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Ao considerar Belo e Feio fora de uma oposição ou pensá-los não dialeticamente, ou seja, um elemento sendo a conseqüência ou contrapartida do outro, talvez possamos aprender algo novo sobre eles . O que pude apontar foi a convergência do que denominamos o Belo Nardsico em Psicanálise com uma produção rigorosa de conjunções e convergências. E que nele no Belo instalam-se elementos muito mais racionais que passionais, como o mos~aria a p~blicidade de nossos tempos, produzida racionalmente. É um tempo instantâneo e descontínuo, organizado por um novo estado de coisas, uma nova operação psíquica, ao mesmo tempo estável e contínua-descontínua. Operação que não apenas constitui o corpo próprio como o suscita no modo do Belo como modelo a ser seguido. O Belo é uma operação conjuntiva que, ao mesmo tempo em que fabrica o corpo próprio como modelo, fabrica o mundo modelar que o corpo percebe, conforme se pode aprender com Lacan. Por isso, aproveitando-me da ampliação foucaultiana da questão da imaginação em Kant, falei em estase do Belo, o que nos leva a abandonar a compreensão usual e simples de que o Narcisismo tem o corpo próprio como modelo . Enquanto o Feio converge com o auto-erotismo, introjeção permanente e não convergente, de tempo descontínuo e produção autônoma e constante, exercício de singularizações. Sem atender à publicidade, pois é paixão efetivamente exer- cida. Não se remete ao prazer simples da experiência sensível e nem experimenta constituir um gosto; trata-se de uma desobjetalização e disjunção permanentes. Como investimento moral, já o sabemos, a feiúra está em todas as partes, insis- tindo. Tais investimentos morais só se verificam pela via da imaginação produtiva. Mostrarei em algum outro momento como isso implica uma clínica psicana- lítica diferenciada. Alteridade na Estética: reflexões sobre a feiúra 1 Charles Feitosa Intróito Nos últimos anos, presenciamos no Brasil debates intensos sobre as estrat~gias estranhas praticadas por certos canais de TV visando à conquista da audiência. Em diversos programas de auditório é apresentado, sem pudor, tudo o que é feio, grotesco ou bizarro. A feiúra vem sendo consumida com prazer pelo grande público. Qual é a origem da fascinação que garante o sucesso desses programas sensaciona- listas? Qual é a função da super-exposição do grotesco nos meios de comunicação em massa? O que há no feio que ao mesmo tempo nos atrai e nos repele? Refletir sobre a alteridade na estética pode ajudar a responder essas questões. "Estética" e "Feiúra" parecem ser expressões mutuamente excludentes, afinal costumamos associar imediatamente o "estético" ao ''belo". Minha hipótese consiste em mostrar que não apenas é possível articular estética e feiúra, como também há historicamente diversas "estéticas do feio". Em uma primeira aproximação, quero investigar as estéticas que compreendem o feio como sendo o "outro do belo" (sua ausência ou negação). Eu as nomeio "estéticas tradicionais do feio". Nelas, a feiúra parece ser, nesse contexto, algo a ser melhorado ou eliminado. O feio como o outro do belo O feio em questão Em que consiste a feiúra do feio? Por meio de quais critérios julgo algo, seja uma paisagem, uma pessoa ou um poema, como feio? É possível sentir prazer pela feiúra? Até que ponto a arte é capaz de suportar a feiúra? O feio perde sua feiúra na obra de arte? A arte que expressa o feio é mais realista? Não encontramos na tradição antiga ou medieval nenhuma investigação 1 Este trabalho é resultado parcial de uma pesquisa sobre as "Estéticas do feio", realizada na UNIRIO. estética específica sobre o feio. Essa carência de material se explica pelo fato de o feio nunca ter sido considerado uma questão digna do pensamento. Trata-s_e de um conceito sem disciplina pr6pria, desterritorializado da geopolítica filosófica, trata-se de um "sem-terra" da estética, talvez não seja nem mesmo um conceito em si, mas apenas um oco, um vão, um vazio. Em uma passagem paradigmática para a tradição, no diálogo platônico de Parmênides, Sócrates duvida de que as coisas sujas, desprezíveis ou