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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS CENTRO DE DESENVOLVIMENTO E PLANEJAMENTO REGIONAL Leandro Alves Silva TENSÕES E CONEXÕES: Um Estudo Sobre Multinacionais E Sistemas Nacionais De Inovação Belo Horizonte 2014 Leandro Alves Silva TENSÕES E CONEXÕES: Um Estudo Sobre Multinacionais E Sistemas Nacionais De Inovação Tese de Doutorado Tese apresentada ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, da Universidade Federal de Minas Gerais (CEDEPLAR/UFMG), como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em economia. Orientador: Prof. Eduardo da Motta e Albuquerque Coorientador: Prof. Gustavo de Britto Rocha Belo Horizonte 2014 Ficha Catalográfica S586t 2014 Silva, Leandro Alves. Tensões e conexões [manuscrito]: um estudo sobre multinacionais e sistemas nacionais de inovação / Leandro Alves Silva. – 2015. 200 f. : il., gráfs e tabs. Orientador: Eduardo da Motta Albuquerque. Coorientador: Gustavo de Britto Rocha. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional. Inclui bibliografia (f. 153 ‐162) e apêndices. 1. Empresas multinacionais – Teses. 2. Desenvolvimento econômico – Teses. 3. Economia evolucionária – Teses. I. Albuquerque, Eduardo da Motta. II. Rocha, Gustavo de Britto. III. Universidade Federal de Minas Gerais. Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional. IV Título. CDD: 338.88 Elaborada pela Biblioteca da FACE/UFMG – NMM031/2015 FOLHA DE APROVAÇÃO Candidato: Leandro Alves Silva Título da Tese: Tensões e Conexões: Um Estudo Sobre Multinacionais E Sistemas Nacionais De Inovação Tese apresentada ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, da Universidade Federal de Minas Gerais (CEDEPLAR/UFMG), como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em economia. Data: 07 de agosto de 2014 Membros da banca de avaliação: _________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo da Motta e Albuquerque (Orientador) _________________________________________________ Prof. Dr. Gustavo de Brito Rocha (Coorientador) ______________________________ Prof. Dr. Marcelo Silva Pinho ______________________________ Prof. Dr. Leonardo Costa Ribeiro ______________________________ Profª. Dr. Catari Vilela Chaves ______________________________ Profª Dr. Márcia Siqueira Rapini Para Luísa Palavras nunca serão suficientes. No entanto eu as uso na esperança de que elas possam transmitir a minha mais profunda gratidão àqueles “que roubaram um pouquinho e ajeitaram seu caminho para encostar no meu”. Ao Duda, por tudo, mas principalmente por toda paciência de anos. Ao Gustavo, pelo apoio e incentivo. Aos meus amigos de Cedeplar, “cedeplarianos” de todas as gerações. Às minhas amigas Márcia, Catari e Sara que me acompanham e incentivam desde sempre. Aos meus pais, pois sem eles eu literalmente não estaria aqui, mas também porque sempre viram em mim o melhor que eu poderia ser. Aos meus irmãos que não precisam ser mais nada e ainda assim são muito mais. A Deus, que eu sei que não se importa com a ordem dos agradecimentos. Aos meus professores, que sempre serão meus mestres. À Sahra, que muito me emprestou seus ouvidos e me deu novos amigos tão grandes quanto ela: a “turma do Morais & Cia”. A todos os meus familiares que esperavam tanto quanto eu por esse momento. À minha tia Josefa, nunca agradecerei o bastante. Ao Raul que em boa hora veio renovar sorrisos e esperanças. À Luísa, que me inspira a ser melhor todos os dias. E duplamente àqueles que não pude citar aqui, mas que agradeço também por perdoarem meu lapso. A todos, o meu sincero muito obrigado! RESUMO As empresas multinacionais têm historicamente colocado os sistemas nacionais de inovação (SNI) sob tensão. Para compreender essa tensão é preciso entender a natureza da empresa multinacional e seu papel dentro do sistema nacional de inovação. Por sua vez, dos sistemas nacionais de inovação demanda‐se mais precisão conceitual para que a firma multinacional, enquanto um de seus elementos, e sua estrutura possam ser aplicados à compreensão dessa tensão. A presente tese constitui uma tentativa de associar a análise da empresa multinacional e a análise dos sistemas nacionais de inovação, com vistas ao entendimento da influência mutua que exercem. De modo geral, a empresa multinacional aparece como dependente de contexto, seja na sua emergência (origem) ou na sua atuação (destino), enquanto o sistema nacional de inovação é assumido como o ambiente (contexto) da multinacional na origem e no destino. Dessa forma, o SNI é tomado como fonte de vantagens de propriedade para as firmas multinacionais e como vantagem locacional dos países. Os resultados centrais dessa tese são que 1) a tensão gerada pela empresa multinacional sobre o sistema nacional de inovação trona‐se endógena, na medida em que 2) a empresa multinacional emerge de um SNI particular e atua em múltiplos SNI, os quais ela conecta dentro e fora de sua hierarquia. PALAVRAS‐CHAVE: Empresa Multinacional; Sistema Nacional de Inovação; Teoria Geral dos Sistemas; Desenvolvimento Econômico; Economia Evolucionária. CLASSIFICAÇÃO JEL: F23; O33; O31; O10 ABSTRACT Multinational companies have historically placed the national innovation systems (NSI) under strain. To understand that strain is necessary to understand the nature of the multinational corporation and its role within the national innovation system. In turn, from national innovation system is expected more conceptual accuracy in order to multinational firm (while one of its elements) and the structure of system can be applied to the understanding of this tension. This thesis is an attempt to combine the analysis of multinational enterprise and analysis of national innovation systems, in order to understanding the mutual influence they exert each other. In general, the multinational company appears as dependent on context, either in its emergence (origin) or in its operations (destination), while the national innovation system is taken as the environment (context) of the multinational in the origin and destination. Thus, the NSI is assumed as a source of ownership advantages for multinational firms and as a locational advantage of countries. The central results of this thesis are that 1) the tension generated by the multinational company on the national innovation system becomes endogenous, to the extent that 2) the multinational company emerges from a particular NSI and operates in multiple national innovation systems, which it connects inside and outside its hierarchy. KEY‐WORDS: Multinational Enterprise; National Innovation System; General Systems Theory; Economic Development; Evolutionary Economics JEL CLASSIFICATION: F23; O33; O31; O10 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 4.1 Índices de Infraestrutura Científica e Tecnológica (1980) .............................. 109 Figura 4.2 Índices de Infraestrutura Científica e Tecnológica (2010) .............................. 110 Figura 4.3 Esquema da estrutura de controle para definição de subsidiárias e proprietários finais .......................................................................................... 117 Figura 4.4 Conexão entre países das GUO na Europa e Ásia Central e subsidiárias no resto do mundo ........................................................................................................121 Figura 4.5 Conexão entre países das GUO nos Estados Unidos e subsidiárias no resto do mundo ......................................................................................... 122 Figura 4.6 Conexão entre países das GUO no Japão e subsidiárias no resto do mundo 122 Figura 4.7 Conexão entre países das GUO na América Latina e Caribe e subsidiárias no resto do mundo .............................................................................................. 123 Figura 4.8 Conexão entre países das GUO na Ásia Oriental e Pacífico (sem Japão) e subsidiárias no resto do mundo ..................................................................... 123 Figura 4.9 Conexão entre países das GUO no Sul da Ásia e subsidiárias no resto do mundo ......................................................................................................................... 124 Figura 4.10 Conexão entre países das GUO no Oriente Médio e Norte da África e subsidiárias no resto do mundo ..................................................................... 124 Figura 4.11 Conexão entre países das GUO na África Subsaariana e subsidiárias no resto do mundo ............................................................................................................. 125 Figura 4.12 Conexão entre países das GUO no Canadá e Bermuda e subsidiárias no resto do mundo ............................................................................................................. 125 Figura 4.13 Índice de Expansão Global e Índice HH........................................................... 131 Figura 4.14 Índices de Associação Setorial ........................................................................ 136 Figura 4.15 Representação Geométrica das conexões ...................................................... 140 LISTA DE TABELAS Tabela 4.1 Cobertura da base Orbis em julho de 2013 .................................................... 114 Tabela 4.2 Cobertura dos dados extraídos da base Orbis na primeira fase (julho, 2013) ......................................................................................................................... 