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1 “NÃO ESPERADOS”: paradoxos da imigração haitiana no brasil Adriano Alves de Aquino Araújo 1 Introdução Historicamente as estruturas sociais e de poder acabaram atuando para a estagnação econômico-social daqueles considerados não brancos, criando uma sociedade estratificada com forte componente racial. A exemplo de países como Estados Unidos, África do Sul e Índia, o Brasil adentrou o século XXI adotando as cotas raciais como instrumento de reparação histórica e promoção de equidade social entre negros e brancos; contudo, diversos fatores seguem atuando no sentido oposto à ideia das cotas, como os dados relativos ao extermínio da juventude negra por parte do Estado, que evidenciam a face mais cruel dessa incoerência. Tal contexto, marcado pela supremacia racial branca, é o encontrado pelos imigrantes haitianos a partir de 2010. A contextualização histórica de tal cenário aponta para interpretações acerca da estranheza e consternação através da qual, setores inteiros da sociedade brasileira constatou a presença haitiana no Brasil. O atual fluxo migratório contrasta radicalmente com as políticas migratórias que favoreciam os europeus, uma vez que, buscava-se o branqueamento da nação no pós-abolição. O fluxo migratório haitiano não foi oficialmente barrado, inclusive foi criado um visto especial direcionado aos cidadãos do país caribenho, contudo, os imigrantes não recebem apoio além da concessão de vistos, sendo expostos às mesmas privações às quais a população negra sofre cotidianamente, evidenciando que, mesmo passado mais de um século da abolição, mazelas do período escravista ainda assolam afrodescendentes no Brasil. 1 Doutorando em Ciências Sociais (FFC/Unesp) e membro do Grupo de Estudos Enfoques Antropológicos – Unesp/CNPq. Mestre em Ciências Humanas e Sociais (UFABC) com a dissertação intitulada: “Reve de Brezil: a inserção de um grupo de imigrantes haitianos em Santo André, São Paulo – Brasil”, premiada no I Concurso Nacional de Teses de Doutorado e Dissertações de Mestrado da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (ONU/ACNUR, 2016). 2 A formação do povo brasileiro e o construto da supremacia racial no Brasil Conforme Guimarães (1999, p. 104-106) a manutenção dos colonizadores nas Américas se deu à base da força e da disseminação ideológica de sua superioridade cultural. Mignolo (2010, p. 48) expõe que as bases do direito internacional estão assentadas na instituição universal dos europeus cristãos como portadores do direito natural (via concessão divina) sob os demais povos, que sob sua tutela, poderiam chegar à salvação, à iluminação, à modernidade. A instituição e universalização do direito internacional garantiu a expropriação e posse da terra por parte dos invasores, enquanto a “colonização das mentes” assegurou a permanência. De acordo com Ribeiro (1995, p. 50-51) ganhar adeptos dentre os nativos foi essencial para a dominação cultural, religiosa, política e econômica, sendo assim, estes nativos eram instruídos não a combater o europeu, mas a tornar-se um deles. A disseminação do preconceito e discriminação a tudo o que se distancia do europeu, representante da branquitude, detentor da cultura e, ainda, “mártir” disseminador da mesma neste continente mostrou-se como estratégia eficaz. Como aponta Mignolo (2010, p. 41), mesmo após as independências nacionais latino- americanas, as elites locais seguiram dominando, subjugando e garantindo a perpetuação da lógica anteriormente vigente; o que endossa a visão do autor de que, a colonialidade é parte intrínseca da modernidade. Adaptado às realidades mestiças da América Latina, o ideal de superioridade racial branca seguiu sendo o modelo de supremacia e mais alto grau da escala civilizacional. A máxima dos séculos XIX e XX foi a atribuição do status de Ciência à eugenia, criada pelo inglês Francis Galton, em 1883, que proclamou seu grupo racial como superior aos demais. A eugenia causou impactos ilimitados tanto na Europa, quanto em diversas partes do mundo (KOIFMAN, 2012, p. 14). Na América do Norte a pseudociência reforçou a ideia de pureza racial de seus colonizadores, que deveriam seguir evitando a miscigenação como já vinham fazendo. Koifman (2012, p. 73) aponta que os eugenistas norte-americanos chegaram a defender até mesmo a esterilização de seres-humanos. A disseminação dos ideais eugênicos para