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SUMÁRIO 1 O QUE É LINGUÍSTICA? ............................................................................ 3 2 ANÁLISE LINGUÍSTICA E PRODUÇÃO DE TEXTOS ............................... 4 2.1 A teoria da variação linguística ........................................................... 11 2.2 Variação estável ou mudança em curso? ........................................... 15 2.3 O estudo da mudança linguística em tempo aparente ....................... 16 2.4 As variáveis sociais na caracterização dos processos de variação e mudança ........................................................................................................... 19 3 RACISMO LINGUÍSTICO OU ENSINO DEMOCRÁTICO E PLURALISTA? .................................................................................................................. 22 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 51 1 O QUE É LINGUÍSTICA? Fonte:www.cose.com A Linguística é o estudo científico da linguagem. Está voltada para a explicação de como a linguagem humana funciona e de como são as línguas em particular. Pode ser dividida em: FONÉTICA - Estuda os sons da fala, preocupando-se com o mecanismo de produção e audição. FONOLOGIA - Preocupa-se também com os sons da língua, mas do ponto de vista de sua função. MORFOLOGIA - Estuda o signo linguístico reduzido a sua expressão mais simples (morfemas), e a combinação entre esses morfemas formando unidades maiores, como a palavra e o sintagma. SINTAXE - Estuda tudo que se relaciona com a combinação linear dos morfemas. É a sintaxe que vai explicar que o português pode usar tipos de construção de frases. SEMÂNTICA - Preocupa-se com o significado. A Semântica é a parte da Linguística que se interessa pela natureza, função e usos desses significados. PRAGMÁTICA - Volta-se para o que se faz com a linguagem, em que circunstâncias e com que finalidades. ANÁLISE DO DISCURSO - Nos estudos linguísticos da Análise do discurso, entram não apenas aspectos semânticos e literários, mas tudo o que um linguista pode utilizar em termos de som, significado e estrutura para analisar um texto. PSICOLINGUÍSTICA - Se interessa pelos processos mentais relacionados com a produção da linguagem, estudando as relações entre pensamento e linguagem. SOCIOLINGUÍSTICA - Vai mostrar os problemas da variação linguística e da norma culta. 1 2 ANÁLISE LINGUÍSTICA E PRODUÇÃO DE TEXTOS Fonte:formaoprofes2011.blogspot.com.br O processo de elaboração de qualquer texto, seja ele escrito, seja oral ou multimodal, envolve mais que criação, mais que inspiração. Envolve essencialmente trabalho sobre e com a linguagem. Esse trabalho se traduz em atividade analítica e reflexiva dos sujeitos, nas múltiplas reações do texto. Do ponto de vista da mediação pedagógica, tal trabalho se materializa nas práticas de análise linguística. Diferentemente do trabalho das aulas convencionais de gramática, que privilegiam as classificações e a correção linguística, a análise linguística se preocupa em auxiliar os alunos a dominar recursos linguísticos e a refletir sobre em que medida certas 1 Texto extraído do link: http://crescendocomaspalavras.blogspot.com.br palavras, expressões, construções e estratégias discursivas podem ser mais ou menos adequadas ao seu projeto de dizer, auxiliando na ampliação das capacidades de leitura e na produção textual dos alunos. Assim, a reflexão sobre a linguagem tomando como objeto o próprio texto que se está elaborando exige que o aluno analise possíveis (in)adequações das escolhas linguísticas – ao gênero, ao tema em foco, à formalidade esperada etc., sua força expressiva ou eficácia argumentativa. Trata-se, portanto, de uma atividade linguageira essencial nas diversas etapas da produção. Fonte:sites.google.com A prática de análise linguística pode se converter numa ferramenta importante para auxiliar os alunos na percepção dos pontos Análise linguística e produção de textos: reflexão em busca de autoria Márcia Mendonça em que podem melhorar seu texto e na mobilização dos conhecimentos que lhes permitam fazer as mudanças devidas. Muito comumente, a ação dos alunos se dirige para os aspectos mais “visíveis” dos textos escritos, para os ajustes mais salientes a serem feitos, quanto a convenções da escrita e atendimento à norma linguística de prestígio, por exemplo, ortografia, indicação gráfica de parágrafos, uso de letras maiúsculas, concordância e regência. Sem esquecer a importância desses cuidados formais, é necessário também que os alunos saibam observar questões de outra natureza, mais complexas, seja porque se estendem para unidades maiores – parágrafo ou texto –, seja porque envolvem aspectos do discurso, ultrapassando o domínio daquele texto em especial. Fonte:brasilescola.uol.com.br Uma das capacidades necessárias a quem produz um texto é avaliar a pertinência dos registros de linguagem para determinado gênero. Por exemplo, o uso do verbo ordenar para fazer uma solicitação em uma carta formal, dirigida a uma autoridade, parece inadequado. Embora a reflexão se dirija a uma palavra (ordenar), a avaliação quanto ao seu uso remete à situação comunicativa como um todo: o gênero Carta de solicitação formal, o interlocutor a quem se dirige, a finalidade dessa carta. O investimento na ampliação das capacidades reflexivas dos alunos pode se dar antes do momento de produção, durante ou depois dele, de forma mais ou menos integrada aos momentos de escrita/elaboração de textos. Fonte:shawtycorrea.blogspot.com.br Antes da produção, em aulas dedicadas à leitura ou aos conhecimentos linguísticos, ainda que o alvo imediato não sejam os textos dos alunos, estes ganham ao se apropriarem de recursos e estratégias discursivas que passam a compor o seu rol de conhecimentos linguísticos e habilidades. Quando o professor explora, na aula de leitura, os efeitos da ironia para a construção da argumentação, com análise de exemplos, comparação de ocorrências, pesquisa de outros exemplos em fontes diversas, criação de paráfrases irônicas, entre outras possíveis atividades, permite aos alunos perceber a eficácia e os limites desse recurso, os diversos modos como se constroem enunciados irônicos, conhecimentos que poderão ser estrategicamente usados nas suas produções. Investe-se em atividades metalinguísticas – sobre a linguagem e seu funcionamento – para auxiliar as atividades epilinguísticas, aquelas nas quais o aluno reflete sobre os usos que fez ou pretende fazer no texto que está elaborando. Benefício semelhante pode trazer um trabalho reflexivo com a constituição morfológica de palavras – radical e afixos – que saliente a semelhança ortográfica e semântica de palavras, de acordo com a permanência do radical (as denominadas “palavras da mesma família”, como lesão, lesionar, lesionado) ou dos afixos (prefixos, sufixos e infixos). Por exemplo, os substantivos abstratos chatice, meninice e velhice trazem o sufixo ICE, que se escreve com C. Na produção, caso tenha dúvida sobre a escrita de gulodice, por exemplo, poderá lembrar do que estudou nas outras aulas (claro, desde que tenha sido uma abordagem que privilegie o percurso de percepção da regularidade até a construção mediada da regra). No caso, a regularidade morfológica é a grafia do sufixo ICE, usado em substantivos abstratos que designam qualidade ou estado de algo. Fonte: brasilescola.uol.com.br Durante a produção, espera-se que o aluno seja positivamente tensionado, pondo em xeque possíveis (in) adequações dos recursos linguísticos e estratégias discursivas que pretende mobilizar, diante do quadro mais geral da situação comunicativa. Isso significa avaliar se determinado uso linguístico é mais ou menosadequado e estratégico e que efeitos de sentido pode produzir, tendo em vista um conjunto de fatores interligados: 1. Aquilo que pretende dizer; 2. Gênero escolhido/solicitado; 3. Os interlocutores, seus papéis sociais e a rede de relações de poder aí envolvidas; 4. As finalidades dessa interação verbal específica; 5. Tom que deseja imprimir ao seu discurso (enfático, conciliador, irônico etc.); 6. O investimento estético com a linguagem, entre outros aspectos da produção discursiva. Fonte: ejemplosde.com.mx Para produzir um artigo de divulgação científica, podemos nos deparar com dúvidas do tipo qual o grau de aprofundamento do tema a ser tratado? Como “traduzir” os conceitos mais complexos? Que estratégias de envolvimento do leitor usar? E isso envolve escolhas linguísticas bem específicas. Um exemplo é o uso das explicações de conceitos. O que explicaria melhor na situação comunicativa específica: paráfrases, analogias, exemplos, desenhos esquemáticos