116 Tabela 4.3 Trinta maiores proprietários finais industriais extraídos da base Orbis por média de lucro e suas classificações por média de empregados e receita operacional nos anos de 2010‐12 e número de subsidiárias totais e no exterior ............................................................................................................ 119 Tabela 4.4 Distribuição dos Proprietários Finais (GUO) e Subsidiárias por origem e destino, segundo Orbis (2013) ...................................................................................... 127 Tabela 4.5 Resumo das Subsidiárias por origem e destino .............................................. 135 Tabela 4.6 Valores para ICA .............................................................................................. 141 Tabela 4.7 Coeficientes de correlação para Média de Artigos por milhão de habitantes (2008‐2010) (Aph), Média de Patentes por milhão de habitantes (2008‐ 2010) (Pph), Poder de Nó de Conexão (PNC) e Poder para Estabelecer Conexão (PEC) ................................................................................................ 145 Tabela A1 Ranking das 500 maiores empresas não financeiras da base Orbis por média de lucro, número de empregados e receita nos anos de 2010‐12 e número de subsidiárias totais e no exterior ...................................................................... 163 Tabela A2 Distribuição dos Proprietários Finais (GUO) e Subsidiárias por origem e destino, segundo Orbis (2013) ...................................................................................... 193 LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS EMN – Empresa Multinacional IB – International Business (Negócios Internacionais) IDE – Investimento Direto no Exterior MITI – Ministry of International Trade and Industry (Ministério da Indústria e Comércio Exterior do Japão) NICS ‐ North American Industry Classification System OECD ‐ Organisation for Economic Co‐operation and Development P&D – Pesquisa Desenvolvimento SNI – Sistema Nacional de Inovação TGS – Teoria Geral dos Sistemas TI – Tecnologias de Informação UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development WRI – World Investment Report SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12 2 A NATUREZA DA EMPRESA MULTINACIONAL ......................................................... 17 2.1 A emergência da moderna empresa multinacional ..................................... 17 2.2 Teorias da produção internacional .............................................................. 31 2.2.1 Controle e poder de mercado ............................................................... 32 2.2.2 O modelo do ciclo do produto .............................................................. 38 2.2.3 Custos de transação e eficiência ........................................................... 45 2.3 O Paradigma Eclético OLI ............................................................................ 60 2.4 Multinacionais de países em desenvolvimento: uma nova fase do debate .. 68 2.5 Nova agenda: um pequeno mosaico ........................................................... 74 3 CONCEITOS, RELAÇÕES E PROPOSIÇÕES PARA UMA ABORDAGEM INTEGRADA DOS SISTEMAS NACIONAIS DE INOVAÇÃO E AS EMPRESAS MULTINACIONAIS .............. 80 3.1 Os Sistemas Nacionais de Inovação Como Contexto das Empresas Multinacionais ............................................................................................ 80 3.1.1 O Conceito de Sistema Nacional de Inovação e Suas Limitações ......... 81 3.1.2 Teoria Geral dos Sistemas e o Conceito de Sistema de Inovação ........ 88 3.1.2.1 O conceito de sistema na TGS ................................................... 88 3.1.2.2 Fluxos, estoques e retroalimentação (feedbacks) ..................... 90 3.1.2.3 Limites do “sistema” ................................................................. 92 3.1.2.4 Equifinalidade e Multifinalidade ............................................... 96 3.2 A Empresa Multinacional e Seus Múltiplos Contextos ................................. 97 3.3 A Tensão Sob Tensão ................................................................................ 104 4 SISTEMAS NACIONAIS DE INOVAÇÃO E EMPRESAS MULTINACIONAIS À LUZ DE INDICADORES ....................................................................................................... 108 4.1 Comparando Sistemas Nacionais de Inovação: um quadro incompleto ..... 108 4.2 Sistemas Nacionais de Inovação e Empresas Multinacionais: um quadro mais completo ................................................................................................... 112 4.2.1 Nova fonte de informação para uma nova abordagem ..................... 112 4.2.2 Revelando as Conexões ....................................................................... 120 4.2.3 Mensurando as conexões: um ensaio ................................................. 132 5 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 147 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 153 APÊNDICE A ..................................................................................................................... 163 APÊNDICE B ..................................................................................................................... 19912 1 INTRODUÇÃO Uma parcela significativa do comércio mundial de bens e serviços é realizado intrafirmas. Apesar das dificuldades de mensuração, estima‐se que cerca de 80% do comércio global está relacionado às redes de produção de empresas multinacionais sendo que as transações intrafirmas correspondem à grande parte desse volume. (UNCTAD, 2013) Apenas para ilustrar, na última década 60% das exportações das empresas afiliadas de empresas dos Estados Unidos localizadas no exterior foram destinadas a outras empresas da mesma rede, incluindo as matrizes nos EUA. Aproximadamente a metade das exportações de produtos das afiliadas estrangeiras instaladas nos Estados Unidos destinavam‐se ao grupo controlador no exterior, enquanto cerca de 70% das importações dessas afiliadas vinham do grupo controlador. De modo geral, o consenso é de que, em termos globais, as transações intrafirmas respondam, em média, por aproximadamente 30% das exportações de um país, embora a variação entre países seja grande. (UNCTAD, 2013 p.136) Como exemplo, em 2009, 76,9% das exportações do Japão para os Estados Unidos foram intrafirmas, enquanto as exportações dos Estados Unidos para o Japão realizadas intrafirmas foram apenas 31,9% do total do comércio nesse sentido entre os dois países. Ainda, para o Brasil, no mesmo ano, o comércio intrafirmas representou 30,1% das exportações para os Estados Unidos e 21,9% das importações, enquanto que para a China esses valores foram, respectivamente 28,7% e 13,7%. (Lanz e Miroudot, 2011) O quadro acima é bastante complexo e dá pistas de um mundo cada vez mais organizado em cadeias globais de valor. Certamente, tal quadro enseja questões relativas aos padrões de comércio internacional, seus determinantes e suas transformações ao longo do tempo. Contudo, um aspecto que não pode passar desapercebido é o fato de que uma parcela significativa das relações comerciais entre os países é organizada no interior das hierarquias de firmas que controlam outras firmas espalhadas pelo mundo. Nesse contexto, o ponto central é que a forma como cada uma dessas hierarquias conecta os mercados globais segue um lógica particular da empresa multinacional que a controla e, portanto, pode imprimir certa tensão entre os interesses dos países nos quais opera e a própria firma. Mais que isso, o comércio internacional intrafirmas está associado em alguma medida ao investimento direto 13 no exterior (IDE) que deu origem ou que sustenta a rede da empresa multinacional. Dessa forma, tendo em vista que o IDE envolve não apenas a transferência de recursos financeiros mas também um amplo espectro de ativos como tecnologia, conhecimento, know‐how, recursos humanos etc, essa tensão pode ter importantes implicações sobre os planos de desenvolvimento dos países. Enquanto organiza suas atividades ao redor do mundo na busca de seus próprios objetivos de longo prazo, a empresa multinacional põe as nações em contato de uma forma menos evidente (às vezes oculta), embora parte dos efeitos desse contato possam ser observados em indicadores tradicionais de comércio exterior, como exemplificado. Porém, o impacto sobre os processos de desenvolvimento dos países vai depender a posição ocupada por cada um nas estratégias das firmas multinacionais. Para um país de destino, onde a multinacional instala suas subsidiárias, o IDE em um primeiro momento, pode complementar ou induzir esforços dos agentes locais (firmas e governos) e promover o desenvolvimento. Em um momento subsequente, as transações internacionais resultantes do IDE anterior podem reforçar os avanços anteriores ou restringir os avanços futuros. Por sua vez, o país de origem de uma multinacional pode desfrutar dos benefícios da expansão de suas firmas para múltiplos mercados, mas também está sujeito a perder vantagens competitivas a partir da imersão dessas firmas em outras economias e do contato com outras firmas. O resultado final vai depender da relação estabelecida entre os interesses do país (na origem e no destino) somado ao seu