repulsivas tenham uma idéia à parte, distinta delas, pois o que é perfeito não deve comungar com o imperfeito2• As coisas feias não participam do mundo inteligível. O feio é um me on, algo que não deve ser; logo, pensar o feio é uma forma de pensar o nada ou de nada pensar. Como então refletir sobre a feiúra? A feiúra possui diversos graus, pode pro- .vocar risos, em sua forma mais amena; nojo e asco, em suas manifestações mais agressivas. Etimologicamente, o termo "feiúra" remete ao latim foeditas, que quer dizer "sujeira", "vergonha". Em francês, laideur deriva do verbo laedere, que significa "ferir". Em alemão, feiúra é Héisslichkeit, termo derivado de Hass, que quer dizer "6dio". Por que nos envergonhamos com o feio? O que há no feio que nos fere tanto? O que tememos ou odiamos nele? Em japonês, a palavra para feio é minikui e quer dizer "difícil de ver". O feio parece definir-se como uma espécie de violência aos sentidos. Mas a feiúra é ~m desprazer que se manifesta apenas aos sentidos tidos como mais iluminados, a visão e a audição. Um rosto deformado agride o olhar, uma dissonância musical fere os ouvidos. Existem diversos objetos que ofendem também o tato, o gosto, e principalmente o olfato, entretanto a ofensa a esses sentidos, ditos inferiores ou sombrios em razão de sua passividade, não é estética. O cheiro da matéria em decomposição é desagradável, mas não feio. Assim como o belo, a feiúra parece só se mostrar aos sentidos ditos mais elevados, aqueles que segundo a tradição são os sentidos mais ativos, aqueles que mais revelam conhecimentos, enfim o que há de mais espiritual e racional na percepção sensível. Seria a feiúra então uma violência não apenas contra os sentidos, mas também contra nossa capacidade de doar sentido ao mundo? A moral da feiúra Em sentido estrito, o feio é aquilo que sobra quando.o belo se ausenta. Se a beleza se mostra na harmonia e na proporção, a feiúra está relacionada à deformidade e 2 Cf. PLATÃO. Parmênides. Stuttgart: Reclarn Verlag, 1981, p.130c. à desmedida. Se a beleza é O esplendor da ordem, da simetria e do equilíbrio, a feiúra é a instância do caos, da assimetria, do excesso. Se o belo está do lado da luz e do bem, o feio está do lado da escuridão e do mal. Tais distinções pressupõem uma suspeita, uma acusação, uma condenação do feio que não se baseia apenas em critérios de agrado ou desagrado, mas está associada também a certos aspectos morais. A acusação mais freqüente é a de que a feiúra seria o reflexo imediato de desvios de conduta. Em Ilíada, Homero descreve a figura de Thersites como o / homem mais feio a participar da ocupação de Tróia: "vesgo, manco, corcunda, careca" 3. Essa feiúra seria a expressão sensível de sua atitude blasfema diante dos deuses, da falta de nobreza de seu caráter. Se a cultura grega tinha um ideal do kalos-ka9athos, a correspondência entre virtude e beleza (e, em certo sentido, também da verdade), tudo indica haver, em contrapartida, a idéia não tematizada de kakos-kaischros- cunhei esse neologismo, do grego kakos, ruim ou mau, e aischros, feio -, quer dizer, uma relação necessária entre a feiúra e o mal. Platão, que repreende Homero por não representar adequadamente a beleza dos deuses e dos heróis, afirma em diversas passagens o parentesco entre a falta de graça; ritmo ou harmonia e a linguagem viciosa ou os maus costumes4. Em outras passagens, Platão ainda é mais radical, ao sugerir que a feiúra revela uma imperfeição não apenas da conduta, mas também ontol6gica. No diálogo Hípias Maior5, ele insinua que, comparada com os deuses, a espécie humana não é bela, ao J passo que o mais belo macaco não passa de feio se comparado aos homens. A feiúra aqui é índice de menos-ser. A feiúra humana também costumava ser interpretadapor Platão como o sinal de irrupção do irracional, da perda de identidade. Uma pessoa em estado de embriaguez, perturbação afetiva ou loucura tende a ter suas feições embrutecidas. De maneira mais indireta, o feio estaria associado também ao bárbaro e ao estrangeiro, enfim, a tudo que não se conformasse às regras da pólis. Mas se Platão aceita, em linhas gerais, o ideal grego da kaloka9athia, e de sua contrapartida, ele também o faz de maneira toda própria, adaptada ao seu sistema (uma adaptação que beira a iconoclastia em face de sua própria cultura). Se não, como seria possível explicar que o personagem principal de seus diálogos fosse famoso por sua falta de atrativos físicos? Como é possível que o feio Sócrates leve seus discípulos a alcançar a percepção da beleza absoluta? 