etc.? E como inserir essas explicações no texto: entre parênteses, após dois pontos, em boxes, em citações de falas de especialistas, quando for o caso? Decidir a respeito de o que explicar, o quanto explicar, como explicar, quando explicar e como textualizar essa explicação no texto envolve pôr na balança os ganhos e perdas de tais escolhas, tendo em vista os fatores já mencionados. A análise linguística pode ter ainda um papel muito importante nas devolutivas dos textos, já lidos e comentados pelo professor ou por outros avaliadores/revisores (alunos, grupos de alunos, outras pessoas). Nesse momento, chegam aos estudantes indicações de aspectos para aprimorar seu texto que lhe escaparam anteriormente por serem, provavelmente, mais opacos, menos perceptíveis a esses autores. Assim, indicações qualificadas dos pontos a serem ajustados podem detonar processos reflexivos poderosos e fundamentais na ampliação das capacidades discursivas dos alunos, desde que contem com a mediação docente adequada. Fonte: www.imaginie.com O ato de tornar saliente um problema textual é muito distinto de apenas indicar que há um problema em determinado trecho. Em se tratando de coesão, por exemplo, mais que destacar um período e escrever “problema de coesão” na margem da folha (ou da tela), é preciso delimitar especificamente a sua natureza – por exemplo, uso indevido de pontuação, conjunção, modo/ tempo verbal, ou falta de paralelismo. Dessa forma, a revisão e a reação do texto podem ser preciosas oportunidades para aprender, não apenas para higienizar o que foi escrito. As atividades de análise linguística, seja em caráter prospectivo, quando ocorrem antes da produção; seja em caráter retrospectivo, após o texto ter sido elaborado e avaliado ou durante a produção, podem ser de grande importância para ampliar a apropriação, por parte dos alunos, das habilidades e dos conhecimentos necessários para rever e aprimorar as suas produções, movimento que mesmo os mais proficientes autores fazem ao longo de toda a vida. Os impactos das práticas de análise linguística sobre a qualidade dos textos produzidos na escola são proporcionais à natureza reflexiva de tais atividades: ao induzir os alunos a perceberem os efeitos e/ou as regularidades dos usos linguísticos, contribui-se para que sintam a sua língua, cada vez mais sua.2 2.1 A teoria da variação linguística Fonte: mundoeducacao.bol.uol.com.br A Sociolinguística tem por objeto de estudo os padrões de comportamento linguístico observáveis dentro de uma comunidade de fala e os formaliza analiticamente através de um sistema heterogêneo, constituído por unidades e regras variáveis. Esse modelo visa a responder a questão central da mudança linguística a partir de dois princípios teóricos fundamentais: I- O sistema linguístico que serve a uma comunidade heterogênea e plural deve ser também heterogêneo e plural para desempenhar plenamente as suas funções; rompendo-se assim a tradicional identificação entre funcionalidade e homogeneidade; II- Os processos de mudança que se verificam em uma comunidade de fala se atualizam na variação observada em cada momento nos padrões de comportamento linguístico observados nessa comunidade, sendo que, se a mudança implica necessariamente variação, a 2 Texto extraído do link: www.escrevendoofuturo.org.br variação não implica necessariamente mudança em curso (cf. LABOV, 1972, 1974 e 1982 e 1994; e WEINREICH, LABOV e HERZOG, 1968). Fonte: verbumeduc.blogspot.com.br Assim, os processos de mudanças contemporâneas que ocorrem na comunidade de fala são primordiais na Sociolinguística. Comunidade de fala para esse modelo teórico-metodológico não é entendida como um grupo de pessoas que falam exatamente igual, mas que compartilham traços linguísticos que distinguem seu grupo de outros; comunicam relativamente mais entre si do que com os outros e, principalmente compartilham normas e atitudes diante do uso da linguagem. (Cf. LABOV, 1972; GUY, 2000). Dessa forma, para os sociolinguistas, nas comunidades de fala, frequentemente, existirão formas linguísticas em variação, isto é, formas que estão em concorrência (quando duas formas são usadas ao mesmo tempo) e em concorrência (quando duas formas concorrem). Daí ser a Sociolinguística Variacionista também denominada de Teoria da Variação. Toda a análise sociolinguística passa então a ser orientada para as variações sistemáticas, inerentes ao seu objeto de estudo, a comunidade de fala, concebidas como uma heterogeneidade estruturada. Não existe, portanto, um caos linguístico, cujo processamento, análise e sistematização sejam impossíveis de serem processados. Há, pelo contrário, um sistema (uma organização) por trás da heterogeneidade da língua falada. Fonte: luciarvalho-sociofonematica.blogspot.com.br As formas em variação recebem o nome de "variantes linguísticas". Tarallo (1986, p. 08) afirma que: "variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade. A um conjunto de variantes dá-se o nome de variável linguística". Essas variáveis subdividem-se em variáveis linguísticas dependentes e independentes. A variável dependente é o fenômeno que se objetiva estudar; por exemplo, a aplicação da regra de concordância nominal, as variantes seriam então as formas que estão em competição: a presença ou a ausência da regra de concordância nominal. O uso de uma ou outra variante é influenciado por fatores linguísticos (estruturais) ou sociais (extralinguísticos). Tais fatores constituem as variáveis explanatórias ou independentes. Nesse sentido, a Teoria da Variação considera a língua em seu contexto sociocultural, uma vez que parte da explicação para a heterogeneidade que emerge nos usos linguísticos concretos pode ser encontrada em fatores externos ao sistema linguístico e não só nos fatores internos à língua. Portanto, como observou Mollica (2003, p. 10), "ela parte do pressuposto de que toda variação é motivada, isto é, controlada por fatores de maneira tal que a heterogeneidade se delineia sistemática e previsível". Fonte:www.editoracontexto.com.br Desse modo, um estudo sociolinguístico visa à descrição estatisticamente fundamentada de um fenômeno variável, tendo como objetivo analisar, apreender e sistematizar variantes linguísticas usadas por uma mesma comunidade de fala. Para tanto, calcula-se a influência que cada fator, interno ou externo ao sistema linguístico, possui na realização de uma ou de outra variante. Ao formalizar esse cenário, a análise sociolinguística busca estabelecer a relação entre o processo de variação que se observa na língua em um determinado momento (isto é, sincronicamente) com os processos de mudança que estão acontecendo na estrutura da línguaao longo do tempo (isto é, diacronicamente). 2.2 Variação estável ou mudança em curso? Fonte:blogdanielrodrigues.com Através da análise das variáveis sociais, busca-se definir o quadro de variação observado na comunidade de fala nos termos da dicotomia entre variação estável e mudança em progresso. No primeiro caso, conclui-se que o quadro de variação tende a se manter ainda por um longo período, já que não se verifica uma tendência de predominância de uma variante linguística sobre a(s) outra(s). Já o diagnóstico de mudança em progresso implica que o processo de variação caminha para a sua resolução em favor de uma das variantes identificadas, que deve se generalizar, tornando-se o seu uso praticamente categórico dentro da comunidade de fala. Nesse quadro, a(s) outra(s) variante(s) tenderia(m) a cair em desuso. Assim, correlacionando a estrutura linguística variável com fatores da estrutura social, poder-se-ia observar como uma determinada variante estaria se difundindo entre os diversos segmentos sociais, no que se definiu como uma das faces do problema da transição – ing. transition problem. Por outro lado, através de testes de julgamento subjetivo, poder-se-ia aferir a reação dos falantes diante dos valores da variável observada, de modo a se definir a tendência de mudança que essa avaliação social favoreceria, no que foi denominado problema da avaliação – ing. evaluation problem. Tais informações, juntamente com as informações relativas ao encaixamento da variável na estrutura linguística da comunidade de fala, teriam um papel capital para o esclarecimento acerca de como a postulada mudança chegaria a sua consecução, no que foi denominado de problema da implementação – actuationproblem (cf. WEINREICH, LABOV e HERZOG, 1968; e LABOV, 1972 e 1982). Nesse sentido, a grande questão é avaliar se um determinado cenário de variação tende a se resolver em função de uma determinada variante, efetivando-se a mudança linguística, ou se as variantes identificadas tendem a se manter no uso linguístico da comunidade, dentro de uma estratificação específica, o que caracterizaria a variação estável. 