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AULA 2 TERAPIA COGNITIVO- COMPORTAMENTAL PARA DEPENDÊNCIA QUÍMICA E ADICÇÕES CONTEMPORÂNEAS Profª Silvia Helena Brandt do Santos 2 TEMA 1 – UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO USO DE SPAS Ao longo de toda a história da humanidade, houve o uso de substâncias psicoativas (SPAs). Desde os primórdios já eram usadas em cerimônias e rituais que buscavam prazer, diversão e experiências místicas. Tanto o vinho como a cerveja eram utilizados pelos egípcios no tratamento de saúde, bem como o ópio para os gregos e árabes, usado para aliviar a dor. O álcool foi meio de diversão em festividades de gregos e romanos e em rituais sagrados de índios. Algumas tribos do México consumiam também o cogumelo, o qual consideravam sagrado e induzia à alucinação. Ao compreender que as drogas eram utilizadas para rituais religiosos, para manter os costumes culturais (e também porque seus efeitos negativos eram desconhecidos), não traziam consigo conotação de risco social. McRae (2005) relata que, no fim do século XIX e início do século XX, com o contexto da industrialização e ascensão da ciência, a visão a respeito do uso de SPAs sai do campo religioso e ritualístico e passa a pertencer à ciência biomédica, que inicia a problematização sobre o uso e abuso de diversas drogas. Nos últimos 30 anos, as pesquisas acerca do assunto aumentaram, e os riscos oriundos do uso e abuso individual e social ganham evidência, e passam a pautar discussões acerca da implementação de políticas públicas de atenção aos problemas com drogas no Brasil. O aumento da violência a que a sociedade foi acometida em virtude do abuso de SPAs trouxe essa questão à tona, o que exige do governo e da sociedade civil uma união para encontrar uma possível prevenção e tratamento. É necessário que se trabalhe em rede, de forma profilática, com ações que perpassem pela promoção à saúde, com a divulgação e conscientização da população em geral acerca dos riscos do abuso de SPAs, e também o tratamento eficaz para quem já está envolvido. No cenário atual, vemos famílias sendo afetadas de forma drástica com o uso/abuso de SPAs, trazendo, além de sofrimento biológico ao usuário, um sofrimento bio-psico-sócio-cultural a ele e às pessoas mais próximas. Prejuízos ao corpo, que sofre com as substâncias tóxicas recebidas; prejuízo social, uma vez que, com o aumento do uso, a pessoa deixa de ter comprometimento com horários e responsabilidades assumidas. O aspecto psicológico entra em sofrimento tanto pelo uso em si quanto pelas consequências que vivencia a nível 3 biológico e social. Por conseguinte, o campo cultural também sofre, já que de forma dialética influencia negativamente, interrompendo a apreensão dos signos culturais e enviando mensagens negativas à cultura contemporânea. O tabaco e o álcool agravam vários problemas de saúde, gerando altos custos às políticas públicas, e a assistência social também observa um aumento de atendimento a esse público. Chama a atenção o número crescente do uso de crack. Em muitos aspectos, os problemas relacionados ao seu consumo não são diferentes do que acontece com outras drogas, porém, observa-se um nível de maior severidade no comprometimento com essa substância. Em relação às políticas públicas, é importante, tanto quanto o trabalho efetivo em rede, o conhecimento acerca do tema, por meio de pesquisas e cursos de capacitação. TEMA 2 – EXPERIMENTAÇÃO, USO, ABUSO E DEPENDÊNCIA DE DROGAS Vimos que as SPAs estão presentes na vida da humanidade desde que conhecemos sua história. Quase sempre o valor moral ligado às drogas era permeado de crenças negativas que se atribuíam a quem as usava: “portadores de graves falhas de caráter”, “pessoas vagabundas, sem força de vontade”, “possuídos por forças do mal”, entre outras. À medida que a relação do sujeito e da cultura se modificava com o uso das substâncias, também o conceito objetivo (científico) e subjetivo (moral) se transformava. Nos últimos dois séculos, passou-se a discutir e a realizar pesquisas com as SPAs voltadas aos aspectos relacionados à saúde. O alcoolismo foi estudado no século XX nos EUA, principalmente por E. M. Jellinek. Ele recebeu apoio dos grupos de mútua ajuda recém-criados na época (1935 – Alcoólicos Anônimos – AA), que passaram a usar seus estudos. Tais conhecimentos influenciaram a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Associação