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Psicologia e sua ideologia Referência: Psicologia e sua ideologia: 40 anos de compromisso com as elites Ana Mercês Bahia Bock A I Mostra de Práticas em Psicologia marcou um novo compromisso dos psicólogos e da Psico logia com a sociedade brasileira, mas não inaugurou o compromisso da Psicologia com a sociedade. Explicando: a Psicologia sempre esteve vinculada à sociedade brasileira e sempre respondeu a demandas sociais, portanto, manteve em toda sua existência um compromisso com a sociedade. Mas qual compromisso? Não se pode permitir que o entusiasmo com o compromisso social que a Psicologia está construindo com a sociedade brasileira oculte a histó ria de um compromisso com os interesses das elites no Brasil. Compromisso com elites A tradição da Psicologia, no Brasil, tem sido marcada pelo compro misso com os interesses das elites e tem se constituído como uma ciência que é uma profissão para o controle, a categorização e a diferenciação. Poucas têm sido as contribuições da Psicologia para a transformação das condi ções de vida, tão desiguais em nosso país. Se tomarmos a história da psicologia no Brasil, vamos ver que as ideias psicológicas produzidas e, as teorias responderam clara mente a interesses das elites de controlar, higienizar, diferenciar e categorizar, interesses esses necessários à manutenção ou incremento do lucro e repro dução do capital. A colonização do Brasil, foi caracterizada fundamental mente pela exploração, o que exigiu a construção de um forte aparato re pressivo. A Metrópole necessitava dominar e controlar os indígenas que viviam na Colônia, para que, dóceis, permitissem e colaborassem na explo ração da terra conquistada. No século XIX, o Brasil deixa de ser Colônia e transforma-se em Impé rio. As ideias psicológicas vão ser produzidas principalmente no âmbito da medicina e da educação e responderam a outros interesses: à higienização da sociedade. Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, surgiu uma demanda de serviços, até então inexistentes, como a educação nos seus diversos ní veis, inclusive superior. O século XIX assistiu, ao desenvolvimento das ideias de saneamento e higienização das cidades, higienização que será entendida como material e moral. Estas ideias eram herdadas do pensamento euro peu, mas encontraram no Brasil um terreno fértil. Buscava-se uma socieda de livre da desordem e dos desvios. A educação esteve marcada por práticas autoritárias e disciplinares; a medicina, pela criação de hospícios como asilos higiénicos e de tratamento moral. As ideias psicológicas produzidas nesse período puderam colaborar significativamente no trabalho da educação e da medicina, na busca da higienização moral da sociedade brasileira. As ideias psicológicas falam da moral como característica natural do homem, que a perde quando se degenera. A moralidade naturalizada fala va de valores que eram dominantes na sociedade europeia e que corres pondiam à moral dos grupos dominantes. Eram valores distantes das pos sibilidades das camadas trabalhadoras e escravas da sociedade brasileira. Associava-se com facilidade a imoralidade à pobreza e à negritude. No entanto, essa associação ficava ocultada pelo discurso naturalizante e ser via às teorias da degenerescência das raças. As ideias psicológicas foram também associadas à administração e à gestão do trabalho, baseadas no pensamento taylorista. A industrialização no Brasil fez novas exigências à Psicologia que, pode colaborar significativamente com um conhecimento que possibilitou a diferenciação entre as pessoas, para a for mação de grupos mais homogéneos nas escolas e a seleção de trabalhado res adequados para a empresa. 