2.3 O estudo da mudança linguística em tempo aparente Fonte: anidabar.wordpress.com A possibilidade de se fazer inferências acerca do desenvolvimento diacrônico da língua a partir de análises sincrônicas ganhou corpo na pesquisa linguística com os estudos desenvolvidos por William Labov na década de 1960, primeiramente na ilha de Martha’sVineyard, em 1963, e depois na cidade de Nova York, em 1966. Como afirmaria o próprio Labov (1972), concebendo a variação linguística como um fenômeno sistemático, e não aleatório, através da correlação entre fatores linguísticos e fatores sociais, poder-se-ia superar a barreira erguida pelos estruturalistas americanos de que a mudança linguística não poderia ser observada em seu processo de implementação, mas apenas em seus resultados finais. Fundamentalmente, postula-se que a variação observada sincronicamente em um determinado ponto da estrutura da gramática de uma comunidade de fala pode refletir um processo de mudança em curso na língua, no plano diacrônico. Desse modo, busca-se apreender o tempo real, onde se dá desenvolvimento diacrônico da língua, no chamado tempo aparente. O tempo aparente constitui, assim, uma espécie de projeção. O pressuposto central do tempo aparente é o de que as diferenças no comportamento linguístico de gerações diferentes de falantes num determinado momento refletiriam diferentes estágios do desenvolvimento histórico da língua. Fonte:pt.wikipedia.org A validade do [tempo aparente] depende crucialmente da hipótese de que a fala das pessoas de 40 anos hoje reflete diretamente a fala das pessoas de 20 anos há 20 anos atrás e pode, portanto, ser comparada com a fala das pessoas de 20 anos de hoje, para uma pesquisa da difusão da mudança linguística. As discrepâncias entre a fala das pessoas de 40 e 20 anos são atribuídas ao progresso da inovação linguística nos vinte anos que separam os dois grupos. (CHAMBERS e TRUDGILL, 1980, p. 165) Mas, como reconhecem os próprios Chambers e Trudgill (idem, ibidem), "a relação entre tempo aparente e tempo real pode ser de fato mais complexa do que a simples equiparação dos dois sugere". Realmente, a projeção (ou equivalência) do que se observa no tempo aparente para o que teria se passado no tempo real apoia- se no pressuposto de uma estabilidade do sistema, o que significa dizer que o padrão linguístico fixado por um indivíduo na adolescência ou pré-adolescência se conserva mais ou menos intacto pelo resto de sua vida; só assim podemos imaginar que o padrão depreendido do comportamento linguístico dos falantes de 60 anos de hoje corresponderia a padrão fixado na comunidade há 40 anos (LABOV, 1981, 180-1; e NARO, 2003, p. 43-50). Porém, não se pode ter absoluta segurança a respeito disso, e, pelo menos até o início da década de 1990, esse pressuposto básico do conceito de tempo aparente ainda não havia sido plenamente testado (LUCCHESI, 2001). Fonte:fgrurbanismo.blogspot.com.br Por outro lado, nada pode assegurar que uma tendência de mudança identificada pelo linguista num determinado momento não será revertida num futuro próximo em decorrência de novos fatos que não estavam presentes no momento em que o linguista fez o seu diagnóstico. Em função desse caráter contingencial dos processos históricos, "qualquer afirmação sobre a mudança [em progresso] é evidentemente uma inferência" (LABOV, 1981, p. 177). Esse prognóstico entre mudança em curso e variação estável baseia-se na combinação dos resultados obtidos através da correlação da variável linguística estudada com as variáveis sociais. 2.4 As variáveis sociais na caracterização dos processos de variação e mudança As pesquisas sociolinguísticas tem buscado traçar um perfil da mudança em progresso e um perfil da variação estável através da combinação dos resultados das variáveis idade, sexo, classe social e nível de escolaridade, a partir da noção de prestígio. No que concerne à faixa etária, a variação estável se caracterizaria por um padrão curvilinear, no qual as faixas intermediárias apresentariam a maior frequência de uso das formas de prestígio; já na mudança em progresso, a distribuição seria inclinada, com os mais jovens apresentando a maior frequência de uso das formas inovadoras (cf. CHAMBERS e TRUDGILL, 1980, p. 91-3). Mas a tendência aferida pelos resultados da faixa etária deve ser confirmada pelos resultados das outras variáveis sociais. Assim, um cenário em que os falantes das classes mais altas e de maior nível de escolaridade exibem proporcionalmente uma maior frequência de uso das formas de prestígio do que o falantes da classe média (e estes, por sua vez, uma maior frequência do que os da classe baixa) apontaria para uma situação de variação estável; enquanto que os processos de mudança tendem a ser liderados pelos indivíduos mais integrados da classe média baixa e/ou das seções mais elevadas da classe operária (cf. LABOV, 1982, p. 77-8). No que concerne à variável sexo, nas situações de variação estável, as mulheres tendem a ser mais sensíveis ao uso das formas de prestígio, o que pode ser aferido numa escala de níveis de formalidade da fala. Por outro lado, nas mudanças em que se abandona o uso de uma forma padrão, o processo tende a ser liderado pelos homens, enquanto que as mulheres lideram as mudanças em direção às formas de prestígio (cf. CHAMBERS e TRUDGILL, 1980, p. 97-8). Já Labov (1982, p. 78) afirma genericamente que "na maioria das mudanças linguísticas, as mulheres estão à frente dos homens na proporção de uma geração". Porém, como bem notou Scherre (1988, p. 429), "a respeito da variável sexo, pode-se ver na literatura linguística que o seu papel, especialmente do sexo feminino,na questão da mudança não é muito claro". Fonte: www.eadstrong.com.br E, como reconhece o próprio Labov (1981, p. 184): Mas é importante ter em mente que essa propensão das mulheres para as formas de maior prestígio (no sentido do padrão normativo) é limitada àquelas sociedades em que as mulheres desempenham um papel na vida pública. Um tendência contrária foi encontrada em Teerã por Modaressi (1977) e Jain, na Índia (1975). Nesse sentido, é bom destacar que a maioria das conclusões apresentadas acima se referem a processos de variação/mudança ocorridos nos grandes centros urbanos de países com alta grau de industrialização, como o Canadá, os Estados Unidos e a Inglaterra. É preciso que se faça uma análise crítica desses parâmetros, evitando a sua aplicação mecânica a realidades socioculturais totalmente distintas, como a de comunidades rurais, em um país com um desenvolvimento industrial tardio e dependente como o Brasil. No caso da variável sexo, por exemplo, os resultados das análises sociolinguísticas realizadas sobre comunidades rurais e da periferia das grandes cidades exibem resultados totalmente distintos daqueles observados nas sociedades urbanas industrializadas. No caso das comunidades rurais brasileiras, os homens tendem a liderar os processos de mudança em direção às formas de prestígio. Isso porque são eles que têm mais contato com o mundo exterior dos grandes centros urbanos por estarem mais integrados no mercado de trabalho. Já as mulheres, na maioria das vezes circunscritas ao universo doméstico e de trabalho na roça, tendem a conservar mais as formas da fala rural, bem distantes do padrão urbano culto. Fonte:planetaenem.com É sempre bom repetir que a caracterização de um processo de variação estável ou de mudança em curso independe dos resultados isolados de cada variável social, ela deve apoiar-se fundamentalmente na coerência argumentativa da representação que o linguista constrói do processo como um todo, a partir das evidências empíricas fornecidas pelos resultados de cada variável (cf. LUCCHESI, 2004, p. 189-193). É esse o entendimento que orienta as análises sociolinguísticas desenvolvidas no âmbito do Projeto Vertentes.3 3 Texto extraído do link: http://www.vertentes.ufba.br 3 RACISMO LINGUÍSTICO OU ENSINO DEMOCRÁTICO E PLURALISTA? Fonte:opreconceitolinguistico2.blogspot.com.br Em 1901, o Jornal de Notícias, de Salvador, publicava o seguinte: Começaram, infelizmente, desde ontem, a se exibir em algazarra infernal, sem espírito nem gosto, os célebres grupos africanizados de canzás e búzios, longe de contribuírem para o brilhantismo das festas carnavalescas, deprimem o nome da Bahia, com esses espetáculos incômodos e sensaborões. Apesar de, nesse sentido, já se haver reclamado da polícia providências, é bom, ainda uma vez, lembrarmos que não seria má a proibição desses candomblés nas festas carnavalescas. Dois anos