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Estudos Culturais Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Me. Priscila Bernardo Martins Revisão Textual: Prof.ª Me. Sandra Regina Fonseca Moreira O que é Cultura? • O que é Cultura? • Considerações Finais. • Apresentar uma abordagem de algumas correntes teórico-metodológicas sobre cultura, das formas, espaços e sentidos do conceito de cultura. OBJETIVO DE APRENDIZADO O que é Cultura? UNIDADE O que é Cultura? O que é Cultura? Em termos conceituais, a palavra cultura é largamente utilizada para especificar os diversificados costumes e hábitos de um determinado povo, as várias formas de expressão artística, uma conduta da civilização ou os conhecimentos mobilizados por um dado grupo. Figura 1 Fonte: iStock/GettyImages Por que as culturas humanas se encontram no cerne das discussões na contemporaneidade? Hall (1997) afirma que as ciências humanas e sociais, há muito tempo, reconhe- cem a cultura como significativa. A compreensão da linguagem, da literatura, das artes, das ideias filosóficas, dos sistemas de crenças morais e religiosas, de acor- do com Hall (1997), estão presentes em um conjunto de significados, conhecido como cultura. As ciências sociais, em destaque a Sociologia, atribuem uma impor- tância para o estudo de um comportamento que não é provedor da programação genérica, biológica ou instintiva, sendo este a cultura. Santos (2006) concebe a cultura como preocupação muito presente nos últimos tempos, visto que por meio dela é possível conhecer os caminhos que nortearam os grupos humanos em suas relações atuais e prospectivas futuras. A História apresenta consideravelmente as transformações sofridas pelas cul- turas, ocorridas por forças internas, ou em consequência de contatos e conflitos. Então, ao se abordar o tema cultura, é necessário considerá-lo em sua complexi- dade, visto que, segundo Santos (2006), são complexas as realidades dos grupos humanos, além disso, as características semelhantes os unem e as características dessemelhantes os diferenciam, sendo essas características expressas por meio da cultura. Ao direcionar o olhar para as religiões podemos exemplificar pontos cultu- rais semelhantes e dessemelhantes. 8 9 Figura 2 Fonte: iStock/Getty Images Por exemplo, ao considerarmos as culturas da Índia e da Indonésia, podemos encontrar pontos culturais semelhantes devido à quantidade expressiva de mulçu- manos, além disso, os dois países são asiáticos. Em contrapartida, se compararmos a Índia com os Estados Unidos, encontraremos pontos dessemelhantes, principal- mente associados à religião, em vista de que o número de mulçumanos nos Estados Unidos é mínimo em relação à Índia. Notadamente, a cultura está relacionada com a humanidade como um todo, incluindo os povos, nações, sociedade e grupos humanos. Os diferentes tipos de culturas que existem, ou existiram, são um dos motivos para a cultura estar no cerne das discussões atuais. Santos (2006) retrata que é fundamental compreender a realidade cultural para aquelas que a vivem, para compreender o contexto no qual a cultura está inserida, na medida em que “[...] cada realidade cultural tem sua lógica interna, a qual devemos procurar conhecer para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações pelas quais estas passam.” (SANTOS, 2006, p.3). Figura 3 Fonte: iStock/Getty Images 9 UNIDADE O que é Cultura? A cultura faz sentido para os pares que as vivem, pois é o resultado de suas histó- rias, acoplando suas condições materiais e existenciais. Ainda, o estudo sobre cultura favorece contribuições contra preconceitos, uma vez que oferece informações que colaboram para promover o respeito e a dignidade nas relações humanas. Hall (1997) acredita que os seres humanos são produtores de sentidos, são seres interpretativos. A compreensão das culturas separadamente torna-se importante para conhecer crenças e concepções presentes no mundo como um todo, posto que todas as culturas estão interligadas e todos os povos vivem em interação. Além disso, como os seres humanos são produtores de sentido, é necessário conhecer como esses sentidos são criados e como possuem influência no mundo, partindo de uma microssociedade (um grupo específico) para uma macrossociedade (mundial). Santos (2006) corrobora com Hall (1997), ao reconhecer que o debate sobre cultura contribui para pensar além da realidade do mundo como um todo, como também para pensar sobre a própria realidade, sendo que todas as culturas reme- tem aos seres humanos, então as culturas estão interligadas, em vista de que seus principais protagonistas são os seres humanos, ou seja, o conhecimento amplo sobre as culturas promove um conhecimento sobre uma cultura específica. A riqueza de formas das culturas e suas relações falam bem de perto a cada um de nós, já que convidam a que nos vejamos como seres sociais, nos fazem pensar na natureza dos todos sociais de que fazemos parte, nos fazem indagar sobre as razões da realidade social de que partilhamos e das forças que as mantêm e as transformam. Ao trazermos a discussão para tão perto de nós, a questão da cultura torna-se tanto mais concre- ta quanto adquire novos contornos. Saber se há uma realidade cultural comum à nossa sociedade torna-se uma questão importante. Do mes- mo modo evidencia-se a necessidade de relacionar as manifestações e dimensões culturais com as diferentes classes e grupos que a constituem. (SANTOS, 2006, p. 4) A cultura é relevante para todos os envolvidos, tanto para aqueles que a prati- cam quanto para os que a observam, uma vez que os seres humanos geralmente utilizam diversos sistemas de significados para organizar e regular suas condutas nas relações entre si, e são esses sistemas de significados que permitem interpre- tar as ações alheias, contribuindo para a constituição de todas as culturas. A partir disso, Hall (1997) conclui que todas as ações sociais também são culturais, já que são práticas de significação, uma vez que todas as práticas sociais expressam ou comunicam significados. Childe (1986) também evidencia a importância de se estudar a cultura, na me- dida que ela transforma a natureza positivamente. O ser humano desenvolve essa transformação por meio do cérebro, dado que se pode raciocinar sobre a natureza e modificá-la. O ser humano tem essa necessidade pois é frágil perante os outros animais, assim, essa modificação pode ser exemplificada com a criação do fogo. “A compensação que o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente po- bres é o cérebro grande e complexo, centro de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvolver sua própria cultura” (CHILDE, 1986, p. 41). 10 11 Essa modificação perante a natureza é o que determinará a cultura. Além disso, a cultura é transmitida socialmente, de geração para geração. Esse estudo torna-se importante para compreender a história da humanidade. Childe (1986), em seus estudos, também atribui como uma justificativa impor- tante se estudar a cultura de diferentes povos para a superação da visão elitis- ta da cultura, que carrega preconceitos de classe, raça, sexualidade e geração. Esse preconceito cultural precisa ser superado na sociedade, e uma das formas dessa superação é o conhecimento das culturas e seus contextos específicos. Hall (1997) também direciona sua justificativa para as transformações perante a natureza, entretanto, tem um olhar mais atual e condizente com a realidade vivida hoje. Hall (1997) chama atenção para a cultura na relação com a estrutura e organização da sociedade contemporânea, especialmente aos processos de desenvolvimento do meio ambiente global e à disposição de seus recursos econô- micos e materiais. As empresas transnacionais de comunicações, segundo Hall (1997), enriquecem suas transmissões, que muitas vezes atingem o mundo inteiro, com um único con- junto de produções culturais específicas, sendo geralmente utilizadas tecnologias ocidentais padronizadas,que ignoram as singularidades culturais, muitas vezes con- siderando apenas a cultura ocidental, o que exclui as particularidades e diferenças locais e fabrica uma cultura mundial homogênea, ocidentalizada. A cultura está presente em todos os aspectos apresentados pela mídia, por exemplo, ao se assistir uma novela, a cultura está presente nas vozes, nas imagens, nos personagens, na trama etc. A mídia possui o poder de influenciar diretamente a sociedade, tendo um papel crucial para meio ambiente doméstico, alicerçada pelo consumo, e essa mídia está presente em todos os lugares, nas casas, nas lojas, nos outdoors, nos celulares. Figura 4 Fonte: iStock/Getty Images Essa característica da mídia apresenta uma visão equivocada do mundo e de todas as culturas já que as culturas são heterogêneas, tendo cada uma suas carac- terísticas e especificidades. “Todos sabemos que as consequências desta revolução 11 UNIDADE O que é Cultura? cultural global não são nem tão uniformes nem tão fáceis de ser previstas da forma como sugerem os ‘homogeneizadores’ mais extremados” (HALL, 1997, p. 18). Essa padronização cultural demonstra a cultura ocidental de forma muito desproporcional às outras, enaltecendo a cultura ocidental e desenvolvendo uma “resistência” a outras culturas. Ademais, as mudanças culturais de ritmos e formas irregulares, frequentemente, geram resistências positivas ou negativas. Entretan- to, na maioria das vezes são resistências negativas, pois são contrárias à cultura global e representam fortes tendências a “fechamento”. A discussão sobre cultura contribui para vencer preconceitos e compreender melhor como cada sociedade funciona separadamente, bem como para o mun- do, suas crenças e concepções. Além disso, colabora para compreender como os seres humanos se desenvolvem, sendo uma forma de conhecer as pessoas com mais propriedade. Hall (1997) afirma que a cultura deve ser estudada como uma variável fundamental. Agora que já foi discutida a importância do estudo sobre as culturas, vamos definir, de fato, o que os autores consideram por cultura, então, afinal, o que é cultura? Figura 5 Fonte: iStock/Getty Images A palavra cultura vem do latim e seu significado está relacionado a atividades agrícolas; vem do verbo latim colere, que significa cuidar de, tomar conta de, ou seja, quando você toma conta de, cuida de, administra o bem de algo, você inicia o processo de fazer cultura. A palavra colere deu origem a palavras como agricultura, floricultura, piscicultura, entre outras, todas essas palavras carregam o sufixo cultura, uma vez que estão relacionadas ao ato de cuidar de algo; no caso da agricultura, é cuidar do solo para produzir vegetais úteis ao homem e/ou para a criação de animais; no caso da floricultura, é cuidar das flores; e por fim, a pis- cicultura é cuidar/criar peixes. Então podemos considerar que colere significa cui- dar da natureza para que ela produza os melhores frutos, é a intervenção humana para transformar positivamente a natureza. 12 13 Foram os romanos que direcionaram a palavra para o significado atual, pois am- pliaram o significado da palavra para se referir ao refinamento pessoal, com ideia de utilizar a palavra para se referir à cultura da alma. Como sinônimo de refinamento, e com a ideia de sofisticação pessoal e educação elaborada de uma pessoa, a palavra cultura foi usada constantemente desde então. Quando pensamos em cultura, surgem diversos elementos que podemos relacio- na-los a ela, como, por exemplo: as artes, estilo de vida, crenças, concepções, grau de estudo, entre outros, e, de fato, esses elementos fazem parte da cultura, porém ela é muito mais ampla. A cultura de um grupo social é um conjunto de hábitos, modo de vida, jeitos de ser, tradições, leis, rituais, as festas, as maneiras de falar. Não mais a ideia de acúmulos (de boas maneiras, conhecimento, sofisticação), a cultura é hoje entendida como modos de vida. Então, a seguir serão apresentadas algumas defini- ções de cultura obtidas por pensadores ao longo dos anos. Kluckhohn (apud GEERTZ, 1989, p. 4) define cultura em onze aspectos, são eles: 1. “o modo de vida global de um povo”, ou seja, o modo de vida do indi- víduo no mundo como um todo; 2. “o legado social que o indivíduo adquire do seu grupo”, a bagagem de experiências acumuladas por meio da vivência com determinado grupo específi co; 3. “uma forma de pensar, sentir e acreditar”; de acordo com essa perspec- tiva, a cultura está ligada às concepções e crenças dos indivíduos; 4. “uma abstração do comportamento”; esse aspecto está ligado a uma aná- lise de comportamento individual das pessoas; 5. “uma teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente”; esse aspecto vai dire- tamente ao encontro do que as pessoas compreendem por cultura, visto que ela está diretamente ligada ao comportamento de um, ou todos os determinados grupos de pessoas; 6. “um celeiro de aprendizagem”; a cultura proporciona uma vasta bagagem de informações sobre as diversas sociedades, contribuindo primordialmente para aprender sobre os diferentes pontos de vistas; 7. “um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recor- rentes”; esse aspecto tem relação com a compreensão de pensamento dos indivíduos e como o conhecimento sobre as culturas podem contribuir para a resolução de problemas recorrentes em outras sociedades. A experiência auxilia nessa resolução, por isso é importante conhecer a realidade de todas as culturas; 8. “comportamento aprendido”; esse aspecto refere-se à cultura estar di- retamente ligada ao comportamento, sendo esse aprendido com base nas experiências das pessoas; 13 UNIDADE O que é Cultura? 9. “um mecanismo para a regulamentação normativa do comporta- mento”. É necessário considerar a cultura para compreendê-la em sua complexidade para poder regulamentar normativamente o comportamen- to de certo grupo humano; 10. “um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens”. A cultura pode ser considera como esse conjunto de técnicas visto que é necessário considerar o con- texto social e cultural que a pessoa está inserida; 11. “uma precipitação da história”, no sentido de que a cultura apresenta, de certa forma, a história de uma pessoa ou grupo de pessoas. Entretanto, às vezes essa história pode ser apresentada de uma forma precipitada, não sendo apresentada como de fato aconteceu. Os onze aspectos apresentados por Kluckhohn (apud GEERTZ, 1989, p. 4) revelam que a cultura está relacionada com experiências de vida, crenças, concep- ções, compreensão de um grupo de pessoas etc. Além disso, nesses aspectos se pode encontrar muitos que defendem o aprofundamento pelas culturas existentes no mundo. Gertz (1926), alicerçado pela definição de Kluckhohn, afirma que o conceito de cultura é, principalmente semiótico, pois acredita que: [...] o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mes- mo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; por- tanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. (GERTZ, 1926, p. 4) Figura 6 Fonte: iStock/Getty Images Cada autor tem sua forma de definir cultura, assim Gertz (1926) a define de uma forma díspar e curiosa. O autor inicia afirmando que a cultura é pública, posterior- mente recorre a uma história de uma “piscadela burlesca” e a uma “incursão fra- cassada de carneiros” para demonstrar que as ações e pensamentos também estão intimamente ligados à cultura. 14 15 Hall (1997) inicia sua definição de cultura ressaltando a importância de diferen- ciar os aspectos substantivos dos aspectos epistemológicos presentes na cultura. Os aspectos substantivos estão relacionados com o lugar cultural na estrutura empírica real, na organização das atividades, instituições e nas convivências con- tidas na sociedade, ou seja,esses aspectos compreendem a cultura em qualquer momento histórico. Os aspectos epistêmicos estão relacionados com o posicionamento da cultura associada com as questões de conhecimento e conceitualização, nesse aspecto a cul- tura é utilizada como o intuito de transformar compreensões, explicação e modelos teóricos presentes no mundo. Esses aspectos estão presentes nas definições dos outros autores, entretanto, não estão agrupados com essas nomenclaturas. No primeiro caso, o autor olha para a cultura em um momento ou numa sociedade específica, o que contribui para compreender a relevância do estudo das culturas, visto que a cultura nos remete ao conhecimento de determinado grupo social ou em determinada época; já no segundo caso, o autor olha para a cultura com o intuito de compreender questões presentes no mundo, ou seja, numa abordagem mais abrangente, não sendo o olhar para um determinado grupo de pessoas, e sim para o mundo como um todo. Para compreender esse aspecto, pode-se pensar que todas as culturas possuem influência no mundo como um todo, isto é, para compreender de fato os seres humanos, é necessário considerar todas as culturas e suas cooperações mundiais. Hall (1997) considera cultura (centralidade cultural) em quatro dimensões: a ascen- são dos novos domínios, instituições e tecnologias associadas às indústrias culturais que transformaram as esferas tradicionais da economia, indústria, sociedade e da cultura em si; a cultura vista como uma força de mudança histórica global; a transfor- mação cultural do quotidiano; a centralidade da cultura na formação das identidades pessoais e sociais. A cultura está associada à dimensão do processo social e diretamente ligada à vida de uma sociedade, não se restringindo a apenas um conjunto de práticas, concep- ções e crenças, como por exemplo, a religião. A cultura é mais ampla e depende do contexto em que a sociedade está inserida, estando conectada a todos os aspectos e contextos da vida social. Santos (2006) acredita que cultura é uma construção histórica, isto é, um resul- tado coletivo da vida humana, e não uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Assim a cultura é o produto da história de cada sociedade. Além disso, as discussões sobre a cultura estão no centro das lutas sociais por um destino melhor, pois como já foi demonstrado, o conhecimento das diferentes culturas contribui para uma luta contra o preconceito, a favor da liberdade e respeito. O estudo sobre as culturas é uma luta em prol da superação da opressão e da desigualdade. 