o Sul global desencadeou o processo de “tropicalização da ciência eugênica”, que consistiu na adaptação da eugenia aos diferentes contextos. No caso brasileiro, o impacto dessas práticas foi no sentido de estímulo ao aprimoramento físico a partir da prática de esportes, incentivo a 3 hábitos higiênicos e a miscigenação para branqueamento da população, como detalhou Lesser (2015, p. 40-46). [...] a eugenia serviu para estruturar debates e ações no Brasil, um país, à época, distante das pesquisas genéticas, mas bem sintonizado com a Ciência como símbolo da modernidade. [...] a eugenia [...] foi reconfigurada no Brasil e adaptada à sua topografia e à sua agenda social, tornando-se importante elemento na reformulação ideológica do significado da raça para o futuro brasileiro (STEPAN, 2004, p. 381 apud KOIFMAN, 2012, p. 82). A ênfase no branqueamento era dada pelo fato de no Brasil, como apontou Holanda (1995, p. 53), a população nacional ser essencialmente não branca, uma vez que, os portugueses teriam chegado já miscigenados e, seguiram miscigenando-se com indígenas e negros. Deste modo, aumentar a parcela branca do caldeamento de raças do Brasil foi a medida adotada para a viabilização de uma miscigenação potencialmente branqueadora, o que foi efetivado através do subsídio à entrada maciça de imigrantes europeus e a imposição de barreiras à entrada de pessoas não brancas (SEYFERTH, 2000; KOIFMAN, 2012, p. 27; LESSER, 2015, p. 40-46). Em episódio representativo ocorrido no ano de 1921, na presidência nacional de Epitácio Pessoa, ofereceram-se concessões de terras a empresários americanos no estado de Mato Grosso. Contudo, antes que as negociações se efetivassem, soube-se que os mesmos estavam recrutando afro-americanos para o trabalho e colonização das terras, o que, levou o então governador de Mato Grosso, o bispo católico Francisco de Aquino Correia, a imediatamente cancelar a negociação. Como medida preventiva, o Itamarati rapidamente deliberou negar vistos diplomáticos futuros a esses possíveis imigrantes. (DOMINGUES, 2002, p. 509). Outro episódio representativo deu-se no ano de 1942, com o indeferimento do pedido de prorrogação de visto do estudante Christiaan H. Eersel. Na ficha remetida ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores havia somente a observação feita ao lado do espaço relativo à nacionalidade: “Holandês. De cor preta”. No caso do britânico “natural da Índia” Beny Yanga Zavarg, que solicitou a permissão para permanência definitiva no Brasil em 1944, o parecerista foi mais direto, informando que, o suplicante era “de raça negra, raça essa cuja imigração, atualmente, não consta aos interesses nacionais [...] nessas condições proponho que, [...] o pedido seja indeferido” (KOIFMAN, 2012, p. 244). 4 Visando a efetivação do plano ideológico nacional, o Estado não media esforços para transformar a própria população negra em agentes do branqueamento de sua descendência. Domingues (2002) em seu artigo “Negros de Almas Brancas? A Ideologia do Branqueamento no Interior da Comunidade Negra em São Paulo, 1915-1930”, aborda a incidência da ideologia nacional entre os negros na capital paulista no início do século XX. Segundo o autor, arquitetou-se um sistema que premeditava a morte dos filhos e netos dos escravos; tal sistema transformava o discriminado em agente discriminador e promoveu o que o autor chamou de “raçacídio”,ou seja, o suicídio coletivo de uma comunidade étnica através de armas ideológicas impostas. O processo de embranquecimento fez com que passasse a imperar uma hierarquia de cores e características físicas no Brasil, em que, quanto mais próximo ao fenótipo europeu, mais aceitável seria o indivíduo. Damasceno (1998) e Guiamarães (1999) apontam que, buscando inserção a partir do que a sociedade abrangente considera como “boa aparência 2 ”, parte da população de origem africana passou a se classificar não como negra ou preta, mas sim como “morena”. No geral o brasileiro considera vergonhosa qualquer associação com sua ancestralidade negra, seja no âmbito cultural ou biológico. A história da identidade racial branca considerada como “positiva”, fez com que ocorresse a tendência de que o pardo fosse classificado como branco e o preto como pardo, resultando em um branqueamento e empardecimento da sociedade brasileira por consequência da diminuição da classificação “preto” (RAMOS, 1995 [1957], p. 220 apud CARDOSO, 2010, p. 618). Como aponta DaMatta (1997) o sistema de classificação racial brasileiro privilegia o meio-termo e a ambiguidade como valor, tendendo em princípio, a funcionar com base na hierarquia e no gradualismo. O racismo e a limitação à ascensão social No Brasil a depreciação pela qual a população de origem africana foi submetida a partir da escravidão, segue acompanhando os seus descendentes através da exclusão social sistemática perpetuada através de políticas baseadas nos interesses das elites. 