Médica Americana (AMA) também. Na década de 1960, houve encontros multidisciplinares, com representantes de todo o mundo, organizados pela OMS. O objetivo era estudar e organizar o conhecimento acerca das SPAs, a fim de otimizar os atendimentos a usuários de drogas, ampliando os recursos técnicos para diagnóstico, classificando transtornos mentais, dentre eles os ligados ao 4 uso/abuso/dependência de SPAs. Também se buscou padronizar os termos técnicos, o que auxiliou e motivou pesquisas na área. Esses encontros tiveram inúmeros resultados positivos, dentre eles a determinação de procedimentos para avaliação conjunta de entrevistas filmadas, bem como outros métodos de pesquisa sobre diagnóstico da dependência química. Tais resultados foram utilizados para a revisão da CID, o que auxiliou a produção da 8ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-8). A CID já passou por outras análises e estudos posteriormente, estando hoje em sua 10º revisão, utilizada pelo sistema de saúde pública brasileiro. Além da CID, temos o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM), da Associação Psiquiátrica Americana (APA), atualmente na 5ª revisão. Com base no estudo formal e com metodologia científica, avança-se na classificação tanto da dependência química quanto do usuário de SPA, ultrapassando o conceito de moralidade e compreendendo todo o contexto bio- psico-sócio-cultural do sujeito, que o permite e/ou o leva a usar/abusar ou tornar- se dependente. Tanto o CID quanto o DSM-IV trouxeram critérios para a dependência química propostos por Edward e Gross em 1976, que estabeleceram níveis de comprometimento ao longo de um processo contínuo, entre o nunca ter experimentado até o gravemente enfermo. Conforme os cientistas conceituaram, os principais sinais e sintomas de uma síndrome de dependência do álcool são os seguintes: Estreitamento do repertório de beber: o uso torna-se mais persistente, não fazendo distinção de grupos ou parceiros para essas situações. Qualquer coisa se torna motivo para beber, independentemente de onde, com quem ou em que momento o sujeito se encontra. Isso o deixa cada vez mais ligado a um estereótipo de “bêbado”; Saliência do comportamento de busca pelo álcool: a pessoa começa a organizar sua rotina em função da bebida, deixando as demais atividades em plano secundário; Sensação subjetiva da necessidade de beber: a pessoa passa a ter um desejo forte e compulsivo de beber. Sente que perdeu o controle; Desenvolvimento da tolerância ao álcool: a pessoa percebe que a mesma quantidade já não faz o mesmo efeito que antes, porque seu organismo precisa de quantidades cada vez maiores; 5 Sintomas repetidos de abstinência: conjunto de sintomas que trazem desconforto quando o uso é interrompido; Alívio dos sintomas de abstinência ao aumentar o consumo: essa característica pode dificultar o diagnóstico, uma vez que os sintomas não aparecem e a pessoa não admite o aumento do uso; Reinstalação da síndrome de dependência: o padrão antigo de consumo pode se estabelecer rapidamente, mesmo após um longo período de não uso. Esse padrão foi estabelecido acerca do álcool, porém pode se repetir com outras SPAs. Importante ressaltar que, ao se estabelecer critérios objetivos, possibilitou- se que o diagnóstico fosse feito com maior precisão antes de qualquer tratamento. Araújo e Latufo Neto (2014, p. 68-69) dizem que a formulação de um diagnósticopassa pela compreensão dos comportamentos que são tidos como inadequados, e isso requer a análise das contingências que os instalaram e que os mantêm. Nesse sentido, o uso de classificações categoriais é limitante, pois a topografia de um comportamento não é suficiente para a compreensão da sua função para um determinado indivíduo. A análise funcional do comportamento é imprescindível para o planejamento da intervenção clínica. No entanto, os autores informam que, apesar das limitações, o DSM-V permite obter informações importantes sobre indivíduos diagnosticados com determinado transtorno mental. É possível inferir que pacientes com o mesmo transtorno, dividindo traços semelhantes, possam apresentar comportamentos semelhantes. Da mesma forma, nomear classes de respostas pode auxiliar na identificação de comportamentos similares entre si. Além disso o uso do manual da Associação Psiquiátrica Americana viabiliza a comunicação entre profissionais fornecendo uma padronização na linguagem