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Falhas na defesa do organismo APRESENTAÇÃO Os defeitos gênicos bem caracterizados que afetam o sistema imune são aqueles que surgem no início da infância e conferem uma vulnerabilidade excepcional às infecções comuns. A caracterização das doenças de imunodeficiência e os defeitos gênicos que as causam são, praticamente, a única maneira de determinar a importância relativa das diferentes células e moléculas das defesas imunes e de avaliar os modelos atuais de como o sistema imune humano atua. Vejamos nesta Unidade de Aprendizagem as falhas genéticas determinantes para a instalação de microrganismos e os mecanismos desenvolvidos por eles para superarem as barreiras imunes. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Indicar as principais vias de resistência dos microrganismos frente a defesas imunes.• Descrever as falhas genéticas que tornam-se determinantes para implementação de patógenos. • Relacionar tais falhas à síndrome da imunodeficiência adquirida (aids).• DESAFIO Para eliminar uma infecção estabelecida, as células infectadas devem ser mortas pelas células T CD8 citotóxicas. Para que isso ocorra, alguns dos peptídeos apresentados pelas moléculas do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) de classe I na superfície das células infectadas devem ser de origem viral, uma condição facilmente cumprida por vírus de rápida replicação, como o da gripe. Por consequência, as infecções pelo influenza são eficientemente eliminadas por uma combinação do sistema imune de células citotóxicas e anticorpos, sendo que estes últimos neutralizam as partículas virais extracelulares. Em contraste, outros vírus são difíceis de eliminar porque entram em um estado quiescente nas células humanas, em que eles não replicam e não produzem peptídeos derivados do vírus em quantidades suficientes para sinalizar sua presença para as células T citotóxicas. O desenvolvimento desse estado de dormência, que é denominado latência e que não causa doença, é uma estratégia que favorece os herpes-vírus. Quais os sítios de permanência dos vírus herpes simples? Que fatores desencadeiam a ativação do vírus? Quais são os mecanismos de resposta imune gerados a partir da ativação do vírus? INFOGRÁFICO Acompanhe os eventos que podem determinar o sucesso ou o fracasso em um transplante de medula óssea. CONTEÚDO DO LIVRO Leia mais sobre o assunto consultando o seguinte livro: MURPHY, K. Imunobiologia de Janeway. 8.ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. IMUNOLOGIA Sofia Pizzato Scomazzon Falhas na defesa do organismo Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Indicar as principais vias de resistência dos microrganismos frente a defesas imunes. Descrever as falhas genéticas que se tornam determinantes para a implementação de patógenos. Relacionar tais falhas à síndrome da imunodeficiência adquirida. Introdução Quando um patógeno invade o organismo, inicialmente, dispara uma resposta da imunidade inata. Posteriormente, esses antígenos estranhos, juntamente a sinais do sistema imune inato, induzem uma resposta da imunidade adaptativa. Para que o patógeno consiga sobreviver e infectar novos indivíduos, ele deve ser capaz de “enganar” o sistema imune. Neste capítulo, você verá as principais vias de resistência dos pató- genos, bem como as falhas genéticas que diminuem a defesa do orga- nismo e a relação dessas falhas com o desenvolvimento da síndrome da imunodeficiência adquirida (em inglês, acquired immunodeficiency syndrome [aids]). Vias de resistência dos microrganismos às defesas imunes Um patógeno busca sempre replicar-se dentro de um organismo e disseminar- -se para novos hospedeiros. Para isso, os microrganismos, que inicialmente se encontram no meio extracelular, devem multiplicar-se sem criar uma resposta imune exagerada e, ao mesmo tempo, não devem causar a morte do hospedeiro de forma rápida, para não inviabilizar a sua reprodução. Os mecanismos