2 No entendimento do observador estrangeiro Robert Eccles, a expressão “boa aparência” no Brasil pode ser traduzida simples e surpreendentemente como “só para brancos” (DAMASCENO, 1998). 5 Em uma sociedade racista como a brasileira, as pessoas logo ao nascerem são classificadas em diferentes níveis hierárquicos, aqueles classificados socialmente como brancos gozam naturalmente de privilégios em virtude dessa classificação. Ao grupo branco adiciona-se a construção de uma identidade racial que recebe o legado simbólico de referências positivas como: inteligente, belo, culto, civilizado, capitalista, comunista, democrático, etc. A concepção estética e subjetiva da branquitude é dessa maneira dignificada, o que leva que a idéia de superioridade se constitua como um dos seus traços característicos (FANON, s/d[1952], pp. 37-39; JACOBSON, 2004, pp. 63-96 apud CARDOSO, 2010, p. 623). Munanga (2005-2006, p. 52) recorre à pesquisa do geneticista Sérgio Danilo Pena, que corrobora que, todos os brasileiros, mesmo aqueles que aparentam fenotipia europeia, têm em porcentagens variadas marcadores genéticos africanos ou ameríndios, confirmando o princípio já conhecido da inexistência de raças puras ou estanques. Contudo, o genótipo pouco importa na representação coletiva que a sociedade brasileira faz do negro, do branco, do índio, do amarelo ou do mestiço, pois o que é levado substancialmente em consideração é o fenótipo. DaMatta (1997) recorre a Oracy Nogueira para afirmar que no Brasil o preconceito é “de marca”, em contraste ao preconceito “de origem” dos Estados Unidos. A depreciação promovida ao fenótipo indígena e negro fez com que as elites se empenhassem em manter a cútis tanto mais clara quanto possível, haja vista que, essa característica foi, desde a colonização, marca de diferenciação e poder perante a sociedade nacional. A formação de uma elite “clara”, alimentada pelas políticas migratórias de branqueamento e a exclusão da população negra e parda, fez com que a pobreza no país tivesse cor. A cor da pele tornou-se o estigma daqueles que carregam fisicamente os traços da ascendência indígena e negra. Assim como a primeira geração de escravos libertos, os negros seguiram enfrentando grandes dificuldades para a ascensão social e econômica, sendo vencidas em raras exceções. Munanga (2001, p. 33) recorre a Ricardo Henriques para concluir que: “no Brasil, a condição racial constitui um fator de privilégio para brancos e de exclusão e desvantagem para os não-brancos”. O autor complementa afirmando que os brancos pobres e os negros pobres não são iguais, pois os primeiros são discriminados somente pela condição socioeconômica, enquanto que os negros o são duas vezes, pela pobreza e pela raça. Cardoso (2010, p. 609), apresenta a pesquisa realizada por W. E. B. Du Bois (1977 [1935], pp. 700-701), que analisa o trabalhador branco norte-americano do século XIX e conclui que, ainda que este recebesse baixos salários, era recompensado com um “salário público e psicológico” que não privilegiava os negros. Tal compensação consistia, por 6 exemplo, em trânsito livre, com acesso às funções públicas, acesso às melhores escolas públicas para seus filhos e tratamento cordial por parte dos tribunais, que dependiam do seu voto. Deste modo, pode-se afirmar que, o privilégio/exclusão com base em raça ultrapassa as barreiras de tempo e espaço. “A branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivos, isto é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial, discriminação racial “injusta” e racismo” (CARDOSO, 2010, p. 611). Tanto no Brasil, quanto em outras partes do mundo, a queda do conceito das raças humanas não foi acompanhada da queda da discriminação fenotípica: Há cerca de 40 anos geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente (cf. Jean Hiernaux, J. Ruf-fié, A. Jacquard, F. Jacob, etc.). Chegaram mesmo até