depois, o Jornal voltava à carga: O carnaval deste ano, não obstante o pedido patriótico e civilizador, [feito por este jornal, foi ainda a exibição pública do candomblé, salvo raríssimas exceções. Se alguém de fora julgar a Bahia pelo seu Carnaval, não pode deixar de colocá- la a par da África e note-se, para nossa vergonha, que aqui se acha hospedada uma comissão de sábios austríacos que, naturalmente, de pena engatilhada, vai registrando estes fatos para registrar nos jornais da culta Europa, em suas impressões de viagem. Fonte:novaescola.org.br Essas passagens ilustram claramente características essenciais das elites neste país: o desprezo pelo povo brasileiro e sua cultura (particularmente no tocante à matriz africana) e a subserviência às potências estrangeiras, culminando com a componente autoritária, que vê como ação civilizadora a repressão policial a legítimas manifestações populares. O fato de os blocos afros serem hoje um dos ícones do Carnaval da Bahia, que encanta o mundo inteiro, só vem a confirmar o equívoco histórico da visão da classe dominante sobre as coisas deste país. O mesmo se pode dizer da capoeira, antes arma de perigosos marginais, hoje luta nacional, e da perseguição aos candomblés, para onde os caciques políticos da atualidade vão buscar a benção das mães-de- santo. Não se trata de uma evolução do pensamento da elite dominante, que segue acantonada em seus nichos de exclusão (como os camarotes e as cordas que isolam os blocos puxados por cantoras louras no Carnaval da Bahia), e sim de avanços democráticos alcançados, sobretudo pela ação dos movimentos populares, que reduziram em muito o preconceito e conservadorismo discricionário das elites brasileiras em vários planos da cultura. Mas, se até o racismo, que surge historicamente para legitimar o abjeto instrumento da escravidão, hoje é crime tipificado no Código Penal Brasileiro, a classe dominante não baixa sua guarda, sempre a postos, acionando os seus rottweilers na grande imprensa, para tentar criminalizar as manifestações e os movimentos populares. Fonte:preconceito-linguistico.blogspot.com.br No entanto, em um plano essencial da cultura, o preconceito da elite dominante segue célere e impune: a língua, velha companheira do Império. Nada mais revelador a esse respeito do que toda a grita promovida nos últimos dias, na grande imprensa, contra o livro didático de língua portuguesa “Por uma vida melhor”, distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação (MEC), para a educação de jovens e adultos. A obra, da autoria da professora Heloísa Ramos, baseia-se em princípios racionais e imprescindíveis para um ensino eficaz da língua materna, que são expostos logo em sua introdução, tais como o de que “falar é diferente de escrever” e que, se a língua materna se aprende “espontaneamente” na oralidade, “o aprendizado da língua escrita” é diferente, “pois exige um aprendizado formal” (p. 11). E, como se espera de uma obra dedicada ao conhecimento da língua, o livro reconhece que o português, como qualquer língua humana viva, admite formas diferentes de dizer a mesma coisa (“não há um único jeito de falar e escrever. A língua portuguesa apresenta muitas variantes, ou seja, pode se manifestar de diferentes formas” – p. 12), o que há muito tempo é reconhecido pelos cientistas da linguagem como variação linguística. Informa ainda que a variação na língua reflete a estrutura da sociedade e sua formação histórica. No caso brasileiro, o cenário da variação social da língua apresenta uma divisão entre uma norma culta e uma norma popular (o que o autor deste artigo denomina “polarização sociolinguística do Brasil”, em artigos científicos que tem publicado em revistas especializadas da área há mais de quinze anos). O livro ainda alerta que, apesar de serem “eficientes como meios de comunicação”, as duas normas recebem uma avaliação social diferenciada, existindo “um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”, mas que “esse preconceito não é de razão linguística, mas social” (p. 12). Tudo isso é consensual entre os linguistas e do conhecimento de algumas pessoas mais esclarecidas sobre a língua, como o recentemente falecido escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, que advertiu que não se deveria falar em língua portuguesa, no singular, mas em “línguas portuguesas”, no plural. Então, o que justifica tamanha comoção social? Na passagem que despertou toda a polêmica, a autora do livro afirma que o aluno poderia falar “os livro”, sem aplicar a regra de concordância nominal, como é recorrente na norma popular, mas que ele deveria ficar “atento”, porque, “dependendo da situação”, poderia “ser vítima de preconceito linguístico” (p. 15); e, alertando-o para a adoção de um padrão único de correção social dasformas linguísticas, conclui que “o falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”. Fonte:aularagon.catedu.es Em princípio, não há nada demais nessa passagem. Até gramáticos normativistas (os mais esclarecidos, obviamente) reconhecem que o padrão da correção absoluta deve ser substituído pelo parâmetro da adequação relativa às diversas situações de uso da língua. É tão inadequado dizer “me dá menas tarefa” numa reunião formal de trabalho, quanto perguntar “poder-me-ia informar o preço desse vegetal?” em uma feira livre. Como afirma a professora Heloísa Ramos, “um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”. Informar ao aluno que a língua é plural e admite formas variantes de expressão, cada uma legítima em seu universo cultural específico, sendo, portanto, dignas de respeito, não é apenas a forma mais adequada de fazer com que o aluno conheça a realidade da sua língua, mas um preceito essencial de uma educação cidadã, fundada nos princípios democráticos, do reconhecimento da diferença como parte integrante do respeito à dignidade da pessoa humana. A pluralidade é o principal pilar de uma sociedade democrática, garantindo a diversidade de crenças, de opiniões, de comportamentos, de opções sexuais etc. Contudo, a diversidade linguística é vista sempre como uma ameaça, sem que as pessoas se deem conta do autoritarismo que tal visão dissemina. Fonte:professoraerikamonteiro.blogspot.com.br E, observando a maioria das contestações feitas ao livro, tem-se a impressão de que o mais importante não é esclarecer, ou informar melhor a sociedade sobre a realidade da língua, e sim estabelecer a confusão, tirando proveito da ignorância para exacerbar o preconceito e manter a língua como um poderoso instrumento de exclusão social. A principal contestação é a de que a admissão do “erro” prejudica o ensino da “forma correta”. Nada mais infundado. A aceitação da diversidade linguística não entra em contradição com a necessidade da aquisição de uma norma padrão para uma melhor inserção em uma sociedade de classes, dominada pelo letramento. Além disso, o livro em questão, não apenas admite que “a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário” (p. 12), como ele próprio se apresenta como um instrumento adequado desse ensino, com seus exercícios de pontuação, do uso canônico dos pronomes e até do emprego das sacrossantas regras de concordância, que ousou desafiar, tocando em um aspecto nevrálgico da visão discricionária de língua que predomina na sociedade brasileira. O reconhecimento da diversidade linguística, longe de ser prejudicial, é uma condição sine qua non para uma escola democrática e inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno sem menosprezar sua bagagem cultural. Fonte:rodadecidadania.wordpress.com A imposição de uma única forma de usar a língua, rechaçando as demais variedades como manifestações de inferioridade mental, é um ato de violência simbólica inaceitável. E antes que se diga que a distribuição de um livro que reconhece a legitimidade da diversidade linguística é mais um ato de populismo do governo do PT, deve-se informar que os avanços nas políticas linguísticas do MEC remontam ao governo FHC, quando, em 1998, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) já proclamavam que: A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre ‘o que se deve e o que não se deve falar e escrever’, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua. (…) há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades linguísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas. O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Fonte:papodehomem.com.br Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma ‘certa’ de falar — a que se parece com a escrita — e o deque a escrita é o espelho da fala — e, sendo assim, seria preciso ‘consertar’ a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico. Portanto, só