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Clotilde--Murakawa

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A competência linguística do lexicógrafo e a construção de 
dicionários: o caso de António de Morais Silva 
 
Clotilde de Almeida Azevedo Murakawa (CNPq)1 
 
 
 
1. Introdução 
 A Lexicografia Portuguesa nos períodos de setecentos e 
oitocentos tem em Raphael Bluteau (1638 - 1734) e António de 
Morais Silva (1755-1824) seus maiores representantes. 
 Para quem se dedica à metalexicografia portuguesa é 
imprescindível o conhecimento das obras lexicográficas produzidas 
por esses dois dicionaristas, pois elas fornecem um importante 
material sobre o estado da língua em outras épocas, em seus 
aspectos fonético, fonológico, morfológico, sintático e semântico. Para 
além disso, apresentam uma prática lexicográfica que se transmitiu 
aos dicionaristas dos séculos subsequentes. 
 A obra de Bluteau, Vocabulário Portuguez e Latino, foi publicada 
em 8 volumes de 1712 a 1721 e mais 2 volumes de suplementos em 
1727 e 1728. Já as duas primeiras edições do Diccionario da Língua 
Portugueza de Antonio de Morais Silva foram publicadas em 1789 e 
1813. Embora entre a publicação de Bluteau a as edições de Morais 
haja alguns anos de separação, é marcante a influência de Bluteau 
sobre Morais (MURAKAWA, 2006). Um dos pontos mais importantes 
que unem as duas publicações é que ambas foram construídas sobre 
corpus de referência, ou seja, ambos os autores elaboraram seus 
dicionários tendo como referência um conjunto de obras publicadas 
durante um período de quase quatro séculos .Em Bluteau encontram-
se listados 288 autores na sua quase totalidade portugueses, e 
muitos deles com mais de uma obra utilizada por Bluteau em seus 
verbetes. Este mesmo procedimento foi transmitido a Morais que 
também lista 203 autores portugueses e suas obras como fonte de 
referência para seu Diccionario. 
 Pode-se, portanto, afirmar que Bluteau inaugurou a prática 
lexicográfica baseada em corpus, procedimento adotado por seu 
sucessor, Morais. 
Para além das fontes registradas pelos dois autores, há que se 
considerar a competência linguística de ambos na construção de seus 
dicionários. 
 É neste aspecto que se centra a pesquisa que ora se apresenta, 
parcialmente. 
Numa consulta, até certo ponto exaustiva, feita na edição de 
1813, 2ª edição do Diccionario da Língua Portugueza de Antonio de 
 
1
 Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa – FCL/ UNESP /campus de 
Araraquara. 
 
Morais Silva, mais conhecido por Morais, extraiu-se um conjunto de 
unidades lexicais referentes ao cultivo, produção e comercialização da 
cana-de-açúcar. Algumas dessas unidades vêm acompanhadas da 
marca linguística indicando a área de conhecimento a que se refere a 
unidade, mas outras não possuem marca alguma e é pela definição 
que se depreende o seu referente. 
Num confronto entre a 1ª e a 2ª edições , e entre esta e o 
Vocabulário de Bluteau, constata-se que Morais usando a sua 
competência linguística e o conhecimento adquirido sobre as práticas 
do cultivo da cana-de-açúcar, sua produção e comercialização, já que 
foi proprietário de engenho de cana em Muribeca, Pernambuco, 
documentou tal conhecimento em seu dicionário. 
 Apresenta-se, portanto, neste trabalho, aspectos da obra de 
Morais que comprovam que foi sua competência linguística e não 
fontes documentais que permitiram a construção de verbetes sobre o 
cultivo da cana-de-açúcar. Para maior segurança em tal afirmação, 
verificou-se que a obra mais importante publicada no século XVIII 
sobre o assunto e que muito provavelmente Morais não teve acesso 
foi Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas, de André 
João Antonil, anagrama do nome do jesuíta italiano João Antonio 
Andreoni, publicada em 1711, mas retirada de circulação, em 
seguida, por ordem de D. João V; os exemplares que escaparam ao 
sequestro foram destruídos., restando alguns poucos exemplares, 
hoje rarirdades em bibliotecas no Brasil e Portugal. A obra de Antonil 
era de suma importância para o conhecimento da cultura e produção 
açucareira no período colonial brasileiro. Outras obras que 
mencionaram a importância da cana foram escritas nos séculos XVI e 
XVII, mas só foram publicadas no século XIX graças ao trabalho de 
historiadores. Dentre elas estão: Tratados da Terra e Gente do Brasil, 
do Pe. Fernão Cardim, escrita em 1585; Tratado Descritivo do Brasil, 
de Gabriel Soares de Sousa, escrita em 1587; e Diálogos das 
grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão, escrita em 
1618. Todas as três não foram do conhecimento de Morais. 
 Como comprovação final, consultou-se o banco de dados do 
projeto do Dicionário Histórico do Português do Brasil – séculos XVI, 
XVII e XVIII (CNPq), que reúne documentos do período colonial 
brasileiro, para confirmar que a competência linguística de Morais 
contribuiu para que seu Diccionario se enriquecesse de unidades 
léxicas referentes ao cultivo da cana-de-açúcar. 
 