en- contrados por esses patógenos para sobreviver aos ataques do sistema imune são a não indução de resposta imune ou o escape de uma resposta gerada. Ao longo do texto, veremos quais são esses mecanismos utilizados pelos microrganismos (ABBAS; LICHTMAN; PILLAI, 2019). Um dos principais mecanismos de escape da resposta imune é a variação antigênica, na qual o agente infeccioso altera seus antígenos. Esse mecanismo é especialmente importante para agentes extracelulares escaparem do reconhe- cimento de suas estruturas de superfície pelos anticorpos. Pode-se dividir o mecanismo em três variações. A primeira é a existência de uma ampla variedade de tipos antigênicos, também chamados de sorotipos (por serem reconhecidos por anticorpos diferentes em testes sorológicos). A reposta imune gerada é tipo- -específica, ou seja, para cada sorotipo, há uma resposta diferente, podendo não proteger dos outros diferentes sorotipos. Um exemplo de patógeno que utiliza essa estratégia é o Streptococcus pneumoniae (Figura 1), que possui cerca de 84 diferentes tipos. Figura 1. Método de variação antigênica utilizada pelo S. pneumoniae. Fonte: Murphy (2014, p. 509). Falhas na defesa do organismo2 A segunda variação abarca a deriva antigênica e o desvio antigênico (Figura 2). A deriva ocorre quando mutações pontuais nas proteínas de superfície de certos microrganismos ocasionam perda de reconhecimento completo por anticorpos e, com isso, escape do sistema imune. O desvio antigênico ocorre com grandes mudanças na proteína de superfície causando total perda de reconhecimento por anticorpos e pandemias severas. Exemplos dessas duas variações ocorrem no vírus influenza. Figura 2. Deriva e desvio antigênico utilizado por vírus influenza. Fonte: Murphy (2014, p. 510). A terceira variação envolve rearranjos programados, em que alterações no principal antígeno de superfície do microrganismo ocorrem repetidamente no mesmo hospedeiro infectado. Com isso, o patógeno escapa dos anticorpos do hospedeiro, expressando proteínas diferentes na sua superfície a cada período 3Falhas na defesa do organismo de tempo, o que causa recorrência da doença em ciclos (cada ciclo constituindo uma proteína diferente expressa na sua superfície e sendo combatida pelo sistema imune, com outra proteína sendo expressa posteriormente e reiniciando o ciclo) (MURPHY, 2014). Um exemplo é o tripanossoma africano (Figura 3). Figura 3. Rearranjos programados utilizados por tripanossomas. O patógeno realiza rearranjos gênicos no gene de uma proteína de mem- brana, a glicoproteína variante-especifica (VSG). Assim, algum tempo após o contato com o parasita, o sistema imune cria anticorpos para um tipo de VSG, que é suprimido pelos anticorpos. Logo após, os poucos patógenos com o novo tipo de VSG começam a se proliferar, gerando um novo ciclo de resposta imune. Fonte: Murphy (2014, p. 511). Outra forma de evasão ao sistema imune é a capacidade de latência que alguns microrganismos possuem. Esse mecanismo diz respeito à capacidade de patógenos ficarem “adormecidos” dentro de células com uma baixa produção de proteínas, o que gera baixa resposta imune. Esses patógenos também escolhem células com pouca expressão de MHC de classe I (o que também gera pouca resposta imune), como os neurônios. Após situações que levam, por exemplo, Falhas na defesa do organismo4 a alterações hormonais, estresse ou imunossupressão, esses patógenos podem ser reativados e causar reações patológicas. Um exemplo clássico de vírus que utiliza o mecanismo de latência é o vírus do herpes simples (em inglês, herpes simplex virus [HSV]). Ele permanece latente nos neurônios sensitivos da face e, após situações de estresse, pode ser reativado e causar infecção nas células epiteliais, produzindo ulcerações (ABBAS; LICHTMAN; PILLAI, 2019). Além dos mecanismos citados, há patógenos que apresentam mecanismos de defesa imune especializadosapós terem induzido resposta imune do hos- pedeiro. Alguns utilizam o macrófago como