a preconizar a eliminação do conceito de raça dos dicionários, enciclopédias e livros científicos como medida de combate ao racismo. Não demoraram a concluir que essa proposta era uma ingenuidade científica, dando- se conta de que a ideologia racista não precisava do conceito de raça para se refazer e se reproduzir. [...] A maioria dos países ocidentais pratica o racismo antinegros e antiárabes sem mais recorrer aos conceitos de raças superiores e inferiores, servindo-se apenas dos conceitos de diferenças culturais e identitárias (MUNANGA, 2005-2006, p. 53). Segundo Guimarães (1999, p. 110) a “não-racialização” do preconceito e da discriminação acabou se tornando um discurso pernicioso de autodefesa dos racistas, que afirmam não serem racistas pelo fato de não existirem raças no plano biológico. As raças humanas biológicas não existem, no entanto, as raças enquanto construtos sociais e políticos existem na cabeça dos racistas e suas vítimas, de modo que, a negação acaba por camuflar os inúmeros problemas resultantes de séculos de discriminação racial (MUNANGA, 2005-2006, p. 52, 53). Deste modo, as propostas de combate ao racismo não estão mais no abandono ou na erradicação da “raça”, que é apenas um termo e conceito e não uma realidade; nem no uso de léxicos cômodos como “etnia”, “identidade” ou “diversidade cultural”, pois o racismo é uma ideologia capaz de parasitar em todos esses conceitos (Idem). Para Cardoso (2010), mais imprescindível do que a supressão da raça é a abolição da concepção de superioridade atribuída à ideia de raça, pois o problema não está na diferenciação entre brancos e negros, mas na utilização da distinção que visa inferiorizar. 7 Intervenção estatal: políticas de equidade social e a violência policial Como forma de compensação à “discriminação negativa” sofrida por diversos grupos ao redor do mundo, a III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em agosto de 2001 na cidade de Durban, na África do Sul, propôs dentre diversas medidas, a adoção de políticas reparatórias às vítimas de racismo, da discriminação racial e de formas conexas de intolerância, por meio de políticas públicas específicas paraa superação da desigualdade. O Brasil posicionou-se de modo a adotar medidas de “discriminação positiva” em compensação aos séculos de discriminação negativa institucionalizada promovida contra a população negra do país. Seguindo o exemplo de países como, Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Índia, Canadá, Alemanha, Nova Zelândia, Malásia, entre outros, o Brasil criou políticas de ação afirmativa, dentre as quais, a mais polêmica tem sido as cotas raciais para o ingresso no ensino superior (MUNANGA, 2001, p. 35). A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira instituição de ensino superior do Brasil a instituir as cotas raciais. A partir do vestibular de 2002, pretos, pardos e indígenas puderam solicitar as reserva de vaga, afixadas na ocasião em 20%. Em 2004 a Universidade de Brasília (UnB) também aderiu ao modelo de cotas raciais como política de ação afirmativa, sendo a primeira universidade federal a fazê-lo (CARVALHO, 2014). Após muitas discussões e resistência por parte de setores mais conservadores da sociedade, foi aprovada em 2012 a Lei 12.711, que determina que todas as universidades federais destinem 50% de suas matrículas para estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas (conforme as definições utilizadas pelo IBGE), de baixa renda (com rendimentos igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita) e que tenham cursado integralmente o ensino médio em universidades públicas. O percentual das cotas raciais é variável e depende da proporção dos grupos em cada estado de acordo com o recenseamento do período vigente (Ibidem). Carvalho (2014) aponta que, antes da lei ser aprovada, 18 das 58 universidades federais do país ainda resistiam em aplicar alguma política de cotas ou bônus, contudo, a partir do vestibular de 2013, todas as universidades e institutos federais aderiram ao sistema, ampliando as vagas para os cotistas de 140 mil, para 188 mil. Em 2003, pretos representavam 8 5,9% dos alunos das instituições federais e pardos 28,3%; em 2010 esses números aumentaram para 8,72% e 32,08%, respectivamente. Bezerra e Gurgel (2011) afirmam que o desempenho dos alunos cotistas tem derrubado o mito, criado pela ala conservadora, de que o nível dos