Como afirma Haensch (1982, p. 443): 
 
Se es cierto que el aprovechamiento de extensos corpus (incluso 
con computadores) representa um gran progreso en la 
lexicografía, hay que admitir, no obstante, que el sistema 
individual del lexicógrafo sigue desempeñando un papel muy 
importante. 
 
 
2. Metodologia e análise dos dados. 
 De acordo com a citação acima que vem referendar a hipótese 
de que Morais teria usado de sua competência de lexicógrafo para 
registrar em seu dicionário uma nomenclatura terminológica referente 
ao cultivo, produção e comercialização da cana-de-açúcar, apresenta-
se nesta parte os procedimentos de método seguidos para que a 
hipótese pudesse ser confirmada. 
 Num primeiro momento foi feito um levantamento página por 
página , verbete por verbete nos 2 volumes do Diccionario de Morais 
na edição de 1813, reunindo um conjunto de 139 unidades lexicais . 
A este total acrescentam-se mais 62 que aparecem em outras 
entradas fazendo parte da definição lexicográfica., como por 
exemplo: na entrada cevadúra que tem como 1ª definição: “ O resto 
da ave em que se cevou a de rapina”. Na mesma entrada tem-se 
uma outra acepção: “ o barro delido em agua,, que os purgadores do 
assuçar deitão por uns tantos dias sobre o assucar barrado na cara, 
para a água se filtrar, e coar pelo barro da cara, e ir lavando-o” 
(SILVA, 1813, vol.I, p. 379). Como se pode observar na definição, 
aparece purgador de assucar, que não está registrado em purgador, 
por exemplo. .Ou ainda na entrada ajudádo, definido primeiramente 
como “part. pass. de ajudar”. Em seguida aparece a expressão 
“Estar ajudada a caldeira ou melladura, se diz pelos mestres 
d´assucar, quando lhe botarão decoada bastante, para ajudar a 
formar a grã do assucar, no caldo da canna depois de limpo na 
caldeira”. Neste exemplo, tem-se na definição da expressão mestre 
d´assucar, um sintagma que não se encontra registrado em mestre, 
como entrada. 
 Pelo procedimento acima, em muito pode-se aumentar o 
vocabulário da cana-de-açúcar, levando em consideração outras 
entradas e suas definições. 
 Foi através da leitura desses verbetes que se pôde selecionar as 
unidades, pois geralmente vêm com a marca linguística “em 
engenho”, “engenho de cana de assuçar”, ou ainda “no engenho de 
cana do Brasil”., “termo do Brasil nos engenhos”, “termo usual nos 
engenhos d´assucar”, “termo usual no Brasil. 
 Num 2º momento procedeu-se ao confronto entre a 1ª edição 
de 1789 do Morais com a 2ª de 1813, de onde foram extraídas as 
unidades. Das 139 registradas, 68 estão na 1ª edição, ou seja, 
aproximadamente 50%. Este número fez pensar que Morais poderia 
ter obtido tais unidades no Vocabulario de Bluteau (1712/1728), já 
que a 1ª edição de Morais foi por ele próprio considerada como 
sendo de Bluteau. Fez-se, então, obrigatória uma verificação das 139 
unidades em Bluteau, obtendo um total de apenas 36. Tal resultado 
mostrou que, muito embora tenha sido Bluteau o modelo 
lexicográfico de Morais, esteampliou o número de unidades lexicais. 
 Das obras mencionadas na introdução, nenhuma delas consta 
da relação de autores de Bluteau e Morais e em nenhuma das 
entradas consultadas há a indicação da fonte. Apenas Bluteau 
registra na relação de autores2 Jorge Margrave, (1942) Pison (1948) 
e Simão de Vasconcelos (2001) , autores do século XVII que fazem 
menção ao cultivo da cana-de-açúcar no Brasil. Já Morais registra 
Marcgrave no interior da entrada reespúmas nas duas edições de 
seu Diccionario, de forma idêntica, com a mesma informação 
bibliográfica refenciada em Bluteau, havendo, portanto, identidade de 
fonte. 
 Como última etapa, as 139 unidades extraídas de Morais, foram 
consultadas no banco de dados do Dicionário Histórico do Português 
do Brasil – séculos XVI, XVII e XVIII (DHPB) (CNPq) para se ter a 
confirmação de que são unidades relativas à cana-de-açúcar. Do total 
de 139, apenas 52 não constam do banco referindo-se ao cultivo da 
cana. Acrescente-se a esse dado que as obras mencionadas na 
introdução deste texto estão no banco de dados do Dicionário 
Histórico e , portanto, entraram na verificação.. 
 Para esta apresentação serão objeto de análise as 139 entradas 
que constam da edição de 1813 do Diccionario de Morais e mais 
precisamente as 52 que não constam do banco de dados do 
Dicionário Histórico do Português do Brasil e que podem vir como 
prova da hipótese levantada de que Morais registra em sua obra 
lexicográfica unidades lexicais que são resultado de sua experiência 
como dono de engenho de açúcar. 
 Dos 52 mencionados, selecionam-se alguns casos que são 
representativos da cultura e produçãodo açúcar. 3 
 Em alféloa é a definição é : Massa de mellaço em ponto forte, 
de sorte que fica muito alvo depois de manipulado. No mesmo 
verbete a expressão ser d´alfeloa, significa: melindroso, delicado. 
 