a ignorância ou a má-fé podem explicar as manifestações de indignação e revolta que beiram a histeria, diante da distribuição de um livro tão pertinente, através do sistema democrático e republicano do Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Houve até o caso de uma procuradora da República que, no melhor estilo udenista da Marcha com Deus pela Família, ameaçou com processo os responsáveis pela edição e pela distribuição do livro. Chama a atenção também a leviandade dos pronunciamentos, até de intelectuais convidados para se pronunciar em programas televisivos, e dos próprios jornalistas que dirigem os programas, que sequer se dão ao trabalho de ler as poucas páginas do livro que geraram tanta polêmica. Fonte: linguisticaemfoco.wordpress.com É sintomático também que raramente um linguista seja chamado a se pronunciar. Coloca-se, então, a questão de saber por que os meios de comunicação de massa, ao invés de esclarecer e informar a opinião pública, têm-se dedicado mais a estabelecer a confusão e disseminar o preconceito, seja por má-fé, ou mesmo pela incapacidade de dar um enfoque minimamente adequado ao tema. Em suma: Por que o desconhecimento sobre a realidade linguística é desproporcional, se comparado ao de outros aspectos da cultura? Uma análise aprofundada da questão, sobretudo de suas motivações históricas, revelará que a língua nas sociedades de classe tem constituído um poderoso instrumento de dominação e de construção da hegemonia do segmento dominante. A construção dos estados nacionais encontrou na uniformização e homogeneização linguística um dos seus apoios mais eficazes, sobretudo em regimes autoritários e absolutistas. E o preconceito contra as formas de expressão das classes populares constitui um poderoso instrumento de legitimação ideológica da exploração desses segmentos pelas classes abastadas, que sempre impuseram o seu modelo de língua como o mais perfeito e universal. Na medida em que o preconceito viceja na ignorância, pode-se entender por que é tão importante impedir que uma visão isenta e cientificamente fundamentada da língua tenha uma grande circulação na sociedade. Não se trata, porém, de matéria simples, e sim de uma complexidade eivada de contradições. Além do que, não é fácil abordar a questão sem recorrer a conhecimentos básicos que são zelosamente confinados nos ambientes científicos, o que torna dificílima a tarefa de falar cientificamente da linguagem humana para um público mais amplo. Fonte:estudesemfronteiras.com Mas vamos enfrentar o tema da língua no âmbito da sociedade brasileira focalizando os seguintes aspectos: a polarização sociolinguística do Brasil como reflexo de uma sociedade marcada pela absurda concentração de renda e pela violenta exploração da força de trabalho; a adoção de uma norma linguística adventícia (o português de Portugal), como parte de um projetonacional elitista e excludente da classe dominante brasileira; e os fundamentos racistas do preconceito linguístico, particularmente do estigma sobre o não emprego das regras de concordância nominal e verbal. Mas antes é necessário falar da condição especial da língua vis-à-vis os outros aspectos do comportamento social e ilustrar um pouco o grau de desconhecimento que reina na sociedade sobre a língua, o que dá azo reprodução de uma série de mitos. A língua ocupa uma posição sui generis na estrutura social. Em outras áreas do comportamento, as leis se seguem às práticas sociais. A famosa Lei do Divórcio foi promulgada em 1977, quando a renovação dos casais já era uma prática corrente. Na língua, ao contrário, as disposições governamentais, como no caso dos PCNs citados acima, estão muito à frente da visão dominante na sociedade, que é no geral dogmática e cheia de mitificações. O linguista norte-americano William Labov fala do mito da Idade do Ouro. As pessoas tendem a acreditar que a língua atingiu sua perfeição no passado e desde então entrou em um processo irreversível de deterioração e se afligem com as inovações que a cada dia ameaçam mais e mais a integridade do idioma, sendo as mais perigosas as violações perpetradas pela “gente inculta”. Mas não se conhece uma língua sequer cujo funcionamento tenha sido comprometido pelas mudanças que sofreu ao longo de seu devir histórico. Fonte:estudesemfronteiras.com As mudanças que afetaram o chamado latim vulgar da plebe romana deram origem ao português de Camões, ao espanhol de Cervantes e ao francês de Flaubert. E as “deteriorações” sofridas pela língua portuguesa desde o tempo de Camões não impediram que Pessoa escrevesse sua magistral obra poética. Além do que, muitos males que afligem hoje a língua, para a decepção de muitos, não constituem grande novidade. Os puristas ficam horrorizados com a linguagem desleixada da Internet, impregnada de abreviaturas. Pois as abreviaturas abundam nas inscrições romanas e nos manuscritos medievais. Costuma-se correlacionar também complexidade gramatical com grau de civilização. As declinações nominais do grego e do latim clássicos são vistas como índice de uma cultura superior, e a perda dessas declinações na passagem do latim às línguas românicas é tratada como um empobrecimento. Já o alemão, com suas declinações e possibilidades de composição, é considerado uma língua mais apropriada ao pensamento filosófico. Fonte:radios.ebc.com.br Contudo, muitas línguas indígenas brasileiras exibem uma morfologia muito mais complexa, inclusive marcando certas categorias gramaticais, como a evidencialidade (que informa a fonte de conhecimento do evento verbalizado), absolutamente ausente na gramática das línguas europeias. E muitas línguas africanas, em sua maioria ágrafas (sem escrita), exibem um sistema morfológico de classificação nominal extremamente complexo. Se o grego clássico tinha três valores para categoria de número (singular, dual e plural), algumas línguas da Melanésia, de comunidades tribais, têm até cinco, que são marcadas nos pronomes, fazendo com que possuam mais de cem formas pronominais, contra algumas poucas dezenas das principais línguas europeias, que têm mais de mil anos de tradição escrita. Ou seja, complexidade gramatical não tem qualquer correlação com grau de civilização. Nem se pode pensar que complexidade gramatical implica maior poder de expressão da língua, pois o que não é dito gramaticalmente pode ser dito lexicalmente. Em português, por exemplo, não há um morfema de dual, mas se pode empregar o numeral e dizer dois meninos, o que dá no mesmo. Outro grande mito é o da ameaça à unidade linguística: se não houver uma rígida uniformização, a unidade da língua se perde; se o caos da variação linguística não for detido, a comunicação verbal ficará irremediavelmente comprometida. Ao contrário, a heterogeneidade da língua é que garante a sua unidade em uma comunidade socialmente estratificada e culturalmente diversa. Fonte:www.supersecretariaexecutiva.com.br É a flexibilidade conferida pela variação linguística que permite a uma língua funcionar tanto na feira livre quanto nos tribunais de justiça. Se fosse um código monolítico e inflexível, como sugerem os puristas, a mesma língua não poderia funcionar em ambientes tão diversos, o que levaria inexoravelmente à sua fragmentação. Impressiona o nível de ignorância que se observa em pleno século XXI em relação à língua. Qualquer pessoa medianamente informada já ouviu falar de Freud, Lévi-Strauss e Max Weber, tem alguma ideia sobre o que seja o Complexo de Édipo e o Tabu do Incesto e não ousa falar em raças superiores e inferiores, ou que um criminoso possa ser reconhecido pelo formato do seu crânio, mas fala com naturalidade de línguas simples e complexas e se refere a formas linguísticas correntes como aberrações. Aliás, a visão de que a forma superior da língua é aquela dos escritores clássicos é contemporânea do sistema de Ptolomeu, de que a Terra era o centro do Universo e, em torno dela, giravam o sol, os planetas e as estrelas. Ou seja, a Revolução de Copérnico não chegou ainda à língua. Fonte:eff.clee.utk.edu Esse estado de coisas faz aflorar contradições desconcertantes no comportamento de muitos intelectuais que são progressistas e críticos no geral dos seus posicionamentos, mas que acabam por reverberar afirmações francamente dogmáticas e reacionárias em relação à língua. No programa Espaço Aberto, da Globo News, de 18/05/2011, dedicado ao livro em questão, o Senador Cristóvam Buarque, que se coloca no campo democrático, defendeu que o MEC deveria glosar a passagem do livro que admite o uso de expressões como “os peixe”, porque cabe à “boa escola” impor a “forma correta” e extirpar a “forma errada”, crendo pia e