psiquiátrica e facilitando o diálogo entre as diferentes áreas. TEMA 3 – DEFINIÇÕES DO DSM E DO CID-10 O DSM-V retirou de seu conteúdo a divisão que havia no DSM-IV entre os diagnósticos de “abuso e dependência de substâncias” e os agrupou como “transtorno por uso de substâncias”. Conforme apontam Araújo e Lotufo Neto (2014, p. 80-81), o transtorno por uso de substância somou os antigos critérios para abuso e dependência conservando-os com mínimas alterações: a exclusão de “problemas legais recorrentes relacionados à substância” e inclusão de “craving ou um forte desejo ou impulso de usar uma substância”. O diagnóstico passou a ser acompanhado de critérios para intoxicação, 6 abstinência, transtorno induzido por medicação/substância e transtornos induzidos por substância não especificados. O DSM-5 exige dois ou mais critérios para o diagnóstico de transtorno por uso de substância, e a gravidade do quadro passou a ser classificada de acordo com o número de critérios preenchidos: dois ou três critérios indicam um transtorno leve, quatro ou cinco indicam um distúrbio moderado, e seis ou mais critérios indicam um transtorno grave. A atual versão do manual passou a incluir os diagnósticos de abstinência de cannabis e abstinência de cafeína e excluiu o diagnóstico de dependência de múltiplas substâncias. O transtorno por uso de nicotina foi substituído pelo transtorno por uso de tabaco. O DSM-5 removeu os especificadores “com dependência fisiológica/sem dependência fisiológica” e reorganizou os especificadores de remissão, reconhecendo como “remissão precoce” um período de pelo menos três meses no qual nenhum dos critérios para o uso da substância (exceto o desejo) é atendido, e “remissão sustentada” quando o período é superior a doze meses. O manual também incluiu os especificadores que descrevem indivíduos “em um ambiente controlado” e aqueles que estão “em terapia de manutenção”. No DSM-IV-TR o jogo patológico era apresentado como parte dos transtornos do controle dos impulsos não classificados em outro local, mas as crescentes evidências de que alguns comportamentos, tais como jogos de azar, atuam sobre o sistema de recompensa com efeitos semelhantes aos de drogas de abuso, motivando o DSM-5 a incluir o transtorno de jogo entre os transtornos relacionados a substâncias e adicção. Quadro 1 – Definição de “uso”, “abuso” e “dependência” USO ABUSO DEPENDÊNCIA É a autoadministração de qualquer quantidade de substância psicoativa. O CID traz o termo “uso nocivo”, que resulta em dano físico ou mental (vide Quadro 2). Padrão de uso que aumenta o risco de consequências prejudiciais para a pessoa. DSM: o abuso também gera consequências sociais (vide Quadro 2). No Quadro 3 é possível ver uma comparação entre os critérios de dependência expostos nas classificações do DSM-IV e do CID. Esses dois sistemas de classificação facilitam identificar o dependente de substância psicoativa. Quadro 2 – Comparação entre critérios de abuso e uso nocivo de acordo com a DSM-IV e CID-10 DSM-IV CID-10 Abuso Uso nocivo Um ou mais sintomas adotados ocorrendo no período de 12 meses, sem nunca preencher critérios para dependência; Uso recorrente em situações nas quais isso representa perigo físico; Problemas legais recorrentes relacionados à substância; Uso continuado, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados pelos efeitos da substância. Evidência clara de que o uso foi responsável (ou contribuiu consideravelmente) por dano físico ou psicológico, incluindo capacidade de julgamento comprometida ou disfunção de comportamento; A natureza do dano é claramente identificável; O padrão de uso tem persistido por pelo menos um mês e tem ocorrido repetidamente dentro de um período de 12 meses; Não satisfaz critérios para qualquer outro transtorno relacionado à mesma substância no mesmo período (exceto intoxicação aguda). 7 Quadro 3 – Comparação entre os critérios para dependência de acordo com a DSM-IV e CID-10 DSM-IV CID-10 Padrão mal adaptativo de uso, levando a prejuízo ou sofrimento clinicamente significativos, manifestados por três ou mais dos seguintes critérios, ocorrendo a qualquer momento dentro de 12 meses: Três ou mais das seguintes manifestações ocorrendo conjuntamente por pelo menos um mês ou, se persistirem por períodos menores, devem ter ocorrido juntas de forma repetida em um período de 12 meses: 1. Tolerância: definida por qualquer um dos seguintes aspectos: a. Necessidade de quantidades progressivamente maiores para adquirir a intoxicação ou efeito desejado; b. Acentuada redução do efeito com o uso continuado da mesma quantidade. 