cursos cairia. Ao analisar o desempenho das turmas ingressantes de seis cursos da UERJ no ano de 2006, os autores constataram que, embora no vestibular os cotistas apresentem desempenho inferior aos não cotistas, no decorrer do curso a média de rendimento dos cotistas sobe, de modo que, em um dos cursos analisados (Administração de Empresas), a média de rendimento dos cotistas (8,077) superou a dos não cotistas (8,044). A evasão também era apontada como possibilidade de fracasso das cotas raciais pelos que advogavam contra a adoção das mesmas, o que segundo Bezerra e Gurgel (2011) tem sido desmistificado. Segundo os autores, a evasão dos não cotistas apresentou-se maior em todos os cursos da amostragem, chegando a 65 desistentes contra 7 no curso de pedagogia. Movimentos sociais como o Instituto Luiz Gama e a Frente Pró-Cotas Raciais, apontam que, os números de inclusão ainda são tímidos, pois não se vê dentro das universidades a diversidade das ruas (CARVALHO, 2014). Munanga (2001) aponta que as cotas raciais já foram adotadas em diversos países e mostraram-se meios eficazes para a elevação da classe social dos negros nos Estados Unidos, por exemplo. Contudo, tal política necessita ser constantemente aprimoradas ao contexto brasileiro e seus estimados 70 milhões de afrodescendentes. Um grande problema que segue sem solução é o mecanismo da “suspeição policial” fundamentada nos traços somáticos dos negros, que os torna vítimas preferenciais das arbitrariedades de guardas e policiais nas ruas, nos transportes coletivos, em lojas, bancos e supermercados (GUIMARÃES, 1999). Recentemente, declarações do novo comandante da Rota, a tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo, causaram polêmicas diversas na sociedade a nível estadual e nacional. Dentre as declarações, o tenente-coronel Ricardo A. N. de Mello Araújo, admitiu que a abordagem fosse discriminatória entre a população da periferia e a população da zona nobre, defendendo tal prática. Ao falar de sua promoção, Araújo afirmou que a Rota é o sonho de consumo para o policial, pois é onde se tem liberdade de atuação, e se atua nas ocorrências mais graves, alimentando deste modo o “desejo de adrenalina inerente ao ser humano” (ADORNO, 2017). 9 Tal discriminação já é bastante conhecida da população periférica 3 , a novidade está na admissão de tal prática por parte de um comandante em cadeia nacional; declaração essa que foi reformulada em nova aparição pública, numa tentativa do governo paulista de fazer a população acreditar que, tudo não passou de um mal entendido e que a Rota possui procedimentos padrões para todas as áreas da cidade. Após as declarações, o movimento negro exigiu explicações através de uma petição endereçada ao governador Geraldo Alckmin. A Ouvidoria da polícia também cobrou providências do governo, sugerindo até mesmo uma troca do comando por conta da declaração elitista do novo comandante. Este é o Brasil encontrado no século XXI pelos imigrantes contemporâneos – muitos dos quais negros, como os haitianos. Reações adversas à chegada dos haitianos Como se pôde notar, o Brasil possui uma dívida histórica com o povo negro e os debates demonstram o quão nebuloso e mal resolvido é o assunto. Se ainda resta em partes da sociedade resquícios ideológicos da política de expurgo do negro da composição étnico-racial do país, como lidarão com uma nova afluência de sangue negro via imigração? Compreender a estrutura de classes e os mecanismos de exclusão do Brasil é um processo complexo; ainda mais para imigrantes que tinham em mente a ideia de democracia racial, que segue atrelada ao país e propaganda no âmbito nacional e internacional. Contudo, ao chegar ao Brasil, os imigrantes que não correspondem hoje em dia às políticas de branqueamento do passado, acabam por notar algo de estranho no tratamento que lhes é dispensado. Ao analisar diferentes mídias e redes sociais, Guimarães, Alonso e Borges (2015) identificam diversas expressões de intolerância voltadas aos haitianos. Segundo os autores a intolerância é mais ligada ao racismo do que xenofobia propriamente dita, uma vez que, muitos discursos enfatizam que a imigração seria aceitável caso os imigrantes fossem outros. 