15 UNIDADE O que é Cultura? Figura 7 Fonte: iStock/Getty Images Santos (2006) classifica a cultura como uma preocupação em compreender as escolhas que direcionaram os grupos humanos para suas relações atuais e as perspectivas perante o futuro. Além disso, o autor nos chama a atenção para a história, pois ela registra variadas transformações culturais, geralmente ocorri- das por forças internas, como consequências de conflitos. À vista disso, ao se discutir sobre cultura é essencial olhar para a humanidade em sua totalidade de riqueza e multiplicidade de formas existentes, pois são complexas as realidades e as semelhanças e dessemelhanças que os unem ou os diferenciam, sendo ex- pressos por meio da cultura. Portanto, a cultura retrata a humanidade particular- mente, direcionando o olhar para um grupo, povo, nação, sociedade específica; e globalmente, direcionando o olhar para todos os grupos, nações e sociedades, ou seja, para o mundo como um todo. Figura 8 Fonte: iStock/Getty Images As culturas possuem uma lógica interna. De acordo com Santos (2006), essa lógica interna deve ser estudada para conhecer o sentido das práticas presentes em determinada cultura, para então compreender o sentido das práticas, costumes, concepções, e as transformações vivenciadas naquela cultura. Conhecer a cultura proporciona que se conheça o contexto em que determinada coisa foi criada ou pensada, visto que a cultura é construída a partir das experiências vivenciadas. 16 17 O autor também salienta que a família de uma pessoa a influencia diretamente em sua cultura, pois a cultura também é transmitida de geração para geração. A cultura também pode ser constituída, de acordo com Santos (2006), por meio de interações e relações com outras culturas, mesmo que essa cultura tenha caracte- rísticas bem diferentes. Por exemplo, uma pessoa do Brasil pode aprender a dançar dança do ventre, mesmo não sendo uma dança brasileira, e essa dança pode ser inse- rida em sua cultura. A cultura geralmente influencia os gostos das pessoas, bem como os gostos das pessoas também podem influenciar sua cultura, uma vez que todas as culturas são interligadas. Para Santos (2006), cultura é tudo aquilo que caracteriza a população humana. Então, para se pensar em cultura, pode-se olhar para a educação, para as manifes- tações artísticas (o teatro, a música, a pintura, a escultura), os meios de comunicação (rádio, televisão, celular), a festas tradicionais, a linguagem, a comida, a vestimenta, ou seja, tudo que está relacionado com ser humano na sociedade. Figura 9 Fonte: iStock/Getty Images Laraia (2001) afirma que as diferenças genéticas não são determinantes para as diferenças culturais, não havendo relação entre os caracteres genéticos e os compor- tamentos culturais, ou seja, uma criança pode ser inserida em qualquer cultura se for inserida em situações de aprendizagem desde o nascimento, então suas característi- cas genéticas não a influenciarão nos comportamentos culturais. Assim, a cultura é todo o comportamento aprendido e transmitido no convívio humano. Laraia (2001) afirma que não existem culturas mais desenvolvidas que as outras, pois não existe uma linha de evolução cultural na qual alguns povos podem ser con- siderados mais evoluídos culturalmente que outros, uma vez que cada povo só pode ser compreendido nos termos de sua própria cultura. Por essa razão, o estudo sobre as culturas se torna tão importante, posto que é necessário conhecer o contexto e a história de determinada cultura. 17 UNIDADE O que é Cultura? Considerações Finais De certa forma, podemos considerar a cultura como o conjunto de crenças, há- bitos, concepções, culinária, folclore, religião, arte, valores, linguagens. Além desse conjunto, também podemos considerar como cultura as formas de vestir, de pensar e de agir. Dessa forma, cultura é tudo aquilo que é passado, adquirido, aprendido, vivido e compartilhado entre as pessoas. A humanidade é o reflexo de um longo e extenso processo de acumulação cultural, e é a manipulação desse processo acumulativo que permite inovações, invenções, melhorias e avanços tecnológicos. Figura 10 Fonte: iStock/Getty Images A cultura é cheia de práticas culturais e costumes que se interseccionam com as- pectos que, teoricamente, seriam de outras culturas. No mundo atual e globalizado, os processos de troca e compartilhamento são cada vez mais rápidos. As culturas estão em conexão por meio de seus grupos de indivíduos que se modificam o tem- po todo no contato com o diferente sem, contudo, perder sua essência. A cultura é composta pelo passado, presente e futuro. As tradições do passado, as práticas do presente e o nosso imaginário, os sonhos para o futuro. Além disso, como já foi exposto anteriormente, a cultura tem suas interfaces com a tecnologia e o meio ambiente. 18 19 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Sites Brasil Escola https://goo.gl/LZeRFE Livros Cultura: Um conceito antropológico LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico 19 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. Estudos Avançados 9 (23) CHAUÍ, Marilena. Cultura política e política cultural. Estudos Avançados 9 (23), São Paulo, 1995, p.71-84. O Conceito de Cultura nas Ciências Sociais CUCHE, Denys. O Conceito de Cultura nas Ciências Sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed. Bauru: EDUSC, 2002.Vídeos Escritos de Marilena Chauí | O que é cultura? https://youtu.be/-YQcFNoiDMw 19 UNIDADE O que é Cultura? Referências CHILDE, G. A evolução cultural do homem. 5.ed. São Paulo: Guanabara Koogan, 1986. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. 1.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1978. HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, n. 22, v. 2, jul. - dez. 1997. LARAIA, R. B. Cultura: Um conceito antropológico. 14.ed. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2001. SANTOS, J. L. O que é cultura. 16.ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. 20 • Introdução; • Identidade e Subjetividade na Contemporaneidade; • A Sociedade de Mudança Constante, Rápida e Permanente; • O Sujeito Contemporâneo; • Desafios Existenciais e Concretos. • Realizar uma análise da cultura na sociedade contemporânea, partindo da identifi- cação da construção da identidade do sujeito e da sua produção social; • Compreender os meandros e as consequências dessa produção na própria identi- dade psicossociocultural. OBJETIVOS DE APRENDIZADO A Produção Cultural do Sujeito Contemporâneo UNIDADE A Produção Cultural do Sujeito Contemporâneo Contextualização Para iniciarmos nosso diálogo, sugiro que você assista ao vídeo a seguir e re- flita sobre como ocorreu, e ocorre, a construção da identidade cultural humana. Procure pensar também sobre as consequências sociais e na individualidade do homem, considerando a crescente produção humana. O vídeo indicado é “Homem - Man (Steve Cutts)”. Acesse em: https://youtu.be/5XqfNmML_V4. Ex pl or Agora que você já assistiu ao vídeo, reflita: Que impactos são gerados a partir da transformação e do consumo? A identidade sociocultural do sujeito permanece a mesma, a despeito desses impactos? Os questionamentos sugeridos são apenas alguns dos muitos que, certamente, surgirão em sua mente. Você, inclusive, poderá pensar “por que nunca me ocor- reu isso?”; “parece tão óbvio, então, qual é o porquê de as coisas serem como são?” Essas indagações são comuns e esperadas na nossa construção do conhe- cimento e, na medida em que progredimos, que avançamos em nosso processo de investigação, elas se intensificarão, algumas vezes com respostas, outras não. O importante, aqui, é colocar o método investigativo em ação, assim como o fez Sócrates. Hoje, graças a ele, temos o que chamamos de método socrático, no qual a indicação tem um objetivo sistemático, que propicia a construção do sujeito – nós – em sua inteireza, compreendido como um eterno projeto de vir-a-ser, como bem nos disse Sartre. Sartre e o Existencialismo: O filósofo, escritor e crítico francês, Jean-Paul Charles Aymard Sartre, é conhecido como representante do Existencialismo, o qual é compreendido como um conjunto de teorias formuladas no século XX, caracterizadas pela inclusão da realidade concreta do indivíduo (sua mundanidade, angústia, crises, morte etc.) no centro da especu- lação filosófica, opondo-se, portanto, às doutrinas Racionalistas. Ex pl or 8 9 Introdução A essa altura, você, certamente, já se deu conta da intensa discussão acer- ca da identidade psicossociocultural do sujeito. Mas, como está essa identidade? Quando refletimos sobre isso, nos deparamos, inevitavelmente, com a chamada “crise de identidade” pela qual passa o sujeito moderno, que, embora se insista em vê-lo como unificado, está fragmentado ou, com identidades sociais novas e díspares, por conta do declínio das velhas identidades que, por tanto tempo, sus- tentaram e estabilizaram o mundo social. Quando falamos em crise de identidade, queremos dizer que “os quadros de refe- rência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2000, p. 7) foram abalados devido ao processo de amplas mudanças das estruturas e processos centrais das sociedades modernas. Não se tem mais uma referência única e central. Há, no entanto, diversas referências, coexistindo, muitas vezes de forma antagônica, e esse antagonismo, por sua vez, gera uma crise, expressa ou não por uma angústia, reconhecida concreta ou simbolicamente pelo sujeito. Ainda nos tempos atuais, é normal ouvir dizer que esse ou aquele grupo social possui ou não uma cultura forte. Difícil, no entanto, é identificar as muitas culturas coexistentes no cotidiano desse grupo social. Se essa fosse uma tarefa fácil, não teríamos tantos estudos produzidos e um afunilamento na produção científica de áreas como a sociologia e a psicologia, que, enquanto ciências, sempre tiveram muito bem demarcados os campos de atuação e de estudos. No entanto, essa crise de identidade tratou de aproximar essas disciplinas. Segundo Hall (1997), a linha divisória entre as disciplinas da sociologia e da psi- cologia, mesmo considerando que sempre se admitiu que todo modelo sociológico transporta dentro de si certas pressuposições psicológicas acerca da natureza do sujeito individual e da própria formação social do “eu”, e vice-versa. Até os mais céticos têm se obrigado a reconhecer que os significados são subjetivamente válidos e, ao mesmo tempo, estão objetivamente pre- sentes no mundo contemporâneo - em nossas ações, instituições, rituais e práticas. A ênfase na linguagem e no significado tem tido o efeito de tornar indistinta, se não de dissolver, a fronteira entre as duas esferas, do social e do psíquico. (HALL, 1997, p. 24) Como vimos, se na atualidade, ciências supostamente distintas têm dificuldades em delimitar ou diferenciar os estudos produzidos acerca do seu objeto, no que se refere à construção da identicidade humana, deve-se considerar a volatilidade dessa identidade e do processo do seu processo de construção, que também não é mais ímpar e passou a ser cada vez mais ambíguo. 9 UNIDADE A Produção Cultural do Sujeito Contemporâneo Identidade e Subjetividade na Contemporaneidade Desde os estudos de Freud, com a construção da ciência psicológica, que cha- mou de psicanálise, sabemos que a construção da identidade do sujeito possui fases ou estágios, antes, muito bem delimitados, que são determinados pela cultura, isto é, pelo ambiente social e cultural ao qual pertence o sujeito, que não cabe mais chamar de indivíduo, essa unidade indivisível. Os estudos em psicologia trataram de nos causar esse trauma existencial, não somos mais únicos e indivisíveis, se é que um dia fomos, principalmente se considerarmos a cultura de massa proposta pela globalização, cada vez mais acentuada. Esse ser humano individual, concreto, conhecido por meio da experiência, que possui uma unidade de caracteres e forma um todo reconhecível, considerado de modo isolado em sua comunidade, passou e passa por intensas transformações psi- cossocioculturais. Na atualidade, a individualidade humana é algo ainda mais difícil de caracterizar, pois a construção da identidade do sujeito perpassa pela construção da identidade sociocultural e, por conseguinte, pela construção da subjetividade de uma determinada sociedade. Ocorre que, na atualidade, as manifestações culturais e sociais não são mais locais, mas sim, globais e, portanto, influenciam e são influenciadas por outras e diversas manifestações socioculturais, muitas vezes distintas daquelas produzidas localmente. Dessa forma, a construção de uma identicidade não ocorre linearmente e essa não é perene, pois a própria sociedade também não o é, mas passa por diversas e intensas transformações. Ora, se o sujeito transforma a cultura e é por ela trans- formado, então Sartre tinha razão ao nos definir como eternos projetos de vir-a- -ser. Nessa condição, nunca estamos acabados, mas em desenvolvimento, desde o nascimento até a morte. O problema disso tudo é a questão da identidade, necessária para a construção da subjetividade, com a qual olhamos e interpretamos a realidade concreta. De acordo com Hall (1997, p. 23), o amplo impacto das revoluções culturais so- bre as sociedades globais e sobre a vida cotidiana local, vivido no final do século XX, “parecetão significativo e abrangente que justifica a afirmação de que a substantiva expansão da “cultura” que hoje experimentamos, não tem precedentes”. Contudo, a alusão do seu impacto “na “vida interior” lembra-nos de outra dimensão que pre- cisa ser considerada: a centralidade da cultura na constituição da subjetividade, da própria identidade e da pessoa como um ator social”. Subjetivamente acreditamos que conseguimos nos diferenciar dentro de uma cultura social que impõe padrões e regras e que o próprio enfrentamento des- ses padrões e regras propõe modelos a serem seguidos, o que implica em, de novo, buscar se enquadrar dentro de um modelo social padrão ou dissidente. 10 11 Além disso, se considerarmos que a ausência de modelos dificulta a própria forma- ção da identidade, nos depararemos com uma questão ainda mais ampla e difícil de conceituar: a angústia vivida e gerada pela dificuldade de identificação na formação da identidade. Segundo Freud, na formação da personalidade, tanto o menino, quanto a me- nina, passam por um período de rivalidade com o progenitor do mesmo sexo, que o interdita e por ser maior e mais forte, obriga que esse menino ou essa menina busque se identificar com esse progenitor, imitando-o, a fim de conquistar o que ele tem, e é, objeto de desejo desse menino ou menina. A partir dessa teoria, podemos perceber o quão é importante a existência de um modelo com o qual podemos nos identificar. Contudo, o que ocorre quando não há um só modelo, mas diversos e inconstantes modelos? É exatamente isso que ocorre na sociedade atual. Não temos um único modelo sociocultural, mas a cons- trução cindida e disforme de muitos modelos, uma verdadeira “colcha de retalhos”. É esse todo fragmentado e costurado que irá determinar a formação da identidade psicossociocultural do sujeito, que, em algum momento, se verá como um todo fragmentado e costurado, e que terá que se relacionar com essa realidade, a fim de buscar alternativas concretas ou simbólicas para a superação desses hiatos. É por isso que, de acordo com Hall (1997), devemos refletir sobre as identida- des sociais como construídas no interior da representação, através da cultura, não fora dela. A construção da identidade social, por assim dizer, acontece por meio do uso da subjetividade. É o olhar subjetivo, e não somente a realidade concreta, que determina a identidade e identificação de uma pessoa. Um exemplo claro disso são as muitas pessoas que, a despeito da realidade em que vivem, buscam modelos fora dela, como um menino nascido e criado em uma comunidade que se recusa a se identificar com ela e exibe modelos comportamentais diferentes dos existentes ali. Ainda, segundo o mesmo autor (1997, p. 27), as identidades sociais: [...] são o resultado de um processo de identificação que permite que nos posicionemos no interior das definições que os discursos culturais (exterio- res) fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles). Nossas chamadas subjetividades são, então, produzidas parcialmente de modo discursivo e dialógico. Portanto, é fácil perceber porque nossa compreensão de todo este processo teve que ser completamente reconstruída pelo nosso in- teresse na cultura; e por que é cada vez mais difícil manter a tradicional distinção entre “interior” e “exterior”, entre o social e o psíquico, quando a cultura intervém. A subjetividade é, portanto, um escudo e uma lente que permite enxergar para além da realidade local e proteger-se de traumas advindos dessa e de outras realida- des. Nesse sentido, a leitura subjetiva da realidade ocupa um papel de destaque na construção da identidade do sujeito contemporâneo. Saber enxergar e interpretar a realidade é uma necessidade ímpar no mundo de constantes e aceleradas trans- formações sociais e culturais. 11 UNIDADE A Produção Cultural do Sujeito Contemporâneo A identidade do homem atual não é uma identidade única e distinta, é polifor- me, pois a própria produção cultural possui muitas formas, nas ainda distintas so- ciedades. Cabe, portanto, a esse sujeito contemporâneo, buscar significados para cada uma dessas formas, e filtrar em sua leitura de mundo os aspectos objetivos e subjetivos de sua existência social e cultural. Consideremos também que as intensas e constantes transformações sociais im- põem um ritmo também acelerado a esse processo. Não pode o homem ficar alheio às mudanças, pois essas não são alheias ao homem. Deve-se, portanto, pensar criticamente sobre elas. De acordo com González Rey (2003, p. 95), a subjetividade pode ser definida como “as for- mas complexas em que o psicológico se organiza e funciona nos indivíduos, cultural e histo- ricamente construídos e nos espaços sociais das suas práticas e modos de vida”. Ex pl or A Sociedade de Mudança Constante, Rápida e Permanente Há quem defenda e, certamente, você já ouviu a célebre frase: “a única cons- tância do universo é a mudança”. Mas o que isso quer dizer? O que implica cogitar e afirmar que a mudança possa ser a única certeza, em meio a tantas incertezas e, sendo assim, por que ainda nos tempos atuais, muitos ainda são resistentes às mudanças? É sabido que ao longo da história evolutiva da humanidade, foi, e é necessário, manter dados de memória, medos, traumas e o que muitas chamam de instintos de sobrevivência, o que, de certa forma, privilegia o conhecido e evita o desconhe- cido. Até aqui, não estamos tratando de nada novo. Temer e evitar o novo são, portanto, um traço subjetivo compartilhado da personalidade humana. O psicólogo Carl Gustav Jung nos dá o fundamento dessa ideia ao postular o conceito de in- consciente coletivo. Na teoria analítica de Jung, o inconsciente coletivo representa a herança ancestral subjetiva compartilhada pela sociedade. É por meio dessa herança ancestral que as muitas culturas compartilham seme- lhanças, tais como: o arquétipo do herói, do homem e da mulher ideal, que estão presentes em todas as formas de manifestações culturais e despertam interesses e curiosidades. Obviamente, esses arquétipos aparecem em cada cultura com singu- laridades. O herói, por exemplo, não se manifestará com superpoderes, tais como os criados pela indústria de massa, em todas as civilizações, mas, de certa forma, carregará semelhanças a esses, o que permite uma rápida identificação com qual- quer figura do herói, mas não sem certa resistência. 