estágio de desenvolvimento e das estratégias e interesses das empresas multinacionais que o conecta aos demais países. De fato, a empresa multinacional ocupa um lugar importante no processo de desenvolvimento das nações e, portanto, é preciso entender sua natureza, desde suas origens históricas até as teorias que buscam explicar suas causas, seu comportamento, seus desdobramentos e as relações que ela desenvolve com os demais atores econômicos. Faz‐se necessário também assumir uma perspectiva de desenvolvimento e dos fatores que o promovem. É somente a partir da compreensão do que são esses elementos (empresa multinacional e desenvolvimento econômico), como eles se influenciam mutuamente e por quais canais, que se podem acessar os instrumentos adequados para, por exemplo, a formulação de uma política industrial coerente com as necessidades do estágio de desenvolvimento do país. 14 Do ponto de vista da empresa multinacional a definição do objeto requer que em alguma medida sejam respondidas questões como: o que torna uma empresa como a Walmart diferente das lojas de varejo nacionais? Qual a diferença entre a General Motors e a Toyota? O que distingui a ExxonMobil da Petrobrás ou da China Petroleum? Ou ainda, o que torna todos esses exemplos anteriores semelhantes? Foi sempre assim? Desde quando? Aqui valem as respostas óbvias e as menos óbvias. Entre as respostas óbvias pode‐se dizer que pelo fato de serem empresas diferentes, são todas diferentes. Mas talvez, seja nas semelhanças entre as empresas multinacionais que se pode compreender suas diferenças mais importantes. Por exemplo, todas essas empresas atuam em vários países diferentes dos seus países de origem e realizam atividades que podem ser diferentes em cada um deles. Mas qual é o papel que os países de origem e de destino desempenham nas atividades da empresa multinacional? Em que medida o fato de atuarem fora de seus países as tornam semelhantes às empresas com essa mesma característica em outras épocas? Dentro dos mesmos países e nos mesmos ramos de atividade, por que essas empresas e não outras se estenderam para o exterior? Quais as vantagens que dispõem ou quais as desvantagens que enfrentam? O Capítulo 2 é uma tentativa de avançar sobre questões como as colocadas acima. De fato, as empresas multinacionais que desfilam sua presença pelo mundo hoje guardam diferenças incontestáveis em relação às grandes companhias do século XV e XVI, como a British East India Company, ou com as atividades comerciais realizadas sob uma hierarquia de templos religiosos como acontecia na antiga Mesopotâmia há mais de cinco mil anos atrás. O que se entende como moderna empresa multinacional nos dias de hoje é algo muito mais complexo do que jamais foi no passado e sua emergência é um sinal de seu tempo e também de sua localização. Isso significa dizer que para entender como a moderna empresa multinacional emerge é preciso entender também quando, onde e os efeitos disso sobre as teorias que buscam explicar sua existência e comportamento. De fato, a teoria da empresa multinacional surge somente um século depois de seu objeto, o que confere à própria teoria uma característica espacial‐temporal peculiar. Quando Stephen Hymer aborda em 1960, de forma pioneira, a empresa multinacional como objeto separado do investimento no exterior e da teoria que o explicava, as multinacionais norte‐americanas já se espalhavam pelo mundo e faziam sentir sua força e seus efeitos. Certamente, foi a força dessas empresas que levou Hymer a estudá‐las e foram certamente seu efeitos que o levaram 15a propor sua teoria do desenvolvimento desigual (Hymer, 1978) sobre os impactos deletérios que elas poderiam ter no desenvolvimento de países mais atrasados. As teorias que se seguiram ao trabalho inicial de Hymer, embora menos pessimistas (ou talvez apenas alheias) em relação aos efeitos das empresas multinacionais sobre os países em desenvolvimento, deixaram escapar elementos importantes sobre a natureza dessas empresas que até hoje figuram entre as agendas de pesquisa. Parte disso talvez seja devido à visão da empresa multinacional a partir das economias mais desenvolvidas, sobretudo dos Estados Unidos. Por exemplo, Hymer (1960 [1976]) que já intuía um movimento mais amplo de integração da economia mundial, certamente não teria imaginado um cenário em que empresas multinacionais originadas em países ainda em desenvolvimento pudessem assumir algum grau de protagonismo na economia mundial e fazer frente às empresas do bloco desenvolvido. A onda de expansão internacional dessas empresas vem alimentando o debate teórico atual. Enquanto teorias macroeconômicas da atividade multinacional – como a teoria do ciclo de vida do produto (Vernon, 1966) – concentravam a atenção no produto em detrimento da firma, e teorias microeconômicas – como a da internalização/custos de transação (Buckley e Casson, 1976) – mantinham o foco na eficiência econômica da multinacional sem preocupação com as estratégias de sobrevivência das firmas, os países em desenvolvimento (frequentemente denominados países de terceiro mundo) construíram seu próprio caminho para lançar suas empresas ao exterior. Talvez, a teoria (paradigma) eclética de Dunning (1977) seja a abordagem com maior potencial para avançar uma explicação coerente, tanto para multinacionais de países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. O paradigma eclético incorpora elementos teóricos presentes em Hymer, no modelo do ciclo do produto e na teoria da internalização e sua natureza holística e flexibilidade o permitem evoluir para incorporar novos elementos para tratar novos problemas concernentes à produção internacional. A característica mais promissora do paradigma eclético nessa nova fase do debate é, provavelmente, o reconhecimento e a importância conferida à localização. Embora fundamentalmente preocupado com a localização de destino da empresa multinacional, sua tendência evolutiva pode tornar mais fácil considerar formalmente a localização de origem e, daí, aplicar‐se às multinacionais de 16 países em desenvolvimento. Mas para isso será necessário o uso dos elementos e instrumentos adequados. O que, então, escapou ou vem escapando à teoria estabelecida da empresa multinacional? Parte da resposta pode estar na própria agenda de pesquisa de seus estudiosos. O Capítulo 3, por sua vez, é uma tentativa de contribuir com a outra parte. Ali a empresa multinacional é vista como emergindo em um sistema nacional de inovação (SNI) e estendendo‐se para outros. O conceito de sistema nacional de inovação tem raízes na abordagem neo‐ schumpeteriana (Freeman, 1982, 1987; Lundvall, 1992, Nelson, 1993) e, por isso, oferece ao estudo da firma multinacional uma perspectiva evolutiva por definição. Desse ponto de vista é possível trabalhar com todos os elementos importantes que compõem o ambiente externo a firma, como instituições, governo, concorrentes, fornecedores e clientes etc, bem como a interação entre eles e a forma como eles afetam e são afetados pelas atividades da empresa multinacional. A abordagem dos sistemas de inovação oferece importantes lições sobre elementos referentes à capacidade inovativa das firmas nacionais e suas possibilidades de financiamento, às relações entre as empresas e as universidades e institutos de pesquisa, à formação de pessoal qualificado e sua utilização na indústria, à capacidade de absorção das tecnologias e das práticas das multinacionais por parte das firmas nacionais etc. Porém, mesmo com um amplo repertório recomendações para o desenvolvimento industrial e econômico, dificilmente a abordagem dos sistemas nacionais de inovação poderia vislumbrar um quadro completo. De fato, a atuação da empresa multinacional tem sido um desafio a essa linha de pensamento teórico desde suas formulações iniciais. Nelson e Rosenberg (1993), por exemplo, desde o início mostraram consciência da tensão promovida pela firma multinacional sobre a dimensão “nacional” do SNI, de tal forma que chegaram a indagar sobre a validade dessa denominação desde muito cedo, e a buscar os elementos que permitem, de forma acertada, demonstrar a importância do aspecto nacional na elaboração dos sistemas de inovação. Mesmo estando preservada a importância da dimensão “nacional” do SNI a tensão exercida pela empresa multinacional é permanente e crescente, na medida em que o processo de globalização avança. Certamente a fonte desse incomodo é a ausência na abordagem dos SNI 17 de uma teoria da firma multinacional que dê conta da sua emergência, seus motivos e estratégias de internacionalização. Com isso, os estudos dos sistemas nacionais de inovação poderiam compreender como a hierarquia da firma multinacional conecta diversos sistemas nacionais de inovação e, a partir daí, quais são as implicações dessa conexão em termos da própria evolução dos SNI, na origem e no destino dessas firmas. Tais conexões, contudo, devem ser passíveis de observação e acompanhamento. Em outras palavras, se tais conexões existem e são importantes, elas ou seus efeitos, devem de alguma forma, ser mensuradas e avaliadas. A partir da percepção de que a empresa multinacional e o sistema de inovação se influenciam mutuamente, o Capítulo 4 dessa tese propõe algumas formas de abordá‐las empiricamente. Isso, por sua vez, levanta questões sobre quais indicadores e bases de dados são adequadas ao tratamento da tensão entre sistema nacional de inovação e empresa multinacional, bem como sobre a influência do SNI na emergência da firma multinacional. Em termos de estrutura, portanto, essa tese conta com mais quatro capítulos além dessa introdução. No Capítulo 2 são apresentados alguns elementos históricos sobre a emergência de moderna empresa multinacional, bem como das principais teorias que buscam explicar sua existência e suas atividades, para então destacar os pontos ainda em aberto nas agendas de pesquisa e que suscitam a oportunidade para a abordagem proposta aqui. O Capítulo 3 parte das constatações do capítulo anterior para propor um conjunto de adequações ao conceito de sistema nacional de inovação que viabilize seu uso mais preciso, em conjunto com elementos das teorias da empresa multinacional, e que permita incorporar a tensão entre os dois objetos dentro da própria abordagem dos SNI. O Capítulo 4, a seu turno, constitui uma tentativa de demonstrar a relação entre os sistemas nacionais de inovação e a emergência da empresa multinacional, bem como mensurar as conexões entre os sistemas nacionais de inovação e a tensão provocada por elas. O Capítulo 5 conclui essa tese a partir dos achados e proposições dos capítulos anteriores e oferece uma agenda de pesquisa em acordo com uma abordagem articulada entre os sistemas nacionais de inovação e as teorias da empresa multinacional. 