ingenuamente que isso era compatível com o combate ao preconceito. No mesmo programa, o jornalista Alexandre Garcia inquiriu uma entrevistada, defendendo o ensino da concordância como meio de facilitar ao aluno o raciocínio lógico. E arrematou: como o aluno pode desenvolver um raciocínio lógico falando “nós pegou os peixe”? É muito provável que uma decorrência lógica dessa premissa surpreenda o jornalista. Se a concordância fosse importante para o desenvolvimento do raciocínio lógico, os norte-americanos e ingleses deveriam enfrentar dificuldades significativas nesse campo, porque o inglês é uma língua praticamente desprovida de concordância nominal e verbal. Entretanto, a grande maioria dos artigos científicos é escrita na atualidade nessa língua. E as universidades de países de língua inglesa predominam entre as melhores do mundo. Eminglês se diz: I work, you work, he works, we work, you work, they work. Fonte:brasilescola.uol.com.br Na linguagem popular do Brasil se diz: eu trabalho, tu trabalha, ele trabalha, nós trabalha, vocês trabalha, eles trabalha. Nas duas variedades linguísticas, só uma pessoa do discurso porta uma marca específica, mas o inglês é a língua da globalização e da modernidade, enquanto o português popular do Brasil é língua de gente ignorante, que não sabe votar…Se, por mero exercício, retirarmos de um ensaio filosófico ou de um artigo científico escrito em português todas as suas marcas de concordância nominal e verbal, constataremos na leitura de sua nova versão que esse texto não perde sua coerência interna, sua força argumentativa, nem seu conteúdo informacional. Ao contrário do que pensa o jornalista Alexandre Garcia, a concordância não é um requisito para o raciocínio lógico. Até porque as regras de concordância são mecanismos gramaticais que não interferem na comunicação verbal, tanto que é indiferente dizer “nós pegamos os peixes” ou “nós pegou os peixe”. A informação veiculada é a mesma. Em função disso, esses mecanismoscostumam ser muito afetados em determinados processos históricos como aqueles por que passaram o inglês, o português no Brasil e o francês, que, mesmo com a erosão na oralidade de suas marcas de concordância, não deixou de se tornar a língua de cultura do mundo ocidental no século XIX. E na belle époque a madame brasileira, que deplorava a falta de concordância de sua serviçal afrodescendente, se deleitava com os poemas de Paul Géraldy declamados nos saraus da alta sociedade. Com isso, podemos começar a entender por que as regras de concordância estão no panteão da alta cultural nacional, desempenhando um papel decisivo no projeto racista e de exclusão social das elites reacionárias do Brasil. Na recente história política deste país, a concordância teve uma posição de destaque, quando a imprensa conservadora questionava a capacidade do Presidente Lula, invocando, entre outras coisas os seus “erros de português”. O preconceito linguístico nada mais era do que a expressão de um preconceito mais profundo das elites econômicas que não podiam admitir que um torneiro mecânico ocupasse o cargo de maior mandatário da República. O sucesso e as conquistas alcançadas pelo Governo Lula, tanto no plano interno quanto externo, só vieram a confirmar que, tanto um preconceito quanto o outro, não tinham o menor fundamento. Na sucessão do Presidente Lula, a sua candidata, Dilma Rousseff, oriunda da classe média, dominava a norma culta e empregava as regras de concordância. As baterias dos segmentos reacionários se voltaram, então, contra os seus eleitores. Fonte:alunosonline.uol.com.br Argumentavam que a sua vitória se devia ao voto das massas de analfabetos do nordeste, que “nem sequer sabiam falar o português”. Eram manipulados pelas migalhas dos programas sociais do Governo Lula (não ocorreu a esses “cientistas políticos” que isso nada mais era do que uma opção, mais ou menos consciente, por um projeto de distribuição de renda e inclusão social que os beneficiava). Já os eleitores das classes médias e altas do sul e sudeste do país, escolarizados e usuários da norma culta, votavam “conscientemente no candidato melhor preparado” (não votavam no projeto político comprometido com seus interesses e privilégios). E vale tudo para desqualificar a linguagem popular, até dizer o disparate de que ela “é caótica e sem regras”, como afirmou, há alguns anos, uma jornalista da imprensa conservadora. Desde 1957, com as publicações dos trabalhos do linguista norte-americano Noam Chomsky (que é muito mais conhecido como político, mesmo sendo um dos críticos mais contundentes da política beligerante e imperialista do seu país), é consensual entre os linguistas que a Faculdade da Linguagem é uma propriedade universal da espécie humana, de modo que qualquer frase produzida por um falante de qualquer língua natural, seja ele analfabeto ou erudito, é gerada por um sistema mental de regras tão sofisticado que mesmo o computador mais poderoso já produzido é incapaz de fazer o que qualquer indivíduo faz trivialmente: falar sua língua nativa. Até porque não se pode fazer a programação do computador, pois não se conhece suficientemente o sistema que transforma os nossos pensamentos em frases, ou seja, a Gramática Universal e suas inúmeras versões parametrizadas, que definem o desenho gramatical de todas as línguas humanas. Fonte:www.google.com.br Nesse contexto, é possível compreender o quanto é subversivo (ou seja, transformador) distribuir amplamente um livro didático que reconhece a diversidade linguística e a legitimidade da linguagem popular. E entender também a violenta reação que se seguiu. É sintomático o depoimento do eminente gramático Evanildo Bechara, divulgado no portal UOL, na Internet, em 18/05/2011. Numa crítica à orientação dos PCNs, que ele considera um “erro de visão”, afirma: “Há uma confusão entre o que se espera de um cientista e de um professor. O cientista estuda a realidade de um objeto para entendê-lo como ele é. Essa atitude não cabe em sala de aula. O indivíduo vai para a escola em busca de ascensão social”. É impressionante que se diga que “não cabe em sala de aula” fornecer elementos para o aluno “compreender [a língua] como [ela] é”. É como dizer que o darwinismo não cabe em sala de aula, devendo o ensino da biologia ser orientado pelos princípios do criacionismo. Acenando com a cenoura da “ascensão social”, Bechara quer limpar o terreno do ensino para os normativistas legislarem arbitrariamente sobre a língua, como têm feito até então. A visão científica da língua, que reconhece a variação e a diversidade linguística como propriedades essenciais de qualquer língua viva, deve ficar hermeticamente confinada aos ambientes científicos. Fonte:campi2015.wordpress.com Na escola e na sociedade, deve predominar a visão dogmática e obscurantista de que existe uma única forma de falar e escrever, enquanto as demais devem ser vistas como deteriorações produzidas por mentes inferiores. Pode-se entender, assim, por que o posicionamento dos linguistas no debate social sobre a língua desperta sempre reações furiosas por parte da imprensa conservadora. Na matéria de capa da Revista Veja, dedicada à língua portuguesa, em sua edição de 07/11/2001, pode-se ler uma referência à posição dos linguistas como “o pensamento de uma certa corrente relativista”, segundo a qual “o certo e o errado em português não são conceitos absolutos”. Prosseguindo, afirma que, segundo essa tendência, “quem aponta incorreções na fala popular estaria, na verdade, solapando a inventividade e a autoestima das classes menos abastadas. Isso configuraria uma postura elitista.” Diante disso, a revista sentencia: “trata-se de um raciocínio torto, baseado em um esquerdismo de meia pataca, que idealiza tudo o que é popular – inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do povo” (p. 112). O primarismo do raciocínio e a grosseria na linguagem são atributos bem conhecidos dessa publicação, mas acreditar que os juízos de correção idiomática são absolutos, e não determinados historicamente, constitui uma ignorância bastante real, nada idealizada. Um exemplo cabal. No passado recente, seria considerado um erro grave escrever o seguinte período “Diria-se que essa afirmação não tem fundamento”; o certo seria “Dir-se-ia que…”. Pois bem, atualmente, a maioria dos manuais de redação dos principais jornais do país veta o uso da mesóclise (dir-se-ia). Isso coloca em questão a atualidade da norma de referência linguística, ou norma padrão, no Brasil. Na referida matéria, a revista Veja tece loas ao gramático midiático Pasquale Cipro Neto. O grande mérito do Professor Pasquale é dar uma roupagem nova ao velho discurso purista e conservador