12 13 A incorporação de conteúdos de uma cultura distinta ocorre de forma lenta, justamente pelo fato de haver resistência às modificações da cultura existente. Paradoxalmente, na conhecida sociedade da mudança, parece haver certo an- seio pela importação de determinados conteúdos culturais. Em primeira análi- se, pode-se pensar que tal ansiedade seja oriunda apenas do desejo de consu- mo do padrão comportamental de sociedades tecnologicamente desenvolvidas. Contudo, na atualidade, o contrário também ocorre. Há certa tendência em incor- porar conteúdos culturais de sociedades em desenvolvimento. Na indústria musical isso é mais explícito. Por exemplo, a cultura do funk é ra- pidamente absorvida pela cultura pop, a ponto de, em certos casos, não se saber diferenciar um gênero musical do outro; e parece não haver preocupação, em am- bos os lados, em tal separação. Isso ocorre porque, embora as mudanças culturais sejam lentas, por causa das resistências, a incorporação de elementos e conteúdos de culturas distintas é cada vez mais acelerada, por causa da globalização. Atualmente estimula-se o consumo objetivo e subjetivo. Não se compram ape- nas objetos e coisas, compra-se também o acesso ao conhecimento produzido por outras culturas. Certamente, em algum momento, você já desejou conhecer outras culturas ou saber mais sobre determinadas manifestações culturais ou, até mesmo, já se percebeu tentando encontrar o ponto de intersecção em manifes- tações sincréticas. Estar de fora do consumo do novo é, basicamente, o mesmo que estar de fora da própria prática social vigente. É manter-seà margem da produção cultural e, ainda assim, produzir cultura, que, em um dado momento, será incorporada socialmente. Nesse sentido, as rápidas mudanças, impostas pela era da mundialização dos capitais, não mais dá espaço para a produção de individualidades, mas de sub- jetividades culturalmente e permanentemente compartilhadas. As resistências in- dividuais se rompem na medida em que novas condutas sociais são produzidas e compartilhadas. A mudança, portanto, vista desse modo, pode ser compreendida como a motriz da sociedade e parte permanente da subjetividade humana. É esse constituinte sim- bólico que atribui sentido às modificações psicossocioculturais. O Sujeito Contemporâneo Ao nascermos, somos inseridos na sociedade por meio da cultura familiar. É a partir desse primeiro grupo que incorporamos as normas e costumes sociais. O grupo familiar é, por assim dizer, responsável por transmitir os dados da cultura que farão parte da identidade do sujeito, isto é, os traços do temperamento e do caráter que darão origem à personalidade do sujeito. 13 UNIDADE A Produção Cultural do Sujeito Contemporâneo Contudo, na medida em que o sujeito se desenvolve, passa a pertencer a outros grupos sociais e as experiências vividas irão imprimir e modular a personalidade, definindo os muitos papéis sociais que serão desempenhados pelo sujeito. Além disso, na sociedade contemporânea, devemos considerar que o uso da tecnolo- gia, tais como televisores, notebooks, tablets e celulares, ocorre cada vez mais precocemente, a ponto de se pensar que as novas gerações, chamadas de nativas digitais, têm aptidão natural pela tecnologia. Você já observou a habilidade de uma criança de dois anos ao manusear um ce- lular ou tablet? Como se explica que essa criança, sem ter sido instruída do modo de funcionamento do equipamento, consiga manuseá-lo habilmente? Quais são as implicações desse aprendizado, em particular, para o aprendizado geral dessa criança? Esses são alguns dos questionamentos que estão inquietando a sociedade atual, e se constituem como um desafio a ser superado. O sujeito contemporâneo traz consigo a amplitude de discussões já existentes e ainda sem respostas concretas e propõe novos questionamentos, bem como novas formas de pensar. Se, até então, por conta de culturas isoladas, o que se expressa em um dado lugar e momento não sirva para explicar um fenômeno ocorrido em outra localidade, com a globalização e, consequente, aproximação cultural, essa linha de pensamento tem mudado radicalmente. É cada vez mais necessário obser- var o que ocorre em nível de mundo para compreender um fenômeno local. A conhecida teoria do caos, que propõe que fenômenos aparentemente alea- tórios estejam combinados, passa a ser cada vez mais aceita, pois o próprio su- jeito, aparentemente, passou a ser uma combinação de culturas e subjetividades. O cidadão não é mais local, é um cidadão do mundo, pelo menos se não o é no mundo concreto, é na realidade virtual. O sujeito virtual não faz parte da matrix, é a própria matrix. O emaranhado producente da rede virtual tece suas teias nessa realidade aumentada, modificando a noção de tempo e de espaço, definidos a priori. Na realidade virtual, a noção de tempo, de espaço e da própria subjetividade do sujeito é modificada, pois nesse ambiente não se pode definir um espaço, um tempo e uma cultura local. Há que se buscar novas definições e concepções para tais conceitos. Sendo assim, o homem contemporâneo pode ser caracterizado por amplas in- certezas e desafios existenciais concretos. Não se trata aqui de dilemas existenciais puramente filosóficos, mas de definir o próprio papel social, pois de uma coisa temos certeza, o homem terá de inventar para si novos papéis psicossocioculturais, ou terá de se reinventar para caber nos já existentes. 14 15 Desafios Existenciais e Concretos Retornamos ao conhecido dilema: “Ser ou não ser, eis a questão”. Culturalmen- te, o homem, desde que desceu das árvores e saiu das cavernas, buscou estabelecer relações sociais concretas. A partir daí, dizemos que o homem é um ser gregário por natureza. Em decorrência disso, há quem defenda que o homem se faz huma- no nas relações que estabelece com outros homens. É necessário identificar quem pertence a essa relação, pois, na sociedade atual, há quem privilegie a relação de proximidade com outros animais, tais como cães, gatos, porcos, cobras, patos e galinhas, entre outros. Por outro lado, como já sabemos, é ímpar a necessidade de se analisar a qualidade dessas relações, buscando saber o meio pelo qual elas ocorrem. Voltemos, pois, ao ambiente virtual. As relações intermediadas pela máquina podem não ser de todo frias, pelo contrário, podem, em dadas circunstâncias, potencializar sentimentos. Exemplo suficientemente claro disso é o que ocorre nas redes sociais. As discussões em rede tendem a se tornar mais acaloradas, despertando e refor- çando sentimentos que não são incentivados pela cultura social. Paradoxalmente, é possível perceber que, atualmente, a cultura social local tem sido influenciada por esses comportamentos, o que está para além das modificações linguísticas. Os papéis desempenhados socialmente pelo sujeito contemporâneo já estão em metamorfose, imposta pela realidade social, que se choca com a moral vigente. É certo que há de se esperar um enrijecimento da moral cristalizada, uma espécie de solidificação do discurso protecionista, afinal, como discutimos, e você certamente se lembra, uma modificação cultural não ocorre sem o despertar das resistências. Todavia, devemos ponderar que, na atual sociedade, o consumo acelera as mu- danças. O padrão alimentar, por exemplo, não poderá ser o mesmo, se o sujeito adotar uma ideologia fitness, vegetariana, vegana ou natural. Em contrapartida, essa mesma ideologia sustentará um mercado, até então, promissor, que se espe- cializará em manter esse padrão alimentar e, consequentemente, o consumo de seus produtos. A negação de uma cultura cria uma subcultura, que existe sem o enfrentamento direto da cultura vigente ou de contracultura, que buscará esse enfrentamento e se definirá como modelo adequado. Trata-se de uma relação dialética, pois quando uma contracultura assume a posição de cultura vigente, possibilita o surgimento de novas sub e contraculturas. Essa discussão nos traz ao nosso ponto inicial: ser ou não ser. Se adotarmos a posição Existencialista de Sartre e assumirmos que somos um projeto de vir-a-ser, conseguiremos romper as resistências, de certo modo, mas não sem a angústia e náusea características desse processo. Assumir essa visão implica em aceitar a con- dição de permanente desenvolvimento humano, mas também de que nada, além da certeza da mudança, que traz consigo incertezas, é perene. 15 UNIDADE A Produção Cultural do Sujeito Contemporâneo Nesse sentido, a cultura é bem mais fluida do que pensamos em nossa “vã filosofia”, assim como ocorre com a própria construção da identidade e personalidade humana, o que nos coloca, mais uma vez, diante de um dilema: Se o homem se mostra nas relações que estabe- lece, nas ferramentas de trabalho que utiliza e na língua pela qual se expressa, em um dado lugar e tempo, como ocorre essa construção cultural e identitária na ausência concreta do tempo e do espaço, considerando-se a modificação linguística e de ferramentas de trabalho impostas por essa nova realidade? Ex pl or Trocando em Miúdos A nossa noção de tempo e de espaço deve considerar o ambiente virtual e as relações impostas por essa nova realidade aumentada. A análise da cultura social não poderá ignorar as relações decorrentes da interação virtual humana, pois, cer- tamente, há uma diferença significativa entre a realidade, que aqui chamamos de concreta, e a realidade virtual. A construção humana, isto é, da identidade do sujeito, perpassa as relações socioculturais que estabelece, por isso se diz que um homem do século XX não poderia ter uma identidadede sujeito do século XXI, ou vice-versa, muito embora devemos confessar que, por vezes, isso parece acontecer. Por fim, sabemos que no constituinte da personalidade encontram-se o tempera- mento e o caráter. Há de se esclarecer que por caráter, não se deve entender o con- ceito dado pelo senso comum. Por caráter se compreende o temperamento, ou tra- ços comportamentais moldados, isto é, são padrões comportamentais permanentes. Assim sendo, é necessário considerarmos a impossibilidade de se dizer que há um sujeito sem cultura, ou cultura sem sujeito, ou, até mesmo, que há um sujeito no qual não se expressa a cultura, sendo esse um produto e, paradoxalmente, um produtor da cultura, assim como um espelho. A produção cultural do sujeito contemporâneo é permeada pela construção mu- tável do próprio sujeito, que busca se identificar com a nova realidade e, ao mesmo tempo, tenta manter as relações já conhecidas. Há, no entanto, que se esperar que desse conflito surjam sentimentos antagônicos acerca da própria natureza do homem, assim como daquilo que é por ele produzido. Ao se afastar da cultura local e introjetar aspectos culturais diversos, o sujeito reconstrói a sua subjetividade e redefine a sua relação com o meio. Dessa nova relação, surgirá um novo sujeito social, que terá que buscar papéis sociais distintos dos já conhecidos, mas a partir desses. Parece-nos que, de fato, “nada se cria, tudo se copia”. Considerando-se verdadeira essa premissa, não havia do que ter medo. Você não concorda? 16 17 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Espaço, tempo, mundo virtual CPFL, Café Filosófico. Espaço, tempo, mundo virtual: Marilena Chauí. https://youtu.be/4Qj_M6bnE-Y Filmes The Matrix (Matrix) Direção e roteiro: Lilly Wachowski e Lana Wachowski, produção Joel Silver, Distribuição: Warner Bros. EUA, 1999. https://youtu.be/m8e-FF8MsqU The Matrix Reloaded Direção e roteiro: Lilly Wachowski e Lana Wachowski, produção Joel Silver, Distribuição: Warner Bros. EUA, 2003. https://youtu.be/kYzz0FSgpSU The Matrix Revolutions Direção e roteiro: Lilly Wachowski e Lana Wachowski, produção Joel Silver, Distribuição: Warner Bros. EUA, 2003. https://youtu.be/hMbexEPAOQI Leitura Modernidade: a construção do sujeito contemporâneo e a sociedade de consumo COLOMBO, Maristela. Modernidade: a construção do sujeito contemporâneo e a sociedade de consumo. Rev. bras. psicodrama, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 25-39, jun. 2012. https://goo.gl/HMSRqf 17 UNIDADE A Produção Cultural do Sujeito Contemporâneo Referências BHABHA, H. K. O local da cultura. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2000. GEERTZ, Clifford. Briga de galos em Bali. In: GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Edit., 1978. HALL, Stuart, (1997). A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nos- so tempo. Educação & Realidade, v. 22, nº 2, p. 15-46. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4. ed. Rio de Janeiro: L&PM, 2000. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Edit. UFMG, 2006. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cul- tural. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consci- ência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1985. 18 • Introdução; • A Cultura Feudal; • A Cultura Mercantilista; • A Sociedade de Produção; • A Sociedade do Consumo; • Considerações Finais. • Espera-se que ao final do conteúdo você seja capaz de refletir conscientemente sobre como a produção e o consumo influenciam a cultura, bem como o modo como esses comportamentos são influenciados culturalmente e se influenciam mutuamente. OBJETIVOS DE APRENDIZADO Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? UNIDADE Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? Contextualização Para iniciarmos o nosso diálogo, sugiro que você assista ao vídeo a seguir e reflita sobre o impacto da ação do homem sobre o ambiente e como esse impacto modifica as relações existentes, a cultura e a identidade do sujeito social. O vídeo indicado é “A História das Coisas”. Disponível em: https://youtu.be/xEgPp1VGWsM Ex pl or Agora que você já assistiu ao vídeo, pense no quanto você é capaz de perceber os muitos aspectos da cultura atual, bem como no modo como se percebe partici- pante dessa cultura. Será que, semelhantemente ao que ocorre na Política nacional, você considera a cultura como algo à parte, da qual não faz parte diretamente? Está suficientemente claro para você o seu padrão de comportamento social dian- te da realidade? Em quais aspectos você percebe que os fatores globais afetam as relações? O que você, como sujeito social, cidadão consciente, pode fazer para assu- mir uma postura mais ativa, diante daquilo que acredita ser o correto a fazer? Quais dessas ideias são genuinamente suas e quais foram assimiladas da fala social vigente? Esses questionamentos podem nos apontar o caminho da emancipação do pen- samento e impulsionar a construção do nosso conhecimento. É possível que, assim como propunha Sócrates, nós nos deparemos com o nosso completo ou parcial des- conhecimento, mas não devemos desistir dessa empreitada, afinal, lembre-se de que Descartes já nos alertou sobre isso ao postular o famoso cogito: “Cogito, ergo sum”. Veja: normalmente, a frase de Descartes é traduzida para “Penso, logo existo”. Nesse sentido, o pensar, o despertar consciente do pensamento, é o responsável pela percepção da realidade e pela percepção do ego, sujeito de si mesmo. Isso é, por essa premissa, é por meio do pensar que nos damos conta da nossa própria realidade. Parece simples, não é mesmo?! Entretanto, não é bem assim. Primeiramente, porque o ato de pensar de forma assertiva requer certo preparo, ou seja, para refletirmos sobre algo, devemos, inicialmente, ter um dado conheci- mento sobre esse algo. Além disso, alguns estudiosos defendem que a famosa frase de Descartes deva ser traduzida da seguinte forma: “Penso, portanto, sou”. 8 9 Isso, certamente, muda o nosso modo de pensar, pois se penso e, por conse- guinte, sou, o pensamento não somente é responsável pela percepção da realida- de, mas produz a própria realidade e define a identidade do sujeito social. É justamente com esse olhar que devemos considerar a construção do nosso conhecimento. René Descartes (1596-1650) foi um filósofo e matemático francês. Ele criou o método da dúvida sistemática, no qual colocou tudo em dúvida, até a própria existência. Para resolver esse impasse, o filósofo, formulou o “cogito”: “Cogito, ergo sum”. Ex pl or 9 UNIDADE Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? Introdução Temos a tendência de acreditar ou aceitar a ideia de que as coisas sempre foram assim ou que caminharam naturalmente e de forma linear para o que são atualmente. Metaforicamente falando, é como se, ao observarmos uma árvore, com sua copa frondosa, nunca ou quase nunca podada, sem conhecermos o conceito de árvore, acreditássemos que ela já nasceu daquela forma ou, simplesmente, ignorás- semos a existência do caule e as raízes da árvore. Ora, a formação primeira da árvore está nas raízes, que também são a sua sus- tentação. Na sequência, temos o caule, que dá forma a essa árvore. Nessa análise, o caule é a transição entre o seu estado primeiro e o que seu aspecto mais aparente e atual, a copa da árvore, de onde se observam os frutos. Contudo, de forma literal, o fruto de uma árvore sempre cairá próximo de seu caule e, de certa forma, apontará para as suas raízes. Além disso, se considerarmos que esse fruto poderá gerar uma nova árvore, devemos conceber aideia de que ele tem em si a constituição da árvore, sua forma primeira e intermediária, mesmo sendo o seu produto final. Figura 1 Fonte: iStock/GettyImages Você deve estar se perguntando: se é assim, por que é tão difícil perceber as muitas fases dessa árvore em seu produto final, o fruto? Bom, deve ser pelo simples fato de que estamos na famosa “era do imediatismo”. Não dispomos de muito tempo para observarmos, bem como, não nos prendemos em tal observação. Vivemos no tempo do imediatismo do fast. Tudo deve ser rea- lizado com a maior rapidez, pois, como a área econômica vem alertando desde a década de 1990, o tempo é o nosso recurso mais escasso. 