 Em bagacèiro: Pessoa que lança fóra o bagaço da cana nos 
engenhos d´assucar..Tal unidade léxica não está documentada no 
DHPB. 
 
 Em baxète: Nos engenhos de assucar, uma forma que não 
ficou cheya se diz um baxete: “fez tantos pães d´assucar e um 
baxete”. 
 
 Em bréjo, Morais registra a expressão Ir ao brejo, como frase 
vulgar e significando: ir furtar assucar das caixas nas Alfândegas. 
 
 Em bromár: Fazer asscar queimado, mel que não cria grã, ou 
que coalhado não se purga por queimado, nem lava. t. usual nos 
engenhos d´assucar.: v..g. esse mestre bromou tudo, a safra toda. 
 
2
 A 1ª edição das obras de Marcgrave, Pison e Vasconcelos datam de 1648, 1648 e 1669, respectivamente. 
3
 Os exemplos foram extraídos da edição de 1813 do Diccionario da Língua Portugueza de Morais, , 
mantendo a grafia, a acentuação e os destaques em itálico. 
Neste exemplo, muito embora o banco do DHPB registre broma, na 
locução em broma, não documenta o verbo bromar. Veja-se o 
exemplo: [...] ao mesmo tempo que sendo o assucar muito alvo na sua superficie 
da fôrma, continuava do mesmo modo athé o meyo e que para baixo hia 
desmerecendo athé ficar em broma e no fundo da fôrma se achava muitas vezes 
huma massa rala, como lama, á qual dão o nome de Tabú; [...]. LUIZ DOS SANTOS 
VILHENA (1921) [1802], CARTA QUINTA: . [A00_0407 p. 194].4 . 
 
 Em carapuça encontra-se a expressão: carapuça dos engenhos 
d´assucar: um cone bem agudo de aço, com seu nabo, que se 
embebe no aguilhão do eixo da moenda; a ponte do cone anda para 
baixo sobre o mancal. Muito embora o DHPB registre 27 ocorrências 
de carapuça no singular e 21 no plural, com o sentido de cobertura 
sobre a cabeça, em nenhum contexto há a definição apresentada 
por Morais. O documento mais antigo que registra a palavra é a carta 
de Pero Vaz de Caminha, de 1500. 
 
 Em encandilár: Fazer candil ou cande: v.g. encandilar a calda 
de assucar; faze-la qualhar em cristaes. 
 