hospedeiro primário e impedem sua própria destruição intracelular. Patógenos como o M. tuberculosis, por exemplo, impedem a fusão do fagossomo (onde se encontram) com o lisossomo (que contém enzimas de degradação). Já a L. monocytogenes tem a capacidade de escapar do fagossomo para o citoplasma, encontrando um meio favorável à sua multiplicação. O parasita T. gondii produz sua própria vesícula (quando já fagocitado), que não se funde com nenhum outro compartimento intracelular, isolando-o e impedindo que seja apresentado em moléculas de MHC. Já a bactéria T. pallidum se reveste com moléculas do hospedeiro para evitar o reconhecimento pelos anticorpos. Existem diversos outros modos pelos quais os patógenos “enganam” o sistema imune do hospedeiro e muitos ainda a serem descobertos (MURPHY, 2014). Alguns patógenos também podem gerar imunossupressão como forma de sobrevivência. Algumas bactérias estafilocócicas, por exemplo, produzem proteínas que se ligam a células T, levando a ativação dessas células, liberação de citocinas e posterior apoptose dessas células, causando, consequentemente, imunossupressão generalizada. O B. anthracis, por exemplo, libera uma toxina que induz apoptose em macrófagos infectados. A imunossupressão gerada por esses patógenos gera uma infecção generalizada, sendo a causa mais comum de morte em pacientes infectados. Alguns patógenos, por gerarem imunos- supressão, causam infecções secundárias aos pacientes que podem agravar o quadro ou ser letais. O vírus do sarampo, por exemplo, gera imunossupressão e possibilidade de contaminação por outros patógenos, como pneumonias bac- terianas (maior causa de morte em crianças com sarampo) (MURPHY, 2014). Outro mecanismo é a interação dos patógenos com células T regulatórias. Células T regulatórias CD4 CD25 ajudam na manutenção da tolerância imuno- lógica. Acredita-se que isso se deva ao fato de que suprimem a proliferação de linfócitos T, favorecendo o patógeno (gerando uma evasão ao sistema imune). 5Falhas na defesa do organismo No quadro da Figura 4, a seguir, você pode ver uma síntese das estratégias de resistência utilizadas por alguns microrganismos. Figura 4. Diferentes mecanismos de escape do sistema imune. Fonte: Murphy (2014, p. 515). Falhas na defesa do organismo6 Falhas genéticas para a implementação do patógeno As imunodefi ciências podem ser classifi cadas em dois grupos: primárias e secundárias. As imunodefi ciências primárias são causadas por mutações nos genes que infl uenciam na resposta imune. As imunodefi ciências secundárias acontecem como consequência de outras doenças ou de fatores ambientais. Nesta seção, falaremos das imunodefi ciências primárias, ou seja, as de origem genética (KINDT; GOLDSBY; OSBORNE, 2008). Imunodeficiências genéticas causam sérios problemas de saúde, especial- mente infecções recorrentes com o mesmo patógeno ou patógenos similares. As infecções recorrentes causadas por bactérias piogênicas (bactérias que produzem pus) indicam falhas nos anticorpos, no complemento ou na função das células fagocíticas. Por outro lado, infecções recorrentes causadas por vírus ou fúngicos epidérmicos persistentes indicam falhas no mecanismo de defesa mediado por células T (MURPHY, 2014). Veja, no quadro da Figura 5, as diferentes imunodeficiências humanas. Defeitos genéticos que acometem a produção de anticorpos são proble- máticos principalmente no combate a patógenos extracelulares, já que esses patógenos vivem no meio extracelular e dependem da ação dos anticorpos para realizar a correta eliminação do agente. Esses defeitos causam especial problema em patógenos que escapam do sistema imune inato por conter cáp- sula polissacarídica, como as bactérias piogênicas. Assim, os anticorpos e o sistema complemento agiriam na identificação, na opsonização e na eliminação pelas células fagocíticas de agentes patogênicos. Com a existência do defeito mencionado, esse mecanismo não funcionaria. Doenças como a agamaglobulinemia ligada