10 11 Paradoxalmente, defendemos o famoso “Just In Time”, em que tudo deve ser feito na hora certa, o que, invariável e inevitavelmente significa fazer tudo no me- nor tempo e com a máxima qualidade. Contudo, você já se perguntou como era antes? Não lhe intriga pensar sobre a biografia dos grandes pensadores que viveram até o Iluminismo? Por que, apa- rentemente, todos eles se ocupavam de mais de uma coisa? Como poderiam ser físicos, matemáticos, filósofos etc. e hoje somos estimulados a nos tornarmos es- pecialistas numa área específica? O que mudou, a cultura do conhecimento ou o próprio homem? Para respondermos a esses questionamentos, deveremos estar habituados ao desenvolvimento cultural, isso é, social, político e econômico, reconhecendo que a história do pensamento passou por sensíveis e radicais modificações, desde que o homem se deu conta da importância da razão, diferenciando-a do mito e, mais tarde, do pensamento teológico. É sabido que, no início, o mito era utilizado para explicar o mundo. A história da própria Sociedade pode ser explicada a partir do mito. Isso quer dizer que para compreendermos o modo primeiro de pensar de um povo, devemos conhecer os seus mitos. Muitos pensadores se deram conta disso e, assim como Freud, busca- ram explicar a realidade a partir de um mito existente. Trata-se de atualizar o modo de perceber um comportamento. Muito antes disso, em Platão, por exemplo, vemos a utilização do mito para ex- plicar uma ideia complexa. Quando Platão propõe o Mito da Caverna, ele nos dá uma alegoria aparentemente simples para explicar o comportamento social. Dessa forma, em certa medida, percebemos que a mitologia expressa o comportamento social, político e até mesmo econômico de um provo. Considerando o exposto, seria prudente que, na próxima vez que nos dermos conta de um mito, buscássemos compreender aquilo que se chama de moral da história, isso é, o que tal alegoria tem a nos ensinar. Contudo, lembremos que a nossa missão aqui é compreender a historicidade da produção e do consumo. Sendo assim, nós nos concentraremos na produção cultural de algumas das fases de desenvolvimento social, político e econômico. A Cultura Feudal O Feudalismo pode ser compreendido como uma forma de organização social, política e econômica. O nome Feudalismo deriva da palavra feudo, que designa uma unidade de produção autossuficiente ou, se preferir, uma propriedade rural. O auge do Sistema Feudal ocorreu entre os séculos X e XI d.C. A origem da cultura feudal ocorre num momento de crise do escravagismo ro- mano e das constantes invasões germânicas, o que levou a uma ruralização em de- trimento da antiga vida social urbana. Contribuiu, também, para o Sistema Feudal 11 UNIDADE Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? o fato do então imperador do ocidente, Carlos Magno, ter o hábito de distribuir as terras conquistadas entre os militares de sua confiança, o que criou uma descentra- lização administrativa. Contudo, o isolamento da região europeia do resto do mundo, que levou à autossuficiência dos feudos, ocorreu em decorrência do Império Carolíngio e das muitas invasões que a região sofreu pelos normandos, pelos magiares e pelos árabes-muçulmanos. Após a desintegração do Império Romano do Ocidente, surge o Reino Germânico, conhe- cido como Reino Franco, que deu origem ao Império Carolíngio, quando, três séculos após a desintegração do Império Romano, Carlos Magno reunificou parte desse território sob o poder franco. O Império Carolíngio surge quando o Papa Leão III coroa Carlos Magno imperador, em Roma. Ex pl or Há de se considerar que a cultura feudal é originária das tradições romanas e dos costumes germanos, que se fundiram no Feudalismo. Assim sendo, é herdeiro des- sas culturas, que se misturavam desde o século V d.C., o que implica dizer que essa cultura apresentava as suas singularidades, mas tinha as suas raízes nas culturas que a originaram. Não se trata de uma reprodução de partes de outras culturas, mas da construção de uma identidade cultural nova, a partir de culturas já existentes. Exemplo claro disso é que, diferentemente das culturas que a originaram, a cul- tura feudal pode ser compreendida como essencialmente teocêntrica, na qual se compreende que Deus é o centro do Universo e que, portanto, nada acontece sem o seu consentimento e vontade. Certamente, você deve ter recordado os conceitos de destino e carma. Essas ideias de que há uma força invisível que rege todos os acontecimentos e regula os comportamentos pode, facilmente, ser correlacionada ao pensamento da época. Veja, ainda nos tempos de hoje, temos crenças muito similares ao período feudal, mas como isso é possível? É simples. Em nosso sistema de crenças ainda impera a crença religiosa cristã. Isso mesmo: temos o Cristianismo como herança cultural desde esse período histórico, no qual a Igreja Católica foi a mais importante instituição europeia, mantendo a sua impor- tância social até a Idade Média. A Igreja Católica esteve dividida em alto e baixo clero. O alto clero era composto pelo papa, pelos bispos e pelos cardeais, enquanto o baixo clero continha os padres. É importante compreender isso, pois a Igreja, por meio do clero, legitimava e justificava as práticas sociais, econômicas e políticas do Feudalismo. A permanên- cia nos grupos sociais de origem, por exemplo, era defendida pelo clero, que justi- ficava que essa era a vontade de Deus e, assim sendo, era algo natural, que deveria ser respeitado por todos. 12 13 Ocorria o mesmo em todas as Áreas: Ciências, Artes, Literatura etc. Os temas eram sempre de inspiração religiosa. A ciência buscava explicar os fenômenos naturais a partir da visão bíblica. Já as obras literárias eram escritas e reproduzidas na língua oficial da Igreja, o latim. Você deve ter Ciência de que, naquela época, a população geral, isso é, nobres e servos, não dominava o latim, pois a Educação, leitura e escrita, era monopólio do clero. Justamente por esse motivo, o clero mantinha a sua importância, pois os nobres de- pendiam de assessores eclesiásticos para comporem os seus quadros administrativos. Em relação à produção e consumo, devemos nos lembrar de que cada feudo funciona como um país autossuficiente do Senhor Feudal, que continha o clero, os nobres e guerreiros e os servos. Sendo assim, a Economia feudal era agrária e de subsistência, o que implica dizer que cada feudo produzia o necessário para a sua manutenção e o excedente era trocado entre os produtores, sem a utilização de uma moeda. Chamamos essa prática de escambo. Figura 2 Fonte: Pixabay Durante esse período, as atividades comerciais monetárias praticamente não existiam, pois a Europa mantinha-se isolada dos Mercados existentes e, como já dissemos, não havia relação comercial monetária entre os feudos, apenas a troca natural de um produto por outro, certamente por influência da Igreja. O lucro e a cobrança de juros (usura) eram terminantemente proibidos, o que acabava por desestimular a prática comercial, que tem essas premissas. Contudo, por iniciativa da Igreja, criaram-se as CRUZADAS, verdadeiras expedi- ções religiosas e militares, que tinham o objetivo de combater e de punir os infiéis, sobretudo os mulçumanos. Foi, justamente, por meio das Cruzadas que o Feudalismoconheceu o seu fim e se abriu um novo tempo para a cultura europeia. 13 UNIDADE Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? A Cultura Mercantilista As Cruzadas provocaram o renascimento comercial, com a reabertura do Mar Mediterrâneo e o restabelecimento das relações comerciais entre o Ocidente e o Oriente, bem como, a ampliação dos Mercados e a intensificação do uso de moe- das ou dinheiro, pois os Cruzados, em sua expansão europeia contra os islamitas, apoderaram-se de moedas e de metais preciosos, utilizados para a sua fabricação. De igual modo, aprenderam com eles (islamitas) algumas técnicas comerciais, tais como o uso de Letras de Câmbio, Contabilidade e Criação de Bancos. Com o fim das invasões árabes, normandas, húngaras e eslavas houve na Eu- ropa um acentuado crescimento demográfico e, por consequente, a produção dos feudos tornou-se insuficiente para o atendimento da crescente demanda. Em decorrência disso, os habitantes começaram a sair dos feudos, livremente ou expulsos pelos Senhores Feudais. Alguns desses sujeitos dirigiam-se aos aglomera- dos urbanos, onde se tornaram comerciantes ambulantes e, mais tarde, viriam a se tornar os burgueses. No mesmo período, houve o cultivo de novas terras e os seus ocupantes se esta- beleciam nelas na condição de homens livres e, portanto, não estavam mais sob o julgo dos senhores feudais e poderiam praticar o comércio livremente. Com a reabertura das rotas comerciais, pelo Mediterrâneo, Mar do Norte e da Champagne, o renascimento do comércio pode fluir livremente. A grande circulação de mercadores nessas rotas levou à fixação de pontos estratégicos para a realização das trocas comerciais, em que os comerciantes poderiam negociar suas mercadorias em períodos determinados. Esses encontros sazonais eram chamados de feiras. Os burgos, verdadeiros núcleos urbanos com ativa produção artesanal e intensas relações comerciais surgiram dos locais onde as feiras eram realizadas. Veja: as feiras deram origem às Letras de Câmbio, uma espécie de Títulos ao portador, que poderiam ser descontados em outras cidades. Ocorre que chegou um momento em que havia muitos tipos de Letras de Câmbio ou moedas e, consequen- temente, surgiram os cambistas, que trocavam essas moedas para os seus clientes. Nos burgos, também era possível encontrar as primeiras casas bancárias e a prática do empréstimo a juros tornou-se recorrente, muito embora a Igreja Católica ainda condenasse a usura. Feira mercantil da era pós-feudalismo: https://goo.gl/DwjHCV Ex pl or 14 15 A atividade mercantil deu origem a uma política econômica que conhecemos como Mercantilismo ou Capitalismo comercial. O Mercantilismo remonta ao perí- odo histórico, político e econômico em que a produção advinha do trabalho assala- riado e o acúmulo de capital ocorria por meio da atividade comercial. Pode-se perceber, portanto, que o comércio se constituía como a principal ati- vidade, centralizando os interesses econômicos, deixando agricultura, artesanato e manufatura como atividades secundárias e totalmente dependentes dele. Há aqui a ideia de que se deve produzir para alguém e, portanto, essa demanda deve ser crescente, para que o negócio possa se expandir. Diferentemente do que ocorria no Feudalismo, não se produz apenas para a subsistência, mas para aten- der aos interesses de Mercado. A Burguesia surge como uma nova classe social, que precisa se manter na es- fera social e cultural. Perceba que esse período simboliza uma mudança acentuada do modo de vida do povo europeu. Os costumes, ritos e práticas origi- nários da cultura feudal tiveram de dar lugar a uma nova cultura que não poderia mais simplesmente colar Deus no centro de tudo. O homem passou a ser com- preendido como o centro do Uni- verso durante o Período Medieval. A Filosofia da Teologia Cristã modi- ficou-se para possibilitar o desenvol- vimento e o fortalecimento da práti- ca mercantil. Sendo o homem o centro do Uni- verso, aquele que atrai para si todo o movimento da realidade, seu eixo, em torno do qual todas as coisas são espacialmente situadas, pode ele al- terar a própria realidade, tomando para si o que compreende que lhe é de direito. Dessa forma, não cabe mais o pensamento de que a posição social seja a vonta- de incontestável de Deus. Cabe, no entanto, o pensamento de que o homem “deve sobreviver do suor do seu rosto” e, teoricamente, por meritocracia: quando mais trabalhar, mais acumulará para si o capital. Figura 3 Fonte: WikimediaCommons 15 UNIDADE Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? Você se lembra da célebre frase de Descartes: “Penso, logo sou”? Pois bem, ela não somente parece se encaixar nesse período, como realmente se encaixa. De igual modo, ela também nos aprece muito atual, não é mesmo? Isso ocorre porque o sistema social, econômico e político que vivemos hoje ain- da é semelhante ao Mercantilismo, sendo esse o embrião do atual Capitalismo ou, se preferir, suas raízes. Contudo, o período histórico possuía as suas singularidades e, sendo assim, não há apenas semelhanças. Entre as características centrais do Mercantilismo estão a intervenção do Estado, o metalismo e o colonialismo. A ascensão da Burguesia dependia do fortalecimento do rei e, portanto, a inter- venção econômica do Governo tinha por objetivo fortalecer e regulamentar a estru- tura financeira do reino, o que possibilitou a constituição de exércitos e marinhas. O Mercantilismo pode ser compreendido como uma Política econômica a servi- ço do Estado, que deu origem ao Estado Moderno. Nesse sentido, havia a neces- sidade de manter um estado de equilíbrio favorável ao Rei, por meio de entrada e saída de metais preciosos. Considerando-se que a riqueza de um país era mediada pela quantidade desses metais em sua fronteira, havia a necessidade de uma Política protecionista baseada em altas taxas alfandegárias. Dessa forma, um produto estrangeiro se tornava tão encarecido, que seria mais vantajoso adquirir um produto nacional, mantendo a moeda em circulação dentro do próprio território. Devemos, no entanto, considerar que a produção de recursos não é algo ines- gotável, pelo contrário. Sendo assim, existia a necessidade de manter colônias exploratórias, isso é, conquistar e explorar terras fora da Europa, que pudessem fornecer valiosos produtos para a Metrópole. A importância das Colônias, contudo, não estava apenas no fornecimento des- ses produtos, mas também residia no fato de que elas eram obrigadas a consu- mirem, por meio do monopólio, as manufaturas da Metrópole, é claro, a preços bastante elevados, já que não havia concorrência. Dessa forma, os comerciantes burgueses ficavam com todo o lucro, enquanto os produtores coloniais eram dupla- mente explorados. A cultura mercantil, por sua vez, abriu espaço para a cultura liberal. A teoria po- lítica e social conhecida como Liberalismo foi a primeira crítica do Mercantilismo. Naturalmente, a essa altura você já deve ter se dado conta de que esse tipo de mudança de pensamento somente é possível mediante uma modificação da estru- tura sociocultural, não é mesmo?! Até aqui, revisitamos a História de forma mais linear, para que seja possível compreender as raízes do sistema sociopolítico e cultural atual, a fim de criarmos um arcabouço conceitual capaz de sustentar uma reflexão mais emancipatória e, portanto, menos centrada na realidade empírica, mas capaz de refletir sobre ela. 16 17 Será necessário um desprendimento que somente é possível a partir da clarifi- cação de fatos. De certo, você ainda deve ter muitas dúvidas que, certamente, buscará escla- recê-las, pois em nossa construção do conhecimento a pesquisa se faz presente e altamente necessária. Ao longo dessa constituição do saber, a dúvida se faz a motriz do conhecimento, ou seja, é aquilo que nos coloca em constante movimento, na busca de respostas para aquilo que ainda não compreendemos ou não compreendemos tão bem. Saber reconhecer a própria ignorância tem sidouma virtude a serviço do co- nhecimento. Nessa empreitada, não cabe a utilização de conceitos rasos ou ideias concebidas a priori. A práxis, ação-reflexão-ação, requer uma análise conceitual da realidade. Nesse sentido, cabe destacar que a cultura é mutável, portanto, devemos nos permitir analisar a realidade em suas mutações. A Sociedade de Produção Quando falamos em Sociedade de produção, estamos nos referindo a um Sis- tema Cultural constituído a partir da ideia de que se deve produzir para acumular propriedades. Nesse modelo sociocultural, o ter ocupa grande destaque. Você já ouviu a expressão: “Você vale aquilo que possui”? Pois bem, essa máxima reproduz a principal ideia desse modelo. O sujeito não é apenas uma pessoa, mas também o seu trabalho e, principal- mente, as suas propriedades. É claro que por propriedades estamos nos referindo a tudo aquilo que é produzido pelo sujeito, inclusive a sua produção intelectual. No Brasil, por exemplo, a produção intelectual de um cidadão é protegida pela Lei 9.610, de 1998. A Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que altera, atualiza e consolida a Legislação sobre Direitos Autorais e dá outras providências tem por objetivo proteger os Direitos Autorais e o seu equivalente. Saiba mais acessando o seguinte link: https://goo.gl/jJFBGr Ex pl or Todavia, essa ideia é relativamente nova, o contrário da importância dada às propriedades físicas, tais como terras, móveis e imóveis. A cultura centrada na produção valoriza as relações com outros cidadãos possuidores de propriedades semelhantes. A ordem social organiza-se, portanto, em uma esfera ocupada pelo homem por meio dos bens que possui. Sabemos que houve um período em que Deus foi compreendido como o centro do Universo e que tudo era explicado por meio da vontade ou intervenção divina. 