da tradição gramatical. Embora admita os “desvios” da linguagem coloquial, Pasquale prescreve as formas da norma culta, que devem ser empregadas nas situações de comunicação formal. Assim, uma estrutura como “o jogador custou a chutar”, de uso corrente na linguagem cotidiana, não deve ser usada em situações formais, porque na norma culta se diz “custou ao jogador chutar”. Porém, o linguista Marcos Bagno tem demonstrado que estruturas como “o jogador custou a chutar” e outras que Pasquale afirma não pertencer à norma culta são recorrentes nos textos de escritores consagrados, como Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, ou mesmo de clássicos, como Machado de Assis e José de Alencar. Isso demonstra que, no Brasil, existe um desacordo flagrante entre a norma padrão – modelo ideal de língua usado como critério para a correção linguística – e a norma culta – forma da língua concretamente usada pelas pessoas consideradas cultas, advogados, jornalistas, escritores etc. Ao empregar as duas expressões como sinônimas, Pasquale e osnormativistas buscam dar às suas prescrições uma legitimidade que elas não têm, porque se apoiam numa equivalência que está longe de existir. A tensão entre a norma padrão e a norma culta é normal em qualquer sociedade letrada, na medida em que a norma padrão constitui uma forma fixa e idealizada de língua a partir da tradição literária, enquanto a norma culta, constituída pelas formas linguísticas efetivamente em uso está sempre se renovando. Porém, no Brasil o desacordo entre as duas é grave desde as origens do estado brasileiro. A independência política do Brasil, ocorrida em 1822, desencadeou uma série de manifestações e movimentos nativistas, que tinham no índio tupi o grande símbolo da nacionalidade. Contudo, escritores que abraçaram a temática indigenista e nacionalista que tentaram adequar a linguagem portuguesa à nova realidade cultural do Brasil, como José de Alencar, foram alvo de virulentas críticas provenientes do purismo gramatical. Mais uma vez, a língua se descolou dos demais aspectos da cultura, nos quais todos os elementos representativos da brasilidade deveriam ser adotados, derrubando os símbolos da velha ordem colonial. Entretanto, a linguagem brasileira era vista como imprópria e corrompida, devendo continuar a prevalecer a língua da antiga Metrópole portuguesa. A vitória dos puristas na questão da língua no Brasil expressa a essência do projeto elitista e excludente da classe dominante brasileira. E a base racista desse projeto fica clara neste trecho do discurso de Joaquim Nabuco, na sessão de instalação da Academia Brasileira de Letras, em 1897: A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa uniformidade de língua escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós; devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las indo a eles. (…) Nesse ponto tudo devemos empenhar para secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época (…) Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano ou Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem brasileira. Fonte:xembae.blogspot.com.br Para além da contradição entre a vassalagem linguística e o espírito nacionalista ainda em vigor na época, essa adoção do modelo da língua de Portugal terá graves implicações para a normatização linguística no Brasil, sendo a mais evidente o generalizado sentimento de insegurança linguística que aflige todos segmentos da sociedade brasileira, mesmo os mais escolarizados. É comum ouvir no Brasil afirmações do tipo “o português é uma língua complexa”, ou “o brasileiro não sabe falar português”. E não poderia ser diferente porque, ao adotar os modelos da língua de Portugal, a tradição gramatical brasileira exige que os brasileiros escrevam, ou até mesmo falem, com a sintaxe portuguesa, o que é impraticável, porque a língua não parou de mudar, tanto em Portugal quanto no Brasil, em um processo que, por vezes, assume direções distintas, ou mesmo contrárias, em cada um dos lados do Oceano Atlântico. Uma das mais notáveis dessas mudanças foi a violenta redução das vogais átonas da língua em Portugal, fazendo com que os portugueses pronunciem telefone como telefone, o que confere ao português europeu contemporâneo uma sonoridade, que é menos românica do que germânica, ou mesmo eslava. Já no Brasil pronuncia- se téléfoni ou têlêfoni (consoante a região), tendo ocorrido o inverso: o fortalecimento das vogais pretônicas. Essa mudança acabou por repercutir em outros níveis da estrutura da língua, de modo que em Portugal se generalizou o uso da ênclise, até nos casos em que, na língua clássica, era obrigatório o uso da próclise (e.g., O João disse que feriu-se; Não chegou-se a um acordo), enquanto no Brasil emprega-se normalmente a próclise até nos contextos vedados pela tradição (e.g., Me parece que ela não veio). Para além da insegurança linguística, a adoção de uma norma adventícia no Brasil produz também verdadeiros absurdos pedagógicos. Toda gramática normativa brasileira tem um capítulo dedicado à colocação pronominal, que se inicia invariavelmente com a afirmação “a colocação normal do pronome átono é a ênclise”; ao que se seguem mais de vinte regras indicando onde se deve usar a próclise (em orações subordinadas, depois de palavras negativas, após alguns advérbios etc). Tal gramática serve a um estudante português, que usa normalmente a ênclise e pode aprender quais são os contextos excepcionais onde a tradição recomenda o uso da próclise, mas não tem a menor serventia para um estudante brasileiro, que já usa normalmente a próclise. Para ter algum valor pedagógico, o texto da gramática brasileira deveria ter a seguinte feição: “a colocação normal do pronome átono no Brasil é a próclise; entretanto, para se adequar à tradição, deve-se evitar essa colocação em início de período e após uma pausa”. Fonte:educaradio.org Esses equívocos se exacerbam dentro da visão tradicional que restringe o ensino de língua portuguesa à prescrição do uso de formas anacrônicas, quando o ensino da língua deve ser muito mais amplo que isso, concentrando-se em práticas criativas que capacitem o aluno a produzir e interpretar textos, dominar os diversos gêneros textuais e identificar os mais variados sentidos e valores ideológicos que as produções verbais assumem em cada situação específica; ao que se deve somar uma informação propedêutica acerca da diversidade da língua. Pode-se entender, assim, porque uma entidade conservadora e anacrônica, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), juntou-se às vozes recalcitrantes, criticando o livro de português do MEC em uma nota oficial, na qual afirma: “Todas as feições sociais do nosso idioma constituem objeto de disciplinas científicas, mas bem diferente é a tarefa do professor de língua portuguesa, que espera encontrar no livro didático o respaldo dos usos da língua padrão que ministra a seus discípulos”. Mais uma vez, a ladainha de que a escola e a sociedade devem ser privadas de uma visão científica (ou seja, realista) da língua, ficando à mercê de toda a arbitrariedade normativista, inclusive aquela que impõe uma norma de correção adventícia e absolutamente estranha à realidade linguística do país. Mas, a ABL apenas manteve-se fiel às suas origens, como se pode ver no extrato do discurso de Joaquim Nabuco reproduzido acima e que nos informa sobre outro aspecto crucial da ideologia linguística dominante no Brasil. Segundo Nabuco, a língua se corrompia mais rapidamente no Brasil, ao contrário do que acontecia em Portugal, porque lá a raça era “pura” [sic]. A conclusão é óbvia. O cânone português deveria ser adotado para eliminar os efeitos deletérios produzidos na língua portuguesa do Brasil, em função do contato com os índios que aqui viviam e com os mais de quatro milhões de africanos que o tráfico negreiro trouxe, ao longo de mais de trezentos anos. Mas, quais seriam esses efeitos? A formação da sociedade brasileira é marcada pelo que ficou conhecido como sociedade de plantação (em inglês, plantation). Trata-se de grandes empreendimentos agrícolas que empregavam maciçamente a mão-de-obra escrava importada da África para a produção em larga escala de commodities, tais como açúcar, fumo, algodão e café, para o mercado europeu. Esses empreendimentos, que predominaram no nordeste brasileiro (nos séculos XVI, XVII e XVIII) e no sudeste (no século XIX), também predominaram na região do Caribe, dando ensejo à formação de grande parte das línguas crioulas hoje conhecidas no mundo, tais como: o crioulo francês do Haiti, o crioulo inglês da Jamaica,o papiamento, em Curaçao, e o saranan e o saramacan, no Suriname, entre outras. Essas