ao X de Bruton causam a não produção de anticorpos pelo indivíduo. Essa doença é de caráter recessivo ligado ao cromossomo X, ou seja, indivíduos do sexo masculino (que possuem somente um cromossomo X) têm mais chances de desenvolver essa doença se herdarem o gene defeituoso. Essa mutação ocorre no gene da proteína BTK (tirosina quinase de Bruton), que atua na maturação dos linfócitos B, ou seja, indivíduos com essa doença apresentam falhas no processo de maturação dessas células. Nas mulheres com essa mutação recessiva, observa-se a inativação do cromossomo X em suas células B. Aquelas células que inativaram o gene normal da proteína BTK não são capazes de se desenvolver. Na Figura 6, é possível identificar esse processo (MURPHY, 2014). 7Falhas na defesa do organismo Figura 5. Imunodeficiências humanas. Fonte: Murphy (2014, p. 521). Falhas na defesa do organismo8 Pessoas com defeitos na maturação de célula B podem se defender de diversos patógenos. Entretanto, a defesa contra bactérias piogênicas necessita da atuação de anticorpos. Para esses casos, podem ser utilizados antibióticos e infusões de imunoglobulinas humanas exógenas periodicamente. Havendo a presença dessas imunoglobulinas, há a proteção contra esse subgrupo de patógenos. Figura 6. Gene BTK e o desenvolvimento de células B. Fonte: Murphy (2014, p. 529). 9Falhas na defesa do organismo A síndrome de hiper-IgM se caracteriza pela superprodução de IgM e respostas imunes limitadas. A principal variante dessa doença é causada por uma mutação no gene para o ligante de CD40 (a proteína CD154), impedindo a ligação de CD40 com seu ligante. Essa mutação tem como consequência a deficiente ativação de células B e o bloqueio da troca de isotipo de anticorpos. Outra importante variante dessa doença é uma mutação na proteína NEMO (subunidade da quinase IKK), impedindo uma correta sinalização intracelular e a correta ativação de NF-κB, gerando imunodeficiência. Outro exemplo é causado pela mutação na enzima AID (citidina deaminase induzida por ativação), com acúmulo de células B imaturas e falha na troca de isotipo, tendo como consequência susceptibilidade aumentada a infecções, aumento de linfonodos e do baço (ABBAS; LICHTMAN; PILLAI, 2019). A imunodeficiência comum variável (IDCV), causada por um defeito ge- nético em uma proteína transmembrana chamada de ativador transmembrana similar ao TNF, compromete a função tanto de células B quanto de células T. Caracteriza-se pelos níveis reduzidos de imunoglobulinas séricas e é causada pela mutação no gene que expressa a molécula ICOS (coestimulador induzível de células T), importante para a diferenciação de linfócitos T. Além das imunodeficiências citadas, o sistema complemento, extremamente importante para a defesa contra patógenos extracelulares, também pode ser alvo de falhas genéticas. Defeitos na ativação de C3 (um dos componentes do sistema complemento) mostram importante comprometimento na defesa contra diversos patógenos piogênicos, como S. pneumoniae. Outros defeitos nas proteínas reguladoras do complemento podem causar doenças como a hemoglobinúria paroxística noturna, em que há a destruição das hemácias do próprio paciente, ou o edema angioneurótico hereditário, causando acúmulo de líquido nos tecidos e na epiglote em função da produção excessiva de mediadores vasoativos (MURPHY, 2014). Defeitos nos genes responsáveis por codificar proteínas do controle da produção e da interação de fagócitos, bem como eliminação de microrga- nismo pelas células fagocíticas, também geram severa imunodeficiência. As neutropenias (deficiência de neutrófilos) são importantes condições que podem requerer transplantes de medula. Essas condições podem ser causadas por defeitos no gene da ELA2 (elastase neutrofílica humana) ou no gene SBDS (relacionado a processamento de RNA), causando bloqueio da maturação deneutrófilos. Outra doença envolvendo células fagocíticas é a deficiência de adesão leucocitária, causada por defeitos no