17 UNIDADE Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? Nesse período, a permanência numa determinada classe social era justificada por meio do pensamento teológico e, portanto, era incontestável. A produção in- telectual era privilégio do clero, que monopolizava a escrita e a leitura. Havia, certamente, de se esperar que as manifestações culturais fossem conside- radas propriedade da Igreja. O alto e o baixo clero determinavam, de certo modo, o modo de pensar e, por conseguinte, o comportamento social. Contudo, com a ideia de que o homem ocupa o núcleo do Universo, modifica- -se a lógica social. A cultura passa a ser uma forma de expressão do homem, sua criação e, em certa medida, criadora desse homem. A cultura de produção implica ter para quem produzir, isso é, na lógica mercantil e de Mercado, deve-se atender às demandas que são crescentes. Nesse sentido, observar a cultura torna-se essencial. Você já ouviu falar em pes- quisa de Mercado? O que, de fato, busca-se saber quando se realiza uma pesquisa desse tipo? Bom, de forma bem genérica, busca-se saber a aceitação de um determinado produto ou bem de consumo, isso é, o quão inserido na cultura local está o produto que se pretende produzir. Certamente, não se abre uma Empresa, por exemplo, em qualquer localidade. Deve-se conhecer as questões geográficas e demográficas antes de estabelecer uma organização comercial em determinado lugar. Você percebe que tudo isso envolve o conhecimento da cultura sociopolítica e econômica? Contudo, retornemos ao fato de que nesse modelo deve-se produzir para aten- der à demanda e acumular bens. Aqui a cultura de Mercado já é comercial, mas está se constituindo como industrial. No modelo manufatureiro, a produção comercial está centrada na comercializa- ção de bens produzidos pelo artesão ou tecelão. Esse produtor detém o conheci- mento total e completo de toda a fabricação do produto e, portanto, identifica-se com o produto final como sendo o fruto do seu trabalho. Já no modelo industrial, a crescente produção implica fragmentação do tra- balho, de modo que não é mais possível haver uma identificação com o produto final, pois, muito embora o trabalhador tenha colaborado para a sua produção, ele desconhece todo o processo, pois executa apenas uma parte. Há aqui o desejo de se tornar possuidor desse produto em substituição ao desejo de se tornar produtor, como forma de compensar o não saber. Aparentemente a alienação cria o desejo de possuir, de acumular: “Eu não sou, mas tenho. Logo, sou o que tenho”. 18 19 A Sociedade do Consumo Esse modelo social está organizado para a cultura do consumo. Já se aceita a condição da não produção ou da produção parcial e se adota um estilo de vida es- pecífico de consumo. O consumo passa a ser estimulado desde a infância e conta com o fundamental apoio da mídia. Não se busca apenas atender às demandas, mas aos desejos. Contudo, cabe destacar que nesse modelo cultural há a criação de desejos ou, se preferir, de falsos desejos. A Indústria da moda, por exemplo, é responsável por criar necessidades que não são de ordem prática, mas que representam muito na vida social do cida- dão contemporâneo. Você já percebeu que determinados modelos entram e saem de moda com pe- quenas variações? Sendo assim, por que apenas guardar uma peça de roupa ou de calçado não é satisfatório? Por que temos que consumir? Ora, o consumo é a forma que temos para nos conectarmos à realidade atual, de nos mantermos “an- tenados”, “ligados” ao que está acontecendo. É o modo em que nos reconhecemos como pertencentes a um determinado grupo ou classe. Há de se destacar que quando se alcança um padrão de consumo, tenta-se, a qualquer custo, mantê-lo. Você já ouviu alguém relatar sobre como percebeu ou percebe uma crise? Geral- mente, esse relato envolve o seu padrão de consumo. Perceba que o estilo de vida do sujeito está organizado em seu padrão de consumo. Assim sendo, a modificação desse padrão implica a destituição da identidade do sujeito contemporâneo, que não se reconhecerá mais enquanto cidadão da classe A ou B se mudar seu padrão de consumo. Todavia, atualmente, não se consomem apenas produtos e coisas, consomem-se desejos, isso é, a busca do alcance do ideal de ego tornou-se ainda mais imperativa. Isso quer dizer que o sujeito busca se tornar aquilo que deseja. Paradoxalmente, isso nos traz a um estado de consciência anterior, em que o Mito estava presente na vida cotidiana de modo inseparável, ajudando a organizar e a atribuir significados a tudo aquilo que não se conseguia explicar na ordem prática. O mito do corpo perfeito, por exemplo, coloca o sujeito numa posição de con- sumo permanente, pois o corpo real jamais será igual ao corpo ideal, seja porque envelhece, seja porque adoece, seja porque morre. Aceitar essas ideias implica uma ação dolorosa, seja porque se aceita a finitude da vida e os limites físicos do corpo e, portanto, deve-se lidar com o luto ao corpo, seja porque se busca alcançar demasiadamente um produto que não está à venda. 19 UNIDADE Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? Devemos saber, no entanto, que na atual cultura, os “produtores de desejo” estão atentos aos comportamentos do cidadão e que tratarão de criar novas formas de sa- tisfação pelo consumo, que, em certa medida, está ligado à objetificação dos corpos. Isso mesmo, o corpo passou a ser um objeto exposto num comercial, o que não implica dizer que se pode conquistar aquele corpo, mas aplacar o desejo de tê-lo por meio de um produto por ou para ele exibido. Não se é apenas aquilo que se tem, mas aquilo que se consome. O comportamento consumista determina a classe sociocultural a que se pertence. É de se esperar, portanto, que um sujeito se sinta deficiente e abaixo do padrão quando não responde com prontidão aos apelos do consumo. Dessa forma, a proteção da autoestima e da manutenção de um padrão social perpassa a premissa de que se deve consumir constantemente. Nesse sentido, o consumo evita a marginalização, no sentido de que impede que o sujeito seja tra- tado à margem da Sociedade. Os padrões de consumo criam uma identificação com outrossujeitos, que nos dão a falsa impressão de pertencimento. Por exemplo, quando falamos em cultura de massa, pretendemos dizer que, embora existam cidadãos que acreditem que tenham desejos únicos, exibem comportamentos sociais que são percebidos em escala. Você já presenciou o comportamento de uma pessoa quando percebe que al- guém que está no mesmo ambiente veste uma roupa igual? Algumas pessoas se sentem desconsertadas, literalmente, outras chegam a tro- car a roupa. Mas, de onde vem essa ideia de exclusividade, quando não se compra uma roupa genuinamente exclusiva ou será que o desconforto gerado não advém da roupa, em si, que é igual, mas do desejo de ser e de ser percebido como único? Atualmente, o consumo é capaz de determinar as características de uma pessoa, o grupo ao qual pertence ou com o qual se identifica e, invariavelmente, denuncia o modo de pensar. Considerações Finais Para se conhecer algo é necessário partir da investigação da sua origem, buscan- do identificar as fases pelas quais passou, a fim de não confundir o estado inicial, de transição e final. Assim como uma árvore possui raiz, caule e copa que produz frutos, um determinado conceito atual tem suas raízes, um caule, e terá potencial para a produção de novos conceitos ou frutos. Na investigação do consumo, pudemos perceber que a modelo social passou por fases distintas, em que a primeira deu origem à segunda, que deu origem à terceira, e assim sucessivamente. 20 21 A cultura feudal, organizada em pequenos feudos autossustentáveis, abriu espaço para o surgimento da cultura mercantilista que, por sua vez, possibilitou o surgimen- to do Capitalismo, que acentuou a cultura de produção e do consumo. O sujeito oriundo dessas culturas modificou-se, alterando-as e sendo por elas alterado. Em cada momento histórico, temos um sujeito com padrões de com- portamentos específicos. Contudo, nas eras pré-globalização, a cultura local era dificilmente influenciada, enquanto as culturas globais se influenciam mutuamente e influenciam um sujeito que, na maioria das vezes, é local. Nesse sentido, criam-se desejos que não são facilmente atendidos e nem devem ser, pois o consumo ocupa e deve ocupar um papel de destaque nessa condição, aplacando desde as pequenas frustrações até os traumas mais terríveis. Bom, essa é a promessa de Mercado. O “ser” filosófico, tido como abstrato demais, passou a ser representado pelo “ter”: “você é aquilo que você tem”. Contudo, o “ter” se tornou difícil demais e adap- tou-se para o que “ter agora”: “você é aquilo que você possui agora”. Certamente, essa ideia cria um desejo e uma angústia, que se autofomentam. 21 UNIDADE Cultura e Consumo ou Cultura do Consumo? Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Bauman: Diálogo da Segurança e do Efêmero | Leandro Karnal https://youtu.be/LoxeltkRspY 5 1924 Na Linha de Montagem Fordismo, Produção em Massa e Sociedade de consumo Amplie os seus conhecimentos sobre culura de produção, assistindo ao vídeo. https://youtu.be/2mLCYiTX5lU Como funciona nossa sociedade de consumo Saiba mais sobre a cultura do consumo, por meio do vídeo. https://youtu.be/EIyN2QE_6IY Leitura Capitalismo: Civilização e Poder Compreenda a relação entre o Capitalismo e o poder por meio do seguinte artigo: COMPARATO, Fábio Konder. Capitalismo: civilização e poder. Estud. av., São Paulo, v. 25, n. 72, p. 251-276, ago. 2011. https://goo.gl/UjD2DZ 22 23 Referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BHABHA, H. K. O local da cultura. 2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2003. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2000. GEERTZ, Clifford. Briga de galos em Bali. In: GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio: Zahar, 1978. HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tem- po. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, 1997. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4.ed. Rio: L&PM, 2000 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2006. LIMA, Lizânias de Souza; PEDRO, Antonio. Das monarquias nacionais ao absolu- tismo. In: História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cul- tural. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6.ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 1999. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1985. 23 Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Silvio Pinto Ferreira Junior Revisor Técnico: Prof.ª Dr.ª Jane Garcia de Carvalho Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro Identidades Culturais • Introdução; • Identidades Culturais: Proposições Conceituais; • Identidades Culturais no Mundo Globalizado; • Diferentes Identidades Culturais; • Identidades Culturais na Sociedade em Rede. • Compreender a sociedade e as diferenças entre os povos e culturas e as especifici- dades das sociedades influenciadas pela comunicação na internet e redes sociais. OBJETIVO DE APRENDIZADO Identidades Culturais UNIDADE Identidades Culturais Introdução Quando pensamos em identidade cultural, logo nos vem à mente uma série de questões que devem ser problematizadas. A começar por dizer que não há pessoas desprovidas de cultura. Assim como não existe uma única identidade cultural para definir a atual sociedade globalizada - ao contrário – existe uma multiplicidade de possibilidades e de reconhecimento de várias identidades que ora se assemelham, ora entram em conflito. Veremos, nesta unidade, uma introdução às identidades culturais que nos ajudará a pensar melhor sobre o assunto. Identidades Culturais: Proposições Conceituais Os nossos estudos, nesta unidade, têm como ponto de partida algumas pergun- tas que nos ajudarão a refletir sobre o tema. Comecemos pelas seguintes questões: O que é identidade cultural? Por que existem culturas diferentes? Quais são algumas diferentes identidades culturais? Há identidades culturais na sociedade em rede? Figura 1 Fonte: iStock/Getty Images Ex pl or Caro(a) aluno(a), temos alguns desafios pela frente. Comecemos pela definição de identidade que nos apresenta o sociólogo espanhol Manuel Castells: [...] Entendo por identidade o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos cultu- rais inter-relacionados, o(os) qual(ais) permanece(m) sobre outras fontes 8 9 de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. No entanto essa pluralidade é fonte de tensão e contradição tanto na autor-representação quanto na ação social. (CASTELLS, 1999, p. 22) No trecho que emprestamos de Castells para esta nossa reflexão, notamos logo no início que o autor utiliza a expressão ‘processo de construção’, ou seja, se iden- tidade é um processo de construção, ela não nasce com o indivíduo, aprende-se. Portanto, o individuo forma sua identidade de acordo com fatores externos que o influenciam e também através da convivência e experiências de vida em grupo e/ ou em sociedade. Os fatores externos que interferem na formação das identidades culturais são aprendidos pelo individuo logo no nascimento através de suas primeiras relações sociais experimentadas. Por exemplo: o modelo familiar, o território, as formas de comportamento dos seus semelhantes, etnia, a educação recebida, as relações de amizade, as crenças e hábitos alimentares, as relações de produção, a informação, a língua etc. Para Castells, a identidade cultural é vista como uma forma de identidade coleti- va, mas também reconhece que um sujeito pode ser formado por muitas identida- des.Isso significa que somos muitos em um só “[...] em torno de uma identidade primária (uma identidade que estrutura as demais) auto-sustentável ao longo do tempo e do espaço.” (CASTELLS, p. 23). Você já parou para pensar que somos, agimos e pensamos de diversas formas? Utilizamos linguagens distintas, também nos vestimos e nos comportamos de for- ma diferente, exercendo um determinado papel na família, ‘outro’ na universidade, ‘outro’ no trabalho, ‘outro’ com os amigos, ‘outro’ em atitudes políticas, ‘outro’ no lazer, ‘outro’ no casamento etc. Esses ‘outros’ que formam cada indivíduo fazem parte de uma construção iden- titária que está em constante transformação e nos acompanhará por toda a vida. Pois somos muito diferentes também na infância, na adolescência, na idade adulta e na velhice. Portanto, somos muitos ‘em si’. Isso explica a complexidade e o de- safio de aqui definir identidade cultural. De qualquer forma, arrisquemos uma breve e despretensiosa definição para res- pondermos à pergunta inicial. Identidade Cultural : é um conjunto vivo de valores construídos através das relações sociais e patrimônios simbólicos historicamente compartilhados que estabelece a comunhão entre os membros de uma sociedade. Ex pl or 9 UNIDADE Identidades Culturais Quem é Manuel Castells? Manuel Castells (Hellín, 1942) é um sociólogo es- panhol. Lecionou em diversos países como França, Espanha e EUA. Está entre os cientistas sociais mais citados no mundo, principalmente no meio acadê- mico da área de comunicação. É considerado o prin- cipal analista da era da informação e das identidades culturais do mundo globalizado. Suas ideias podem ser estudadas na trilogia “A sociedade em rede”, “O poder da identidade” e “Fim de Milênio”, lançada no Brasil, além de uma ampla bibliografia. Ele in- vestiga os efeitos da informação sobre a cultura, a economia, e a sociedade em geral. Para conhecer mais sobre as ideias do autor, assista a entrevista que Manuel Castells deu no Brasil disponí- vel no seguinte link: https://youtu.be/TaXeu4k4OJE. Figura 2 Fonte: Divulgação Ex pl or Com essas análises preliminares, convidamos você, caro(a) aluno(a), a pensar agora sobre as identidades culturais na contemporaneidade. Vamos lá? Identidades Culturais no Mundo Globalizado A partir do final dos anos 1980, com o final da bipolaridade política entre ca- pitalismo e socialismo, o mundo passou a viver grandes e rápidas transformações. O marco desta ruptura, para darmos aqui uma concepção histórica, foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Os ‘muros’ que impediam, ou apartavam a humanida- de de conhecer e se comunicar com novas culturas foi literalmente derrubado por pessoas que não suportavam mais se sujeitar às barreiras impostas por questões geopolíticas e econômicas. Naquele momento, o mundo já atravessara grandes dificuldades e testemunhou grandes acontecimentos como as duas grandes guerras mundiais, crises econômi- cas, genocídios etc., mas também vislumbrou no horizonte uma revolução cultural de valores orientados pelas lutas e conquistas das minorias que começavam a se afirmar a partir dos anos 1960. Concomitantemente a tudo isto, houve também um surpreendente avanço tecnológico, principalmente na área das comunicações, cuja protagonista principal é a internet. Com a internet a sociedade passou a se transformar como nunca. Em conse- quência de seu surgimento, muitas barreiras foram rompidas no que tange à ques- tão da comunicação e da informação. 10 11 Paulatinamente, pessoas do mundo inteiro passaram a viver numa grande rede social intermediada pela internet aproximando culturas que antes nunca haviam experimentado contato algum. Você, aluno(a), utiliza a internet para se informar, estudar, comunicar e formar suas próprias redes sociais de relacionamento, não é mesmo? Já imaginou quantas pessoas no mundo todo estão conectadas ao mesmo tempo em que você está? Além disso, nessa grande rede, navegam vários internautas de culturas muito diferentes que se mesclam, formando uma linguagem digital que se tornou universal. Ex pl or As diferentes culturas que, praticamente, passaram a ser conhecidas instantane- amente pelas redes sociais, já existiam antes. No entanto, tudo parece muito novo e provoca na ‘sociedade em rede’ muitas sensações, como por exemplo: surpresa, curiosidade, encantamento, empatia, mas também aversão, repúdio, sentimentos de preconceito, racismo, xenofobia e discriminação. Diferentes Identidades Culturais Por que existem culturas diferentes? Faremos aqui uma breve análise para ten- tarmos responder a esta pergunta, pois certamente cometeremos a injustiça de deixar de mencionar importantes fatos, experiências e descobertas históricas. Porém, como estamos aqui propondo uma introdução ao tema ‘identidades cultu- rais’, vamos nos arriscar a discorrer um pouco sobre as diferenças culturais, que por tanto tempo ficaram confinadas em grupos e territórios distintos. A humanidade, há milênios, vivia situações bem diferentes. Os pequenos grupos estavam passando por um processo evolutivo. Em breves palavras, desenvolveram mecanismos de sobrevivência num mundo que se mostrava hostil pelo fato de pre- ceder as primeiras descobertas. No passado, o homem estava preocupado em dominar a natureza e isso não se- ria possível sozinho. Dessa maneira, passou a se identificar com outros semelhan- tes organizando-se em grupos através de aspectos de identificação. Seu totem foi, durante muito tempo, buscar explicações na metafísica, desenvolvendo crenças, acreditando em deuses que lhe trouxessem respostas aos seus questionamentos sobre o mundo. Buscavam também segurança em relação aos fenômenos naturais climáticos, desenvolveram mecanismos para se alimentar, praticaram rituais e fes- tas, protegeram-se contra grupos inimigos etc. O calendário foi uma dessas importantes descobertas, assim como o transporte utilizando animais para chegar cada vez a territórios mais distantes, e principalmen- te a língua e formas de comunicação. 