a comunicação mediática como clivagem dentro do am-
plo espectro proposto pelos estudos culturais. Tal fato, de forma
alguma, implica restringir o objeto de estudo deste campo em
torno desta temática. Ao contrário, cada vez mais o objeto de
investigação se diversifica e se fragmenta. Contudo, no ponto de
encontro destas duas frentes, comunicação e estudos culturais,
45
identifica-se uma forte inclinação em refletir sobre o papel dos
meios de comunicação na constituição de identidades, sendo esta
última a principal questão deste campo de estudos na atualidade.
Resta dizer que, se originalmente os estudos culturais po-
dem ser considerados uma invenção britânica, hoje, na sua forma
contemporânea, tornaram-se uma problemática teórica de reper-
cussão internacional. Não se confinam mais à Inglaterra e Europa
nem aos Estados Unidos, tendo se alastrado para a Austrália, Ca-
nadá, Nova Zelândia,

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