gene de transportador GDP-fucose, Falhas na defesa do organismo10 da CD18 ou do gene Rac2. Esses defeitos podem impedir que neutrófilos e macrófagos atinjam os sítios de infecção. Outra doença, a doença granulo- matosa crônica, apresenta defeito na produção de ROS (espécies reativas de oxigênio), tornando o organismo altamente suscetível a infecções por bactérias e fungos (MURPHY, 2014). A imunodeficiência combinada grave (em inglês, severe combined im- munodeficiency [SCID]) apresenta falha no desenvolvimento de células T e células NK, pois apresenta mutação do gene da cadeia comum γ de receptores de diversas interleucinas. A XSCID, doença ligada ao cromossomo X, é a forma mais conhecida dessa doença. Apesar de as células B desses pacientes parecerem normais, a resposta de anticorpos nesses pacientes não é efetiva. Outra variante da SCID é causada por falhas no rearranjo do DNA (especial- mente os genes RAG-1 e RAG-2) de linfócitos em desenvolvimento, parando esse processo e havendo ausência de linfócitos T e B (MURPHY, 2014). A síndrome de Wiskott-Aldrich (em inglês, Wiskott-Aldrich syndrome [WAS]) é uma condição ligada ao cromossomo X que afeta a proteína WASP. Essa proteína está ligada à transdução de sinal e função supressora em células Treg. Da mesma forma, defeitos na sinalização de células T e nos seus receptores de antígeno causam doenças severas. Mutações no gene FOXN1 estão ligadas ao não desenvolvimento funcional do timo. Essa mutação causa problemas na resposta a diversos patógenos pela ausência de células T. Correlacionada a essa mutação, a síndrome de DiGeorge apresenta falha no desenvolvimento normal do epitélio do timo, causando falhas no processo de amadurecimento de células T (MURPHY, 2014). A síndrome do linfócito nu acarreta defeito na expressão de moléculas de MHC de classe II, causando severa imunodeficiência. Nessa condição, não há seleção positiva de células no timo e poucas células se desenvolvem. Da mesma forma, falhas na expressão de MHC de classe I causam graves doenças em pacientes, levando a infecções respiratórias bacterianas crônicas e ulceração da pele com vasculite. Mutações que inativam IL-12, seu receptor ou o receptor de IFN-γ causam deficiência no combate a patógenos intracelulares. Essa condição causa falhas na ativação de macrófagos e células NK, importantes células de defesa do sistema imunológico. A síndrome linfoproliferativa ligada ao X causa imunodeficiência pela falha do controle de células T e é fatal quando associada à infecção pelo EBV (herpesvírus humano) pela formação de linfomas (MURPHY, 2014). Um resumo das mutações e seus efeitos podem ser visto na Figura 7. 11Falhas na defesa do organismo Figura 7. Resumo de mutações e seus efeitos. Fonte: Murphy (2014, p. 522). O organismo possui muitos mecanismos de redundância para que falhas sejam contornadas, sobrepondo efeitos de diversas células e fatores imunes. Caso a falha ocorra, um método possível para corrigir é a substituição dos componentes defeituosos através de transplante de medula óssea. Nesses casos, o hospedeiro deve compartilhar alguns alelos de MHC com o enxerto para que ocorra a correta ativação de células T no timo. Além disso, deve-se atentar ao risco de as células do doador reconhecerem as do hospedeiro como estranhas e atacarem, causando a doença do enxerto contra o hospedeiro. Outra forma promissora para corrigir as falhas causadas por mutações seria a terapia gênica somática. Nessa técnica, ainda em testes, ocorre a inserção de genes normais em células que contêm genes defeituosos para que sua função seja recuperada (ABBAS; LICHTMAN; PILLAI, 2019). Falhas do sistema imune e aids A aids é causada por infecção pelo vírus da imunodefi ciência humana (em inglês, human immunodefi ciency virus [HIV]) tipo 1 ou tipo 2, causando imu- Falhas na defesa do organismo12 nossupressão e perda gradual da imunocompetência. A doença se caracteriza por profunda diminuição das células dendríticas e dos macrófagos