11 UNIDADE Identidades Culturais A relação de tempo e espaço, ou seja, o que foi transferido entre gerações e se pulverizando entre espaços geográficos com as migrações, fez com que as culturas fossem se misturando, ou até mesmo congelando no tempo. Isso explica porque algumas tradições são mais presentes e outras até mesmo desaparecem. Este processo híbrido-cultural fez com que alguns grupos se atraíssem ou se repelissem, gerando também muitos conflitos. Alguns conflitos provocados por divergências culturais perduram até hoje. É sabido que as culturas sempre se diferenciaram por vários fatores. O homem nascido em qualquer parte do planeta seja na África, na Ásia, na Europa, América ou Oceania não é o mesmo. Possui singularidades que estruturalmente foram cons- truídas historicamente principalmente pela territorialidade e pela etnia. Figura 3 Fonte: iStock/Getty Images Partiremos aqui da seguinte indagação: quais são algumas dessas diferentes identidades culturais? Como vimos, as características desenvolvidas pelos grupos sociais permitem que os indivíduos se sintam mais próximos e semelhantes. No entanto, a sociedade como um todo é formada por diversos grupos sociais que apresentam também muitas diferenças. Existe uma vasta literatura a respeito de grupos culturais. Em algum momento de sua vida, você já estudou alguns deles. Vamos relembrar apenas alguns? Os índios, os judeus, os ciganos, os quilombolas, os nordestinos, os imigrantes, os latinos, e uma lista bastante ampla que, certamente, ainda com grande esforço, 12 13 se procurássemos citar todos, ainda assim, cometeríamos uma injustiça, pois dei- xaríamos algum grupo no esquecimento. Para não correr este risco, falaremos agora sobre alguns conceitos que agregam maior compreensão sobre as identidades culturais. Vejamos alguns: • Marginalidade cultural – é o fenômeno que ocorre quando duas culturas entram em contato e ocorrem conflitos emocionais nos indivíduospertencen- tes a essas culturas. Os conflitos ocorrem quando surge uma insegurança que as pessoas sentem diante de uma cultura diferente da sua. Aqueles que não conseguem se integrar ficam à margem da sociedade. Podemos utilizar um exemplo bastante recorrente em São Paulo: os imigrantes bolivianos. Figura 4 Fonte: iStock/Getty Images • Contracultura – na sociedade contemporânea, existem pessoas que não se submetem a certos valores culturais vigentes e os contestam, opondo-se radical- mente a eles. O movimento de contracultura surge no mundo todo a partir dos anos 1960, quando alguns grupos passam a contestar a sociedade de consumo imposta pela economia capitalista e criam alternativas de não se submeter a im- posições ideologias, como patriotismo, acumulação de riquezas ascensão social. 13 UNIDADE Identidades Culturais Figura 5 Fonte: iStock/Getty Images • Aculturação: ocorre quando o contato de uma cultura com outra provoca um processo de assimilação de valores e costumes. Uma cultura dominante garante uma imposição de mudanças culturais sobre a cultura dominada, transforman- do esse processo numa simbiose que resulta em uma nova identidade cultural. Um exemplo clássico sobre aculturação é o próprio processo de formação da sociedade brasileira. Colonizado por portugueses, o Brasil sofreu o primeiro processo de aculturação com a dominação dos índios, em seguida com o tráfico dos escravos e mais tarde por imigrantes de várias partes do mundo. Neste pro- cesso híbrido de cultura, resultou a predominação da cultura europeia, branca e ocidental, sobre a cultura indígena e africana que vivem até hoje em situação de marginalidade, resultando numa enorme desigualdade social. Figura 6 Fonte: iStock/Getty Images 14 15 Importante! Conhecemos todos os grupos culturais? Não devemos ser pretenciosos ao ponto de relacionar todos os grupos culturais e suas características identitárias, até porque são múltiplos e diversos. Lembremos aqui tam- bém que, ainda hoje, existem grupos que vivem em isolamento e foram muito pouco ou nunca estudados. Trocando ideias... Identidades Culturais na Sociedade em Rede Desde a Revolução Industrial, quando pessoas de todos os cantos se dirigiram para os centros industrializados em busca de trabalho, que compreender e tolerar a pluralidade cultural vem sendo um desafio no mundo todo. Foi nas cidades modernas do final do século XIX e início do século XX que o pro- cesso de transformação das identidades culturais se acelerou. De lá para cá, com o crescimento dos mercados capitalistas, o inchaço das cidades só vem aumentando. Com a grande imprensa, os jornais, o rádio, o cinema e a TV, a informação e a noção de que vivemos num mundo extremamente complexo e diverso cultural- mente só aumentou. O ser humano tende a buscar uma zona de conforto e conservá-la como uma forma de pro- teção de seus valores, crenças e ideais. O extremismo de alguns indivíduos e grupos conser- vadores acaba por gerar um sentimento de intolerância contra aquilo que não reconhece como parte de seu universo. Apesar dos conflitos, alguns ‘nós’ vão sendo desatados pouco a pouco. Ex pl or Segundo Stuart Hall, a internet acelerou o processo de aproximação de pessoas do mundo todo. Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de es- tilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fa- zendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós, den- tre as quais parece possível fazer uma escolha). (HALL, 2006, p. 75) 15 UNIDADE Identidades Culturais É fato que existe discriminação, preconceito e intolerância tanto no mundo real quanto no mundo virtual. Mas é fato também que tudo passou a ser declarado abertamente nas redes sociais. Os sentimentos de preconceito contra as diferenças, antes muitas vezes resguardados, estão também ali cada vez mais canalizados nas redes sociais, portanto, podem ser combatidos. Quem é Stuart Hall? Figura 7 Fonte: Divulgação Stuart Hall (1932-2014) foi um jamaicano que viveu e trabalhou na Inglaterra. Transitou en- tre culturas diferentes, experiência que o motivou e inspirou a deixar um primoroso legado científico e muitos escritos importantes. Ex pl or Observe as figuras abaixo e veja como a sociedade em rede vem contribuindo não para unificar as culturas, mas sim para reafirmá-las a partir do momento em que as pessoas vão se mostrando umas para as outras: Figura 8 Fonte: Acervo do Conteudista 16 17 A identidade cultural é fator condicionante da relação indivíduo-sociedade, pois é através dela que o indivíduo se adapta e reconhece um ambiente como seu. Esse compartilhamento de identidades que vimos nessas imagens permite que as pessoas percebam uma sociedade mutável e em constantes transformações: a sociedade que você vive. Importante! Procuramos introduzir você, aluno(a), neste tema tão importante para os dias atuais: as identidades culturais. Procuramos apresentar, aqui, uma definição para norteá-lo(a), alguns conceitos e muitas reflexões para prepará-lo(a) para lidar com as diferenças da forma mais na- tural possível em sua área de atuação. Pois, como vimos anteriormente, não há indivíduo sem cultura, assim como não há nenhum indivíduo idêntico ao outro. O que existem são pessoas e cada um deve ser respeitado como é. Em Síntese 17 UNIDADE Identidades Culturais Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Leitura Uma gota de sangue – história do pensamento racial https://goo.gl/n4cvKq Raça Pura https://goo.gl/stHTCg Desigualdades de gênero, raça e etnia https://goo.gl/QjC8Zw Good Bay Brazil – Emigrantes brasileiros no mundo https://goo.gl/2aG98f 18 19 Referências CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 19 • O Princípio da Globalização; • A Globalização Contemporânea; • Acentuação das Desigualdades Sociais e Globalização. • Estudar os aspectos principais da globalização e a acentuação das desigualdades socioculturais. Iniciaremos a partir de uma perspectiva histórica desde o Renasci- mento até os dias de hoje; • Estudar os impactos da globalização nas relações sociais. OBJETIVO DE APRENDIZADO Cultura e Globalização UNIDADE Cultura e Globalização O Princípio da Globalização A partir do século XVI, os europeus começam a vislumbrar um novo horizonte além do velho continente e, com as navegações marítimas, oportunizaram a explo- ração de um mundo até então desconhecido. O mercado competitivo de mercadorias comercializadas em centros importantes como Veneza, Gênova, Pisa, Constantinopla, Barcelona, Marselha e Delft, nos Pa- íses Baixos, já estava bastante saturado e transbordou para outras espacializações geográficas como a América, recém-conhecida, e a Ásia. O contato do europeu com uma natureza exuberante e com os povos autóctones de cultura exótica abriu novas possibilidades de relações econômicas, políticas, so- ciais e culturais entre pessoas das mais diversas e contrastantes regiões do mundo. As potências europeias que, tecnolo- gicamente, estavam prontas para desbra- var oceanos eram Inglaterra Espanha, Holanda, França e a ousada Portugal. Plantas, ervas, especiarias e animais que os europeus exploravam das regiões colonizadas eram expostos e disponibi- lizados à venda no mercado europeu, apresentando uma cartela de novidades e produtos tão procurados que estimu- lavam frequentes viagens, estabelecendo o que conhecemos como mercantilismo. Figura 1 Fonte: iStock/Getty Images Mercantilismo: é o conjunto de práticas econômicas desenvolvido na Europa na Idade Mo- derna a partirdo processo de colonização. Ex pl or À medida que a exploração das terras ocupadas ocorria, extraía-se o que servia ao comércio de venda e troca na Europa, mas, em contrapartida, cada vez que as embarcações europeias chegavam aos novos territórios, traziam também muito de uma cultura até então desconhecida aos nativos. A partir do mercantilismo, originou-se a primeira rede global de troca de infor- mações, experiências e conhecimentos, mas também um cruel processo de explo- ração de mão de obra nas colônias que incluiu o escravo como produto mercantil de grande valia. Assim, a primeira onda da globalização se desenhou cada vez mais abrangente entre os cinco continentes: Europa, América, Ásia, África e Oceania. Enquanto a Europa experimentava o doce gosto do Renascimento, os territó- rios colonizados, explorados e saqueados sentiam o gosto amargo da escravidão, 8 9 catequização, expulsão ou extermínio em nome da civilização. A esse processo de exploração de mercado e acúmulo de riquezas dos países mais fortes em detrimen- to dos mais fracos, chamaremos de capitalismo. O que nos interessa aqui, no entanto, não é nos aprofundarmos no processo histórico, mas constatar que as idas e vindas das embarcações levaram e trouxeram muitas transformações para ambos os lados, seja para os colonizadores, seja para os colonizados. Aos poucos, as línguas foram se misturando, bem como as diferen- tes etnias, e logo alguns hábitos foram incorporados cá e lá. A Globalização Contemporânea Como alguns estudiosos descrevem, a segunda fase da globalização diz respeito à reconfiguração geopolítica e econômica a partir do final dos anos 1980. O final da Guerra Fria entre capitalistas e comunistas teve como ponto crucial a queda do simbólico muro de Berlim em 1989, que separava a Alemanha oriental comunista da Alemanha ocidental capitalista. A destruição do muro pela própria população alemã definiu um marco para o processo global recente. Voltemos um pouco na história para compreender a Guerra Fria. Para tanto, devemos lembrar que a Guerra Fria foi um pacto entre as potências americana e soviética no final da Segunda Guerra Mundial, quando elas uniram forças para derrotar a Alemanha nazista. Sabemos que a Segunda Guerra Mundial foi um conflito entre as principais po- tências do mundo em defesa de mercado para suas indústrias e hegemonia política. O conflito armado se deu estruturalmente devido a interesses distintos de três sistemas econômicos em evidência naquele momento. Vejamos: • De um lado, os alemães nazistas liderados por Adolf Hitler que não mais se subordinariam às duras imposições que lhe foram conferidas pelo Tratado de Versalhes assinado no final da Primeira Guerra Mundial, apoiados pelos países fascistas que compunham o eixo Alemanha-Itália-Japão; • De outro lado, os capitalistas aliados liderados pelos EUA que se consolida- ram, desde a primeira Guerra Mundial, como superpotência econômica; • Em oposição aos dois modelos econômicos anteriores, o gigante comunista, armado e isolado representado pela URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas –, contraponto mais incômodo à liderança norte-americana. Importante! O principal conflito do século XX se deu por motivos econômicos, geográficos e histórico- -culturais dividido entre três sistemas econômicos: nazismo, capitalismo e socialismo. Em Síntese 9 UNIDADE Cultura e Globalização Capitalismo: sistema econômico baseado na pro- priedade privada, produção e consumo. A socie- dade se divide em duas classes sociais: os bur- gueses, detentores dos meios de produção, e os proletários, trabalhadores assalariados. Socialismo: sistema econômico transitório para se atingir o comunismo. A sociedade não se divide em classes, pois os meios de produção são de propriedade comum de todos os cidadãos controlados pelo Estado. Regime totalitário de ditaduras que se mantém no poder até atingir o estágio comunista desejado. Fascismo: sistema econômico em que um líder populista exalta a nação e o Estado, e usa moder- nas técnicas de propaganda e censura para supri- mir pela força a oposição política. A maior ex- pressão do fascismo foi o nazismo. Figura 2 O fim da guerra entre sistemas econômicos e regimes políticos armados e pode- rosos só teria fim se dois deles se unissem para derrotar o terceiro. Dentre todos estes sistemas que apresentamos, o mais cruel foi o nazismo, pois, além de sua disputa política, estratificava a sociedade em raças classificadas em superiores e inferiores. Os nazistas exterminaram mais de 6 milhões de judeus em campos de concen- tração, além de perseguir e também assassinar e escravizar ciganos, homossexuais, eslavos e comunistas. Por este principal motivo, a Segunda Guerra Mundial só poderia ter um fim com a derrota dos nazistas, que finalmente ocorre em 1945, quando os capitalistas americanos e os socialistas soviéticos aliaram-se vencendo a guerra e, posterior- mente, pactuando uma outra, não armada, mas tecnológica guerra – a Guerra Fria. O sentido dado à Guerra Fria foi de uma disputa acirrada de mercado através do desenvolvimento tecnológico que irá marcar as décadas seguintes. Americanos e soviéticos influenciam o mundo todo numa bipolaridade capitalista-socialista im- posta a países mais frágeis através de articulações políticas, como, por exemplo, 10 11 as ditaduras militares na América Latina, que foram apoiadas pelos americanos temerosos à ameaça socialista/comunista no continente. A cortina de ferro que separava a URSS dos EUA se rompe com o governo de Mikhail Gorbachev (1985-1991) no final dos anos 1980. Dentre as medidas tomadas por Gorbachev para sustentar a economia soviética, estão a abertura dos meios de comunicação, as novas medidas para atuar no mercado internacional favorecendo exportação e importação etc. Pouco a pouco, o mercado soviético foi se abrindo para o mundo, o que pro- vocou os primeiros movimentos separatistas da URSS, enfraquecendo paulatina- mente o regime. Já a Alemanha oriental-socialista e a Alemanha ocidental-capitalista decidem acabar com a separação política em seu território e se unem com a queda do muro de Berlim, símbolo do final da Guerra Fria e início do processo de globa- lização contemporâneo. Figura 3 Fonte: Wikimedia Commons O final da Guerra Fria reconfigurou o mapa mundial. Uma vez que os EUA se con- solidavam como potência hegemônica, os países que se dividiam entre capitalistas e socialistas passaram a seguir um único rumo: o mercado capitalista globalizado. Importante! Como sobreviver num mercado capitalista liderado pela superpotência americana? Bem, a possibilidade que se apresentou para sobreviver num mundo altamente compe- titivo foi a que os americanos projetaram, ou seja, somente unindo forças regionais com a formação de blocos econômicos como, por exemplo, a União Europeia, MERCOSUL, Ti- gres Asiáticos, Caribean, ALCA, etc. Esses blocos reconfiguraram a política internacional no âmbito legislativo, monetário, geográfico e cultural. Trocando ideias... Vimos até aqui que algumas características da globalização contemporânea são: o gradativo fim do socialismo, a hegemonia do capitalismo, o fortalecimento de 11 UNIDADE Cultura e Globalização blocos econômicos, a abertura de mercado a ser disputado pelas empresas trans- nacionais e a abertura dos veículos de comunicação. Somemos a estes, outros dois fatores que complementam o que descrevemos até aqui sobre a globalização: o surgimento da internet como veículo de comunicação de massa no fim dos anos 1980 e o inglês como idioma universal. Como surgiu a internet? A internet surgiu de uma experiência militar norte-americana no período da Guerra Fria. Inicialmente, criou-se uma rede de comunicação entre as bases militares através de cabos subterrâneos de longo alcance protegida de qualquer ataque que pudesse destruí-la. Ao fi- nal dos anos 1980, essa tecnologia foi incorporada pelas universidades, institutos de pesqui- sas e, por fim,chegou às empresas para reduzir custos e agilizar negócios. Nos anos 1990, a internet já era de uso comum no mundo todo. Ex pl or Segundo Canclini: A globalização pode ser vista como um conjunto de estratégias para rea- lizar a hegemonia de conglomerados industriais, corporações financeiras, majors do cinema, da televisão, da música e da informática, para apropriar- -se dos recursos naturais e culturais, do trabalho, do ócio e do dinheiro dos países pobres, subordinando-os à exploração concentrada com que esses atores reordenaram o mundo na segunda metade do século XX. (CANCLINI, 2003, p. 29) Para o autor, a globalização culminou num processo de desigualdade e exclusão social, conforme veremos a seguir. Acentuação das Desigualdades Sociais e Globalização É indiscutível que muitos benefícios chegaram com a globalização, alterando pro- fundamente as relações sociais contemporâneas, porém, uma grande parcela da sociedade ficou fora dessas benesses sem alcançar um patamar mínimo de sobre- vivência para uma vida digna e se sentir incluído neste processo de globalitarismo (SANTOS, 2001). 