'HOMERO. Ilíada: II. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999, p. 217-9. • Cf. PLATÃO. República, III. Frankfurt: lnscl Verlag, 1991, p. 401 a; PLATÃO. GórBias. Frankfurt: lnsel Verlag, 1991, p. 4 70e. 1 PLATÃO . Hípias maior. Frankfurt: lnsel Verlag, 1991, p. 289a. É preciso distinguir em Platão a verdadeira beleza da beleza aparente, a beleza ideal da beleza exterior, a beleza aprisionada ao sensível. Segundo Nietzsche, a extrema feiúra de Sócrates - em si, uma objeção -- seria tomada como uma refutação entre os gregos6 . Ora, para Platão é justamente o descompasso entre a beleza espiritual e a feiúra física de Sócrates que faz dele a melhor encarnação de sua filosofia. A feiúra de Sócrates funciona simbolicamente como a figuração exemplar de seu desprendimento ou desprezo pelo reino da aparência; a feiúra de Sócrates é a própria aparência posta em questão no seu direito de ser. Essa referência à feiúra de Sócrates remete a um aspecto a ser examinado que considero mais importante que a condenação moral: as suspeitas tradicionais contra o feio estão associadas principalmente a sua Íntima vinculação com a dimensão da sensibilidade. Na verdade, um dos motivos por que a arte, desde Platão, tem sido relegada a segundo plano é a estreita conexão entre a beleza e o sensível. Quero afirmar, entretanto, que existe na feiúra uma conexão ainda mais selvagem e intoxicante com o sensível, e que é isso o que torna o feio tão insuportável. Aspectos sensíveis do feio Um primeiro aspecto diz respeito ao caráter material da obra de arte. Na estética, existe um princípio, tão tradicional quanto questionável, de que nada é feio na arte a não ser por um defeito na sua execução. A obra de arte só é feia involunta- riamente, isto é, quando o artista não consegue amoldar perfeitamente o material que utiliza (as cores ou os sons, por exemplo). A feiúra da arte emergiria a partir de uma certa resistência da matéria em deixar-se submeter à forma. Tal carência de forma - ou excesso de matéria - seria tradicionalmente o sinal da impotência do inteligível para cozinhar, humanizar e domesticar a crueza ou a crueldade do sensível. Outro aspecto importante em que comparecem feiúra e sensibilidade trata da dimensão da transitoriedade. O tempo deixa seus traços sobre a pele das coisas, dos corpos, das faces. A feiúra parece emergir inexoravelmente no processo de envelhecimento, na corrosão da carne, no curvamento do corpo ante o próprio peso. Essa feiúra nos invade e desvela nossa finitude de maneira violenta e sel- vagem. Em última instância, o feio provoca repulsa porque toca nossa ferida essencial, a condição mortal. O cadáver em decomposição é repelente, pois nos lembra impiedosamente de nosso futuro, de nosso presente. A morte é esse abso- lutamente outro, que tem o poder de nos transformar cm outro de nós mesmos, 6 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. "Gótzen-Dammerung" [Crepúsculo dos deuses]. Em: Kritische Studienausgabe, vol. 6. Berlin: DTV, 1988, p. 68. J' 1 \ í . , . d t" d A repugnância pelo feia nasce e cresce de esvaziando a ex1stenc1a e sen l o. , . , . d tino Se somos seres para a morte, tambem s heróica res1stencia ao nosso es . - . 7 . , m constante evasao de nosso fim . eres contra a morte, isto e, e , s . t , 0 fato de a feiúra vincular-se ao sens1vel a1 Outro aspecto mteressan e e , . ' . 