e células T CD4, causando susceptibilidade a infecções por organismos oportunistas e desenvolvimento de formas agressivas de sarcoma de Kaposi ou linfoma de células B (LEVINSON, 2016). A infecção inicial ocorre após a troca de fluidos com uma pessoa conta- minada. As formas mais comuns são através de ato sexual sem uso preserva- tivo, uso de agulhas contaminadas e de hemoderivados contaminados. Esta última forma de contágio citada vem sendo amplamente eliminada devido aos controles e testes realizados pelos bancos de sangue antes das transfusões. A transmissão da mãe para o bebê é bastante reportada especialmente durante o parto ou através da amamentação. O trato gastrointestinal e a mucosa genital são os principais sítios de in- fecção primária. Nesses locais, os vírus se multiplicam e disseminam nos compartimentos linfoides desses tecidos, espalhando-se como infecção sis- têmica. O vírus se dissemina a partir de um reservatório inicial em células dendríticas e macrófagos, onde os vírus se replicam. As células dendríticas são as responsáveis por transportar o patógeno até as células T CD4 no tecido linfoide, que pode ser infectado diretamente ou através de sinapses imunoló- gicas com as células dendríticas (MURPHY, 2014). Veja, na Figura 8, o caminho que o vírus HIV percorre. Figura 8. Caminho do vírus HIV. Fonte: Murphy (2014, p. 548). 13Falhas na defesa do organismo A infecção pelo vírus HIV não causa aids imediatamente, pois o vírus pode permanecer em latência por muito tempo antes de a doença progredir. A forma como ocorre a progressão da doença em cada infectado ainda é controversa. Apesar de a infecção aguda inicial parecer ser controlada pelo sistema imune, a infecção pelo HIV raramente leva a uma resposta imune eficaz contra o patógeno, e o vírus continua a se replicar dentro da célula e contaminar novas células. Na fase aguda, que clinicamente se assemelha a uma gripe, ocorre uma grande queda na quantidade de células T CD4 circulantes. Ocorre, também, ativação de células T CD8 que matam as células infectadas e produção de anticorpos contra antígenos do vírus. Após um período assinto- mático (que pode durar de 6 meses a 20 anos), em que a doença apresenta uma latência clínica, os pacientes podem desenvolver aids e apresentar infecções oportunistas (MURPHY, 2014). Veja, na Figura 9, o curso da infecção por HIV. Figura 9. Curso da infecção por HIV. Fonte: Murphy (2014, p. 546). Existem três principais mecanismos para explicar a diminuição de células T CD4 durante a infecção por HIV: morte direta das células pelos vírus, sus- ceptibilidade aumentada das células infectadas de sofrer apoptose e eliminação das células infectadas por células T CD8. Existem também evidências de que o vírus infecte e destrua progenitores de células T CD4 no timo. Falhas na defesa do organismo14 O HIV é um vírus do grupo lentivírus envelopado (Figura 10), contém duas fitas de RNA e proteínas virais no seu interior, sendo todo esse material envolto por envelope composto por duas camadas fosfolipídicas originadas da membrana celular da célula hospedeira, composta por proteínas virais codificadas. Ele utiliza a transcriptase reversa para transformar seu RNA em DNA dentro de células infectadas e funde seu DNA viral no cromossoma da célula hospedeira. Com a formação de novas partículas virais, o vírus escapa da célula por brotamento da membrana plasmática. O vírus possui duas glicoproteínas no envelope viral que são responsáveis pelo tropismo por determinadas células: a gp120 e a gp41. A gp120 se une com alta afinidade ao CD4 da superfície celular de células T CD4, células dendríticas e macró- fagos. A gp120 também pode ligar-se a correceptores na membrana da célula hospedeira, que são o CCR5, presente em células dendríticas, macrófagos e células T CD4, e o CXCR4, expresso emcélulas T ativadas. Já a molécula gp41 promove a fusão do envelope viral com a célula hospedeira para que o genoma viral penetre na célula (MURPHY, 2014). Figura 10. Estrutura do HIV: na primeira imagem vemos o vírus do HIV em foto de micros- copia eletrônica. Na segunda imagem, vemos um esquema de seus constituintes virais. Fonte: Murphy (2014, p. 547). 