3 Em nossa pesquisa de mestrado realizada entre os anos de 2014 e 2015 junto aos imigrantes haitianos residentes em Santo André, na Grande São Paulo, houve menção quanto à truculência exercida pelos policiais militares na região onde viviam (Núcleo Ciganos). A estranheza dos imigrantes se dava ao notar que as ações eram direcionadas à população negra, grupo o qual foram encaixados indistintamente ao chegar no Brasil. 10 O trecho a seguir, foi extraído do discurso de um pesquisador, professor e servidor público federal por Guimarães, Alonso e Borges (2015, p. 157): Os imbecis [...] agora ocupados em nigriciar o Brasil pensam que se justificam com o argumento de que também os ianques estão vindo para cá. Que maravilha! Então vamos ficar assim: de um lado, a elite cheirosa, rica, bacana, dourada e de olhos azuis; de outro, a negrada cecerenta e fodida do Haiti e alhures [...] convenhamos: não dá! A posição social do entrevistado demonstra que, a manifestação do racismo independe do acesso do indivíduo ao conhecimento, uma vez que, o mesmo é pesquisador e professor de uma instituição pública federal. Em relação ao posicionamento em relação ao racismo, Cardoso (2010) divide o grupo opressor 4 entre “branquitude crítica” e “branquitude acrítica”. Segundo o autor, ambos se beneficiam das benessesque o sistema social proporciona aos sujeitos classificados como brancos, contudo, o primeiro posiciona-se criticamente contra o racismo e o segundo defende a supremacia racial do próprio grupo, apelando em níveis variáveis contra “grupos minoritários” como negros, gays, ciganos, judeus e imigrantes que não correspondam ao seu grupo racial. No Brasil, representantes da branquitude acrítica, nos termos de Cardoso (2010), tem manifestado insatisfação quanto aos imigrantes haitianos. A pesquisadora Rosana Baeninger afirma que, “Em várias cidades brasileiras os haitianos [...] são oprimidos pelos moradores locais”. Em 2014, 13 haitianos denunciaram espancamentos sofridos nas empresas em que trabalhavam em Curitiba; em agosto de 2015, seis haitianos foram baleados com espingarda de chumbinho na Rua do Glicério, em São Paulo; no mesmo mês, o muro do cemitério de Nova Odessa, cidade próxima à Campinas, foi pichado com a frase “Back to Haiti” (FIORAVANTI, 2015). Segundo Cardoso (2010, p. 621): [...] as organizações neonazistas, assim como, outros grupos e indivíduos que comungam pensamentos de ultradireita crescem e se fortalecem utilizando sobretudo a Internet como ferramenta de contato e mobilização. A virtualidade dos contatos é também uma forma de se esquivarem de penalidades pela prática de “crimes de ódio” e/ou crimes contra a humanidade. 4 O branco “anti-racista” se encontra no grupo opressor, mesmo que se coloca contra a opressão (CARDOSO, 2010, p. 624). 11 O lugar reservado aos imigrantes haitianos O fluxo migratório de haitianos para o Brasil teve início após o terremoto que destruiu Porto Príncipe, capital do Haiti, e arredores, em janeiro de 2010. Em fevereiro, foram registradas as primeiras entradas de haitianos indocumentados na cidade amazonense de Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Através dos coiotes, as rotas envolviam percursos terrestres, fluviais e aéreos. (COSTA, 2012; HANDERSON, 2015). A inserção do Brasil no mapa da diáspora haitiana deu-se por uma conjugação de inúmeros e complexos fatores. Inicialmente a mídia atribuiu a migração às causas mais imediatas relacionadas ao terremoto, mas, estudos posteriores apontaram causas estruturais internas e externas que, historicamente influenciam a economia e a política do Haiti. As intermitentes crises políticas e a constante crise econômica enfrentada pelo Haiti criaram condições para que, as primeiras emigrações em massa de haitianos que se têm registro, ocorressem há mais de um século, quando camponeses empobrecidos rumaram a Cuba para o trabalho no corte de cana de açúcar (COUTO, 2009). Devido às restrições migratórias impostas pelos países de migração tradicional, novas rotas passaram a ser consideradas. Nesse contexto as migrações Sul-Sul ganham destaque, de modo que, a garantia do visto humanitário no Brasil é fator importante na escolha do mesmo como destino emigratório (ARAÚJO, 2015). A igreja de Nossa Senhora da Paz, na capital paulista, tem sido atuante na acolhida dos imigrantes e na defesa de seus direitos ante os órgãos governamentais brasileiros. Em resposta às reivindicações de entidades ligadas aos direitos humanos, foram abertas pelo poder público (estadual e municipal), duas casas de acolhida para refugiados e imigrantes na cidade de