1 egundo Platão e o mais agradavel, mas tar da sensualidade. O prazer sexua , s , - r · as pessoas tendem a ocultar-se durante o o mais feio de se ver' tao i e10 que , _ d d d araíso até O jargão popular que, paradoxalm Do mito b1bhco a que a o p . , 'd d f ,, h. t . de deseJ· 0 parece que mnguem duv1 a a ea nomeia "vergonhas seus o 1e os ' . , . e , _ ·t . A feiúra evocada pelo sexo, isso que a1 nos 1( da có ula e dos orgaos gem ais. P f h de se animalizar, de se tornar monstr1 a a de perder a ace umana, a ame ç d 1-to de beleza estaria oriainalmente asso, d f d. t e que o conce 1:::,· Freud e en ia a ese 1h b' t d d t' ulo sexual mas se intrigava com o fato de que o ar o o 1e o e_ , ao es im ~ , as. de um lado' excitação; do outro' aversao despertasse se~s,açoes amb1gu . t ·mplícita dos órgãos genitais9. Além d vacada pela fernra, supostamen e i ' ~ ão ode ser chamad Freud deixa subtendido que somente o orgao em er_e~ epntre beleza e feiÚl . • f ndamente a opos1çao belo. Pretendo investigar mais pro u . . E' . ntudo desconfü - d r entre masculino e femmmo. pree1so, co , . relaçao de po e . f d ·t'l· da mulher a essência mesrr , . . l ta que aça a gem a ia qualquer raciocm10 s1mp 1s . . . f ·t é também feio, carent . . . . ' assivo hm1tado, imper e1 o, - fem1mhdade: isso que e P ' . ' . 1· de beleza e perfeiçao . l t d elo pnnc1p10 mascu mo preenchimento e comp e a o p f . ·1·d d isso se deve ao fato de , l com a em1m 1 a e, Se a feiura tem a go a ver d tradição tão lo90-,j ambas foram ignoradas, excluídas ou subjuga as por uml_ª do belo) , . . - 1· 0 da razão, do mascu mo · quanto kalocentnca (1mpena ism f d . ·t1·rem à compreensão, ' . , m O ato e res1s O feio e o femimno tem cm comu 'l' mais aprofundada ' . d ameaça Uma ana ise incompreensão e absorvi a como . d como o outro do b, d f . l que o compreen em estéticas tradicionais o e10' aque as d incapacidade de l d d nossa repulsa emerge a talvez mostre que, na ver ª e, vimo-nos da beleza · ão estética da morte: ser 7 A cultura ocidental tende a uma apropnaç d . r cadaveres). Vale ressalta ( lo no costume e maqUia atenuar o horror da morte por exemp ' ' d . d do ,,erbo schoenen' que quer "b l " enva a a palavra alemã Schiinheit, que designa e eza , e "proteger". 'Cf PLATÃO. Hípias maior, Op. cit.' P· 299a. b . S Frankfurt · _ _ EUD s· und. Studienausga e, v · · 9 Ver Sexual Leben ("v1da sexual). Em. FR ' igm . Georges ~taille interpn 66 nota 2 Em seu livro sobre o erotismo r Fischer, 1972, P· ' · • _ .. "La bcauté importe au P , l a dimensão importante na estrutura do desejo· _ t l souil macuacomoum l' d l'erot1smees a la laideur ne peut être souillée, et que essencc e chef em ce que . , . . - · 199 e; n 1 i:; 1 E G rges L'Erotisme. Pans: Ed1t10ns de Mmu1t. BATAJLL , eo ' '\ com o outro· de maneira geral • fi . . al fi . . ' sep na orma do bárbaro e do estrangeiro, seja no rrraaon , no enuruno no sensív l S H 1 b E , . ' e · e ege tem razão ao determinar, em Lições so re stet1ca, o prazer do belo co · / h mo um prazer narcísico do Espírito, o prazer do ser umano em ver-se refletido tant . d fi . . 0 na arte como na natureza 10 , então o desprazer o e10 tem ongem justamente n nfr tranh nfi O co onto com o que é diverso, diferente · es 0 , e im, com a alteridade. ' A estética tradicional exige nh · d queª arte te a sob controle isso que nos ameaça no mun o; esse controle se dá at , d •limin· _ raves e um embelezamento da realidade de uma e açaodofeio, dainstaura ~od , . . ' d b. b . d ça e uma superfiae bnlhante que nos preserve o a ismo som no a existência, de sua ·absoluta falta de sentid . uma estética modificada do feio? É ' l . ' o. Mas o que sena . ~ ' . passive pensar a feiura para além d oposiçaocom a beleza? E possível experimenta fi . e sua invés de uma ausência? A r o eio como uma presença ao b 1 ? S arte pode expressar o feio sem subjugá-lo à tirania da e eza. omos capazes de nos mantermos na tensão a que o feio nos desafia? O feio como um outro belo ~;l!:a~:e :a s:::~:ºn:ee::ri::ficação espiritu~, a feiúra sempre foi permitida e · , a representaçao dos supl' • d J meio de sustentaça~o da fé . icios e esus era um , assim como todo o bestiário di l monstros, das gárgulas, dos mais variados de ' . me eva ' a presença de a função de lembrar a constante ameaça d ml orudos ndas paredes das igrejas tinha , 0 ma ro ean o o mundo A fi ·' "nh as vezes, a função de fortalecer o valor absoluto d . emra ti a, feiúra de um Judas Iscariotes b l d . a beleza: o contraste entre a e a e eza o Cnsto era m . ·e.