17 2 A NATUREZA DA EMPRESA MULTINACIONAL A elaboração teórica sobre a moderna empresa multinacional só teve início quase um século, uma depressão e duas guerras mundiais depois da primeira empresa dos Estados Unidos ter iniciado suas operações internacionais. Quando Hymer (1960), de forma pioneira, elabora sua tese sobre a operação internacional das firmas nacionais,o pensamento econômico até aquele momento tratava o investimento direto no exterior como um fenômeno puramente financeiro. O contexto era o da economia norte americana e da operação das empresas norte americanas, o que sem dúvida refletiu‐se nas construções teóricas sobre o tema desde então. Contudo, as origens dos empreendimentos interfronteiras são muito mais remotas do que as teorias que buscam explica‐los, e o contexto muito mais complexo do que o pensamento econômico costuma supor. Neste capítulo são abordadas as origens da moderna empresa multinacional e o contexto do seu surgimento. Além disso, são apresentadas as principais teorias que buscam explicar sua natureza e seu desenvolvimento dessa empresa ao longo do tempo, bem como a evolução da própria teoria e os debates mais recentes. 2.1 A emergência da moderna empresa multinacional Muitas são as variações da definição de “empresa multinacional” que podem ser encontradas na literatura produzida desde os anos de 1960. Os termos “firma”, “companhia”, “corporação” e “negócios” têm sido usados, em muitos casos, de forma intercambiável com a palavra “empresa”, enquanto os termos “transnacional”, “internacional” e “global” alternam‐se com a palavra “multinacional”. O uso de uma denominação ou outra está relacionado, em geral, com aspectos específicos que se deseja destacar do objeto comum que tais termos ensejam. Desta forma, a expressão “empresa multinacional” deve referir‐se a um objeto que, em essência, corresponde à “companhia transnacional”, que por sua vez, guarda algumas especificidades em relação às suas variantes. 18 A questão central, porém, está no significado atribuído à expressão “empresa multinacional” que a distingue das demais empresas e que estabelece os limites do fenômeno investigado. Tal significado tem evoluído ao longo dos anos, às vezes no sentido de limitar o fenômeno ao estabelecer critérios mais restritivos – como o tamanho e o número das unidades da empresa no exterior, o número de países com unidades estabelecidas, a proporção dos ativos totais no exterior etc – e às vezes no sentido de uma abordagem mais ampla – como um sistema coordenado para a criação de valor transfronteiras cujas atividades podem ser realizadas dentro ou fora da hierarquia da empresa (Cantwell, Dunning e Lundan, 2010). Outras vezes, uma definição mais geral recebe qualificações como “moderna” – que se refere às empresas que inspiraram as teorias desenvolvidas desde a década de 1960 até a atualidade – ou “mercantil” – que denota um tipo específico de “companhias multinacionais” que intermediam o comércio entre países e possuem ativos em mais de um país (Jones, 2000). Para uma investigação histórica da “empresa multinacional”, a definição geral proposta por Wilkins (2005, p. 46) como aquela que se estende para além das fronteiras, internaliza negócios em duas ou mais localidades e que estão sob diferentes soberanias, permite rastrear as origens da “atividade multinacional” até um passado anterior à existência dos estados‐ nações. De fato, os primeiros exemplos de “empresas multinacionais embrionárias” podem ser encontrados nas atividades de colonização empreendidas por Fenícios, Romanos e civilizações mais antigas do Oriente Médio e Oriente Próximo, China e, possivelmente, América Latina. (Dunning e Lundan, 2008 p. 145) Os primeiros indícios de atividades ou estratégias “multinacionais” podem ser encontrados, portanto, no mundo antigo. Moore e Lewis (2009) identificam uma economia mista, orientada para o templo religioso, fundada na agricultura de subsistência e no pagamento de tributos (para o templo) na região da Suméria por volta do ano 3.500 a.C. Os templos religiosos haviam se tornado o centro das primeiras cidades de Uruk e Eridu e seus sacerdotes comercializavam tecidos e grãos para obter, principalmente, cobre e pedras preciosas. O crescimento demográfico na Suméria nos quatro séculos seguintes abriu novas áreas para colonização ao longo dos rios Tigris e Eufrates, bem como para novos postos de trabalho em engenharia, burocracia, gestão e carpintaria. (Moore e Lewis, 2009 p. 23) No período de 3.400 a 3.200 a.C. os sacerdotes de Uruk comandavam postos de comércio por todo oeste do Iran e em outras localidades estratégicas como Carquemis (Carchemish), importante junção de rotas de 19 transporte por água e terra. Os laços entre os postos comerciais de Uruk e do Iran constituíram os primeiros movimentos ainda hesitantes para o surgimento da “empresa multinacional”. Em tais postos (templos) podia‐se encontrar a internalização de operações e gestão a partir do exterior, bem como estabelecimentos em território estrangeiro em busca de recursos naturais e, às vezes, mercado. Uruk controlava toda a rede de comércio que cruzava os territórios da Síria, Iraque e Iran. Contudo, não havia a propriedade privada destas atividades nem a busca por lucro ou a agregação de valor no exterior, o que levou Moore e Lewis a classificá‐las como “proto‐multinacionais” (Moore e Lewis, 2009 p. 25) Mais de um milênio depois do surgimento de Uruk e mil anos antes de seus exércitos aterrorizarem o mundo antigo, formou‐se o antigo reino Assírio do período médio da era do bronze, por volta de 2.000 a 1.750 a.C. (Moore e Lewis, 2009 p. 63) Famílias Assírias fundaram colônias comerciais na Babilônia, Aram (Síria) e Anatólia num tempo em que o consumo de comida, tecidos, cobre e estanho dependiam de vigorosa importação. Sem as condições requeridas para a conquista pela guerra, os Assírios recorreram à técnica utilizada em Uruk de estabelecer postos permanentes (templos) no exterior para lidar com a dependência de importações, porém adaptando‐a na forma de investimentos privados. Desta forma, os Assírios obtiveram permissão legal para estabelecer um kāru (porto) em Anatólia e outras regiões, o que garantiu aos comerciantes da Assíria o acesso a minas de cobre e estanho. Outro kāru foi estabelecido em Sipar (Acadiana) e garantiu que o comércio de roupas e alimentos permanecesse, tanto quanto possível, em poder dos Assírios. A estrutura era hierarquizada pelos laços de família dos kārum (portos) e constitui o primeiro negócio estabelecido transfronteiras de que se tem registo. (Moore e Lewis, 2009 p. 65) Depois do ano 930 a.C., a economia e a religião encontravam‐se intrinsicamente conectados, de tal forma que o sucesso nos negócios rendiam agradecimentos aos deuses enquanto o medo desses mesmos deuses impunha honestidade nos negócios que eram abençoados e realizados nos templos. Havia uma hierarquia dos templos. Os Fenícios estendiam seus templos a várias cidades e os organizavam para que santuários locais reportassem‐se aos grandes centros. Desta forma, as transações e transferências de produtos e capitais eram realizadas dentro de uma rede de templos semelhantes, o que facilitava a coesão de mercado e representava a internalização do comércio a longas distâncias. Essa rede de templos 20 hierarquizados com sua coerência de crenças e práticas constitui um paralelo com as redes multinacionais do futuro. (Moore e Lewis, 2009 p. 100‐103) O período que separa a história dos “negócios internacionais” no mundo antigo, conforme Moore e Lewis (2009), e aqueles da Europa medieval é marcado por um misto de progresso com profundas descontinuidades. Certamente, empresas engajaram‐se na intermediação comercial transfronteiras desde a Ásia e Oriente Médio durante o período anterior à idade média e revelaram possuir algum tipo de semelhança com as “modernas multinacionais” sem, contudo, apresentar qualquer continuidade em tais “negóciosinternacionais” tal qual aquelas que marcaram a Europa medieval. (Wilkins, 2005, p. 47) No início da idade média o comércio