línguas crioulas resultam da aquisição precária das línguas coloniais europeias por parte de uma grande massa de escravos africanos e da nativização desse modelo defectivo de segunda língua entre os descendentes desses escravos (denominados crioulos, que significava ‘nativo do local’), tornando-se a língua da nova comunidade de fala que se formava nesse contexto colonial. Estruturalmente, essas línguas se caracterizam por uma profunda reestruturação gramatical combinada com a conservação do vocabulário da língua dominante, o que deu azo à antiga definição de língua crioula como uma língua de léxico europeu com gramática africana, que hoje em dia não é considerada muito adequada. De qualquer modo, uma das características mais gerais entre as línguas crioulas é a ausência de certos mecanismos gramaticais que não têm valor informacional, tais como as regras de concordância nominal e verbal e a flexão de caso. Fonte:www.pethl.unilab.edu.br Apesar das semelhanças históricas com essas sociedades do Caribe, na história do Brasil não ocorreram processos de crioulização do português de forma representativa e duradoura, em função da maior complexidade da sociedade brasileira e, sobretudo, da generalizada miscigenação, que possibilitava uma maior inserção social de índio e afrodescendentes. Porém, isso não quer dizer que o contato entre línguas não afetou o desenvolvimento histórico da língua portuguesa no Brasil. Pode- se dizer que, particularmente na formação histórica das variedades populares do português brasileiro, teriam ocorrido processos de crioulização leve (ou semi- crioulização), com maior ou menor intensidade, conforme o caso. As pesquisas que temos desenvolvido há quase vinte anos sobre a fala de comunidades rurais remanescentes de antigos quilombos, no Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia, sediado na Universidade Federal da Bahia (cf. http://www.vertentes.ufba.br/), revelam que os reflexos mais notáveis do contato entre línguas na formação do português popular brasileiro são exatamente a ampla variação no emprego dos mecanismos de concordância nominal e verbal (e.g., meus amigo não chegou ainda, ao invés de meus amigos não chegaram ainda) e da flexão de caso dos pronomes pessoais (e.g., ele encontrou nós na feira, ao invés de ele nos encontrou na feira). O conhecimento da história sociolinguística do Brasil, baseado em evidências empíricas consistentes, revela a razão por que o preconceito linguístico que se abate http://www.vertentes.ufba.br/ sobre a fala popular tem como alvo principal a falta de concordância nominal e verbal – exatamente o reflexo linguístico mais notável do caráter pluriétnico da sociedade brasileira; usos que seriam os equivalentes linguísticos do candomblé, da capoeira e do acarajé. Fonte: www.brasil.com E, como se demonstrou acima, a falta de concordância não implica qualquer déficit na expressão verbal, portanto a condenação dessas formas não tem o menor fundamento linguístico. Mas, se nos outros planos da cultura o legado cultural africano e indígena já foi incorporado, a língua ainda se mantém como o terreno do preconceito e da intolerância. A violenta discriminação social que se abate sobre essas marcas da fala popular, usada por mais de dois terços da população brasileira de baixa renda (onde se concentram os índios e afrodescendentes), constitui um poderoso instrumento para a legitimação ideológica de um projeto de concentração de renda e exclusão social. Utilizando a língua para desqualificar esses segmentos como inferiores e incapazes, as classes dominantes justificam-no plano da ideologia a sua exploração. E, como se demonstrou aqui, a escolha da concordância como alvo principal do preconceito tem historicamente uma motivação racista. Se a discriminação racial e sexual não são mais toleradas, o racismo linguístico ainda segue impune como ideologia dominante na sociedade. Fonte: iilp.wordpress.com Pode-se compreender plenamente agora a violenta reação provocada pela distribuição de um livro didático que reconhece a legitimidade da falta de concordância na fala popular. E o argumento de que se quer com isso privar a população do acesso à norma culta não tem o menor fundamento. Até porque as análises sociolinguísticas do Projeto Vertentes revelam também que a aquisição da norma culta ocorre paralelamente à inserção desses segmentos na sociedade brasileira. Ou seja, nas comunidades rurais, os jovens, que têm alguma escolaridade, estão melhor inseridos no mercado de trabalho e têm um maior acesso aos meios de comunicação de massa, usam mais as regras de concordância nominal e verbal do que os mais idosos, que normalmente estão menos inseridos, em termos econômicos e culturais. Portanto, não é o racismo linguístico que vai levar à difusão da norma culta, mas a distribuição de renda, a inclusão social e a ampliação e melhoria da rede pública de ensino. A virulenta reação ao livro de português do MEC não se justifica também como defesa de um ensino mais eficaz da língua portuguesa, pois já está comprovado entre os experts da área (ou seja, entre pedagogos e linguistas) que um modelo antiquado, que privilegia a imposição de formas linguísticas adventícias e/ou anacrônicas, está longe de ser o mais eficaz. Não é a correção de “assistir o espetáculo” por “assistir ao espetáculo” que vai fazer o aluno escrever melhor. Um ensino eficaz de língua materna incorpora a bagagem cultural do aluno, promovendo uma ampla prática de leitura e produção de textos nas mais variadas situações de comunicação, desenvolvendo também sua capacidade de reconhecer os sentidos e valores ideológicos que a língua veicula em cada situação. Nesse ensino, é imprescindível promover a consciência acerca da diversidade linguística como reflexo inexorável da variedade cultural. E esta formação cidadã para o respeito à diferença não entra em contradição com o ensino da norma culta, que deve permanecer. Fonte: clpbruxelas.blogspot.com.br O que está em jogo, na verdade, é a opção entre um ensino discriminatório e arbitrário, baseado no preconceito e no dogma, e um ensino crítico e pluralista, baseado no conhecimento científico acumulado até os dias de hoje, como ocorre na física, na matemática, na geografia, etc. Por que se deve privar os alunos do conhecimento científico da língua, reduzindo a disciplina língua portuguesa a um mero curso de etiqueta gramatical (é feio falar assim, é bonito falar assado), como preconizam os gramáticos (para defender o seu mercado de trabalho) e a ABL (para garantir a sua pompa)? Portanto, ao invés de recuar diante da pressão das forças reacionárias, o governo brasileiro deve fazer valer seus compromissos democráticos e de inclusão social, mantendo a atual distribuição republicana dos livros didáticos. Mais do que isso, uma conjunção de entidades democráticas, associações de educadores e a comunidade científica deve tomar este episódio como mote para desencadear um amplo debate na sociedade brasileira, aprofundando e consolidando a transformação já em curso no ensino de língua portuguesa no país, abandonando de vez o velho modelo que restringe o ensino da língua à imposição de formas anacrônicas e absolutamente estranhas à realidade da língua e que dissemina uma visão discricionária e preconceituosa acerca dos usos linguísticos. Numa sociedade democrática e progressista, o ensino de língua deve ser eficaz e pluralista; eficaz, porque se concentra no objetivo maior de tornar o indivíduo um proficiente leitor e produtor de textos nos mais variados contextos em que se dá a interação verbal; e pluralista, porque desenvolve no aluno a consciência para a diversidade linguística como parte integrante do princípio fundamentaldo respeito à diferença. Está mais do que na hora de os avanços obtidos pela sociedade brasileira em outros campos chegarem à língua. Dessa forma, é possível que o cenário de uma verdadeira revolução democrática nesse país seja o idioma nacional.4 4 Texto extraído do link: anidabar.wordpress.com BIBLIOGRAFIA BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Hucitec, 1981. CHAMBERS, J. K.; TRUDGILL, Peter (1980). Dialectology. Cambridge University Press. DE MORAIS, Artur Gomes. Ortografia: ensinar e aprender. Ática, 1998. LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. Tradução Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo, Parábola Editorial, 2008. LUCCHESI, Dante (2001). O tempo aparente e as variáveissociais. Boletim da ABRALIN, v.26, p.135-137 LUCCHESI, Dante (2004). Sistema, Mudança e Linguagem. São Paulo: Parábola. LUFT, Celso Pedro. Moderna gramática brasileira. Globo Livros, 2002. 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