• . provar a superioridade do b b 111 ais um artiuc10 para em so re o ma . Outra forma tradicional de emer ência d fi . , ' . dia. Aristóteles como é sab·d d fi g a eiura na estetica se dá na comé- ' i 0 , e me em Poética o ridí l • , l das formas do feio fi cu 0 , 0 ns1ve, como uma ' uma orma amena da feiúra ~ sofrimento12_ A risibilid d d fi . ' ' que nao causa nem dor nem a e o e10 e explorada e t ti paródia, na sátira na ironia d s e camente na caricatura, na se ri é um feio rr:enos agre:s:: an~ ota etc. Contudo a idéia de que o feio do qual H e o nao tem consenso na t d· ~ A fi e1esto é típica de uma feiúra ridícul ra içao. igura do deus a. Homero conta que quand D d , o o eus e io Cf. HEGEL, Friedrich Asthetik I B 1· 11 E b fi · ' · er m: Europaische Verlag 1976 p 14 m ora a igura de Jesus seja descrita nas E . , ' . . tendência de associar o divino à perfi . - ~cnturas como formosura (Cf. Isaías, 53: 2), a ,2 Cf. ARISTÓTE ' . e1çao sens1vel acabou dominando o imaginário crise LES. Poet1ca. Tradução de Eudoro d ' . ao . Casa da Moeda, 1994. e Sousa. 4 ed. Lisboa: Imprensa Nacional / baixa estatura e coxo adentrava o Olimpo, os deuses não podiam conter as gar- galhadas, deixando entender que esse riso tinha uma função apaziguadora. Já Platão via nessas histórias uma blasfêmia. O riso para Platão não era um sinal de poder 1Jv sobre o feio, mas sim de capitulação diante dele. O riso sobre o feio enfeia aquele r,., < que ri. Quem ri deixa sua face se desfigurar, tem suas feições animalizadas. Quem ri perde a beleza que advém da racionalidade, quem ri perde sua identidade, se inferioriza, e por isso o riso é a principal atividade dos loucos, das crianças, dos escravos, das mulheres, enfim, daqueles que não tinham um Si para perder13 • Além da edificação espiritual cristã e da comédia como formas sutis de integrar e transfigurar o feio, existem outras tentativas explícitas de extrair beleza da feiúra. Entre os exemplos mais importantes está o prefácio de Victor Hugo ao seu drama histórico Cromwell ( 1827), 'no qual faz uma espécie de declaração de amor ao grotesco e à feiúra . Segundo Victor Hugo, a verdadeira harmonia implica a idéia de totalidade e o todo se dá na fusão dos contrários. O artista só é realmente livre quando atenta para o fato de que o feio existe ao lado do belo, o disforme ao lado do gracioso, o grotesco ao lado do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz. Nesse contexto, o feio é não apenas uma categoria estética, mas cósmica. Outro que confessa fascínio pela feiúra é Baudelaire. No seu famoso livro Les Fleurs du Mal, publicado em 1857, o poeta elege, lado a lado ao pai natural (Deus), Satã como pai adotivo. Em "Lês litanies de Satan", o poeta exclama: "Ó Satã, tem piedade da minha longa miséria! Tu que coloca nos olhos e no coração das moças o culto à ferida e o amor ao farrapo". Baudelaire tenta mostrar que não importa se a beleza vem do céu estrelado ou do abismo negro do inferno. No famoso poema -intitulado "Uma carniça" [Une charogne], ele constrói a imagem de um cadáver em decomposição, devorado por moscas, larvas e vermes, por meio de versos absolutamente perfeitos. Por exemplo: "Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço, / Dali saíam negros bandos / De larvas, a escorrer como um líquido grosso / Por entre esses trapos nefandos"14 . Na verdade, Baudelaire pretendia transmutar a feiúra do mundo em " Tal polêmica se alastra virtualmente pela modernidade: Kant via no riso uma ameaça ao "Entendimento", uma vez que o riso nasce de algo contraditório, de uma expectativa frustrada, enfim de uma experiência que só pode trazer prazer indiretamente, uma vez que anima as forças vitais do corpo (Cf. Crítica do Juízo; x54). Hegel, ao contrário, via no riso o poder não do corpo, mas sim da razão que se mostra capaz de suportar as contradições, os conflitos e a negatividade. Para uma análise mais detalhada do lugar do riso no sistema hegeliano, ver meu artigo: "O flerte do Hlósofo". Em: Síntese Nova Fase, v. 22, n. 69, Belo Horizonte: 1995, p. 225-40 . 