marítimo e terrestre na Europa era dominado por certos arranjos entre investidores e agentes comerciais. Os investidores confiavam capitais ou mercadorias aos agentes que as comercializavam e remuneravam os investidores com lucros sobre o principal. Essas atividades, muitas vezes, envolviam transações para além das fronteiras nacionais e as partes envolvidas, em geral, compartilhavam de confiança mútua e culturas semelhantes, o que reduzia os requerimentos de regras e procedimentos formais característicos de transações impessoais. Dunning e Lundan (2008) atribuem a identificação de tais arranjos, denominados de “Commenda” a North (1981, 1985). Nesse mesmo período, um grande número de empresas mercantis sediadas em várias partes da Europa mantinham escritórios de representação nas principais cidades do continente. Essas empresas foram, segundo Dunning e Lundan (2008, p. 146), as precursoras dos “capitalistas mercantis” dos séculos XVI e XVII. Diversos trabalhos têm destacado as atividades dos bancos italianos nos séculos XIII, XIV e XV (Wilkins, 2005, 2009; Ietto‐Gillies, 2005; Jones, 2005, 2000). Dunning e Lundan (2008) apontam que várias dinastias de banqueiros italianos, operavam unidades na Inglaterra, Bélgica e França ao final do século XIV, quando cerca de 150 bancos italianos mantinham operações “multinacionais”. O final do século XV e início do XVI foi o período das grandes navegações de Cristóvão Colombo, Vasco da Gama, Bartolomeu Dias, entre outros, na busca por riquezas e novas rotas comerciais. Nesse período, era mais rápido e mais barato, na maioria das vezes, realizar o comércio por rotas marítimas do que por terrestres, o que impulsionou o desenvolvimento 21 dos setores exportadores mais do que os de mercadorias para consumo doméstico. As transações seguiam a lógica do sistema colonial, eram hierarquizadas ou personalizadas, e os investimentos além‐mar objetivavam interesses políticos ou estratégicos dos governos que os financiavam, inteira ou parcialmente, por intermédio de companhias, comerciantes ou grupos familiares. O mais importante, porém, é que uma vez que o comércio era realizado entre a metrópole e a colônia as transações internas e transforinteiriças eram organicamente relacionadas umas às outras, existindo pouca ou nenhuma distinção entre elas. (Dunning e Lundan, 2008 p. 146) Em meio às melhorias nas comunicações intercontinentais e a expansão do comércio ultramar envolvendo cada vez mais novas culturas e instituições, as relações entre as parte tornou‐se mais formal e documentada. (Dunning e Lundan, 2008 p. 148) As principais companhias envolvidas em “atividades de colonização” eram formadas ou financiadas pelo estado para levar a cabo seus objetivos políticos e econômicos. Companhias como British East India Company, Dutch East India Company, Muscovy Company, Royal African Company e Hudson’s Bay Company eram as mais conhecidas (Dunning e Lundan, 2008; Wilkins, 2005) e podem ser caracterizadas, segundo a definição de Jones (2000), como “multinacionais mercantis”. Não obstante a trajetória histórica das “atividades multinacionais” e o sentimento de progresso desde o mundo antigo, Wilkins (2005 p. 16‐17) reconhece a “moderna empresa multinacional” como um fenômeno característico da segunda metade do século XIX quando empresas industriais estenderam a si mesmas, como empresas, em atividades de comercialização e/ou fabricação de seus próprios produtos para além das fronteiras de seu país de origem. Como um fenômeno pós‐revolução industrial sua origem, segundo Hymer (1978), não está naquelas grandes companhias comerciais do auge do período colonial, mas na empresa moderna, multidepartamental e multidivisional. A principal característica desse novo tipo de empresa é sua estrutura organizacional que possibilitava a divisão horizontal do trabalho ao mesmo tempo em que requer um sistema vertical do controle para integrar e coordenar os diversos departamentos e divisões. (Hymer, 1978 p. 44) Essa nova estrutura, de acordo com Chandler (1962), foi uma resposta às mudanças nas estratégias de verticalização (expansão em novos tipos de funções) e diversificação (desenvolvimento de novos produtos ou expansão territorial) das empresas. Por sua vez, as estratégias respondiam às necessidades 22 e oportunidades apresentadas pelo crescimento demográfico, o aumento da renda nacional e o progresso tecnológico. A moderna empresa industrial e sua característica estrutura organizacional desenvolveu‐se em grau mais elevado nos Estados Unidos. (Hymer, 1978) Diferente da empresa americana tradicional (marshalliana) que tinha uma única função econômica, operava uma única unidade em uma única localidade e era controlada por um único (ou pequeno grupo de) proprietário(s), a empresa moderna possui múltiplas unidades em diferentes localidades e realiza diferentes tipos de atividades econômicas com diferentes linhas de produtos e serviços (Chandler, 1977 p. 3). Além disso, o que é mais importante, a empresa moderna apresenta uma estrutura organizacional hierarquizada em que gestores em níveis mais altos, a partir de escritórios centrais, monitoram e coordenam as atividades realizadas nas diversas unidades comandadas por gestores intermediários. Na empresa moderna, na medida em que executivos assalariados, ocupando os altos escalões, coordenam e monitoram executivos intermediários também assalariados, a administração da empresa torna‐se uma carreira cada vez mais técnica e profissional e separada da sua propriedade. (Chandler, 1977) Tal tipo de organização, inexistente antes de 1840, foi o que permitiu a internalização de várias unidades de negócios dentro de uma única empresa e consequentes ganhos de produtividade, custos mais baixos e lucros mais altos em relação à coordenação pelos mecanismos de mercado. (Chandler, 1977 p. 6‐7) A trajetória que levou à substituição da empresa tradicional pela moderna como forma predominante nas atividades industriais nos Estados Unidos ao final do século XIX pode ser traçada a partir de três pontos fundamentais. O primeiro ponto corresponde às transformações ocorridas na esfera da produção. O aumento da produção e disponibilidade de carvão antracito a partir de 1830 seguido da redução nos preços permitiu que esse combustível passasse a ser amplamente utilizado para fins industriais, o que levou à subsequente expansão da produção metalúrgica. A oferta de ferro e carvão baratos gerou tanto um aumento na produção de ferramentas quanto permitiu, pela primeira vez, que a fabricação e montagem de partes intercambiáveis de produtos de metal se difundissem. Mais tarde, nas décadas de 1840 e 1850, a tecnologia de partes intercambiáveis deu origem a máquinas inovadoras (como as máquinas de costura e as ceifadeiras, por exemplo) enquanto a demanda por maquinaria especializada nas unidades fabris resultou no aparecimento da 23 indústria de máquinas‐ferramentas. Além disso, o carvão antracito tornou‐se um combustível eficiente e barato na geração de energia a vapor, o que possibilitou que grandes fábricas fossem instaladas próximas aos mercados consumidores e de oferta de mão de obra. Antes do aumento da escala e a difusão da fábrica como unidade básica em muitas indústrias, o volume de produção alcançado não exigia a criação de subunidades das empresas nem a contratação de administradores assalariados para coordenar e monitorar essas subunidades. (Chandler, 1977 p. 50‐78) O segundo ponto refere‐se às transformações no âmbito dostransportes e das comunicações. As primeiras ferrovias entraram em operação na década de 1830 ligando os centros comerciais existentes e suplementando a rede de transporte hidroviário, mas sem alterar profundamente as rotas e as formas de transporte. Quando a locomotiva a vapor substituiu o carro puxado por cavalos questões de segurança impuseram que as operações fossem controladas e coordenadas a partir de uma sede única. Foi somente a partir da metade dos anos de 1840 que as transformações significativas começaram. A tecnologia de transporte ferroviário foi rapidamente aperfeiçoada a partir da uniformização dos métodos de construção, da padronização dos trilhos e da composição dos vagões. Depois do boom do final dos anos 1840 e início dos de 1950, passou‐se a contar com um transporte rápido, seguro, regular em quaisquer condições climáticas tanto para produtos quanto para passageiros. Ao mesmo tempo, a nova tecnologia permitia o reparo e manutenção contínua das locomotivas, das linhas, estações e demais equipamentos. Toda essa estrutura requeria considerável organização administrativa. Eram necessários gerentes para supervisionar as operações cotidianas realizadas ao longo de uma extensa área geográfica, enquanto gestores intermediários coordenavam, monitoravam e avaliavam o trabalho desses gerentes e reportavam‐se a executivos superiores. A primeira estrutura hierárquica de administração dos Estados Unidos teve origem nas necessidades operacionais das ferrovias. Tal inovação organizacional possibilitava o aproveitamento total do contínuo progresso tecnológico do setor, o que aumentava a eficiência e produtividade das companhias ferroviárias individuais que já as utilizavam como padrão na década de 1880. (Chandler, 1977 p. 81‐121) A nova estrutura organizacional demandava uma nova estrutura de comunicação que viabilizasse a administração do volume crescente de trafego nas ferrovias de forma segura. A invenção do telégrafo