12 13 Globalitarismo: imposição da globalização como forma de relação política, econômica e sociocultural do mundo atual. Expressão utilizada pelo professor Milton Santos, geógrafo e especialista na urbaniza- ção e exclusão social nos países periféricos. Figura 4 Fonte: Wkimedia Commons Ex pl or Aparentemente, a maioria das pessoas no mundo possuem celulares, notebooks, frequentam uma universidade, possuem moradia ou alcançam o sucesso profissional. No entanto, a grande massa da sociedade está envolvida numa ideologia que a faz acreditar que tudo isso está ao alcance de todos, ignorando o fosso desigual que se- para aqueles que, ainda no século XXI, não conseguiram sair da linha da pobreza e do problema do analfabetismo. Ideologia: crenças compartilhadas que servem para justificar os interesses dos grupos do- minantes. Há ideologias em todas as sociedades em que existem desigualdades sistemáti- cas enraizadas entre os indivíduos. O conceito de ideologia tem uma ligação estreita com o de poder, uma vez que os sistemas ideológicos servem para legitimar o poder diferenciado detido por grupos (GIDDENS, 2004, p. 694-695). Ex pl or A globalização acentuou os problemas sociais que englobam a precarização da educação, do trabalho, do acesso à moradia, da saúde e saneamento básico, além de permanentes problemas continuarem sem solução como a fome, o desemprego e a discriminação – problemas enfrentados por países de todo o mundo (inclusive países ricos). Importante! Você sabia que um europeu no início do século XX vivia em média até 60 anos de idade? Atualmente, sua expectativa de vida já passa dos 80. Voltando mais ainda na história, até meados do século XVI, a média de vida das pessoas era de 40-45 anos. Vivemos hoje o dobro de tempo! Você Sabia? Os países mais desenvolvidos, principalmente aqueles que atingiram o Welfere- -State (Estado de bem estar social), enfrentam, por exemplo, problemas com o equilíbrio das contas do estado para arcar com as despesas de uma sociedade en- velhecida e não sabem lidar com o crescente número de imigrantes que atravessam suas fronteiras em busca de trabalho. 13 UNIDADE Cultura e Globalização Welfare-State: Termo utilizado para designar o Estado assistencial que garante padrões mínimos de educação, saúde, habitação, renda e seguridade social a todos os cidadãos. Somente países desenvolvidos atingiram este patamar. Ex pl or Se, no passado, as epidemias, guerras, escravidão, extermínio etc. existiam sem controle, hoje, podem ser controlados (de certa forma) pelos avanços da medicina, da ciência, das leis, da educação, dos organismos internacionais como a ONU e a UNESCO, OMC, FMI etc. Tomemos como exemplo a epidemia da AIDS e os avanços da ciência para controlá-la com excelentes resultados, avanços também na legislação para garantir o direito às políticas públicas e sociais e a melhora da expectativa de vida do por- tador do vírus HIV. As identidades culturais são, portanto, afetadas pela globalização configurando- -se como efêmeras e híbridas. Parece dicotômico dizer que a globalização, que envolve o mundo todo numa rede, deixe tanta gente fora dela. Porém, na sociedade de massa, cidadania se confunde com consumo. A principal causa da desigualdade na contemporaneidade está justamente ligada à falta de trabalho, inexistência de renda e descrédito no cidadão excluído. Façamos aqui um parêntese, o termo ‘exclusão social’ ou ‘excluídos’ fica sem sentido quando compreendemos que o capitalismo é um sistema que produz ricos e pobres, burgueses e proletários, consumidores e não consumidores. Pois, se tudo isso faz parte de um único sistema econômico, então, a própria pobreza é gerada pelo acúmulo de capital e da má distribuição de riquezas. Portanto, como excluir o próprio produto do capital, ou seja, os pobres e aqueles tratados com desigualdade? Esse é o grande enfrentamento dos países do mundo. Quando os países pobres não conseguem resolver seus problemas políticos, econômicos e sociais, os países ricos precisam socorrê-los para evitar as constantes crises mundiais. Por outro lado, os países ricos também vivem crises de desemprego, violência, urbanização acelerada, alta densidade demográfica, escassez de recursos naturais, ameaças ter- roristas etc. Como vemos, a globalização envolve todo o mundo e as desigualdades só po- dem ser combatidas com ações conjuntas entre os países. Analisemos, por fim, um dos principais fenômenos da globalização – o aumento de indivíduos no mundo na condição de imigrante. À medida que o capital está concentrado em uma determinada zona geográfica do planeta, as ondas migratórias confluem nessa direção. Como o capital migra, 14 15 ora investe em países ricos, ora em países pobres, ora numa determinada região, o fluxo migratório também é mutante (HARVEY, 1992). Dados sobre imigrantes no mundo: https://goo.gl/22qUv4 Ex pl or Os movimentos migratórios, de fato, sempre existiram, porém, a principal razão para um indivíduo se deslocar de sua cidade, estado ou país em direção a outro está, atualmente, direta ou indiretamente ligada ao trabalho. Neste sentido, conclu- ímos que a principal razão para emigrar é a razão econômica. Lembremos, aqui, que essa massa migratória é composta também, em cres- centes percentuais, por refugiados e exilados que migram por questões políticas, culturais e religiosas. Esse contato com o ‘outro’ acaba por gerar choques culturais e atitudes extremas como o surgimento do terrorismo, políticas racistas, discriminação, intolerância, ge- nocídios etc. Levantadas as questões que objetivaram uma reflexão sobre o dualismo provoca- do pela globalização, ou seja, um lado bom e um lado ruim, conforme destacamos acima brevemente, é importante direcionarmos nossa atenção para o futuro que estamos construindo. Que atitudes e ações podem ajudar a minimizar as desigual- dades aprofundadas pela globalização? A participação política de cada cidadão pode ser um caminho para novos diálogos? Você já notou que há um crescente levante popular que busca se organizar pelas redes sociais para protestar por cau- sas em comum? Essas perguntas podem nos ajudar a refletir um pouco mais sobre os caminhos abertos pela globalização contemporânea. Importante! Nesta unidade, estudamos a formação do processo de globalização em duas fases, a primeira no Renascimento, século XVI, e a segunda com o fim da Guerra Fria no final dos anos 1980. Procuramos relacionar os dois lados da globalização ressaltados amplamente quando se trata deste tema: o lado positivo, ou seja, dos avanços tecnológicos, da comunicação em rede, da internet etc.; e o lado negativo, ou seja, da desigualdade causada pelo abismo que separa os ‘incluídos’ dos ‘excluídos’, ainda que tanto uns quanto outros façam parte de um único sistema político-econômico – o capitalismo. Objetivamos aqui apresentara você, caro(a) aluno(a), argumentos para refletir sobre tais aspectos, bem como desenvolver uma visão crítica da globalização contemporânea quanto à ideologia otimista que, normalmente, apresenta apenas os aspectos favore- cedores do capital, enquanto as desigualdades, muitas vezes, são apresentadas como descompasso e atraso perante o encantador mundo globalizado, ao qual tantos pensam ilusoriamente fazer parte. Em Síntese 15 UNIDADE Cultura e Globalização Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Globalização Milton Santos - O mundo global visto do lado de cá https://youtu.be/-UUB5DW_mnM 16 17 Referências CANCLINI, N. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003. CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. GIDDENS, A. O mundo na era da globalização. Lisboa: Editorial Presença, 2000. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. SANTOS, M. Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2001. 17 • Liberdade de Gênero; • O Sexo Biológico; • Identidade de Gênero; • O Gênero e a Questão de Raça e Etnia; • Feminilidades e Masculinidades no Estudo de Gênero ; • Políticas Públicas Voltadas para Questão de Gênero, Raça e Etnia. • Apresentar uma abordagem das diversas identidades culturais, analisando grupos específicos; • Compreender a sociedade e as diferenças de gênero, bem como suas desigualdades raciais, lutas e conquistas de direitos. OBJETIVO DE APRENDIZADO Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia UNIDADE Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia Liberdade de Gênero Os estudos nesta unidade partem da importância em discutir as diferenças de gêneros na composição de uma sociedade sob o prisma das Ciências Humanas e Sociais. Pretende-se também apresentar um estudo sobre raça e etnia e a sua rela- ção com o gênero. Iniciemos por indagar a origem das diferenças entre homens e mulheres. Para muitos estudiosos, as diferenças são construídas a partir das influências sociais. Dessa forma, partiremos da distinção entre sexo e gênero. Figura 1 Fonte: Adaptado de The GenderBread Person 2.0 De acordo com muitos sociólogos, sexo é um termo utilizado para se referir às diferenças fisiológicas e anatômicas que definem e distinguem o corpo masculino do corpo feminino. Gênero, no entanto, está relacionado às diferenças psicológi- cas, culturais e sociais entre indivíduos do sexo masculino e do sexo feminino. Importante! Sexo: define as diferenças naturais, fisiológicas e anatômicas entre homens e mulheres. Gênero: define as diferenças psicológicas, culturais e sociais entre homens e mulheres. Em Síntese 8 9 O Sexo Biológico Nascer homem ou mulher parece simples, e a princípio não requer muitas in- dagações, porém, você já parou para se questionar – “O que é ser um homem? O que é ser uma mulher?” Bem, caro(a) aluno(a), a resposta, para muitos certamente estará associada ao sexo do corpo em que nascemos. Imagem disponível em: https://goo.gl/gteJBo Ex pl or No entanto, essa é uma forma simplificada e limitada de definir a identidade de cada sujeito, pois ainda que os documentos certifiquem o sexo com o qual nasce- mos, existem pessoas que acreditam ter nascido no corpo errado. Esse ‘equívoco’ da natureza poderia, então, ser corrigido cientificamente através da mudança de sexo e reparações no corpo, ou, como algumas pessoas acreditam, que se poderia interferir na identidade do outro, praticando um ultrapassado moralismo conser- vador através de tratamento psicológico ou psiquiátrico e, até mesmo, palestras e sessões de ‘cura’ praticadas por algumas religiões. A construção da identidade ao longo da vida é algo muito mais complexo do que a simplificação da distinção entre homem e mulher somente através do corpo, pela distinção dos sexos. As diferenças sexuais são demasiadamente influentes em nossas vidas. Faremos aqui uma reflexão acerca do gênero. Para iniciar, emprestemos da filósofa francesa Simone de Beauvoir, sua célebre assertiva “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Simone de Beauvoir (Paris, 1908-1986) foi uma escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, femi- nista e teórica social considerada até hoje um dos nomes mais influentes do feminismo moderno. Aos 21 anos saiu de casa para estudar Filosofia na Universidade de Sorbon- ne. Prestes a se formar, em 1929, ela conheceu o famoso e também filósofo Jean-Paul Sartre, iniciando uma peculiar relação amorosa. O casal à frente de seu tempo procurava quebrar os mais diversos paradigmas instituídos pela cultu- ra e pela sociedade. Por exemplo, por não concordarem com os princípios da monogamia tinham uma relação aberta a experiências amorosas e sexuais com outras pessoas. O ca- samento também não fez parte da vida do casal, graças à crença de Beauvoir de que o relacionamento deles não de- veria ser definido com base em normas institucionais. Figura 2 Fonte: Wikimedia Commons Ex pl or 9 UNIDADE Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia Beauvoir, em 1949, provocou uma revolução no pensamento sobre gênero ao afirmar que “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana se assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualifica de feminino.” (1967, p. 9). A filósofa coloca no centro das discussões que a construção das identidades de gênero se dá através da cultura, ou seja, dos papéis sociais que são atribuídos a ho- mens e mulheres e de uma expectativa de que seu comportamento seja cumprido sob os olhos de pesadas críticas, discriminação e preconceitos contra todos aqueles que, de alguma forma, não se enquadram às regras impostas inicialmente no seio familiar, no convívio com os primeiros grupos sociais institucionalizados como, por exemplo, a escola, a igreja, o local de trabalho etc. A ideia de que esses papéis desempenhados a partir da designação homem/ mulher não seria algo inato, mas sim fruto de uma construção social advinda de cada cultura, recebe o título de teoria de gênero – não mais sexo de conotação biológica. Essa categoria foi adotada pelas correntes filosóficas históricas que se propunham a rachar com uma linha tradicional, e, ao mesmo tempo, ir além da chamada história das mulheres ao explorar a relação estabelecida por homens e mulheres ao longo do tempo. O papel feminino não foi definido pela própria mulher, “[...] a humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo” (BEAUVOIR, 1970, p.10). Ao homem foi delegado o papel privilegiado nesse sistema, que mesmo ao trazer prejuízos para determinados indivíduos que fogem da lógica masculina, de forma geral, beneficia os pertencentes ao gênero masculino. Identidade de Gênero A construção social das identidades é responsável também pela construção do gênero. Portanto, nós fazemos o gênero, criamos a noção do que é ser menino e menina desde a infância. Estabelecemos regras de comportamento, símbolos e significados àquilo que deve ser caracteristicamente fator distinguível entre homens e mulheres na fase adulta. Essa construção social da identidade, para algumas pessoas, pode ser conside- rada uma pressão para se tornar algo que a sociedade espera que cada um de nós nos tornemos. No entanto, existem aqueles que enfrentam a pressão social para encontrar um equilíbrio entre o corpo natural e a forma como enxerga a si próprio. A maneira como cada um se sente ou gostaria que seu corpo fosse, estimula a bus- ca por um equilíbrio entre o corpo e o psicológico. 10 11 Utilizamos aqui a palavra ‘enfrentamento’ porque não é tarefa fácil buscar tal equilíbrio, uma vez que a sociedade, pelo menos grande parte dela, não aceita que o indivíduo tenha autonomiapara alterar a natureza. Assim, para muitos, é preciso conformar-se com o que a natureza designou a cada um de nós. Quando se pensa sobre o assunto pelo viés da religião, essa questão se agrava ainda mais. Pois “Deus, sendo o criador do homem e da mulher, seria insultado por aqueles que não se contentam com o sexo de nascimento”. Transformá-lo seria pecado? Seria uma heresia ou uma ofensa? Para muitos religiosos, seria sim. Por esse motivo atribuem o ‘pecado’ àqueles que se identificam com sua sexualidade de forma distinta da maioria. Figura 3 – Adão e Eva de Ticiano Fonte: iStock/Getty Images Analisando as sociedades antigas, o homem sempre esteve ligado às atividades que lhe exigiam força, coragem, velocidade etc.; assim eram os caçadores das tri- bos primitivas que defendiam seus iguais partindo para a guerra contra os inimigos. Em contrapartida, as mulheres ficavam responsáveis pelas tarefas ligadas à casa, aos filhos, a plantar, colher, limpar, organizar, cozinhar etc. Ou seja, às mulheres se atribuíam características menos agressivas e mais dóceis. Esses estudos antropológicos, históricos, sociológicos etc. definem através da literatura os papéis atribuídos aos homens e às mulheres na vida em grupo e, à me- dida que estes grupos evoluem, essas tarefas são adaptadas às mudanças, porém, os papéis permaneceriam os mesmos – naturalmente haveria uma predisposição àquilo que é papel do homem e o que é papel da mulher. Essa visão estreita sobre o gênero é grande causadora de preconceitos e discriminação nos tempos de hoje, uma vez que há uma ideia de punição, ainda que subjetiva, para aqueles que dese- jarem fugir às regras. 11 UNIDADE Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia Cada indivíduo, desde a sua formação nos primeiros dias de vida, recebe uma carga de normas, regras e aprendizados que serão interiorizados progressiva- mente, na maioria das vezes atendendo às expectativas sociais sobre o seu sexo e comportamento. Imagem disponível em: https://goo.gl/gkPPXV Ex pl or As sanções a que estão expostos meninos e meninas são formas educativas sobre como aprender a ser um menino ou uma menina. Por exemplo, é comum ouvirmos no recinto familiar as seguintes frases: ‘Meninos não choram’. ‘Meninos não brincam com bonecas’. ‘Meninas ajudam as mães em casa’. Esta aprendizagem exige o desempenho de papéis específicos para atender a um ‘regulamento’ social. Segundo Anthony Giddens: Se um indivíduo desenvolve práticas de gênero que não correspondem ao seu sexo biológico – isto é, comportamentos desviantes – procura-se a explicação numa socialização inadequada ou irregular. Segundo esta perspectiva funcionalista, os agentes de socialização contribuem para a manutenção da ordem social ao supervisionar a socialização natural do gênero nas novas gerações. (2004, pg. 110) É importante lembrar que as pessoas são agentes ativos que modificam e criam papéis para si mesmas. Ainda que a família, a escola, os amigos sejam profundos influenciadores dos papéis desempenhados na sociedade por meninos e meninas, homens e mulheres, há que se registrar que uma série de outros fatores subjetivos também interfere na construção de uma identidade de gênero. Muitas vezes, um brinquedo inocente, as cores das roupas, a programação na TV, no cinema, as propagandas, a literatura etc. despejam na sociedade de massa uma série de regras e padrões de comportamento que orientam, no desempenho cotidiano, a reprodução dos papéis feminino e masculino. Sendo assim, o próprio corpo está sujeito às forças sociais que o moldam, alte- ram e transformam constantemente. É possível, no decorrer da vida, que sejam atribuídos aos nossos corpos, novos significados que desafiam o que é ‘natural’. Os indivíduos poderão optar por re- construir e reconfigurar seus corpos conforme a sua vontade. Há os que buscam tratamentos hormonais, cirurgias plásticas, operações de sexo de acordo com a escolha pessoal. 