40 anos de profissão Os dados mostram que, apesar de termos um índice alto de psicólo gos na área da saúde, poucos estão em instituições. Ainda temos muitos psicólogos atuando em consultórios particulares, como autônomos. Isto sig nifica que o trabalho do psicólogo não está ao alcance de quem precisa dele, pois os trabalhos em consultórios são caros e, portanto, inacessíveis à po- pulação pobre do país. A Psicologia como profissão ainda é frágil, pois ela dá respostas pouco desen volvidas, que atendem às diferentes demandas com respostas genéricas. Ana Maria Carvalho debateu como as atividades dos psicólogos eram pouco diversificadas. A atuação dos psicólogos se caracteriza como pouco diversificada, e tende a se tornar ainda mais restrita no decorrer da carreira individual. Nesse sentido, o que define uma atuação abrangente é o quanto essa atuação reflete o potencial da utilidade e da contribuição da profissão à sociedade. A Psicologia se instituiu assim em nossa sociedade moderna como uma ciência e profissão conservadora que não constrói nem debate um projeto de transformação social.. A Psicologia se afastou da tarefa de construção de um projeto social principalmente por ter adotado uma perspectiva naturalizante do homem e de seu desenvolvimento psíquico. As teorias desenvol- vidas tomaram o psiquismo como algo natural que tinha percurso certo. O trajeto do desenvolvimento psíquico estava dado pela natureza humana. Essa concepção afastou as teorias das preocupações sociais e não exigiu, dos psicólogos, um posicionamento, no sentido de adoção de um projeto de sociedade e de homem. As forças progressistas acompanharam todo esse desenvolvimento e conseguiram obter vitórias no decorrer dos anos 70, com a criação da área da Psicologia Comunitária. A Psicologia Comunitária significou um avanço porque exigia que a Psicologia olhasse a realidade social como um princípio da construção da ciência e da profissão. Elementos ideológicos A Psicologia tem naturalizado o fenômeno psicológico; Os psicólogos não têm concebido suas intervenções como trabalho; Algumas ideias foram desenvolvidas no decorrer dos anos e se tor naram dominantes. Destacamos três delas que nos parecem ajudar a compreender o ca ráter ideológico da Psicologia. A Psicologia tem concebido os sujeitos como responsáveis e capa zes de promover seu próprio desenvolvimento. Estudamos a concepção de fenômeno psicológico entre os psicólogos e encontramos expressões que denotavam uma concepção do fenômeno como algo enclausurado no ho mem e como algo abstrato, que tem vida própria e destino traçado. O fenômeno psicológico é naturalizado, está em todos nós, ao nascermos, em potencial e se desenvolverá conforme o homem for aproveitando as situações de estimulação que o mundo social lhe oferece. Essa concepção de fenômeno psicológico teve como resultado uma Psicologia de costas para a realidade social. Não se tem nenhuma necessi dade de fazer referência à cultura e aos valores sociais, e às relações so ciais para compreender o mundo psíquico. A consequência para a prática profissional dos psicólogos é que esta surge como algo que dá suporte ao desenvolvimento natural, reencaminhando para o "seu trilho" quando se percebe um desvio. A Psicologia ficou assim associada a patologias, des vios, desajustes. Não foi possível de senvolver uma profissão que contribuísse para a qualidade de vida, pro movendo saúde. O fenômeno psicológico não deveria ser concebido como algo natural e universal. Nossas concepções sobre a subjetividade deveriam unir o mun do objetivo com o mundo subjetivo, a fim de compreendê-los como cons- truções históricas a partir da atuação transformadora do homem sobre o mundo. O mun do psicológico não deve ser concebido como algo natural, mas como algo construído. O mundo psicológico, como registro singular das relações vivi das por cada um de nós, não tem nada de natural e não carrega potencialidades. Se constitui, como uma obra do próprio homem, na experiência de contato com o mundo cultural e social. Assim, se os homens estivessem colocados em situações de vida ideais para o bom desenvolvimento do fenômeno psicológico, nada nos restaria a fazer, pois seu trajeto poderia ser percorrido sem intercorrências. No entanto, esse mundo social é visto pela Psicologia como ummundo perverso, que nos obriga, a estarmos atentos ao desenvolvimen to do psiquismo e a possuirmos instrumentos que possam "corrigir", "consertar" o que se desviou. Além disso, o homem, está conce bido como um ser autónomo e capaz de produzir seu próprio movimento. Assim, os psicólogos passam a entender que sua mis são é "ajudar as pessoas a se