1. Forte desejo ou compulsão para consumir a substância; 2. Abstinência: manifestada por qualquer um dos seguintes aspectos: a. Síndrome de abstinência característica para a substância; b. A mesma substância (ou uma substância estreitamente relacionada) é consumida para aliviar ou evitar sintomas de abstinência. 2. Comprometimento da capacidade de controlar o início, término ou níveis de uso, evidenciado pelo consumo frequente em quantidades ou períodos maiores que o planejado ou por desejo persistente ou esforços infrutíferos para reduzir ou controlar o uso. 3. A substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um período mais longo do que o pretendido. 3. Estado fisiológico de abstinência quando o uso é interrompido ou reduzido, como evidenciado pela síndrome de abstinência característica da substância ou pelo uso desta ou similar para aliviar ou evitar tais sintomas. 4. Existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso. 4. Evidência de tolerância aos efeitos, necessitando de quantidades maiores para obter o efeito desejado ou estado de intoxicação ou redução acentuada desses efeitos com o uso continuado da mesma quantidade. 5. Muito tempo é gasto em atividades necessárias para obter e utilizar a substância ou se recuperar de seus efeitos. 5. Preocupação com o uso, manifestado pela redução ou abandono das atividades prazerosas ou de interesse significativo por causa do uso ou do tempo gasto em obtenção, consumo e recuperação dos efeitos. 6. Importantes atividades sociais, ocupacionais ou recreativas são abandonadas ou reduzidas em virtude do uso. 6. Uso persistente, a despeito de evidências claras de consequências nocivas, evidenciadas pelo uso continuado quando o sujeito está efetivamente consciente (ou espera-se que esteja) da natureza e extensão dos efeitos nocivos. 7. O uso continua, apesar da consciência de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente, que tende a ser causado ou exacerbado pela substância. 8 TEMA 4 – CONCEITOS FUNDAMENTAIS Epidemiologia: é o ramo da medicinaque estuda os diferentes fatores que intervêm na difusão e propagação de doenças, sua frequência, seu modo de distribuição, sua evolução e a colocação dos meios necessários à sua prevenção. É uma ciência que estuda a ocorrência de fatos que acontecem com a população, buscando compreender o que se passa com o povo de forma geral. Por exemplo: Quantas pessoas foram contaminadas pelo HIV? Quantos fumantes são usuários de álcool? Quantos ganham salário mínimo? Prevalência: é a característica do que prevalece; superioridade, supremacia. Ao contrário da epidemiologia, que busca dados gerais, a prevalência busca conhecer um fato específico em um contexto (local e tempo). Por exemplo: Quantas mulheres foram infectadas pelo HIV entre os moradores de Curitiba em 2018? Casos existentes – mulheres infectadas com HIV; população determinada – moradores de Curitiba; tempo determinado – ano de 2018. Incidência: é o estudo de novas casualidades em uma população e um tempo determinado. Por exemplo: Quantos novos casos de HIV houve entre mulheres que usam serviço público municipal de saúde no primeiro semestre de 2019? Agora, dê uma pausa na leitura e pesquise sobre a epidemiologia, a prevalência e a incidência das principais drogas em seu município e região. É importante que você conheça as SPAs mais consumidas pelos atuais e possíveis pacientes. 9 TEMA 5 – ASPECTOS SOCIOCULTURAIS DO USO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS Procurou o homem, desde a mais remota antiguidade, encontrar um remédio que tivesse a propriedade de aliviar suas dores, serenar suas paixões, trazer-lhe alegria, livrá-lo de angústias, do medo ou que lhe desse o privilégio de prever o futuro, que lhe proporcionasse coragem, ânimo para enfrentar as tristezas e o vazio da vida. (Lauro Sollero) Como já exposto, uma das razões para que o uso de drogas não fosse visto como ameaça perante a máquina de gestão social era sua relação com rituais coletivos e culturais. MacRae (2005, p. 1) nos informa que: Mesmo hoje, quando as regulações tradicionais da sociedade se mostram menos eficazes para enquadrar o consumo de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, este ainda raramente