12 13 Há que se lembrar de que a ciência contribui para isso. Os avanços tecnoló- gicos e científicos relacionados a cirurgias e tratamentos hormonais cresceram e avançaram surpreendentemente nos últimos tempos, assim como a adaptação da legislação para mudança de sexo e de documentos também ocorrem em diversas partes do mundo. Figura 4 Fonte: Getty Images O tratamento dado sob a perspectiva histórica, ou seja, analisando o papel de- sempenhado pelas mulheres e pelos homens em sociedades primitivas, bem como a comparação com as sociedades modernas, tiveram a divisão do trabalho como foco específico. Essa análise se acentuou com a entrada da mulher no trabalho assalariado ofer- tado pela indústria no século XX, discorrendo – os cientistas sociais – sobre a de- sigualdade de funções e salário que ocupam os estudiosos até os dias de hoje. Tais desigualdades permanecem e são diferenciadas em cada país e em cada cultura. Portanto, a desigualdade de gênero oferece um importante panorama de estudo, no qual se debruçam progressivamente os pesquisadores. Não se pode deixar de mencionar também o papel de submissão que foi re- legado às mulheres nas sociedades ocidentais e orientais, principalmente dentro de casa. O Gênero e a Questão de Raça e Etnia Pontuamos que a questão de gênero é bastante complexa, uma vez que não se limita só às identidades construídas em torno de ser e sentir-se homem ou mulher. Há sujeitos, por exemplo, que se sentem homem e mulher ao mesmo tempo, há os que não querem se classificar em nenhum gênero, e há as desigualdades de gênero que se acentuam pela cor da pele e pela classe social. 13 UNIDADE Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia Ser uma mulher branca é igual a ser uma mulher negra? Ser um homosse- xual branco de classe média é o mesmo que ser um homossexual negro e de origem humilde? Tomemos como exemplo para uma breve reflexão o caso da mulher em linhas gerais. A mulher, durante muito tempo não teve direitos de cidadã, e lhe restava o cuidado do lar, a reprodução e o cuidado com os filhos. Trabalho doméstico relegado à mulher – https://bit.ly/2H0D2Yk Ex pl or Obviamente que estamos falando da mulher com o estereótipo de dona de casa, branca, casada, regente de uma família, educada, prendada etc.; o que diferencia muito das condições, e não poderíamos deixar de fora aqui, da mulher negra, po- bre, escrava ou não, trabalhando desde sempre para servir o seu senhor e mais tarde o seu marido ou companheiro. Na maioria das vezes, vivendo em condições precárias, com numerosos filhos e casada informalmente, a mulher negra dividia a casa com outras famílias. A essas mulheres sobravam, ou melhor, não faltavam os trabalhos de lavadeira, cozinheira, empregadas domésticas, quituteiras etc. Figura 5 − Mulher negra e criança trabalhando no século XIX Fonte: Marc Ferrez, 1875 Também, se imaginarmos o panorama da construção da sociedade brasileira, as largas diferenças entre homens e mulheres e seu papel desempenhado socialmen- te, a mulher índia não era igual ao homem índio, assim como a mulher imigrante não viveu em condições de igualdade com seus pares. Aliás, longe disso. Vejamos algumas imagens do trabalho feminino de mulheres índias e imigrantes no Brasil: 14 15 Índias tupinambás trabalhando com o barro e a palha para produzir utensílios domésticos https://goo.gl/RFhh9v Mulheres e crianças trabalhando na lavoura do café no início do século XX no Brasil https://goo.gl/szQD6n Ex pl or Contudo, quando refletimos acerca do trabalho da mulher e o quanto este se diferencia do trabalho masculino, é preciso discutir o seguinte: de que mulher estamos falando? Pois, em cada grupo social, etnia, classe econômica, idade e lugar, o trabalho – visto pelo viés da desigualdade de gênero – deve ser estudado a partir de suas especificidades. Mas, quando surgiu a ideia de distinção entre as raças? É preciso problematizar para compreender melhor o que aqui propomos. A ideia de que tipos humanos distintospoderiam ser divididos em raças pro- vém da Biologia. Especialmente, em 1859, as publicações se baseavam nas teses de Charles Darwin, cuja célebre obra “Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida” (On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life), deu origem ao darwinismo social e a transferência das ciências naturais para as ciências humanas deu origem à teoria evolucionista das espécies. As diferenças biotípicas que foram estudadas no gênero animal possibilitariam distinguir raças, nesses termos, mais ou menos aptas à própria sobrevivência. A ideia rácica nasceu estimulada pelo pensamento darwinista de um universo valorativo, distinguindo entre mais ou menos aptas as raças tidas, então, como superiores e inferiores. Feminilidades e Masculinidades no Estudo de Gênero Sendo as feministas as primeiras a se ocuparem com a desigualdade e subordi- nação das mulheres em relação aos homens, os estudos sociais se iniciam a partir de tais problemáticas. No entanto, com o avanço da própria sociologia e das ciên- cias, bem como as transformações sociais, outras questões relacionadas ao gênero surgiram e estão presentes nas discussões em ciências humanas e sociais nos dias de hoje. Vejamos algumas. Com relação à masculinidade, construiu-se a ideia de que analisá-la seria pouco interessante, uma vez que a experiência de ser homem seria relativamente simples 15 UNIDADE Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia e sem problemas. Os sociólogos se interessaram mais, de início, em estudar a opressão dos homens contra as mulheres. No final dos anos 1960, com os movimentos sociais proliferados pelas cha- madas ‘minorias’, outras possibilidades de pensar a questão de gênero foram progressivamente se tornando relevantes. Uma delas seria a masculinidade em crise, quando a mulher se estabelece no mercado de trabalho, e começa a con- quistar independência financeira acompanhada de reformulações legislativas que lhe deram direitos. Outra forma de pensar o gênero é discutir a masculinidade e sua hierarquia, ou seja, ‘haveria homens mais homens que outros?’ A masculinidade homossexual entra em pauta nos anos 1960 e até hoje perma- nece como foco de estudo e desperta interesse dos pesquisadores. Neste sentido, podemos dizer que existe uma ordem de gênero hierarquizada endo- genamente, como podemos verificar no esquema apresentado por Anthony Giddens: Masculinidade cúmplice Masculinidades subordinadas Masculinidade homossexual Feminilidades subordinadas Feminilidade enfática Feminilidade Resistente Hieararquia de Gênero Masculinidade hegemônica Mais poder Menos poder Figura 6 – Esquema de GIDDESNS Fonte: Adaptado de iStock/Getty Images Recorreremos a Giddens, pois o sociólogo aponta existirem muitas expressões diferentes de masculinidade e feminilidade. No topo da hierarquia apresentada pelo autor, encontra-se a masculinidade hegemônica. Ou seja, o domínio de um tipo de masculinidade sobre todos os outros gêneros. À masculinidade hegemônica estão vinculados elementos criadores de uma imagem de homem que deveria ser reproduzida por todos os outros. A este homem 16 17 agregam-se características como coragem, virilidade, força, resistência, porte físico, segurança etc. Esse seria o ‘tipo ideal’ de representatividade masculina hegemônica, um exemplo a ser seguido e reproduzido por todos os outros homens. Essa imagem a que nos referimos é ainda mais estimulada pelos veículos de comunicação de massa. Já reparou como uma propaganda, por exemplo, veicula um anúncio de um novo modelo de automóvel? Ou uma propaganda de cigarros e bebidas? Em gran- de parte delas, o ‘tipo ideal’ de homem másculo é apresentado. Na verdade, no contexto social real, são poucos os homens que se adequam ao ‘tipo ideal’ masculino. Aos que, ainda assim, reproduzem a imagem acima, Giddens chama de masculinidade cúmplice. Ou seja, a herança patriarcal, que os homens re- produzem subjetivamente, reforça a imagem masculina, ainda que em nada pareçam com o que foi descrito acima. Já o homossexual, na hierarquia de gênero, é considerado o oposto do ‘verda- deiro’ homem, pois assume características rejeitadas pela masculinidade hegemô- nica. A rejeição se dá pelo estigma do afeminado. Todas as formas de feminilidade estão subordinadas à masculinidade hegemônica. Vejamos, a seguir, uma breve síntese do que nos apresenta a hierarquia de Giddens: Importante! Masculinidade hegemônica: modelo de homem considerado ‘tipo ideal’ a ser seguido e admirado por todos: másculo, forte, corajoso, seguro, resistente, viril. Masculinidade cúmplice: é o comportamento masculino que segue as regras sociais de ordem patriarcal e que reproduzem o modelo masculino de ‘tipo ideal’ ainda que estejam longe de apresentar qualquer semelhança a este. Grande parte dos homens, que nada apresentam como características da masculinidade hegemônica. Masculinidade homossexual: é considerado o ‘oposto’ do verdadeiro homem. Estereotipa- do, é caracterizado como afeminado. Foi durante muito tempo tratado como uma patologia. Feminilidades subordinadas: refere-se ao ‘tipo ideal’ de mulher. Ou seja, passiva, sub- missa, educada, prendada, reprodutora, etc. Diz respeito à mulher que não se enxerga em estado de igualdade, mas sim inferior ou dependente da figura masculina. Feminilidade enfatizada: refere-se à mulher que caracteriza a feminilidade e apresenta características simbólicas. Exemplo: a mulher sensual e sexy ou a mulher dona de casa. Ambas enfatizam uma imagem de mulher que é amplamente explorada pela mídia e re- produzida socialmente. Feminilidade resistente: diz respeito às mulheres que não se submetem a normas, regras e padrões de comportamento estipuladas pela sociedade e pelos veículos de comunicação e resistem a isso tudo. Os exemplos de mulheres que não submetem seu modelo de vida aos parâmetros pré-estabelecidos são as feministas, lésbicas, bruxas, parteiras, prostitutas, celibatárias, operárias etc. Em Síntese 17 UNIDADE Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia A todas estas questões que aqui explanamos, somam-se diversas outras que de- verão despertar a curiosidade do pesquisador como: Há diferenças de gênero na exploração do trabalho infantil? Há diferenças de gênero na prostituição de homens e mulheres? Como se dá a questão de gênero de acordo com crenças e religiões? Como descrever os movimentos populares que lutam pelos direitos iguais inde- pendente do sexo? Como a legislação se adapta às necessidades atuais dos grupos que se encon- tram em estado de vulnerabilidade? Por fim, notamos que a abordagem sobre gêneros nos deixa ainda muitas per- guntas sem respostas. Neste sentido, alarga-se o campo de estudos e pesquisas nesta temática que é de fundamental importância e de grande valia para a compre- ensão da sociedade em sua complexidade. Figura 7 Fonte: iStock/Getty Images Políticas Públicas Voltadas para Questão de Gênero, Raça e Etnia Sem ignorar um passado de lutas sociais, daremos aqui um destaque às políticas públicas e sociais que vem se ampliando a partir dos anos 1980, com o final da ditadura militar no Brasil. Também, com a globalização, internet e redes sociais na década de 1990, a questão do gênero, raça e etnia vem se tornando pauta mundial no que diz respeito aos Direitos humanos e à busca de garantias para inclusão so- cial, equilíbrio nas relações de igualdade e o direito à cidadania. 18 19 Homofobia: rejeição ou aversão ao homossexual e à homossexualidade. Transgêneros: são pessoas que têm uma identidade de gênero, ou expressão de gênero diferente de seu sexo atribuído. Ex pl or Os movimentos de mulheres, negros, imigrantes e LGBT (Lésbicas, Gays, Bis- sexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) no Brasil vêm reivindicando forte- mente que os governos elaborem e atuem na construção depolíticas públicas tendo como foco o direito pleno à cidadania. Um primeiro desafio a ser enfrentado na implementação de políticas públicas e na organização geral do Estado é interferir na pretensa “neutralidade” deste como propositor e articulador de uma ação política. Ou seja, se cabe ao poder público modificar as desigualdades sociais, é preciso garantir que esta alteração também seja encarada de um ponto de vista de gênero, alterando relações de poder e o acesso a direitos em sua dimensão social e política. Para que efetivamente se concretize essa perspectiva, é fundamental transformar as condições concretas que permitam aos “desprivilegiados” reverter sua condição de desigualdade. No caso da Prefeitura do Município de São Paulo, foram criadas Secretarias que representam avanços aos direitos do cidadão, e estas secretarias fo- ram criadas para trabalhar em conjunto com as demais. Citemos alguns exemplos: • SMPM - Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres; • SMPIR - Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial; • SMDHC - Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania; • SMADS - Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Para conhecer as políticas públicas e sociais das secretarias que se ocupam da questão de gênero, raça e etnia, acessar o site da Prefeitura de São Paulo no seguinte link: https://bit.ly/2FrymrU Ex pl or As diretrizes básicas do Estado brasileiro tem como desafios centrais das políti- cas públicas e sociais implementar, prioritariamente, propostas que: 1. Possibilitem a ampliação das condições de autonomia pessoal e autos sus- tentação das mulheres, negros, imigrantes e LGBT de forma a favorecer o rompimento com os tradicionais círculos de dependência e subordinação; 2. Incidam sobre a divisão sexual do trabalho, não apenas do ponto de vista de padrões e valores, mas principalmente ampliando os equipamentos sociais, em particular aqueles que interferem no trabalho doméstico, como os relacionados à educação infantil; 19 UNIDADE Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia 3. Fortaleçam as condições para o exercício dos direitos reprodutivos, saúde e direitos sexuais, possibilitando autonomia e bem estar também neste campo; 4. É preciso, ao mesmo tempo, responder às demandas que pressionam o cotidiano das mulheres inseridas neste contexto de dominação, em parti- cular, diante da violência doméstica e sexual. E, finalmente, é preciso levar em consideração o Estado em sua dimensão educativa. Sua atuação incide sobre valores, comportamentos, relações. Por- tanto, as ações do governo não podem ser vistas como atos isolados, mas, sim, devem estar coerentes com um projeto geral de mudança, no qual a perspectiva de superação das desigualdades de gênero seja um dos seus componentes in- dispensáveis (GODINHO, 2004, p. 55-56; In: GODINHO e SILVEIRA, 2004). Se tomarmos como exemplo apenas a questão LGBT no Brasil, verificare- mos que as políticas públicas e sociais estão apenas engatinhando, visto que o Brasil é o país com maior número de agressões e atitudes homofóbicas no mun- do. A Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal divulga um balanço semestral dos dados do “Disque Direitos Humanos - DISQUE 100”. Vejamos os dados divulgados nos anos de 2014 e 2015: Tabela 1 LGBT Disque 100 - Tipo de Violação mais recorrente de LGBT Ano Discriminação Violência Psicologica Violência Física Negligência Outras Violações Total 2014 40,32% 36,44% 13,25% 3,69% 6,30% 100% 2015 53,85% 26,42% 11,54% 2,77% 5,43% 100% 2014 864 781 284 79 135 2143 2015 1596 783 342 82 161 2964 Para denunciar qualquer tipo de violação aos direitos humanos no Brasil, existe um serviço telefônico de recebimento, encaminhamento e monitoramento de denúncias de violação de direitos humanos. Figura 8 Fonte: Governo Federal do Brasil 20 21 Para se ter uma ideia, de todos os casos de homofobia letal no planeta, em 2012, 44% ocorreram no Brasil. Há um paradoxo em relação aos direitos garanti- dos pela Constituição Brasileira e como a sociedade vem tratando a diversidade de gênero de forma discriminatória. Em tempos de globalização, ainda temos muito que avançar. Importante! Nesta unidade, procuramos apresentar uma reflexão a respeito das diferenças de gênero desde a questão natural de diferença de sexos, relacionada ao corpo até as construções sociais efêmeras que oferecem amplo campo de estudos para as ciências sociais. Destaquemos aqui que o tema é bastante amplo e poderia se estender a questões rela- cionadas à prostituição, às cirurgias plásticas, ao trabalho infantil etc. No entanto, obje- tivou-se construir um pensamento básico, ainda que fundamental, sobre a importância do estudo dos gêneros, raça e etnia para o Serviço Social. Em Síntese 21 UNIDADE Culturas Globais - Identidade de Gênero, Raça e Etnia Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Leitura Desigualdades de Gênero, Raça e Etnia. (e-book) https://bit.ly/3YGM8MI Nova História das Mulheres no Brasil. (e-book) https://bit.ly/3YOlkdQ Educar Meninos e Meninas. (e-book) https://bit.ly/3I3Khv4 Vídeos Questão de Gênero –Documentário: https://youtu.be/_0fv4VZ5aiM 22 23 Referências BEAUVOIR, S. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Euro- peia do Livro, 1967. CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civi- lização Brasileira, 2004. GIDDENS, A. Sociologia. Lisboa: Fundação Caulouste Gulbenkian, 2004. GODINHO, T.; SILVEIRA, M. L. da (org.). Políticas públicas e igualdade de gênero. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, 2004, 188 p. (Cadernos da Coordenadoria Especial da Mulher, 8). 23