desenvolverem". Isto quer dizer que nosso trabalho é uma forma de colaboração e inter venção, mas é somente do sujeito o processo de produção de si mesmo, que se autoconhecendo poderá se autoconduzir e se autodesenvolver. Os psicólogos não acreditam que direcionam o desenvolvimento de seus clientes, pois a direção desse desenvolvimento está dada pela natureza. O trabalho da Psicologia é desvendar as "verdades" sobre o sujeito, para que ele mesmo possa se conduzir. Assim, os psicólogos se isentam de assumir um projeto social — de homem e de sociedade — para promover e incentivar por meio do seu trabalho. O trabalho, intervenção intencional e direcionada, não existe para a maioria dos psicólogos. Não se pode nem mesmo cogitar a ideia de que direcionamos as pessoas, de que as influenciamos a partir de nossas intervenções profissionais. Todos os nossos recursos de trabalho são vistos como neutros. Nossa prática não tem nada a ver com os interesses sociais e com as disputas polí ticas da sociedade. A prática profissional é apresentada na maioria absoluta das respostas como uma prática técnica, isto é, uma prática que contém um saber que auxilia o desenvolvimento do homem. Auxilia na retomada de um "caminho desviado". Não se coloca uma finalidade social ou política para esta prática. Cabe apontar que no discurso dos psicólogos, é possível detectar algumas noções: onipotência, ajuda ao outro, busca da felicidade e do equilíbrio. Os psicólogos evidenciam, em seus discursos, uma noção onipotente da profissão e de si próprios como profissionais. "Acredito que o trabalho te rapêutico é um fazer alma, buscar sentido na vida", A ideia de ajuda incondicional ao outro é também presente nos discursos. Ajuda na busca da adaptação e da felicidade. O psicólogo parece ter em suas mãos a possibilidade de fazer do outro um homem feliz, en fim, acredita que muito pode ser feito e muitas mudanças podem ser opera das com a ajuda do psicólogo, enquanto portador de um conhecimento e en quanto um ser humano dotado de intuição. No entanto, esse discurso vem acompanhado da fala: mas o psicólogo não muda o homem, apenas contribui para que ele próprio se modifique. E a oni potência se traveste de humildade e o psicólogo nega o seu trabalho. Nega a sua intervenção. E aí está a questão: o psicólogo efetivamente trabalha, ou seja, emprega energia para transformar . Isso mostra que ele tem sim um modelo, um padrão do que considera normal, esperado. No entanto, a Psicologia cons truiu um discurso que nega essa intervenção direcionada. Escondeu-a atrás de um discurso de que o homem se autodetermina e se autodesenvolve. Há, nas concepções em Psicolo gia, uma ideia de que o homem possui em si mesmo uma força motriz que o movimenta para seu desenvolvimento. Esta ideia se torna possível, exata mente porque nosso desenvolvimento está pensado como natural. Nestas concepções, a sociedade não tem papel algum. Está vista como algo externo ao sujeito que nada tem a ver com seu desenvolvimento. A sociedade é vista como algo que impede, algo que deve ser driblado, controlado, para que não impeça o desenvolvimento das potencialidades que já estão no homem, a priori. A sociedade ajuda ou atrapalha, mas nunca é vista como algo do humano, construção do próprio homem. Assim, os psicólogos se puseram de costas para a realidade social, acreditando poder entender o fenômeno psicológico a partir do próprio homem. Com esse discurso, a Psicologia, ocultou as deter minações sociais, construindo ideologia. As consequências destas concepções aparecem, na prática pois há uma responsabilização das pessoas pelos seus próprios processos de desenvolvimento. No trabalho clínico, o psicólogo vê sua intervenção como uma contribuição para que o sujeito possa se desenvolver e se curar. A Psicologia tem concebido os sujeitos como capazes de promover seu próprio desenvolvimento; essa concepção isola o sujeito e sua subjetividade do mundo social e isenta as instituições sociais e modos de produção da sobrevivência de qualquer responsabilidade pelos sofri- mentos psicológicos. Os problemas e características do mundo psíquico são explicados pelo seu próprio funcionamento e movimento.