ocorre de maneira desregulada. Isso continua a ser verdadeiro mesmo quando as regras que norteiam essas atividades desviam ou entram em conflito com as leis e os valores considerados hegemônicos. Portanto, para realizar um trabalho de prevenção ao abuso de drogas que seja efetivo, é necessário começar por procurar conhecer o contexto sociocultural em que ocorre o seu uso, buscando entender a sua lógica interna. Compreender a relação do sujeito com a SPA é importante, porque as crenças do usuário acerca de si mesmo, da sociedade em que se encontra, de sua família e da droga influenciam de forma direta na maneira como ele as usará. Corroborando a ideia exposta, podemos citar Becker (1976), um estudioso da dimensão sociológica das drogas. Ele chamou a atenção para a importância de um saber sobre as substâncias que se difunde entre seus usuários, expondo que suas ideias sobre a droga influenciam como eles as usam, interpretam e respondem a seus efeitos. O autor defende que a experiência derivada do uso dependerá do grau de conhecimento que lhe é disponível. Zinberg (1980) também concorda, afirmando que os efeitos do uso de SPA dependem das propriedades farmacológicas, das atitudes, da personalidade do usuário, do meio em que está inserido e no momento do uso. MacRae (2005, p. 2), acerca do conhecimento da população sobre a droga, complementa que, uma vez “que a divulgação desse saber é função da organização social dos grupos em que as drogas são usadas, os efeitos do uso irão, portanto, se relacionar a mudanças na organização social e cultural”. A família também apresenta importante influência no padrão de uso, uma vez que é a primeira referência do indivíduo, atua como mediadora entre o sujeito 10 e a sociedade, pois repassa os valores desta, criando ou reforçando crenças que serão a base para o modo como se percebe o mundo e se posiciona frente às situações que a vida apresenta. Apesar de não ser a única – pois todas as instituições de que o sujeito faz parte (escola, grupos esportivos, de artes, amigos etc.) contribuem com modos de ver o mundo (formadoras de crenças) –, é a maior responsável pela formação pessoal. A família e a influência cultural são fatores importantes na determinação do padrão do uso e consumo do álcool e outras drogas. Há várias evidências de que os padrões culturais têm papel significativo no desenvolvimento do alcoolismo. Sem, entretanto, ignorar as condições preexistentes de personalidade que podem favorecer a dependência de álcool e outras drogas. (Buchele; Marques; Carvalho, 2004) MacRae (2005, p. 5) expõe ainda a importância de reconhecer a “estrutura de vida” do sujeito para o tratamento. Essas estruturas seriam as atividades regulares, tanto as convencionais quanto as relacionadas à droga, que estruturam os padrões da vida quotidiana. Aí também se incluem as relações pessoais, os compromissos, obrigações, responsabilidades, objetivos, expectativas etc., mesmo que não primariamente direcionados à droga. Uma disponibilidade adequada das substâncias, que evitasse que a sua simples aquisição se tornasse o único foco de interesse do usuário, também seria importante para permitir o desenvolvimento das sanções e dos rituais sociais. As normas, regras e rituais determinariam e constrangeriam os padrões de uso da droga, evitando uma erosão na estrutura de vida […]. Uma vida altamente estruturada permitiria que o usuário mantivesse a estabilidade na disponibilidade da droga, essencial para a formação e manutenção de regras e rituais. A autorregulação do consumo de drogas e seus efeitos seriam, portanto, questão de um equilíbrio (precário) em uma corrente de retroalimentação circular. Em uma sociedade focada no consumo, na qual o importante é o “ter” e não o “ser”, as crenças que o sujeito cria acerca de si e do meio não raras vezes passam pelo prazer imediato, pela não tolerância à frustração e pela descartabilidade de bens, valores e até mesmo pessoas, trazendo uma sensação de vazio que pode, então, ser preenchida com a substância psicoativa. Prochaska e DiClemente (1986) acreditam que o consumo de drogas é uma forma de expressão e percepção de si mesmo, numa relação que inclui os outros e o ambiente em que se vive. Brandt (2016) complementa que tanto a dependência química quanto seu tratamento são fenômenos socialmente construídos, e que a abstinência do uso de SPAs pode se estabilizar se o dependente químico for um participante engajado em atividades comunitárias, as quais produzem efeito socializador, possibilitando a ressignificação de crenças e, com isso, a mudança de atitudes no indivíduo. 