teve, portanto, um grande impacto transformador ao promover a 24 comunicação quase instantânea a longas distâncias. Enquanto as ferrovias se espalhavam territorialmente seus “direitos de passagem” eram aproveitados pelas companhias de telégrafo – as quais muitas vezes eram subsidiárias das próprias ferrovias – para que se expandissem, ao mesmo tempo em que as ferrovias usavam os serviços dos telégrafos para coordenar seus fluxos de trens e tráfego. Ao final dos anos de 1850 os Estados Unidos estavam divididos em seis áreas de atuação para as seis maiores companhias de telégrafo que cooperavam para transmitir mensagens por todo país. Rapidamente essas seis empresas tornaram‐se apenas três e em 1866 essas três se fundiram em uma única companhia, a Western Union, formando a primeira empresa moderna de âmbito nacional dos Estados Unidos, cujo padrão organizacional era o mesmo adotado pelas ferrovias. (Chandler, 1977 p. 195‐203) O serviço postal e o telefone também tiveram um papel importante na emergência e difusão da forma moderna de empresa. O telefone seguiu um caminho semelhante ao trilhado pelo telegrafo. Inicialmente era utilizado para a comunicação local, mas rapidamente ganhou escala nacional e o setor tornou‐se concentrado em uma única grande empresa, a National Bell Company. O desenvolvimento das ferrovias, tanto nas tecnologias quanto na estrutura organizacional, favoreceu o uso da correspondência em longas distâncias, tornando‐a mais rápida, regular e, principalmente, barata. O crescimento do volume e da velocidade das correspondências a partir de 1847 levou à reorganização do serviço postal aos moldes do que era praticado nas ferrovias. Em 1855 tinham sido implantados cerca de cinquenta centros de distribuição, onde as correspondências eram coletadas, organizadas e enviadas aos seus destinos finais; vagões especializados eram utilizados para organizar os pacotes; as unidades de distribuição eram administradas por gestores intermediários assalariados que controlavam os procedimentos e coordenavam o fluxo por todo o país. Em 1870 o serviço postal dos Estados Unidos figurava entre os maiores e mais eficientes do mundo. (Chandler, 1977 p. 195‐ 197) O terceiro ponto diz respeito a alguns desdobramentos importantes dos dois pontos anteriores. Em primeiro lugar, o crescimento das ferrovias a partir do final dos anos de 1840 levou a um aumento sem precedentes nas necessidades de financiamento para a construção dessas mesmas ferrovias. Entre os anos de 1849 e 1854 foram construídas mais de trinta ferrovias a um custo que, em alguns casos, chegava a mais do que quatro vezes àquele 25 observado na construção de grandes ferrovias anteriores a esse período. A construção das ferrovias não podia mais ser financiada a partir dos fazendeiros, comerciantes e proprietários de manufaturas que viviam ao longo das linhas, ou mesmo pela capitação direta de recursos feita pelo presidente da companhia junto aos mercados financeiros europeus. Na medida em que os empreendimentos se multiplicavam, a oferta de recursos para financiamento diminuía e o custo do capital aumentava, de tal forma que as ferrovias tornaram‐se os primeiros negócios privados a captar recursos fora de sua própria região, concentrando a demanda no mercado de Nova York, onde o custo era relativamente mais baixo. O mercado de capitais nos Estados Unidos tornou‐se rapidamente centralizado e institucionalizado em Nova York – em virtude também da entrada de capitais europeus em busca de oportunidades de investimento – levando ao desenvolvimento de modernos instrumentos e técnicas financeiras. A emissão de títulos tornou‐se o principal instrumento para financiar a construção das ferrovias e, em decorrência da subestimação de custos, vieram na sequencia os títulos hipotecários, as debêntures e os títulos conversíveis em ações, bem como uma variedade de ações preferenciais, o que levou a bolsa de valores de Nova York a sua forma moderna. O volume de transações, que era de apenas algumas dezenas diárias em 1830, alcançava a casa do milhão quadrissemanal em meados da década de 1850, e quando da eclosão da Guerra Civil (1861‐ 1865) o distrito financeiro de Nova York já atendia às necessidades de financiamento das ferrovias e tornara‐se o maior e mais sofisticado Mercado de Capitais do mundo. O resultado importante é que, quando a indústria precisou buscar por fontes externas de financiamento as instituições para prover tais recursos estavam plenamente desenvolvidas. Nova York provia um mercado de capitais nacional mais eficiente para a indústria do que foi para as ferrovias, de tal forma que sua falta nunca representou uma restrição ao surgimento da empresa moderna. (Chandler, 1977 p. 89‐94) Em segundo lugar, as inovações organizacionais e tecnológicas ocorridas nas décadas de 1850 e 1860 tiveram impacto na produtividade e desempenho das ferrovias apenas individualmente. A construção de uma rede nacional de transporte terrestre exigiu que as companhias ferroviárias cooperassem em termos da conexão física entre as linhas; na uniformização das operações, contabilidade e procedimentos organizacionais e na padronização da tecnologia. A estrutura hierarquizada entre gestores intermediários e altos executivos foi fundamental para o sucesso da cooperação e da construção do sistema nos 26 anos de 1880. Os gestores eram os principais encarregados de aperfeiçoar a organização e coordenação interna dos fluxos entre as linhas, enquanto os executivos estabeleciam os objetivos de longo prazo, bem como as estratégiasde alocação de recursos em termos de pessoal, dinheiro e equipamentos para alcançar esses objetivos. A lógica do sistema passou a ser interterritorial, ligando centros comerciais e fontes de matérias primas em âmbito nacional, o que viabilizou, finalmente, a integração entre a produção e a distribuição em massa. Na medida em que se tornou capaz de integrar a produção e distribuição, a empresa industrial moderna pôde internalizar atividades e, consequentemente, reduzir seus custos de transação, de informação e de capital, administrando de forma mais eficiente a oferta, de acordo com a demanda, e controlando estoques. Em suas trajetórias de crescimento, seja pela integração a jusante ou a montante da produção ou pela fusão de várias pequenas unidades, as empresas construíam suas redes nacionais que exigiam cada vez mais a organização hierárquica das atividades administrativas para a coordenação dos processos de produção e distribuição integrados. (Chandler, 1977 p. 122‐286) As empresas norte‐americanas, ao tornarem‐se nacionais e providas de uma nova estrutura administrativa e de recursos financeiros significativos, aprenderam a converterem‐se em “empresas multinacionais”. (Hymer, 1978 p. 47) Contudo, a atuação nacional foi apenas um dos pré‐requisitos para a incursão em “negócios internacionais”. O segundo pré‐requisito foi, segundo Wilkins (1970, p. 35), o aumento nas velocidades de transporte e comunicação em longas distâncias. Do ponto de vista dos transportes, em meados do século XIX o percurso dos Estados Unidos à Europa em uma embarcação à vela era realizado em 21 dias, mas já em 1880 passageiros em navios à vapor podiam cruzar o Atlântico em cinco ou seis dias. Em relação às comunicações, a rede terrestre de telégrafos da Western Union Telegraph Company conectou‐ se à Europa em 1866, quando a empresa britânica Atlantic Telegraph Company instalou o primeiro cabo submarino ligando os dois continentes. Em 1881 a Western Union já estava conectada ao sistema canadense e à América Latina. Três anos mais tarde, em 1884, a empresa Comercial Cable Company (concorrente da Western Union) instalou mais dois cabos submarinos entre Estados Unidos e Europa. (Wilkins, 1970, p. 47‐48) Embora as condições estivessem dadas na década de 1880, o processo de internacionalização das “modernas empresas” norte‐americanas teve início anos antes. De fato, a primeira empresa dos Estados Unidos a desenvolver “negócios internacionais” foi a fabricante de 27 máquinas de costura I. M. Singer & Company (posteriormente denominada de Singer Manufacturing Company), fundada em 1851. A operação internacional começou em 1855 quando a empresa vendeu sua patente francesa, bem como as ferramentas e equipamentos, ao comerciante francês Charles Callebaut, que viria a não honrar o acordo recusando‐se a pagar o que havia sido contratado e a informar a quantidade de produtos vendida. Tal expediente – a venda de uma patente internacional a um negociante independente – jamais se repetiu dentro da companhia. Com uma estratégia diferente, em 1858 a Singer estabeleceu franquias junto a negociantes independentes no Rio de Janeiro, mas desta vez, para a venda de produtos produzidos nos Estados Unidos. Em 1861 já havia franquias no México, Canadá, Cuba, Curaçao, Alemanha, Venezuela, Uruguai, Peru e Porto Rico. Em Glasgow, Escócia, a empresa estabeleceu escritórios próprios, com agentes assalariados, para a venda financiada de máquinas de costura. Ainda em 1861 a partir da sede londrina a companhia iniciou a venda de produtos para a Bélgica e Espanha. A ação de imitadores concorrentes que crescia desde 1862, o que somado à dificuldade da fábrica de Nova York em atender o mercado externo – devido ao crescimento da demanda interna – e ao aumento dos custos de produção após a guerra civil, acabou levando a filial britânica a operar com prejuízo em 1867. Uma pequena unidade