São Paulo. O bairro do Glicério, em São Paulo, transformou-se com a chegada dos haitianos. Muitos dos imigrantes ao emanciparem-se total ou parcialmente do apoio humanitário oferecido pela Missão Paz, estabelecem-se na região. Essa área marginalizada da capital paulista têm ganhado um tom caribenho através da presença dos imigrantes, das igrejas e dos comércios co-étnicos que pouco a pouco são abertos pelos imigrantes. Apesar da consolidação do Glicério como local de referência para os haitianos em São Paulo, os mesmos têm se espalhado rumo à periferia. Araújo (2015) observa que a dispersão se dá a partir da conjugação dos fatores ferrovia-facilidades de locação. Além de 12 Santo André, existem comunidades de imigrantes haitianos em formação próximo às estações ferroviárias de Guaianases, São Miguel Paulista e Ribeirão Pires. Inseridos em regiões historicamente marginalizadas nas cidades brasileiras, aos poucos os haitianos vão percebendo o que é viver nesses locais, onde a ausência e a presença do Estado são faces da mesma moeda. Ao passo que a repressão policial direcionada à população negra é um constante lembrete da presença do Estado nas comunidades pobres, a precariedade dos serviços básicos evidencia a ausência deste mesmo Estado, que direciona sua atenção às pessoas de acordo à classe social, que em decorrência de fatores histórico- estruturais, é no Brasil muito atrelada à cor da pele (ARAÚJO, 2015). Assim como a população negra nacional, os haitianos são vítimas de discriminação racial. Considerações finais O objetivo central do presente artigo foi compreender o processo de integração dos imigrantes haitianos no Brasil a partir de uma compreensão histórica relativa à formação da sociedade brasileira e os significados historicamente dados à raça no país. Tal chave de leitura mostra-se essencial para o estudo de grupos migratórios racializados, cuja recepção nas diferentes sociedades sofre influências diversas relacionadas às formações históricas específicas em questão. Longe de esgotar o assunto, pretendeu-se suscitar debates e reiterar a importância da problematização da questão racial como marcador de diferença/desigualdade nos fluxos migratórios, tendo em vista que, a análise da integração dos diferentes grupos racializados não deve perder de vista a perspectiva histórica relacionada tanto às sociedades de origem, quanto às sociedades de destino e passagem destes fluxos cada vez mais transnacionais. O lugar reservado aos imigrantes haitianos no Brasil é o mesmo reservado maciçamente aos afro-brasileiros, ou seja, as periferias das cidades e da sociedade como um todo. Deste modo, justifica-se a problematização da história e da realidade afro-brasileira atual. A compreensão da questão racial, bem como o histórico da eugenia no Brasil – que passa pelo subsídio estatal à imigração europeia – ajuda a compreender discursos que se opõem à imigração haitiana, embora glorifiquem migrações do passado ou mesmo do presente. Percebe-se, deste modo, que no Brasil a intolerância ao imigrante haitiano está muito mais ligada ao racismo do que à xenofobia em si. Mostra-se evidente que, os grupos 13 dominantes atuam no sentido de manutenção de seu status quo, reproduzindo a ordem de desigualdade e hierarquia racial-capitalista mundial dentro dos contextos locais, não sendo diferente no Brasil. Lutando contra a dominação do sistema vigente (que foi instaurado e pretende-se perpetuar pela mão dos brancos) o movimento negro pressiona para que lhes sejam dadas igualdade de direitos e oportunidades, o que ganha força mundial através de uma perspectiva diaspórica. Tanto os haitianos que chegam ao Brasil, quanto os afro-brasileiros que aqui lutam por conquistas sociais, fazem parte de tal resistência, que não se contenta com o pouco que lhes é reservado a partir do banquete dos ricos. 14 Referências bibliográficas ADORNO, L. Abordagem nos Jardins tem de ser diferente da periferia, diz novo comandante da Rota. Portal Uol, 2017. Disponivel em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas- noticias/2017/08/24/abordagem-no-jardins-e-na-periferia-tem-de-ser-diferente-diz-novo- comandante-da-rota.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em: 27 Ago. 2017. ARAÚJO, A. A. D. A. Reve de Brezil: A inserção de um grupo de imigrantes haitianos em Santo André, São Paulo - Brasil. 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