15Falhas na defesa do organismo Existe uma pequena porção de pessoas que faz a soroconversão e não apresenta a progressão da doença (não apresentam diminuição de células T CD4). Outra pequena porção de pessoas, apesar de ser exposta ao vírus, é soronegativa e permanece livre da doença e do vírus. Esse acontecimento pode ser explicado, em partes, por variações genéticas das pessoas expostas. Variações no HLA são bastante associadas à progressão da doença, sendo os alelos HLA-B57 e HLA-B27 associados a melhor prognóstico. Já o alelo HLA-B35 está associado a uma progressão mais rápida da doença. A ho- mozigosidade em HLA de classe I está associada à progressão mais rápida devido a resposta ser menos diversificada. Polimorfismos no receptor KIR de células NK também estão associados à lenta progressão a doença, assim como mutações na produção de citocinas como IL-10 e IFN-γ também estão associadas à restrição de progressão do HIV (MURPHY, 2014). O caso mais característico de variação genética ocorre no alelo mutante CCR5. Homozigotos para essa mutação não funcional, chamada de Δ32, apresentam truncamento da proteína (proteína não funcional), e esses indi- víduos apresentam bloqueio eficaz na infecção por HIV. Já os heterozigotos apresentam lenta progressão para aids e podem fornecer alguma proteção contra a transmissão sexual da infecção. O CCR5 é o principal correceptor de macrófagos e linfócitos T utilizado pelo vírus para estabelecer a infecção. O conhecimento dessa mutação e de seus efeitos pode gerar fármacos para o seu bloqueio e, consequentemente, bloqueio na infecção por HIV (MURPHY, 2014). A tabela da Figura 11 resume os genes que influenciam a progressão da aids. Falhas na defesa do organismo16 Figura 11. Resumo de genes que influenciam a progressão da aids. Fonte: Murphy (2014, p. 550). Para entender melhor o ciclo do HIV, assista à animação que está no link a seguir. https://qrgo.page.link/f1jw2 17Falhas na defesa do organismo ABBAS, A. K.; LICHTMAN, A. H.; PILLAI, S. Imunologia celular e molecular. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2019. KINDT, T. J.; GOLDSBY, R. A.; OSBORNE, B. A. Imunologia de Kuby. 6. ed. Porto Alegre: Bookman, 2008. LEVINSON, W. Microbiologia médica e imunologia. 13. ed. Porto Alegre: McGraw-Hill, 2016. MURPHY, K. M. Imunobiologia de Janeway. 8. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. Leitura recomendada CICLO DO VIRUS DA AIDS. [S. l.: s. n., s. d.]. 1 vídeo (4 min). Publicado pelo canal Fladja Rodrigues. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=E-AtkmgoY20. Acesso em: 23 set. 2019. Falhas na defesa do organismo18 DICA DO PROFESSOR Acompanhe a videoaula com as dicas do professor! Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) Doug Perkins, 33 anos, teve queimaduras de terceiro grau no antebraço devido à ruptura da mangueira do radiador de seu carro. Vários dias depois, Perkins estava confuso e pouco alerta mentalmente, e seu filho o levou à emergência. Ele tinha febre, movimentos respiratórios rápidos, urticária generalizada, hipotensão e redução na contagem dos glóbulos brancos. Um teste de cultura sanguínea foi positivo para estreptococo β-hemolítico do grupo A. Qual das seguintes afirmativas melhor explicaria seus sintomas? A) Os superantígenos estreptocócicos causaram a produção de altos níveis de citocinas de células T, causando choque sistêmico e apoptose dos clones de células T estimulados pelo superantígeno. B) A ativação de células T específicas para o patógeno causou uma produção intensa e persistente de células T secretoras de citocinas, gerando o choque sistêmico. C) A ligação cruzada dos superantígenos com moléculas do MHC nos macrófagos causou a morte dos macrófagos, a redução dos fagócitos e a oposonização do patógeno. D) A ativação policlonal de células B causou uma hiperestimulação às células B e subsequente deposição de complexos imunes no endotélio dos vasos sanguíneos, causando choque sistêmico. Níveis maciços de superantígenos estimularam a ligação cruzada e a endocitose mediada por receptor das moléculas do MHC de classe I, resultando na ativação ineficiente das E) células T CD8 e consequente septicemia. 