 Em engargantár, tem-se: Engargantar a cana d´assucar; criar 
garganta, ou gomos novos e grossos perto do olho, ou folha. t.us. no 
Brasil. 
 Em esborrár: Nos Engenhos d´assucar, esborrar a caldeira; 
ferver nella o succo da canna, ou o caldo, e lançar as borras na 
escuma grossa, que transborda com a fervura, levando, decuada,, 
bota-se fogo de esborrar. 
 
 Em lavado, registra Morais a expressão Assucar lavado de 
cara, e cabucho: o que sai da casa de purgar dos engenhos 
d´assucar, todo branco desde a cara, até o fundo, ou cabucho do 
pão. 
 Em negrínho: Alféloa de melaço. 
 
 Em pão está a expressão pão de gallinha: um insecto branco, 
molle com a cabeça cor de castanha, que se cria mûito nas 
bagaceiras dos engenhos e cannaveaes do Brasil; róe a raiz das 
cannas, ,e talvez o arroz tenro. Parece-se com o pão de gallinha, ou 
esterco, que ellas lanção sobre o duro. 
 
Em paralhèiro: Nos engenhos de assucar, são as panellas, em 
que se baldeya o mellado das taxas; hoje chamão-lhes forma. 
 
 
4
 Mantidas a mesma fonte e destaques empregados na construção dos verbetes do DHPB. 
 Em porrão, Morais faz uma definição descritiva: Um vaso de 
barro longo e estreito, com seu bojo em baixo, para ter agua, ou para 
garapas, nas casas de distillação, e nelles se fermenta o mel com 
agua, que se há-de distillar.. 
 Em tòuça, tem-se a seguinte definição: Das cannas d´assucar 
o pe donde ellas nascem filhadas. 
 
3. Considerações finais 
 Muito embora o levantamento das unidades não esteja 
concluído, pois falta ainda o confronto das unidades que estão no 
interior das definições e seu possível registro no banco de dados do 
DHPB, já algumas considerações podem ser feitas: 1) todos os 139 
verbetes não estão abonados por Morais, o que leva a pensar que 
foram definidos a partir do conhecimento que tinha sobre a cana e 
os exemplos são de sua autoria; 2) Morais com relação as marcas 
linguísticas, acima mencionadas, informa que são usuais e portanto, 
do conhecimento do autor do Diccionario; 3) Morais registra o nome 
do objeto que se usava em época anterior e o que se está usando 
hoje, como no caso de parelhèiros; 4) algumas definições são 
redigidas detalhadamente, demonstrando um conhecimento do objeto 
ou do procedimento no trato da cana-de-açúcar ou de sua produção. 
 Tais considerações permitem retomar a afirmação de Haensch, 
(1982, p. 443) registrada na introdução de que o sistema individual 
do lexicógrafo continua desempenhando um importante papel na 
construção da nomenclatura de um dicionário . A experiência, o 
conhecimento do mundo e a competência linguísstica são 
fundamentais, aliados a um banco de dados bem elaborado e a uma 
teoria lexicográfica adequada. 
 
4. Referências 
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino (10 vol.) Coimbra: 
Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. 
HAENSCH, Gunther (1982).Aspectos practicos de la elaboración de 
diccionarios . IN: __HAENSCH, G. et al. La lexicografia: de la 
lingüística teórica a la lexicografia práctica. Madrid: Editorial Gredos. 
p.95-187. 
MARCGRAVE, Jorge. História Natural do Brasil. Trad. Mons. Dr. José 
Procópio de Magalhães. Edição Comemorativa do cinquentenário da 
Fundação Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo: 
Imprensa Oficila do Estado, 1942. 
PISON, Guilherme. História Natural do Brasil. Trad. Prof. Alexandre 
Correia. Edição Comemorativa do 1º cinquentenário do Museu 
Paulista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948. 
SILVA, Antonio de Morais. Diccionario da Lingua Portugueza.(2 vol) 
Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. 
SILVA, Antonio de Morais. Diccionario da Língua Portugueza (2 vol) 
Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. 
VASCONCELOS, Simão de. Notícias curiosas e necessárias das cousas 
do Brasil.Comissão Nacional para as Comemorações dos 
Descobrimentos Portugueses. Lisboa, 2001.

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