14 "Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride, / D' ou sortaient de noirs bataillons / De arte. A despeito de seu eloo-io do fi . 1 . . 1, e,- e10' e e Jamais b d "d . d b 1 c assica como demonstra . . a an ona os 1 ea1s a e eza ' a 1rrestnta correção d de harmonia e ritmo d 'tr· di . e seus versos, conforme os critérios a me 1ca tra cwnal Não é só a arte que parece descobrir dur~t , ,da feiúra mas também a fi1 fi E e O scculo XIX o potencial estético . . ' I oso ia. m 1853 Karl R nkr . Intitulado Estética dofeio Ess 1. , . ase anz publica um livro . e ivro e praticamente a ' . sobre o assunto 15 Rosenkr . uruca monografia filosófica d - . anz argumenta que uma estética di 1' . . erar nao apenas a beleza t b, a etica precisa consi- ' mas am em o seu negati fi . ' inseparabilidade de beleza e fe. ' vo, a emra. A partir da tese da d . ' iura, apresenta uma exaustiva an '1' d ·r a fe1ura na natureza no corp h a ise as maru1estações d ' o umano e nas artes singulares d a assimetria, da incorreção d d r _ , segun o as categorias e a ewrmaçao. E conclui· fi . - , . o oposto do belo mas na verd d . o e10 nao e simplesmente ' a e um momento da idéia do b l processo de constituição da b l e 0 , uma etapa no . , e eza, uma etapa a ser superad di d O fe10 e uma manifestação secund' . d a, ga-sc e passagem. ana o processo de vir a ser d b l um momento necessário mas "d ,, - - - 0 e 0 , quer dizer, ' esaparecente do próprio b 1 A r , Rosenkranz é a caricatura N . , eº· re1erencia de • a caricatura ha uma di t - . há também um momento posterior de ,; b d s orçao inicial da beleza, mas que ra o poder do fe· " • recuperação da beleza que sai aind . r 1 . 10 ' permitindo a , a mais rnrta ec1da nesse 16 predileto era D. Q3iixote de C processo . Seu exemplo . . ' ervantes, que ele via não a ' ideais de honra dos cavaleiros m di . penas como uma satira aos e eva1s mas prin · l sociedade, cm que tais valore - 'nh ' . . c1pa mente como uma crítica à s nao tJ am mais v1gência'7 Mesmo nessa rápida menção a Hugo, Baudelaire e Ro. ' acrescentar os nomes de Edg All P . senkranz - podenamos b ar an oe, R1mbaud e Osc W']d , perce er que a busca de reabilita - d fi . , ar I e-, e possível çao o e10 esta associada ao advento da mo- larves · 1 · 'qrn cou a1ent comme um épais 1· .d / L 1 Charles. Poesia e prosa. Tradu .- d 1 1qu1 e . e ong de ces vivant haillons". BAUDELAIRE " çao e van Junqueira e outros Rio dej . ' Rosenkranz era discípulo de Heg 1 & .. . ane1ro: Nova Aguilar, 1995. b, e • equentou seus cursos de E t' · f uma mgrafia de seu mestre: Henels Leb [ V'd d H s etica e icou famoso ao elaborar o en I a e egel] Er t l , , . a ser considerado nem de direita ne 1 . a a vez o umco dos alunos de Hegel 16 Cf. ROSENKRANZ .. ' - me ~-esquerda, mas de centro. 1996, p. 49 . , Karl. Asthet,k des Hasslichen [Estética do Feio]. Stuttgart: Reclam Verlag 17 ' . , E Interessante observar que Rosenkranz d, defender no prefácio das acusações de 1· da ~ma_ cedrta conotaçãopolítica ao seu tratado. Ao se ti f , n ecenc1a e seu tem I d'- sa s azer a necessidade de beleza - . a, e e iz que seu livro não visava h d ' pureza e conforto da bu . ( - c ama a de "bela sociedade" ou "bel d ") rgues1a nao por acaso também trabalhador da fáb . . d b . o mun o ' mas antes a dar uma oportunid d .. rica esco nr no seu m d , . a e para o Asthetik des Hiisslich O . un o a sua propna beleza. Cf. ROSENKRANZ K l en. p. c1t., p. 9. , ar. 36 dernidade. Tudo se passa como se os modernos tivessem se tornado insensíveis ao ideal clássico da beleza, cuja capacidade de surpreender, de despertar entusiasmo, parecia ter se esgotado. Hegel identifica nessa incapacidade do Espírito de sua época de se satisfazer com o belo um indício do fim da arte: "a arte é algo que passou" [ein Vergangenes], diz, provocador, na sua Estética 18 • Era preciso buscar novos rumos. Em vez de tratar o feio como o outro lado do belo, quero sugerir que a estética moderna parece reconhecer nele uma outra forma de beleza, uma beleza ainda capaz de impressionar olhos e ouvidos anestesiados pela tradição. É preciso, entretanto, indagar se a mera inversão da ordem das