2) Christiana Carter não apresentava nenhum problema aparente até os 18 meses de vida, quando parou de ganhar peso, perdeu o apetite e apresentou episódios recorrentes de diarreia. Aos 24 meses, Christiana desenvolveu tosse com infiltrado pulmonar que não respondia a tratamento com os antibióticos claritromicina e timetropina/sulfametoxazola. Em três meses, ela desenvolveu linfoadenopatia, hepatoesplenomegalia e febre. Uma tomografia computadorizada revelou linfonodos mesentéricos e para-aórticos aumentados. A biópsia de um linfonodo axilar aumentado revelou bacilo álcool-ácido resistente, e Mycobacterium fortuitum cresceu em cultura de linfonodo e sangue. A infecção por HIV foi descartada após testes de ELISA e PCR negativos. Testes sorológicos para anticorpo antitoxoide tetânico apresentaram níveis normais pós-vacinação. As células mononucleares de sangue periférico (PBMCs) de Christiana foram cultivadas com interferon-γ e LPS sem aumento significante na produção de TNF-α. Vários antibióticos antimicobacterianos de amplo espectro foram administrados, baixando a febre, e, após dois meses, Christiana começou a ganhar peso, mas continuava com sinais de infecção persistente. Qual das seguintes alterações é a explicação mais provável para esses achados clínicos? A) Deficiência na adesão de leucócitos. B) Doença granulomatosa crônica. C) Deficiência no receptor de interferon-γ. D) Agamaglobulinemia ligada ao X (XLA). E) Imunodeficiência combinada grave. 3) O vírus do herpes simples favorece a latência nos neurônios devido aos baixos níveis de _______, que reduz a probabilidade de morte pelas células T CD8. A) LFA-3. B) Receptores semelhantes a Toll. C) Transportador associado ao processamento do antígeno (TAP). D) MHC de classe I. E) MHC de classe II. 4) A síndrome linfoproliferativa autoimune é uma anomalia nos genes Fas ou ligante Fas, e é caracterizada pelo aumento do baço. Assinale a alternativa que representa uma vulnerabilidade a qual o sujeito que porta essa anomalia estará suscetível. A) Bactérias encapsuladas. B) Suscetibilidade a infecções por herpes-vírus C) Linfomas e autoimunes. D) Lise de eritrócitos pelo complemento. E) Infecções virais e bacterianas crônicas. O sucesso de um transplante de medula óssea está diretamente relacionado ao grau de compatibilidade do _____ entre o paciente e o doador. A compatibilidade tem dois objetivos. Primeiro, reduz a extensão da doença enxerto versus hospedeiro (GVHD, do inglês graft-versus-host disease), uma reação de dano ao tecido, causada pelas células T maduras do transplante que respondem às moléculas do MHC de classe I e de classe II alogênicas do receptor. Segundo, assegura a reconstituição eficaz do 5) sistema imune adaptativo. Assinale a alternativa que preenche corretamente a lacuna. A) HLA. B) TAP. C) Fas. D) UL18. E) US6. NA PRÁTICA A síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) foi descrita pela primeira vez por clínicos no início dos anos 1980. A doença é caracterizada por uma grande redução no número de células T CD4, acompanhada por infecções graves com patógenos que raramente causam problemas em pessoas saudáveis, ou por formas agressivas do sarcoma de Kaposi ou linfomas de células B. Pacientes diagnosticados com aids eventualmente morrem dos efeitos da doença. SAIBA + Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto,veja abaixo as sugestões do professor: A imunodeficiência e o sistema imunitário. O comportamento em portadores de HIV. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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