foi instalada em Glasgow em 1868 para montar cem máquinas de costura por semana com as partes semiacabadas vindas dos Estados Unidos. O investimento nessa primeira unidade experimental foi relativamente pequeno de tal forma que ela pudesse ser descontinuada sem grandes perdas caso não fosse bem sucedida. Contudo, o crescimento do mercado levou a instalação de uma nova unidade em Glasgow para produção em larga escala, inclusive das partes antes importadas, em 1872. Aos poucos a rede de negócios da Singer expandiu‐se também para Portugal, França, Itália, Escandinávia, Áustria‐Hungria e Rússia, com uma estrutura de marketing racionalizada e a organização das vendas seguindo o mesmo padrão utilizado no mercado doméstico. Em 1874 mais da metade das máquinas de costura produzidas pela Singer foram vendidas no exterior e a empresa havia se convencido da necessidade de manter o controle de todos os negócios internacionais. Em 1879 a companhia reorganizou suas operações colocando um “segundo homem de comando” em todos os escritórios centrais de tal forma que as atividades não fossem comprometidas por doença ou morte. Ásia, América do Sul, África e Europa Continental já integravam a rede de vendas da Singer em 1880, sendo que na China, Brasil, Filipinas e Austrália as operações contavam com empregados assalariados. Em 1882 a empresas instalou uma nova planta em Kilbowie, 28 próxima a Glasgow, que operaria com os equipamentos mais modernos e com a capacidade equivalente à maior unidade dos Estados Unidos. Pequenas fábricas também foram instaladas no Canadá e na Áustria em 1883 em virtude do aumento dos custos de importação nesses países. (Wilkins, 1970 p. 37‐45) O exemplo da I. M. Singer & Company é bastante emblemático e ajuda a entender o processo de internacionalização das empresas norte‐americanas no século XIX. De acordo Wilkins (1970, p. 45‐47), o crescimento dos “negócios internacionais” dessas empresas seguiu um “padrão evolucionário”, ainda que algumas delas possam ter saltado um ou mais estágios desse processo. O primeiro estágio do “padrão evolucionário” consistia na venda de produtos no exterior intermediada por agentes independentes, como empresas especializadas em comércio internacional – nesse estágio nenhuma parte dos “negócios internacionais” era internalizada pela empresa. No segundo estágio a empresa designava um gestor de exportação assalariado e/ou adquiria uma agência exportadora e seus contatos. No exterior, eram utilizadas agências independentes que deveriam vender os produtos por conta própria ou em consignação – apenas a parte doméstica da operação era internalizada. No estágio seguinte, eram estabelecidos representantes assalariados nos mercados de destino. Como alternativa podiam ser instalados escritórios de vendas ou distribuição ou era comprada uma agência independente no exterior. O primeiro investimento direto acontecia neste estágio. No quarto estágio, unidades de montagem ou plantas fabris eram instaladas no exterior para atender o mercado estrangeiro. Em meados dos anos de 1880 todos esses estágios podiam ser identificados na trajetória de várias empresas. Talvez um exemplo contundente da validade e importância desse padrão tenha sido oferecido alguns anos antes. Em 1878, a principal concorrente da Singer nos Estados Unidos, a empresa Wheeler & Wilson dispensou seus agente independentes e estabeleceu escritórios próprios nas principais cidades da Europa fazendo uma transição abrupta. Nos anos seguintes as vendas da Singer no mercado doméstico e no exterior superavam em muito as vendas da principal concorrente que nunca se recuperou e acabou sendo adquirida pela rival alguns anos mais tarde. (Wilkins, 1970 p. 43) No início da décadade 1890, várias empresas norte‐americanas já operavam a venda, distribuição e fabricação no exterior de produtos e serviços no setor elétrico, de telefonia, químicos, petróleo, farmacêuticos, máquinas agrícolas, elevadores, seguros, entre outros. Os motivos que levaram essas empresas a ingressarem em “atividades internacionais” tiveram 29 pouca ou nenhuma relação com a busca por matérias primas, tendo em vista a grande disponibilidade interna. Tão pouco estiveram engajadas em produzir no exterior para vender nos Estados Unidos. A maioria das empresas estava interessada, de fato, em atender a demanda nos mercados estrangeiros. (Wilkins, 1970 p. 36) O sucesso dessa jornada – que envolveu a exportação de máquinas e equipamentos, bem como de competências, Know‐how e patentes – foi resultado de uma postura engenhosa que buscava não apenas capturar a demanda externa, mas também criá‐la com a introdução de novos produtos, novos métodos de produção e novas técnicas de venda e propaganda. (Wilkins, 1970 p. 66) As empresas seguiam estratégias semelhantes às usadas no mercado doméstico. A lógica de investimento envolvia a redução dos custos de transportes e de produção, manejo de estoques, aproveitar diferenciais de câmbio e barreiras à entrada de importações. Embora a decisão de investir ou não no exterior não guardasse relação com nenhuma ação do governo dos Estados Unidos, muitos investimentos foram realizados em resposta a ação de governos estrangeiros. No setor de telefonia, por exemplo, a Bell Telephone Company of Canada iniciou a fabricação de telefones em solo canadense em 1882 porque a lei de patentes desse país exigia a produção local. (Wilkins, 1970 p. 51) A fabricação das lâmpadas incandescentes de Thomas Edison passou por situação semelhante na Alemanha, com o agravante de um forte nacionalismo e antipatia em relação a produtos importados. (Wilkins, 1970 p. 55) Com frequência as condições iniciais por ocasião dos investimentos nos exterior sofriam mudanças. As bases da estratégia das matrizes nos Estados Unidos, bem como das subsidiárias e afiliadas no exterior, sofriam alterações em função de mudanças nas políticas do próprio governo norte‐americano e, principalmente, nas condições externas dadas pelos governos estrangeiros, consumidores, concorrentes e parceiros. As empresas norte‐ americanas tinham que se adaptar às circunstâncias. Nesse sentido, uma das mudanças mais frequentes acontecia nas estratégias de comercialização. Ao instalar unidade produtiva na Grã Bretanha na década de 1880, a empresa frequentemente transferia para também a sua base comercial em razão da maior sofisticação da região nessa atividade, o que tronava sua rede mundial de comércio mais fácil de ser administrada a partir de Londres do que de Nova York. (Wilkins, 1970 p. 66) 30 A expansão internacional das empresas norte‐americanas teve um crescimento continuado a partir de 1893 até 1914. Entre 1897 e 1902 a expressão “invasão americana da Europa” tornou‐se de uso frequente. Até 1914, praticamente todo magnata da indústria proeminente nos Estados Unidos estava envolvido de alguma forma em investimentos diretos no exterior. (Wilkins, 1970 p. 70‐71, 199‐202) Contudo, é preciso reconhecer que as bases sob as quais se deu essa expansão foram estabelecidas pelas transformações e pela própria expansão ocorridas nas décadas anteriores. Os fragmentos apresentados até aqui não têm a pretensão de cobrir, mesmo que parcialmente, a história das “atividades multinacionais”. Antes, trata‐se de revisão direcionada cuja intensão é assinalar alguns pontos importantes para as seções e capítulos subsequentes. A perspectiva histórica oferece ao campo de estudo da “empresa multinacional”, segundo Wilkins (2009, p. 3‐5), a percepção de processo, mudança e desenvolvimento, bem como revela a importância do contexto e das relações entre as “empresas” e o ambiente externo. Ao acompanhar, portanto, o processo de evolução dos “empreendimentos multinacionais” desde o mundo antigo é possível estabelecer com maior precisão os limites da “multinacional moderna”. De fato, o tipo de empresa que inspirou as teorias elaboradas a partir da década de 1960 emergiu nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX e expandiu‐se para além das fronteiras no final daquele século. Dessa forma, esta tese reconhece a moderna empresa multinacional como resultado da expansão para o exterior da empresa moderna descrita por Chandler (1962, 1977). Tal reconhecimento é importante não apenas porque distingue a multinacional moderna de todas as outras formas semelhantes que a precederam, mas também porque identifica a confluência de fatores históricos que forneceu as condições necessárias para seu surgimento. O contexto sempre foi um fator importante para as atividades transfronteiras. A necessidade de matérias primas e a lógica religiosa estabeleciam seus limites e possibilidades no mundo antigo. Entre os séculos XV e início do XIX a lógica colonial ditou os contornos das transações além‐mar. No momento em que surge a empresa moderna e, na sequência, a empresa multinacional moderna a vida econômica nos Estados Unidos experimentava profundas transformações. Inovações tecnológicas na indústria em decorrência das novas fontes de 31 energia, as inovações nos transportes e nas comunicações, os novos mercados, as inovações financeiras e, principalmente, as inovações na forma de organizar os negócios e a produção são elementos importantes daquele momento histórico e tornam difícil imaginar se a empresa multinacional moderna poderia ter emergido em outra época e lugar. 