categorias nos torna aptos a escapar do esquema da estética tradicional. Pretendo mostrar que o preço comum a pagar pela integração do feio à estética, realizada por Hugo, Baudelaire ou Rosenkranz, é o seu enfraquecimento. O feio perde seu veneno, é domesticado, como se tivesse sido enterrado vivo numa idéia totalizante e totalitária de beleza. "-- "' O grande desafio é examinar se a estética é capaz não apenas de inverter, mas de "ex-verter" os esquemas da tradição. Será possível pensar e experimentar a feiúra enquanto tal? Como buscar o feio fora de sua relação com o belo, quer dizer, não mais como ausência ou oposição, mas para além tanto de sua exclusão quanto de sua inclusão no território do conceito? A Estética para além do belo e do feio O título do último ponto deste ensaio é de inspiração nietzschiana e indica que a questão do feio se resolverá somente através de uma transvaloração dos valores estéticos. Tal transvaloração consiste primordialmente em uma desconfiança em relação ao caráter supostamente em-si das idéias de beleza ou feiúra. A estética não tem o direito de ser normativa, beleza e feiúra não podem ser definidas em termos absolutos - segundo Nietzsche, só o que não tem história é passível de definição. Pensar a historicidade do belo e do feio implica questionar sua gênese fisiológica. É preciso desconfiar de nossa necessidade de beleza e de nossa aversão à feiúra. Será que o prazer do belo não reflete um instinto de segurança, de estabilidade, de ordem? Será que nossa repulsa do feio não é um sintoma de nosso medo da morte, nossa incapacidade de lidar com o efêmero, nossa dificuldade em aceitar a finitudc da existência? Minha tese é a de que a estética trágica, na acepção nietzschiana, aquela que articula os princípios apolíneo e dionisíaco, permite uma experiência da "feiúra enquanto tal", isto é, ela deixa o feio ser o que é, não o IH Cf. HEGEL, Friedrich. Âsthetik, I. Op. cit., p.22 . exclui, nem o integra, mas O expõe. A estética trágica tem o compromisso de denunciar a feiúra do real. Não a feiúra das injustiças sociais, como pensa Adorno em Teoria estética, mas a feiúra da existência, a sua absoluta injustificabilidade. A denúncia do feio em uma ."estética trágica" não quer desvelar algo a ser suplantado, mas sim expor algo a ser reconhecido. Trata-se não apenas de reco- nhecer o outro como próprio, mas principalmente de reconhecer a si mesmo como outro, uma diferença sutil, mas importante. O feio nos ensina que a morte não é um outro absoluto, que faria de nós um outro de nós mesmos, mas sim que nós mesmos somos estruturalmente essa exterioridade absoluta e absurda, enquanto entes mortais. Algumas telas de Edward Munch, de Francis Bacon, alguns livros como A Náusea, de Sartre, ou A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, são exemplos contemporâneos de uma tal estética trágica. Em uma linguagem hei- deggeriana, tais obras pennitem a liberação de ~a compreensão imprópria de nosso ser e desvelam a finitude que nos constitui. Tais obras enfraquecem o medo da desordem e da incompletude,. e fortalecem nossa atenção de viver. Elas pro- porcionam uma embriaguez que nos lança para além do belo e do feio. Vivemos numa época em que não existem mais estéticas normativas, uma vez que beleza e feiúra perderam sua função paradigmática. Essa ausência de valores é ambígua, deve ser celebrada e ao mesmo tempo questionada. De um lado, ela deslegitimiza qualquer forma de autoritarismo estético e político19 • De outro, a derrocada dos valores estéticos também pode ser lamentada como uma perda. Nossa época padece menos de _uma insensibilidade à beleza que de uma insen- sibilidade para o feio. Na era da reprodutibilidade técnica da cultura, quando a arte se torna artigo de consumo das massas, parece que não é a capacidade de satisfação que se esgotou, mas sim a capacidade de insatisfação que chegou ao fim. Talvez seja necessário agora um movimento de preservação da feiúra, uma res- sensibilização do olhar contra a an-estesia vigente. Nesse contexto, pensar a feiúra pode ser revigorante para a filosofia, no sentido de aprender a conviver com a diferença, com o sensível, com a desarmonia, com a incompletude e até mesmo com a incorreção, em função de maiores riscos. A reflexão estética sobre o feio nos convida a questionar se, ao contrário da palavra do poeta, a feiúra não é, às vezes, também fundamental. 