11 Novas atitudes e um novo modo de se portar no mundo permitem alterar a direção e o controle das tarefas, que mudam a atenção das drogas para outros valores, o que possibilita gerar novos padrões de ação e ressignificar a realidade prática e relacional do dependente químico. Além de conscientizar, essa participação desenvolve o pensamento reflexivo e crítico, e fortalece um compromisso cidadão. 5.1 Tradições e usos distintos A influência cultural não se restringe apenas ao álcool ou a outras drogas lícitas. Observe, a seguir, algumas considerações sobre a planta da coca, matéria- prima da cocaína, nos seus diferentes aspectos e no seu uso cultural, segundo Figueiredo (2002). Suas folhas são mastigadas há séculos, nas montanhas e altiplanos, pela população indígena. O hábito de mastigar a folha da coca – o chamado “coquear” – ocupa um lugar de destaque na cosmologia, na esfera comunitária e ritual dessas populações. “Coquear” faz parte de uma adaptação biológica e sociocultural em contexto geográfico e climático altamentedesfavorável que, evidentemente, não se deixa mudar por considerações meramente moralistas. Mastigar a folha da coca tem por objetivo, em primeiro lugar, evitar o cansaço considerável devido à altitude. Evitam-se, assim, a sede e a fome (ou pelo menos as suas sensações), e aguenta-se melhor o frio, às vezes, intenso. O seu valor cultural e mitológico é ressaltado, em particular, por meio do seu uso nos momentos do nascimento e da morte. Ela é aplicada no recém-nascido para a secagem do cordão umbilical, que, em seguida, é enterrado junto com as folhas de coca, representando, assim, um talismã para o resto da vida do indivíduo. Nas cerimônias funerais, acredita-se numa verdadeira convulsão dos espíritos (da coca), que devem ser apaziguados mediante certos rituais, para assegurar a tranquilidade no além, da pessoa falecida. Percebe-se, dessa forma, que o uso da coca parece ter algo de “sagrado”. Ele não se limita ao mastigar, como consequência de condições socioeconômicas difíceis. Se é altamente desejável melhorar as condições de vida dessa população, não quer dizer que se deva, para isso, destruir os seus valores culturais milenares (Senad, 2011). 12 REFERÊNCIAS APA – American Psychiatric Association. DSM-IV: diagnostic and statistical manual of mental disorders. 4. ed. Whashington, DC: APA, 1994. _____. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5. ed. Washington, DF: APA, 2013. ARAÚJO, A. C; LATUFO NETO, F. A nova classificação americana para os transtornos mentais – o DMS-5. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, São Paulo, v. XVI, n. 1, p. 67-82, 2014. BECKER, H. Consciência, poder e efeito da droga. In: BECKER, H. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 181-204. BRANDT, S. H. et al. Psicologia em estudo: resultados de um processo de formação. Curitiba: CRV, 2016. BRASIL. Presidência da República. Legislação e políticas públicas sobre drogas no Brasil. Brasília, DF: SNPD, 2010. BUCHELE, F.; MARQUES, A. C. P. R.; CARVALHO, D. B. B. Importância da Identificação da cultura e hábitos relacionados ao álcool e outras drogas. In: _____. Atualização de conhecimentos sobre redução da demanda de drogas. 1. ed. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2004. v. 1. p. 223-233. Curso a distância. MACRAE, E. A subcultura da droga e prevenção. 2005. Disponível em: <http://www.neip.info/downloads/t_edw5.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019. OMS – Organização Mundial de Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1993. SENAD – Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas. Prevenção ao uso indevido de drogas: capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias. 4. ed. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2011. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/arquivos/File/Projeto_Semear/Material_Capacitacao/Cur so_Prevencao_ao_uso_indevido_de_Drogas_Capacitacao_para_Conselheiros_ e_Liderancas_Comunitarias_2011_SENAD.pdf>. Acesso em: 11 set, 2019. ZINBERG, N. The social setting as a control mechanism in intoxicant use. In: LETTIERI, D. J.; MAYERS, M.; PEARSON, H. W. (Ed.). Theories on drug abuse. Rockdalle: Nida Research Monograph 30, 1980. p. 236-244.