2.2 Teorias da produção internacional O marco inicial das teorias da empresa multinacional como tal data de pouco mais de meio século. Buckley (2011) discute a literatura econômica anterior a 1960 sobre cartéis, imperialismo, competitividade internacional e administração internacional como teorias no campo dos negócios internacionais, mas que não receberam tal rótulo por serem fragmentadas e não constituírem um corpo teórico unificado. De fato, até essa época não havia uma distinção cuidadosa entre investimento direto e investimento de portfólio ou entre as diversas formas de operações internacionais que envolvessem ou não algum tipo de propriedade. Tal situação era ainda agravada pela dificuldade na definição do escopo analítico, seja no âmbito da firma, da nação, da economia mundial ou mesmo em termos de rede ou de gestão. Apenas no final da década de 1950 e início da década de 1960 os negócios internacionais começaram o caminho para tornarem‐se uma disciplina acadêmica. Nessa época, os trabalhos de Dunning (1958), Penrose (1956) e Byé (1958), por exemplo, forneceram bases empíricas para avanços teóricos na teoria da firma. Contudo, antes do seminal trabalho de Stephen Hymer (1960) a teoria existente encontrava‐se não codificada, não sistematizada, carecia de clareza conceitual e não estava academicamente institucionalizada (Buckley, 2011). Na década de 1970 e início dos anos de 1980 tornou‐se frequente a busca por uma teoria geral da produção internacional, às vezes na forma de uma teoria geral da empresa multinacional, às vezes como uma teoria geral do investimento direto no exterior (IDE). Se tais teorias esbarravam em alguma evidência empírica que não podia explicar era usual diminuir a importância da evidência ou adaptar a própria terminologia para acomodá‐la. A diversidade 32 teórica é, portanto, uma característica do pensamento econômico sobre produção internacional. Nesse sentido, as análise têm sido conduzias sob as perspectivasmacroeconômica (a partir das teorias do comércio, teorias da localização, balanço de pagamentos e efeitos da taxa de câmbio); mesoeconômica (a partir da organização industrial, da teoria dos jogos, teoria da inovação e da comparação das trajetórias e estratégias corporativas) e microeconômica (a partir da teoria da firma). (Cantwell, 2000) Nas próximas subseções são apresentadas três abordagens originais da produção internacional produzidas nos anos 1960 e 1970. De modo geral, os modelos e estudos mais recentes sobre as empresas multinacionais seguem ou contrapõem‐se às teorias apresentadas sucintamente a seguir. 2.2.1 Controle e poder de mercado A primeira teoria dedicada a explicar a existência da empresa multinacional (EMN) foi proposta por Stephen Hymer em 1960 em sua tese de doutorado, publicada apenas em 1976. Hymer, segundo Dunning e Rugman (1985, p.228), evita as teorias financeiras e do comércio de inspiração neoclássica e analisa a empresa multinacional per se, como uma instituição para a produção internacional – mais do que para a troca internacional – a partir da organização industrial. Havia uma insatisfação (Dunning e Lundan, 2008 p. 83) com a teoria tradicional sobre as transferências internacionais de capital, sob uma perspectiva macroeconômica, em que nenhuma distinção era feita entre os investimentos diretos e os de portfólio (indiretos). Hymer apontou o descompasso entre a teoria e a prática nos negócios (Forsgren, 2008 p. 12) e sua tese merece o título de “seminal”. (Buckley, 2006 p. 141) Hymer constatou que a teoria do investimento de portfólio fundamentada nos diferenciais de taxas de juros não era capaz de explicar o investimento direto. A teoria estabelecida não dava suporte ao fato de que 1) o período de acúmulo de investimento direto no exterior pelos Estados Unidos antes de 1914 coincidiu com a entrada no país de grande quantidade de investimento de portfólio, o que indica uma desconexão entre os fluxo de capital (IDE) e a taxa 33 de juros; 2) o investimento direto cruzado entre países acontecia, simultaneamente; 3) a maior parte do investimento direto – observado por Hymer – era realizado por empresas americanas não financeiras, o que sugere outra motivação para tal comportamento que não fosse a taxa de juros e 4) havia um padrão setorial que associava o investimento direto às mesmas indústrias ao redor do mundo e que o IDE cruzado ocorria intraindústrias. (Hymer, 1976 p. 10‐23) As inconsistências apontadas por Hymer entre teoria e evidencia empírica revelaram a natureza diferente dos investimentos de portfólio, centrados na arbitragem de taxas de juros internacionais, e os investimentos diretos, que envolvem o controle de atividades no exterior. A teoria estabelecida era insatisfatória porque não explicava o controle associado ao IDE, para o qual seria necessária uma explicação diferente. Portanto, explicar o investimento direto significa explicar o controle. (Hymer, 1976 p. 23) A motivação para que uma firma controle atividades em outro país – o que Hymer chamou de operação internacional – advém do lucro derivado desse controle e não do diferencial de taxa de juros no exterior. (Hymer, 1976 p. 26) Nesse sentido, uma forma equivalente de responder a questão é explicar em que circunstâncias a operação internacional seria lucrativa. Essencialmente, em Hymer (1976), uma teoria das operações internacionais é parte da teoria da firma e diz respeito às várias relações entre empresas de países diferentes, conectadas pelo mercado, que concorrem entre si ou que são fornecedoras umas das outras. As ferramentas analíticas devem ser as mesmas usadas para analisar a operação das firmas, levando‐se em conta que as operações são internacionais, mas as firmas são nacionais. E porque a operação é internacional, as diferenças entre os países em termos de governo, leis, idioma e economia são importantes na medida em que tornam os mercados de diferentes países muito mais separados do que os mercados regionais dentro de um país.1 Por sua vez, a nacionalidade da empresa importa, não só porque isso afetará o tratamento que ela irá receber no exterior, 1 Tendo escrito em 1960, Hymer reconhecia a crescente integração da economia mundial devido ao aumento da comunicação entre as nações e cogita que o crescimento das operações internacionais que ele observava tenha sido resultado dessa integração e, possivelmente, desempenhava um papel importante para integração subsequente. 34 mas também porque a firma está sujeita ao controle e à taxação de seu próprio governo e ao sentimento de nacionalismo. (Hymer, 1976 p. 28‐30) Em condições normais, as empresas nacionais encontram‐se em melhor posição para obter informações sobre seus próprios países enquanto que, considerando‐se a separação e as diferenças internacionais, para uma empresa estrangeira a aquisição de tais informações representa um custo considerável, embora fixo. Além disso, há o “estigma de ser estrangeiro” uma vez que a empresa está sujeita a discriminação por parte dos governos, consumidores e fornecedores nacionais. Some‐se a isso o risco cambial, no sentido de que as alterações na taxa de câmbio afetam mais as firmas com mais obrigações em moeda estrangeira, neste caso a empresa multinacional. (Hymer, 1976 p. 34‐36) Existem, portanto, barreiras à operação internacional das empresas representadas pelas vantagens que as empresas nacionais possuem (sobre as estrangeiras) para atuar em seus próprios mercados se nenhuma condição especial prevalecer. Se as barreiras à operação internacional são admitidas, então as circunstâncias em que tais operações acontecem devem ser aquelas em que essas barreiras são superadas. Ou seja, o controle de operações no exterior deve ser lucrativo o suficiente para compensar as desvantagens de ser uma empresa estrangeira. Hymer (1976) explica essas circunstâncias específicas com base no que ele denominou de “remoção de conflitos” e “posse de vantagens” por parte da firma multinacional. A remoção de conflitos deve levar à operação internacional na medida em que existe a possibilidade de firmas em países diferentes, sob competição real ou potencial, realizarem um lucro conjunto maior a partir da fusão das empresas (como um tipo específico de colusão). A condição para que isso ocorra é a existência de barreiras à entrada no mercado em que apenas algumas poucas empresas atuam. Em caso contrário todo lucro conjunto seria rapidamente erodido pela entrada de novas firmas. O mesmo pode ocorrer quando nos casos em que poucas empresas de um país são fornecedoras de outras poucas firmas em outro país. Também nessa situação a fusão é uma opção viável para aumentar o lucro conjunto. O princípio da remoção de conflitos é a remoção da própria competição. É necessário esclarecer que, nesses casos, a fusão, e consequentemente a operação internacional, não é um resultado 35 necessário. Além disso, caso ocorra, não há uma predição da teoria para qual será a nacionalidade, logo quem manterá o controle, da nova empresa. (Hymer, 1976 p. 37‐39) Desde que se reconheça que diferentes empresas possuem diferentes habilidades para operar em uma determinada indústria, essas diferenças podem representar vantagens consideráveis em atividades específicas de algumas firmas sobre outras. Quando observadas empresas em países diferentes, a posse de alguma vantagem pode levar a operação internacional. Essas vantagens podem ser tão diversificadas quanto as formas de produção e comercialização. Elas podem estar associadas a condições mais favoráveis para obter fatores de produção a custos