19 É importante lembrar que talvez a única fonna de estética nonnativa de nosso século tenha sido o nazismo. O projeto nacional-socialista era embelezar o mundo, purificá-lo, redimi-lo de suas impurezas, extirpar sua feiúra. Não seria a barbárie nazista apenas a conseqüência extrema da metafisica tradicional que reúne hem, beleza e verdade? A lição que fica é que a feiúra pertence inexoravelmente ao mundo e que a sua purificação só pode se dar como destruição. A fascinação da feiúra Daniel Kupermann I " "A feiúra alegra a a ma d do humor e da sublimação "nh es uisa de doutora o, acerca . i Foi ao longo de m1 a P q . - d feiúra na obra freudiana . Como , . deparei com a questao a "d na psicanahse, que me _ nh aforismo que poderia ter SI o - . . . l , flexao propo o um urna provocaçao imcia a re ' 1 " Alma Seele é um dos termos d " feiúra alegra a a ma · ' ' · enunciado por Freu : a . . num extremo o corpo, no outro d d ignar o psiqUismo - . . utilizados por Freu para es . ' l alma é o mesmo que dizer dizer que a fernra a egra a . o pensamento. Portanto, " do que ela incita o deseJo. a si ue ou, de outro mo , . que ela alegra o corpo e P q l do ensaio esse aforismo e de- Minha tarefa será, então, d::::v:::::a::n::~:-lo enunci~do. monstrar por que Freud po . , b l e ssem duas senhoras, certamente d l' . f emra e e eza io d No cotidiano a c mica, se . . ' . sídua nos consultórios e . dmitir ue a primeira e mais as seríamos obrigados a a q b l um belo analisando, o tempo , . ndo recebemos urna e a ou . d' d psicanahse. Mesmo qua , b m maior que o de ica o a dedicado a sua nomeada feiúra provavelmente sera e sua beleza. . b a suposta fraoilidade narcísica d f, • meno recai so re o· A leitura corrente esse eno . d desamparados e impotentes, .. . o desses anahsan os, que, ' l e o consequente masoqrusm . . . no imaginaria cultura . . 'd l de beleza vigente - seJa . estariam assuJeitados ao i ea . . , . psíquico - e infelizes por , . . rado em seu imagmano contemporaneo, se1a mcorpo - ' enas isso? E se o motivo do . der a ele. Mas se nao e ap , . d não consegwrem correspon . 'l· d uma fascinação propna a 1 , · d icana ise se eve ª culto à feiúra nos consu to nos e ps . 1h . ssUI· em si mesmo' o dom b f, · ' ópna e a eia po , feiúra? E se o discurso so re a emrapr 'd . ? d l ar a alma, como sugen o acima. , . . - ainda que oculto - e a egr . . d b leza a que se esta SUJeito fr "d rante imperativo a e De fato, para en entar o s1 e, . . l' d denúncia da crueldade dos . râneas e preCiso ir a em a . . nas sociedades contempo ' d d do que há de positivo e la mídia promoven o a retoma a modelos propostos pe ' D . l Ousarrir: humor, criaçao e ps1canál1se. 10 e 1 KUPERMANN, ame · - . , . R" d Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Copyright© 2~04, dos autores Capa. projeto gráfico-e preparação Contra Capa 2004 Beleza, feiúra e psicanálise Chaim Samuel Katz, Daniel Kupermann e Viviane Mosé (org.) Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / Formação Freudiana, 2004. 160 p.; 16 x 23 cm ISBN: 85-86011-83-5 Todos os direitos desta edição reservados à Contra Capa Livraria Ltda. <atendimento@contracapa.com.br> Rua de Santana 198 Loja / Centro 22030.261 / Rio de Janeiro / RJ Tel / Fax (55 21) 2512.3402 / 2511.4764 SUMÁRIO Apresentação 7 Daniel Kupermann Nota introdutória Chaim Samuel Katz 9 1 CONSIDERAÇÕES QUASE INATUAIS Belo e Feio, Feio e Belo: outras indicações Chaim Samuel Katz 13 Alteridade na Estética: reflexões s~bre a feiúra 29 Charles Feitosa A fascinação da feiúra 39 Daniel Kupermann A produção da feiúra na clínica psicanalítica: anotações sobre a patologização da vida cotidiana 49 Luiz Felipe Nogueira de Faria 2 1 NARCISISMO E IDEAIS NA CONTEMPORANEIDADE Para sempre diante do seu olhar: sobre os sentidos da modificação corporal Eduardo Leal Cunha 65
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